N.º 31 - abril 2023
José Nuno Matos
FUNÇÕES: Concetualização, Investigação, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Instituto de Comunicação da NOVA, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal
E-mail: josematos@fcsh.unl.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8772-6223
Graça Rojão
FUNÇÕES: Concetualização, Investigação, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: CooLabora — Intervenção Social, CRL. Rua Combatentes da Grande Guerra, 62, 6200-020 Covilhã, Portugal
E-mail: gracarojao@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0002- 8799-8912
Raquel Rego
FUNÇÕES: Metodologia, Investigação, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal
E-mail: raquel.rego@ics.ulisboa.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7342-8695
Caracterização da organização
Criação e evolução
Tabela 1 Identificação
A Recreativa dos Anjos — RDA69 (Tabela 1) — designação que se vincula o número de porta onde está sedeada — foi criada num contexto de austeridade económico-financeira, numa zona de Lisboa com grandes contrastes socio-económicos. Esta zona tem sofrido um processo de gentrificação, fruto do surgimento de novos negócios e do aumento da atividade de alojamento local e, consequentemente, do aumento do preço das rendas e do preço do imobiliário.
A Associação, ou o Coletivo como alguns preferem designar, foi fundada por coletivos de pessoas residentes na zona, como um espaço comunitário onde diversos projetos pudessem ser desenvolvidos, numa perspetiva horizontal, de entre-ajuda. Alberga e agrega no seu interior as atividades de vários coletivos.
Além da organização de atividades culturais e encontros e debates, conta-se, entre os seus primeiros projetos, a Ciclo-Oficina dos Anjos e a Cantina Cooperativa. A primeira, uma oficina de bicicletas, permitia às pessoas arranjarem as suas bicicletas gratuitamente. A segunda permitia confecionar as refeições e comer cooperativamente.
A RDA69 é um coletivo dedicado a atividades de natureza sociocultural com encastramento territorial, sendo inteiramente moldada pelas dinâmicas sociais, culturais e económicas da zona onde se encontra sedeada. Como tal, os seus públicos são diversos, integrando as pessoas que coabitam este território. Tem, por isso, um caráter diverso que reflete as disparidades socio-económicas do território. Os seus membros e utilizadores atuais incluem profissionais de várias áreas, pessoas desempregadas, precários, estudantes, jovens, sem-abrigo, imigrantes e refugiados.
Trata-se de um projeto político e comunitário. Possui uma lógica de solidariedade horizontal que implica uma perspetiva de co-construção e co-produção, envolvendo todos os participantes. Além da entreajuda, desde a pandemia COVID-19 que procura intervir socialmente no apoio a grupos vulneráveis, como pessoas sem abrigo ou imigrantes e refugiados, fazendo-o numa perspetiva alternativa à lógica caritativa e assistencialista.
Atividades
Entre as atividades da RDA69, as quais podem ser desenvolvidas por diferentes coletivos, com regularidade, incluem-se:
- Atividades culturais como lançamentos de livros, filmes, debates, exposições e concertos;
- Biblioteca, com mais de dois mil acervos catalogados e mil por catalogar;
- Informática;
- Aulas de ioga;
- Desportos, como boxe ou ping-pong;
- Cozinha e cantina de comida vegetariana;
- Forno comunitário;
- Espaço para reunião ou de eventos organizados pela RDA69 e seus membros ou outros coletivos;
- Serviço gratuito de consulta e acompanhamento jurídico
- Bar
A dinamização de muitas destas atividades são da responsabilidade de diferentes coletivos, não existindo, por isso, uma organização centralizada.
Dimensão da organização
A RDA69 não tem trabalhadores assalariados, funcionando integralmente com base em trabalho voluntário dos membros, os quais dividem as tarefas rotativamente.
A RDA69 é uma organização local, com um forte encastramento territorial, moldada pelas características e dinâmicas desse território. Considera-se, por isso, que não é possível a replicação do modelo em outro local, nem tal é desejável. Isto não significa que não estabeleça redes com outras organizações e coletivos que partilham os mesmos objetivos e lógicas de atuação.
Estrutura de receitas (monetárias e não monetárias)
A RDA69 não depende de subsídios ou outros rendimentos de entidades públicas. Assenta a sua atuação no trabalho gratuito dos membros e eventuais donativos de membros ou outras pessoas e entidades do território.
Quer o bar, quer a realização de alguns eventos, como concertos, permitem a angariação de fundos para as despesas de funcionamento, tais como pagar electricidade, água e rendas.
Liderança e tomada de decisões e modelo de gestão
Enquanto associação, a RDA69 possui órgãos formais de tomada de decisão — assembleia geral, direção e conselho fiscal — que atuam sob as regras legalmente fixadas para o seu funcionamento. Todavia, a prática democrática vai além da formalidade enquanto associação.
O colectivo é uma estrutura horizontal onde os diferentes papéis nos órgãos formais não são relevantes e a tomada de decisão ocorre coletivamente e com regularidade, sobre todos os aspetos da vida da organização. Existe uma assembleia, realizada uma vez por semana, onde se tomam as principais decisões e se divide o trabalho. Todos os membros se responsabilizam pelas atividades de gestão quotidiana como pagar contas, fazer compras, etc.
Redes e parcerias
A RDA69 mantém relações com outros coletivos, sejam mais próximos, com os quais pode partilhar o espaço para eventos pontuais ou regulares, sejam eles de outras partes da cidade de Lisboa e do país com os quais partilha visões do mundo e formas de agir.
Os seus membros estão também envolvidos em outras iniciativas, sendo notório o exemplo da ocupação de um imóvel devoluto vizinho da RDA69, com o objetivo de organizar um centro de apoio social aos sem-abrigo, a Seara. Membros da RDA69 participaram na dinamização e, depois, na resistência à expulsão do imóvel.
Impacto da pandemia
Efeitos nos públicos/beneficiários/associados
O efeito da pandemia fez-se sentir a partir de março de 2020, quando se deu o confinamento geral. O seu efeito nas sociedades foi inédito pois levou à sua quase paragem total: ruas vazias, instituições e empresas fechadas, viagens suspensas, etc.
Um dos efeitos para os membros da RDA69 foi, portanto, a suspensão das suas atividades laborais, vendo-se confrontados com situações de lay-off ou mesmo desemprego, impossibilidade de desenvolvimento de atividades económicas e ausência de proteção social no caso dos trabalhadores precários.
Com o confinamento e o encerramento das atividades da RDA69 os membros viram-se, também, em situação de isolamento.
No território onde a RDA69 está implantada o efeito do confinamento e da pandemia também se fez sentir, sobretudo em pessoas mais vulneráveis como sem abrigo, imigrantes e refugiados.
Efeitos na organização e na gestão
Com a declaração de estado de emergência, e à semelhança de todas as organizações, a RDA69 foi forçada a interromper as suas atividades regulares e encerrar. Esta interrupção afectou um dos objetivos mais importantes da RDA69, o de servir de espaço de encontