N.º 30 - dezembro 2022

Helena Pires
FUNÇÕES: Concetualização, Investigação, Metodologia, Administração do Projeto, Visualização, Redação do Rascunho original,
Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Ciências da Comunicação e
Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal
E-mail: hpires@ics.uminho.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5533-4687

Resumo: A reflexão que aqui nos propomos fazer surgiu do desejo de relevar os diferentes modos como os frequentadores d’A Brasileira, em Braga, se apropriam do café, transformando-o num lugar simultaneamente pessoal, que cada um inscreve nas suas rotinas, nos seus encontros marcados ou fortuitos com os amigos e conhecidos, nas suas memórias e histórias de vida, mas também num lugar impessoal, não no sentido da experiência da indiferença, mas da dilatação da experiência aos modos de ser-com e de estar-com (Heidegger, 2004, 2005), ou do lembrar-com (Candau, 2005/2013; Halbwachs, 1925/1994), ou, por outras palavras, da possibilidade de cada um se sentir parte do que observa, do que nele ressoa, distendido sobre as ambiências, os objetos, as conversas, as vistas, para lá da sua esfera estritamente subjetiva. Com este propósito, procurámos contribuir para a valorização do sentido de comunidade (Maffesoli, 2000; Tönnies, 1944/2010) e de pertença que, em tempos de crescente celeridade, bem como de progressiva descaracterização e “nudificação” (Zukin, 2009) do espaço urbano, urge resgatar. A investigação reportada permite-nos concluir que o café A Brasileira se apresenta como um lugar de resistência, ao mesmo tempo que ali se observam inevitáveis mudanças, decorrentes de fenómenos como a “turistificação” (Harris et al., 2012), mas também de operações sub-reptícias profundas, expressivas de uma cultura em mudança. Neste quadro tensivo, encontramos, ainda, inesperadas fissuras de criatividade (Certeau, 1998) quanto ao modo como cada um se apropria do lugar vivido e nele reinventa um modo singular de se reencontrar a si mesmo no quotidiano, em ligação com o sentido de micro-comunidade.

Palavras-chave: café, A Brasileira, identidade, comunidade.

Abstract: This article aims to highlight the different ways in which the customers of A Brasileira, in Braga, appropriate the coffee-shop. It is transformed into a simultaneously personal place, which one inscribes in their routines, appointments with friends and acquaintances, memories and life stories. But it is also an impersonal place, not in the sense of the experience of indifference, but of the expansion of the experience to the ways of being-with (Heidegger, 2004, 2005), or of remembering-with (Candau, 2005/2013; Halbwachs, 1925/1994). For this purpose, we sought to contribute to the enhancement of the sense of community (Maffesoli, 2000; Tönnies, 1944/2010) and of belonging that is urgent to rescue, especially in times of increasing celerity, as well as progressive de-characterization and “nudification” (Zukin, 2009) of urban space. This research allows us to conclude that the coffee-shop A Brasileira presents itself as a place of resistance. At the same time, inevitable changes are observed there, resulting from phenomena such as “touristification” (Harris et al., 2012), but also of deep underhand operations, expressive of a changing culture. In this framework, we also find unexpected cracks in creativity (Certeau, 1998) as to the way in which each one appropriates the lived place, reinventing a unique way of finding oneself in everyday life, in connection with a micro-community sense.

Keywords: coffee-shop, A Brasileira, identity, community.

Introdução

Propomos com este ensaio discutir o sentido de identidade-comunidade produzido no café A Brasileira, em Braga, a partir de uma investigação realizada no âmbito do projeto “Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana”, inscrito no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade — CECS (Universidade do Minho).[1]

A Brasileira (Figura 1), café inaugurado em 1907, é reconhecida como fazendo parte do comércio com valor patrimonial em Braga. Esta classificação é comum aos cafés com maior longevidade em diversas cidades, como o denota o livro Cafés Portugueses — Tertúlias e Tradição (Alemão, 2017), reconhecidos na sua dimensão cultural e simbólica. Partimos da hipótese de que os designados cafés históricos, de algum modo, funcionam como um barómetro, permitindo inquirir um dado sentido de identidade-comunidade, reescrever memórias coletivas e observar transformações culturais e sociais, bem como as idiossincrasias das cidades em que se inserem.

Figura 1 Café A Brasileira, em Braga
Créditos: Projeto “Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana” (CECS/UMinho).

Começámos por perguntar: de que modo a cultura se manifesta na banalidade, nos gestos, nos objetos, nos (micro)lugares? Como observar a vida quotidiana da cidade?

Passemos os olhos pelo seguinte excerto da publicação Cenas e vistas d’A Brasileira, decorrente do projeto já referido:

A partir dos retratos do quotidiano n’A Brasileira, desenham-se quadros da vida na cidade, compostos por detalhes que escapam às notícias, insignificâncias que dificilmente são percetíveis nas visões mais panorâmicas, pequeníssimos nadas que tanto prenunciam mudanças como resistências inesperadas, expressões de diferentes culturas e identidades, coabitando, não raras vezes, de forma assíncrona. (Pires et al., 2020, p. 8)

Assumimos que os cafés são pontos de encontro e de observação privilegiados, salas-de-estar onde ressoam as memórias, mas também o pulsar das mudanças e o permanente devir das (micro)comunidades. Usamos aqui o termo micro-comunidade pensando na cidade como uma comunidade (Tönnies, 1944/2010) e no café como um micro-lugar (Coles, 1999; Oldenburg, 1989, 2001; Sansot, 1973), uma comunidade dentro da cidade-comunidade.

Esta pesquisa entendeu A Brasileira como uma janela com vistas para a cidade e os mistérios da vida urbana de todos-os-dias, tomando como inspiração Edgar Allan Poe (1840/1996), em The Man of The Crowd. Por metodologia, adotámos a microanálise, nos termos de Benjamin (2019), entendendo-se A Brasileira como uma lupa que permitiu observar os mais ínfimos detalhes do quotidiano, uma plataforma de interseção entre diferentes temporalidades, entre a cidade “real” e a cidade imaginária, uma âncora de produção partilhada de sentidos.

As ilustrações de Pedro Seromenho, que acompanham a publicação Cenas e vistas d’A Brasileira (Pires et al., 2020), desempenharam nesta pesquisa um papel desafiante:

  1. Explorámos o papel da ilustração na etnografia;
  2. Desenhámos, com a ilustração, dois passeios paralelos (duas narratividades), defendendo-se a não subordinação da imagem ao texto e vice-versa (Kress & Leeuwen, 2006, 2009);
  3. A ilustração acrescentou à pesquisa uma coleção de retratos visuais de um “imaginário à solta”, isto é, a ilustração de Seromenho, embora inspirada n’A Brasileira, não representa o “real”;

Foi assim adicionanda à investigação a experimentação de modos possíveis de integrar a explanação do imaginário como medium no contexto da etnografia visual (Feixa & Porzio, 2008; Pink, 2001).

Fazemos nossa a seguinte reflexão de Belting (2014):

Uma “imagem” é mais do que um produto da percepção. Surge como o resultado de uma simbolização pessoal ou coletiva. Tudo o que comparece ao olhar ou perante o olho interior pode deste modo aclarar-se através da imagem ou transformar-se numa imagem. Por isso, o conceito de imagem, quando se toma a sério, só pode ser, em última análise, um conceito antropológico. Vivemos com imagens, compreendemos o mundo através de imagens. Esta referência viva à imagem prolonga-se e persiste, por assim dizer, na produção imaginal física, que organizamos no espaço social; semelhante produção relaciona-se com as imagens mentais, à maneira da pergunta e da resposta, para utilizarmos uma fórmula habitual. (pp. 21-22)

Foi tendo em vista a apropriação da natureza socio-imaginária e antropológica das ilustrações de Seromenho que procedemos a apoiar-nos nos seus modos indeferidos de inquirição, a partir dos quais se teceu uma tentativa de exercitar o pensamento e a compreensão da realidade quotidiana observada e o universo imaginário que nas imagens, bem como na linguagem e diferentes formas de representação (Hall et al., 2016), se transformam em corpo-sensível.

A título de contextualização, note-se que no café A Brasileira desenvolvemos trabalho de campo de inspiração etnográfica durante cerca de um ano e meio, a partir de 2018 (no período pré-pandemia), recorrendo a:

  1. Observação multissensorial (participante): notas de campo a três mãos ao longo de um período temporal distendido (2018-2020);
  2. Entrevistas em profundidade (colaboradores, clientes, comerciantes da Rua de S. Marcos…);
  3. Registo de testemunhos e conversas informais (entrevistas de ocasião);
  4. Pesquisa bibliográfica e documental.

Com base num procedimento indutivo de análise das notas de campo e outros dados recolhidos, identificámos um conjunto de sub-categorias que serviram a criação de uma fisiologia, à maneira das fisiologias do século XVIII, referidas, entre outros por Walter Benjamin (1972/2006, 2019).

Tais sub-categorias acabaram por se traduzir numa coleção de micro-retratos com expressão no índice do livro que acabámos por publicar após a conclusão do projeto, em 2020. Esta fisiologia, não-sequencial e incompleta, foi organizada segundo três registos, um registo com retratos/figuras, outro respeitante a objetos e outro associado a vistas:

Retratos/figuras

O engraxador-vendedor de cautelas
O Sr. M.
A jovem de cabelo colorido
De lenço na cabeça
De chapéu cloche
O saudosista
O par de leitores
A escriturária

Objetos

Café de saco
O aparador
O relógio
Arquitetura de di(visão)

Vistas

Em família
Entre velhos amigos
O olhar dos turistas
Em friso
Desfile de moda e felicidade
A multidão
Sons do Brasil
A Parisiana
Vistas

Em paralelo, fomos pintalgando o nosso itinerário de observação-reflexão com os retratos imaginais com que nos foi presenteando Pedro Seromenho, transformando em 15 ilustrações (Figura 2) um conjunto de memórias, atmosferas, ficções:

Figura 2 Cenas e vistas d’A Brasileira (Ilustrações)
Créditos: Pedro Seromenho.

Identidade-comunidade

Com a investigação que enquadra o presente ensaio, propusemo-nos, reafirmamos, perceber A Brasileira como um (micro)lugar, no contraponto da noção de “não-lugar” avançada por Augé (1992/2012), associada aos lugares urbanos de carácter transitório e que se definem, na sobremodernidade, segundo o autor, por oposição aos lugares antropológicos. Estes últimos definem-se enquanto lugares relacionais, identitários e históricos. Tais dimensões são precisamente objeto de repetido resgate em A Brasileira, recriadas nos contextos quotidianos de vivência, através das persistentes interações entre funcionários e clientes, entre conhecidos e amigos que ali se cruzam, das rotinas, das memórias pessoais e coletivas. Ao mesmo tempo, é singular a natureza das relações, das identidades (Maalouf, 1996/2000) e das memórias (Candau, 2005/2013) que assim se constituem, na fugacidade das passagens, nas intermitências entre o espaço privado e o “terceiro lugar” (Oldenburg, 1989, 2001). O carácter impermanente das identidades deste modo recriadas, bem como a natureza passageira do lugar, não deixam, paradoxalmente, de se enraizar no sentido de pertença a uma mico-comunidade, fundamental à segurança ontológica e confiança dos indivíduos (Giddens, 2002) que a partir da modernidade investem na recuperação de si, na sua ligação com o mundo circundante. O que quer dizer que avançamos com uma leitura do café enquanto lugar onde resistem o exercício de produção da identidade, da história e da memória, numa palavra o sentido de comunidade.

Falamos de um sentido produzido numa instância liminal, num lugar de fronteira, a meio caminho entre o interior e o exterior, o dentro e o fora, a “despersonalização” que na modernidade se associa à desafeção própria do dândi e o carácter poético, a experiência fenomenológica da cidade, estimulada por configurações espaciais e materiais singulares, como a rua, a vitrine, algumas das quais discutidas em Sansot (1973). Enquanto lugares de intervalo, situados entre a casa e o trabalho ou o espaço literalmente público, como é o caso da praça, os cafés podem ser entendidos como lugares “semipúblicos”, tal como designados em diferentes investigações, investidas no estudo das relações entre os homens e as materialidades espaciais (Almeida, 2013), bem como no carácter politizado deste tipo de lugares, instigadores de tertúlias agenciadas por pensadores, escritores e filósofos, ou mesmo por revolucionários (Niedzielski, 2018).  A reinvindicação do direito à cidade (Lefebvre, 2000/2012) e ao exercício da cidadania não se faz, assim, sem a recuperação da vocação social e identitária dos cafés (Lutard-Tavard, 2010). Iremos seguidamente discutir o sentido de identidade-comunidade que n’A Brasileira se costura a partir de três eixos:

i) (micro)lugar ritualístico;

ii) (micro)lugar habitado por histórias e memórias;

iii) (micro)lugar de desejo estético-político.

(Micro)lugar ritualístico

Ferdinad Tönnies, a par de Max Weber e de Georg Simmel, um dos fundadores da sociologia alemã, publicou em 1887 a obra Comunidade e sociedade. Ao autor importa sobretudo discutir a passagem da comunidade à sociedade. Nessa passagem, o ritual é uma das dimensões persistentes. No café A Brasileira ensaia-se, precisamente, o sentido de comunidade. A vida de todos os dias expressa-se nas repetições e nas mesmidades: são frequentes os clientes que chegam e partem à mesma hora e os empregados preparam-lhes de antemão as torradas em pão de forma, a meia de leite em copo de vidro ou o café de saco, pousando-lhes na mesa, onde costumam sentar-se, o Diário do Minho. Ali se marca o compassar das lides do quotidiano, o antes e depois do almoço, os encontros com os amigos em finais de tarde:

É frequente observar que o friso de mesas junto à parede do lado de fora d’A Brasileira, nos dias em que não chove, é ocupado, preferencialmente no final da manhã, ou no final da tarde, por um determinado tipo de clientes, parte deles ligado ao mundo da música, do teatro ou afins, compondo a designada “geração dos anos oitenta”. Assinalam entre si a chegada com um leve trejeito de cabeça, e sentam-se nas cadeiras ainda livres, entaramelando conversa com quem já está sentado, na mesma mesa ou na mesa contígua. Dão as costas à parede e posicionam-se de modo a poderem ver quem passa. Alguns, de perna cruzada, fumam um vagaroso cigarro que acabam por apagar no chão, pisando a beata com o sapato (…) A regularidade destes encontros, ao longo da semana, parece marcar rotinas sequenciais que teimam em persistir, seja o antes do almoço, o antes do jantar, ou o antes dos espetáculos, no Theatro Circo. (Pires et al., 2020, p. 75)

Voltando a Tönnies (1944/2010), será de notar que este confere um papel fundamental à vontade, individual ou coletiva, ainda que distinguindo entre “vontade de natureza”, mais associada à comunidade, da “vontade de arbítrio”, mais associada à racionalidade que subjaz à estrutura da sociedade. Interessa-nos aqui, sobretudo, reter a ideia de comunidade, associando-a, por um lado, à vontade coletiva e resistência do sentido mais orgânico que Tönnies lhe confere, o qual se observa n’A Brasileira, por outro, à importância da dimensão ritualística, como já apontado, herdada da natureza em última análise religiosa que o autor atribui ao conceito de comunidade, dimensão a nosso ver resiliente no universo investigado. A esta dimensão não escapam, entre outras infinitas (micro)produções simbólicas, as impecáveis fardas dos empregados, identificados com o nome gravado em placas metálicas, ou os detalhes do guarda-loiça, do mobiliário, das ambiências ou das gestualidades infinitamente reproduzidas, como sejam a troca de moedas pousadas nas bandejas, o aroma do café acabado de moer ou as longas manhãs ou tardes dedicadas à passagem do tempo, pois A Brasileira é, sobretudo, um café para estar, um lugar de permanente ritualização do quotidiano.

Convocando Max Weber, designadamente a sua obra Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva, é interessante notar que o sociólogo associa, desde logo, a origem e a história da cidade ao seu carácter comunitário, conferindo-lhe determinados princípios organizativos. Cidade e comunidade são, pois, segundo o paradigma teórico de Weber (1910-1922/2004, 1910-1922/2005), termos co-constitutivos. Inscrevendo-se esta pesquisa de campo no projeto Passeio, cujo referencial de base, territorial e imaginário, é a cidade, impõe-se sobremaneira sublinhar o sentido comunitário implicado na vida urbana quotidiana. Em particular, admite-se que em cada cidade coabitem múltiplas micro-comunidades, de entre elas a comunidade frequentadora do café A Brasileira.

Será ainda oportuno referir, explanando este sentido de (micro)comunidade urbana, num quadro mais contemporâneo, Maffesoli, e em particular a sua obra O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa. Neste livro, o autor defende a ideia de que se assiste, no âmbito de uma alteração de paradigma designado pelo autor por “pós-modernidade”, a uma transformação generalizada das instituições — a família, o Estado, a religião -, uma vez desprovidas da sua função integradora e substituídas por novas configurações comunitárias onde os indivíduos reencontram e reinventam dispositivos identitários alternativos. Face à massificação da sociedade e à perda do sentido de individualidade, é em “novas tribos” (Maffesoli, 2000), desde os clubes de futebol, as bandas de música ou determinados estilos diferenciados de consumo que cada um se redefine, não perdendo o seu sentido de pertença a uma dada “comunidade”.

Em linha com os múltiplos sentidos da vida comunitária urbana brevemente apontados, dir-se-ia que n’A Brasileira se observam movimentos contraditórios, embora coabitantes entre si. Por um lado, herdeira de um passado marcado pela justaposição, num mesmo lugar, de diferentes grupos, tais como os padres ou os professores e os artistas ou intelectuais da cidade, a par das classes mais populares (pessoas do “campo” vindas à cidade), A Brasileira é, ainda hoje, uma comunidade que abriga diversas (micro)comunidades, cujos rituais em parte se mantêm e em parte se transformaram. Tal é o caso dos artistas e intelectuais, e não só, outrora parte integrante da vida quotidiana do café e agora mais dispersos, alguns deles desidentificados com as mudanças operadas pela pressão turística ou pela perda de uma relação mais próxima com os empregados (reformados ou falecidos) ou amigos entretanto desaparecidos. Por outro lado, o aumento dos preços, na sequência, mais uma vez, do incremento da pressão turística, ou por exemplo a dificuldade em encontrar mesa livre a certas horas do dia, ou ainda as alterações do panorama social e cultural que passou a habitar o café (turistas, brasileiros residentes em Braga, novos clientes), conduziram ao afastamento de alguns antigos clientes. Rituais como o café depois do jantar, antes dos espetáculos no Theatro Circo, ainda persistem, embora os encontros entre os jovens universitários, mais notórios noutros tempos, sejam hoje uma prática periclitante. Ainda se denotam teimosas apropriações quotidianas do lugar de cada um no café da cidade (“o coração da cidade”), como bem expressam os (micro)retratos do “par de leitores”, de “o saudosista” ou da personagem “de chapéu cloche”, descritos em Cenas e vistas d’A Brasileira. Retenhamo-nos na seguinte passagem do primeiro dos (micro)retratos enunciados:

De manhã, por volta das nove horas, chegam um homem de meia-idade, magro e de aspeto juvenil, de cabelo grisalho, e um jovem de trinta e poucos anos, de estatura esguia. De imediato, sem mais delongas, sentam-se quase sempre na mesma mesa e cada um deles mergulha, compenetradamente na leitura. O primeiro dedica-se a ler o jornal, enquanto o mais novo, sem pressa, abre um livro e nesse deposita, tranquilamente, os olhos. De vez em quando alterna a leitura entre o livro e o jornal. Quando isto acontece, pousa o livro, um grosso volume, sobre a cadeira adjacente. Ambos permanecem por um período dilatado de tempo, parecendo não ter outro destino que não o rigoroso cumprimento deste mesmo ritual quotidiano. Os empregados trazem-lhes a meia de leite e a torrada já sem os questionar. (Pires et al., 2020, p. 53)

Não deixando de se observar um micro-universo em mudança, um café e uma cidade em transformação, poderá dizer-se que na sua vocação ritualística A Brasileira cumpre, ainda hoje, um particular sentido de (micro)comunidade. Sublinhamos o termo “ainda”, uma vez que este sentido é, hoje, um sentido de resistência (Scott, 1992/2013).

Por meio de conversas de ocasião, alguns dos antigos clientes confessam o seu desânimo quando falam de hábitos passados que se foram perdendo, nomeadamente os encontros regulares com amigos e conhecidos ao final da tarde, ou antes da partida para o jantar de sábado à noite, a que se iam juntando, quantas vezes de improviso, este e aquele, desta e daquela mesa, com destino a um dos restaurantes mais emblemáticos da cidade: o Abade de Priscos, a Taverna do Félix… Outros falam da importância da ocupação sistemática da mesma mesa ou zona, dentro ou fora, como se o mobiliário se traduzisse em lugar de pertença e fosse vital a reapropriação quotidiana do mesmo, enquanto exercício renovado de afirmação. Uma das antigas e mais assíduas clientes lembra o período em que A Brasileira estivera em obras de renovação. Na altura da reabertura de portas, apesar do evento estar destinado a uma lista restrita de convidados, juntara-se à volta da porta principal um círculo de frequentadores que, com ou sem convite, se apressaram a reocupar a sua mesa (o mobiliário original manteve-se, ainda que restaurado), mal as portadas foram abertas. O ritual da reocupação é um direito que cada qual procura garantir: Temos de persistir em lutar pelo nosso lugar n’A Brasileira, a cada dia (parafraseando-se a dita cliente, designada pela personagem “De chapéu cloche”, em Cenas e vistas d’A Brasileira, Pires et al., 2020).

Também o mais antigo funcionário, em entrevista, partilha uma história de vida que se entretece de forma inextricável com a vida d’A Brasileira. Ainda novo, tendo por intenção casar-se, havia enviado uma carta à Gerência, mostrando-se interessado em ali trabalhar, o que lhe valeu o emprego que mantém até hoje, com horários certos e tarefas mil vezes mecanicamente reproduzidas. O mesmo se poderá dizer do engraxador, atualmente vendedor de cautelas ou, simplesmente, inquilino d’A Brasileira, onde passa, desde há já muitos e muitos anos, os dias a fio, de manhã cedo até ao final do dia, de Verão e de Inverno. À boa maneira bejaminiana, poderá dizer-se, ali habita tanto (ou mais) como em sua casa.

Por fim, as ilustrações de Seromenho acrescentam à investigação camadas de sentido que paralelamente parecem reforçar o carácter ritualístico do micro-lugar: o cigarro vagarosamente consumido (hoje, na esplanada, outrora prática mais popular, observada dentro e fora); a frequência regular, na sua ocupação no espaço e na sua previsível duração, de diferentes personagens-tipo; a perceção do lugar transformado em casa, com espaço interior de encontros, cumplicidades, e mesmo confidências, e espaço exterior, convertido em esplanada veraneante, lugar de puro recreio e fruição; a mecânica da gestualidade dos funcionários, ao jeito de Charlie Chaplin, em Os Tempos Modernos; ou a suspensão do tempo do relógio e a entrega à contemplação das vistas do quotidiano na cidade, apreciadas lá fora, ou a partir de dentro, atravessando com o olhar as portadas. Estes signos, entre outros, que povoam as ilustrações, permitem-nos evidenciar o modo como o imaginário do seu autor dialoga com o imaginário coletivo, o modo como a pesquisa etnográfica encontra ressonância na cultura visual, e em particular na ilustração, tendo como referente um lugar experienciado, e vivido, a várias mãos, temporária ou quase-permanentemente habitado pelos investigadores, pelo próprio ilustrador (anteriormente, na sua juventude, frequentador assíduo d’A Brasileira, onde esboçara muitos dos seus desenhos), pelos clientes, funcionários ou proprietários e onde múltiplos rituais são partilhados e/ou observados.

(Micro)lugar habitado por histórias e memórias

Como defende Halbwachs, em Les cadres sociaux de la memóire, “não existe memória possível, fora dos quadros de que os homens que vivem em sociedade se servem para fixar e reencontrar as suas recordações” (1925/1994, p. 79). Parafraseando o autor, acrescente-se que segundo esta perspetiva não existe memória estritamente individual ou estritamente coletiva (Halbwachs, 1950). As recordações pessoais são articuladas com as recordações dos outros, estruturando-se mutuamente através de “imagens recíprocas e complementares” (Halbwachs, 1950).

N’A Brasileira, as memórias individuais e coletivas são particularmente entretecidas nos contextos do quotidiano. A história do café e a história da cidade, a par da narração de episódios singulares embutidos na experiência de cada um, são permanentemente recontadas, nas conversas informais, nas entrevistas, mas também, em diferido, pelos objetos, existentes (ainda que transformados) na atualidade (as máquinas originais de moer o café, o mobiliário) e imaginários (o relógio de parede), que no dizer de Candau (2005/2013) desempenham o papel de sociotransmissores, para usar a terminologia do autor, estímulos desencadeadores de múltiplas e sempre reinventadas narrativizações partilhadas. A esta polifonia mnemónica juntam-se camadas sobre camadas de histórias recortadas, ao mesmo tempo pessoais e coletivas, uma vez atualizadas em contextos de convivialidade quotidiana e de reciprocidade de recordações.

Atentemo-nos na seguinte passagem alusivo ao aparador d’A Brasileira:

…destaca-se, no nosso exercício de atenção, o aparador d’A Brasileira, no canto da extremidade interior do patamar de cima, o piso térreo principal. Em seu lugar, existia outrora, segundo as fotografias da época e testemunhos que fomos registando, um balcão em madeira, imponente, atrás do qual se encontrava invariavelmente um antigo empregado, fardado a rigor, de postura altiva e olhar perscrutador. Costumava ter as duas mãos pousadas sobre o balcão, nas alturas em que não se encontrava de costas, ocupado em manobrar os manípulos da máquina de café. De poucas falas, este era conhecido como o “zelador dos bons costumes” (…) Hoje, o aparador é sobretudo móvel decorativo, uma espécie de vitrine interior, periodicamente remodelada, onde se exibem as ementas e as temáticas festivas da cidade, apar de signo de pertença simbólica a um sistema de valor que agrega A Brasileira ao universo dos cafés históricos. (Pires et al., 2020, p. 59)

Como defende Candau, (2005/2013) os objetos funcionam como transmissores sociais e simbólicos, remetendo para memórias coletivas e estabelecendo ligação entre objetos existentes tanto no tempo histórico como no imaginário. Vejamos ainda o seguinte exemplo, desta vez apoiado no relógio d’ A Brasileira:

Na memória dos clientes mais antigos d’A Brasileira ainda se vislumbra o antigo relógio de parede, de design moderno e requintado, em estilo de art déco. Tratava-se, em rigor, de um relógio pendurado no teto, na parte central do espaço interior do café, com formato retangular de plexy glass, transparente, visível de ambos os lados, de numeração árabe, deixando transparecer uma leve luminosidade interior de tom azul-violeta muito claro. Por ali se acertavam os relógios de pulso com mecanismos de corda ou as mudanças de hora. (Pires et al., 2020, p. 63)

Histórias sobre as rivalidades entre a Velha e a Nova Brasileira, ou mesmo memórias mais recuadas sobre a antiga Parisiana, pontuam volta e meia as conversas entre os clientes, inadvertidamente depositários dos tesouros mnemónicos do imaginário da cidade. Por entre estas memórias, descobrem-se cartografias de inscrição da cidade na modernidade da transição do século XIX para o século XX, ressonâncias da Paris de que nos fala Walter Benjamin (2019):

Consta nas memórias partilhadas em família que, em finais do século XIX, os prédios d’A Brasileira e o da chapelaria Parisiana estavam sob administração de bisavós de Cerqueira Gomes. A Brasileira logo mudou de donos. A Parisiana foi mantida por mais tempo com a família. Além da loja de chapéus, administrada por sua bisavó, o prédio abrigava uma loja de lentes e artigos elétricos do bisavô. Ambos eram entusiastas das novidades que iam descobrindo em frequentes viagens à capital francesa. (Pires et al., 2020, p. 88)

A moda, bem como as últimas invenções da ótica chegavam a Braga pela mão da família Cerqueira Gomes, que ao mesmo tempo, na sua origem, se havia cruzado com o destino do café A Brasileira, lugar instaurador de novos costumes, de novas práticas urbanas promotoras da cultura do ócio e do prazer da vida quotidiana que então se inventava (Certeau, 1998).

As histórias e memórias, a cada passo renarradas, reproduzem um imaginário comum, partilhado à mesa, entre revisitações que não deixam de ser ficcionadas. O sentido de identidade-comunidade recria-se, assim, num registo polifónico de autoria coletiva e expandido no passado-presente que os lugares atualizam, no contexto da vida comum de todos os dias.

Importa considerar, nos termos de Candau (2005/2013, p. 99) o desdobramento entre “a representação que cada indivíduo cria da usa própria memória”, por um lado, e, por outro, “o que ele diz dela”. Fazendo um paralelismo com a linguagem, nomeadamente remetendo para Ricoeur, o autor propõe-nos uma reflexão sobre o conceito de “metamemória”. Há, pois, que distinguir, enquanto objeto, “a coisa de que nos lembramos” do ato de nos relembrarmos. Fundamental à construção da identidade individual ou coletiva, a metamemória é reinvindicada e assenta na crença de que os outros se lembram: “a crença em raízes e num destino comuns” (Candau, 2005/2013, p. 100). Esta crença expressa-se num discurso ele mesmo partilhado e afirmativo da crença num sentimento comum. Diz o autor:

Ora esse metadiscurso tem, como qualquer linguagem, efeitos sociais extremamente poderosos. Ele alimenta o imaginário dos membros do grupo ajudando-os a pensarem em si próprios como uma comunidade, e contribui para modelar um mundo em que a partilha memorial se torna ontológica. (Candau, 2005/2013, p. 100)

O projeto “Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana” visou, assumidamente, intervir, ainda que de modo subtil, na comunidade, tendo como um dos seus propósitos contribuir para a consolidação da metamemória que por via das conversas e entrevistas realizadas se foi reanimando. Incentivar o discurso sobre as histórias e as memórias, individuais e coletivas, bem como a sua partilha, constituiu uma estratégia (e ação) de reafirmação do sentido de pertença comunitária (e de crença nessa mesma comunidade), num contexto de profundas mudanças sociais e culturais, observadas tanto no café, como na cidade.

Dois dos entrevistados, ambos clientes antigos d’A Brasileira, reportam-nos os tempos da sua juventude passada no café, apontando o dedo às personagens-tipo, aos tiques dos antigos funcionários, alguns mais conservadores, outros mais benevolentes, ao modo como n’A Brasileira transparecia um mapa de clara divisão social, à maneira de Bourdieu (1979/1999), com os padres e professores para um lado, os transgressores (a geração punk dos anos oitenta) para outro, os idosos noutro canto, e os populares na “cavalariça”…

As histórias e memórias são igualmente sugeridas pelas ilustrações, se entendermos que os motivos aí representados tais como o café-casa ou a casa-pessoa-árvore, as ambiências de cumplicidade entre os clientes, a casa-livro, os lápis, são evocativos, quer dos próprios vínculos entre o lugar e a autobiografia de Seromenho, cuja história de vida, na sua juventude, se entrelaça com A Brasileira, quer do modo como este perceciona esse mesmo lugar enquanto contentor de experiências ao mesmo tempo identitárias e partilhadas, Como diria Augé (1992/2012), a propósito do lugar antropológico (em contramão com a noção de “não-lugar”), os desenhos de Seromenho descrevem, de forma singular, A Brasileira como um lugar de construção de memórias, de relações e de identidades.

(Micro)lugar de desejo estético-político

Para Stiegler (2004/2018), o problema político, isto é, da “participação de todos na produção do um” é um problema estético. O autor fala da “individuação colectiva”, da “participação de todos na produção do um, ou seja, do todo, como fantasma e ficção necessários instalando o teatro de uma unidade suposta que se chamará ‘a sociedade’” (Stiegler, 2004/2018, p. 25):

A política é a arte de garantir uma unidade da cidade no seu desejo de futuro comum, a sua in-dividuação, a sua singularidade como devir-um. Ora, esse desejo supõe um futuro estético comum. Estar-junto é ser um conjunto sensível. Uma comunidade política é então a comunidade de um sentir. Se não somos capazes de gostar das coisas juntos (paisagens, cidades, objectos, obras, línguas, etc.), não podemos amar-nos. É este o sentido da filia em Aristóteles. Amar-se é amar em conjunto coisas além de si. (Stiegler, 2004/2018, pp. 17-18)

Como aponta Stiegler (2004/2018), a partilha de experiências estéticas comuns é fundamental ao sentimento de pertença a uma mesma comunidade. O autor exemplifica com o abismo social e cultural observado, nomeadamente, em França, quando comparadas as práticas culturais e de fruição estética que separam os bairros sociais e periferias do centro de Paris. A esta diferença está associada a “miséria simbólica” que, segundo Stiegler (2004/2018), explicará, pelo menos em parte, as radicais diferenças ideológicas e sociais que ameaçam a possibilidade de uma convivialidade plural, mas ainda assim empenhada na construção e no desejo de um projeto social comum. Na “era hiperindustrial”, as gritantes clivagens entre “nós” e “eles” agravam-se:

Nós, que compomos esta infinita minoria, vivemos em meios urbanos geralmente privilegiados senão mesmo muito privilegiados: em bairros que ainda se parecem com cidades, onde frequentamos por vezes restaurantes dignos desse nome, onde as nossas crianças (apesar de ser cada vez mais difícil) ainda frequentam escolas onde é mais ou menos possível aprenderem qualquer coisa, onde podemos frequentar salas de espectáculo e cinemas que projectam filmes de diversas feituras, onde podemos deambular pelas ruas onde comerciantes nos propõem mercadorias de qualidade — enquanto, na maior parte do tempo, ignoramos TUDO acerca das condições de vida dos nossos próprios concidadãos, que tantas vezes se tornaram execráveis, senão mesmo insuportáveis. (Stiegler, 2004/2018, p. 141)

O simbólico na era do consumo representa, segundo Stiegler (2004/2018), “uma grande miséria mundial”, em última análise, o fim da sociedade, logo da comunidade. O autor refere-se à dificuldade de produção da “singularidade idiomática” (o um, ao mesmo tempo singular e comum). Isto se atendermos a que o processo de individuação pressupõe “a participação do múltiplo na produção do um” (Stiegler, 2004/2018, p. 26). A oposição entre “produtores” e “consumidores” de símbolos compromete o sentido da “participação simbólica”, precisamente, tanto ao nível cognitivo como ao nível estético. A estética da mercadoria, de que nos fala Haug (1971/1996), ao mesmo tempo que nos ilude o desejo de produção simbólica, imprime-nos a submissão às relações de troca mercadológica como única forma de exercitarmos o nosso sentido de pertença a uma dada comunidade/sociedade, confundindo-se a fruição estética com a condição de consumidor:

Na expressão “estética da mercadoria” ocorre uma restrição dupla: de um lado, a “beleza”, isto é, a manifestação sensível que agrada aos sentidos; de outro, aquela beleza que se desenvolve a serviço da realização do valor de troca e que foi agregada à mercadoria, a fim de excitar no observador o desejo de posse e motivá-lo à compra. (Haug, 1971/1996, p. 16).

Por seu turno, a sociedade do controlo serve-se da esfera do consumo para encenar uma ilusória prática de realização pessoal, promovendo a “liberdade de escolha” e de participação na estética generalizada, no “já sentido”, explanado por Perniola (1991/1993):

…o já sentido é uma espécie de sensologia generalizada que se constitui com base no modelo da ideologia e que partilha com esta a atribuição de processos psíquicos à vida colectiva: ela não assume no entanto o aspecto de um convite ou de uma exortação dirigida a cada indivíduo em nome de qualquer valor ou ideal, mas de uma instituição, de uma imposição no sentido de recalcarem o que já todos provaram e aprovaram e que não tem outra legitimidade fora deste geral e anónimo consenso. (p. 14)

Retomando Stiegler (2004/2018), importa reforçar a atual “perda de individuação generalizada”, decorrente da “perda de participação na produção de símbolos”, o que é outro modo de dizer a extinção do desejo e a “decomposição do social”.

É neste quadro que os lugares de encontro e do estar-com-os outros são fundamentais. Neles se partilha a co-presença e a experiência estética do quotidiano, bem como a memória e o imaginário coletivos. Tais sentimentos de ligação convergem na produção simbólica conjunta e na realização comum do sentido e projeto de comunidade.

Transportando este último eixo de reflexão para o universo de estudo, passemos à reprodução de um excerto do livro Cenas e vistas d’A Brasileira, para concluir que, com base na reflexão sobretudo apoiada em Stiegler (2004/2018),

A experiência quotidiana n’A Brasileira é, ao mesmo tempo, uma experiência estética e política. Estética, em primeiro lugar, porque agencia o sentir-com. A singularidade da arquitetura e decoração interiores (o design e disposição das mesas, o interior e a esplanada, as portadas envidraçadas…), o gosto pela apreciação do vagar e da circulação nas ruas, em dias de sol ou chuva, as leituras ou conversas de ocasião, compõem uma ampla organologia de sensações, ao mesmo tempo únicas e comuns. Política, em segundo lugar, porque potencia, a partir dessa mesma experiência estética partilhada, a participação na produção de um sentido coletivo e singular de comunidade. A partir do conceito deleuziano de sociedades de controlo (Deleuze, 1990), Bernard Stiegler (2018) fala, precisamente, da miséria simbólica que hoje empecilha, iludindo-nos com os prazeres fáceis e voláteis do consumo, a nossa experiência estética partilhada, meio caminho andado para o sentido de pertença e de comunidade. O quotidiano que no decorrer desta publicação relatámos é uma experiência, uma “subjetividade”, uma vez circunscrita no “mundo circundante” do observador. Falando do que se passa à volta, o investigador, que neste texto se assume como um autor ao mesmo tempo individual e coletivo, fala do que vê e ouve. No espaço tempo do quotidiano, a Passeio imergiu no sensível que tanto foi constrangedor, como condição de possibilidade da produção do exercício de pensamento, semiósico, e da experiência partilhada de criação de sentido(s) que aqui se publica. Foi este o horizonte, estetico-político, que a presente micro-narrativa procurou explanar. (Pires et al., 2020, pp. 96-97)

Não deixando de aqui entrelaçar o imaginário que nas ilustrações acompanha esta investigação, é relevante notar o quanto nelas se dá conta da importância dos sentidos, das sensações — aesthesis — figurados nos olhos, nos ouvidos, nas vistas que se prolongam, a partir do dentro do café, sobre a cidade (metaforizada, nomeadamente, na ilustração onde se representam prédios), mas também nos signos da fantasia que saltitam, à solta, aqui e ali. Observam-se torres que emanam sons, prédios ligados por pautas musicais, barcos à deriva, interiores transformados no dentro das garrafas, óculos que servem de espelhos… A partir das ilustrações desenha-se uma ambiência dinâmica, de convivialidade e de conversação com o outro, enquanto, simultaneamente, se celebra a experiência sensível, a imersão cinestésica de cada um no universo envolvente.

Considerações finais

Ainda que reconhecendo algumas limitações inerentes às opções metodológicas adotadas, nomeadamente as decorrentes do mergulho dos investigadores no quotidiano do café A Brasileira, por via da observação participante, o que implica uma aparente falta de distanciamento do objeto, assim como das conversas de ocasião, ou entrevistas em profundidade, de carácter aberto, direcionadas para a obtenção de resultados qualitativos à partida não generalizáveis, é de salientar que esta pesquisa permitiu a produção de um conhecimento particularmente valioso e de interesse socio-etnográfico que ultrapassa a sua idiossincrasia singular. Na presente investigação intersetam-se memórias coletivas e experiências relatadas que expandem a geografia do lugar, assim como múltiplas culturas e prenunciam-se transformações com potencial indicial, observando-se pistas expressivas de um fenómeno que, admite-se, dialoga com outros fenómenos, mais ou menos afins. Acresce que a costuração das ilustrações, de permeio, se, por um lado, atendendo à sua não subordinação ao texto académico, nos facultou a reduplicação das camadas de sentido do universo que a ambas as partes, investigadores e ilustrador, serviu de ponto de partida, por outro, admitimos existirem dificuldades quanto à argumentação que sustenta a deriva pelo imaginário assim produzido e que optamos por incorporar na pesquisa. Pesadas as dificuldades e as potencialidades de exploração etnográfica do universo em causa, relevamos o carácter estimulante da abordagem, que se procurou criativa e recriadora dos caminhos da transdisciplinaridade que as ciências sociais, de forma titubeante ainda, vão começando a explorar.

O sentimento de insegurança que se tem vindo a intensificar a uma escala global, discutido nomeadamente na obra Comunidade, Em busca de segurança num mundo hostil, de Bauman (2003), incutirá nos frequentadores dos cafés históricos, aqueles percebidos e vividos enquanto (micro)comunidades, um sentido de urgência em resgatar a possibilidade de ali preservarem (ou reinventarem) o seu sentido de partilha do quotidiano e de pertença a uma cultura com a qual (ainda) se identificam ou desejam identificar. Face ao seu quotidiano percebido como arriscado e inseguro, os indivíduos procuram na comunidade, segundo Bauman (2003), a garantia da segurança, da certeza e da proteção. O exercício de produção conjunta de sentido de comunidade é tanto mais importante quanto a realidade é, na verdade, no dizer do autor, não-comunitária.

A esta visão desencantada soma-se, por aproximação, o olhar, entre outros, de Sharon Zukin (2009). Em Naked city. The death and life of authentic urban places, a autora alerta para o facto de a crescente procura pela suposta “autenticidade da vida urbana” se ter traduzido no atual fenómeno da gentrificação, afastando para fora dos “centros das cidades” as classes trabalhadoras, os imigrantes e os artistas.

O trabalho de campo realizado n’A Brasileira permitiu observar uma cidade em mudança, na altura (pré-pandémica) visivelmente marcada pelas novas migrações de brasileiros, bem como pelo incremento exponencial do turismo (o Posto de Turismo de Baga registava, entre janeiro e agosto de 2018, 275.105 visitantes[2]). É neste contexto que o café se transformou num lugar percebido ele mesmo em transformação. Os seus habituais frequentadores vêem-se investidos na reapropriação do seu lugar neste novo cenário, procuram readaptar-se aos cheios e vazios, tanto no espaço interior como na esplanada, tentam resistir aos novos preços e, sobretudo, procuram resistir, em surdina, ao risco de perda do sentido de identidade, sob ameaça face à nova reconfiguração do espaço e à nova organicidade do café.

Com o presente ensaio, procurámos acima de tudo, de forma sucinta, relevar a importância dos (micro)lugares, a transformação do espaço urbano em lugares vividos, habitados, partilhados no quotidiano. Na cidade cabem muitos micro-universos onde a sociabilidade e o sentido de pertença a uma memória, a um imaginário e a uma experiência estética comuns se realizam. A produção do sentido de comunidade (Araújo et al., 2019; Durkheim, 1912/1979; Tönnies, 1944/2010), fundamental numa época de profundas e aceleradas transformações sociais e culturais, é hoje uma urgência. Este exercício, carente de permanente revitalização, não dispensa a reinvenção dos rituais que marcam a vida comum de todos os dias. Em particular, os cafés, e no caso em apreço A Brasileira, em Braga, cumprem de um modo especial esta vocação. Por meio de uma reflexão desdobrada em três eixos — a partir da qual se pensou o café enquanto (micro)lugar ritualístico, (micro)lugar habitado por histórias e memórias e (micro)lugar de desejo estético-político —, propusemo-nos desafiar o leitor a reequacionar a sua perceção relativamente à importância dos cafés na vida pessoal e coletiva nos contextos da atual vida urbana quotidiana, não esquecendo o sentido de compromisso de cada um com a produção de um projeto de comunidade-sociedade inscrito no inter-esse (Arendt, 1958/2001), a salvo do aprisionamento de cada um dentro de si mesmo.

Referências

Alemão, S. (2017). Cafés portugueses — Tertúlias e tradição. Clube do Colecionador dos CTT.

Almeida, A. I. S. (2013). Os cafés da baixa do Porto. Materialidade, uso e significado do espaço construído [Dissertação de Mestrado, FAUP- Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
https://sigarra.up.pt/faup/en/PUB_GERAL.PUB_VIEW?pi_pub_base_id=23466

Araújo, E., Silva, M., & Ribeiro, R. (2019). O tempo da comunidade e o tempo do turismo. Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural Studies, 6(2), 89-107. https://doi.org/10.21814/rlec.2368

Arendt. H. (2001). A condição humana. Relógio d’Água. (Obra originalmente publicada em 1958)

Augé, M. (2012). Não-lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Letra Livre. (Obra originalmente publicada em 1992)

Bauman, Z (2003). Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Editora Zahar.

Belting, H. (2014). Antropologia da imagem. KKYM + EAUM.

Benjamin, W. (2006). A modernidade. Assírio & Alvim. (Obra originalmente publicada em 1972)

Benjamin, W. (2019). As passagens de Paris (J. Barrento, Ed. e Trad.). Assírio & Alvim.

Bourdieu, P. (1999). La distinction. Criterio y bases sociales del gusto. Taurus. (Obra originalmente publicada em 1979)

Candau, J. (2013). Antropologia da memória. Instituto Piaget. (Obra originalmente publicada em 2005)

Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Editora Vozes.

Coles, A. (Ed.) (1999). The optic of Walter Benjamin. Black Dog Publishing Limited.

Durkheim, E. (1979). Les formes élémentaires de la vie religieuse: le système totémique en Australie. Presses Universitaires de France. (Obra originalmente publicada em 1912)

Feixa, C., & Porzio, L. (2008). Um percurso visual pelas tribos urbanas em Barcelona. In J. Machado Pais, C. Carvalho, & N. M. Gusmão (Eds.), O visual e o quotidiano (pp. 87-113). Imprensa de Ciências Sociais.

Giddens, A. (2002). Modernidade e identidade. Editora Schwarcz — Companhia das Letras.

Halbwachs, M. (1950). La memóire collective. PUF.

Halbwachs, M. (1994). Les cadres sociaux de la memóire. Albin Michel. (Obra originalmente publicada em 1925)

Hall, S., Evans, J., & Nixon, S. (2016). Representation: cultural representations and signifying practices. Sage.

Harris, R., Williams, P., & Griffin, T. (2012). Sustainable tourism. Routledge.

Haug, W. F. (1996). Crítica da estética da mercadoria. Editora Unesp. (Obra originalmente publicada em 1971)

Heidegger, M. (2004). Ser e tempo (Parte 2). Vozes.

Heidegger, M. (2005). Ser e tempo (Parte 1). Vozes.

Kress, G., & Leeuwen, T. van (2006). Reading images: The grammar of visual design. Routledge.

Kress, G., & Leeuwen, T. van (2009). Multimodality: A social semiotic approach to contemporary communication. Routledge.

Lefebvre, H. (2012). O direito à cidade. Letra Livre. (Obra originalmente publicada em 2000)

Lutard-Tavard, C. (2010). Les cafés en France, nouvelles tendances ou lieux en voie de disparition?. UDK (44), 965-974.  http://docplayer.fr/61261687-Udk-44-les-cafes-en-france-constat-nouvelles-tendances-ou-lieux-en-voie-de-disparition.html

Maalouf, A. (2000). On identity. The Harvill Press. (Obra originalmente publicada em 1996)

Maffesoli, M. (2000). O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa. Editora Forense Universitária.

Município de Braga. (2018, 27 de setembro). Braga afirma-se como destino turístico de excelência. https://www.cm-braga.pt/pt/0201/home/noticias/item/item-1-8321

Niedzielski, P.-E. (2018). Sociabilités de comptoir: une ethnographie des débits de boissons (NNT: 2018STRAG029ff. fftel-03000539) [Tese de Doutoramento, Université de Estrasburgo]. HAL open science archive.

Oldenburg, R. (1989). The great good place: cafés, coffee shops, bookstores, bars, hair salons and other hangouts at the heart of a community. Paragon House.

Oldenburg, R. (2001). Celebrating the third place: inspiring stories about the “Great good places” at the heart of our communities. Marlowe and Company.

Perniola, M. (1993). Do sentir. Editorial Presença. (Obra originalmente publicada em 1991)

Pink, S. (2001). Doing visual etnography. Sage Publications.

Pires, H., Marques, F., & Gomes, S. (2020). Cenas e vistas d’A Brasileira. CECS/CMB.

Poe, E. A. (1840/1996). The man of the crowd. In P. F. Quinn, & G. R. Thompson (Eds.), Poetry, tales & selected essays (pp. 388-396). The Library of America.

Sansot, P. (1973). Poétique de la ville. Édition Klincksieck.

Scott, J. C. (2013). A dominação e arte da resistência. Discursos ocultos. Letra Livre. (Obra originalmente publicada em 1992)

Stiegler, B. (2018). Da miséria simbólica. Lisboa: Orfeu Negro. (Obra originalmente publicada em 2004)

Tönnies, F. (2010). Communauté et société. PUF. (Obra originalmente publicada em 1944

Weber, M. (2004). Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva (Vol. 2). Editora UNB. (Obra originalmente publicada em 1910-1922)

Weber, M. (2005). Economia e sociedade (Vol. 1). Editora UNB. (Obra originalmente publicada em 1910-1922)

Zukin, S. (2009). Naked city. The death and life of authentic urban places. Oxford University Press.

Data de submissão: 15/07/2021 | Data de aceitação: 23/09/2022

Notas

Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.

[1]Projeto “Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana”: http://www.passeio.pt/

[2]Informação retirada do site da Câmara Municipal de Braga (Município de Braga, 2018).

Autores: Helena Pires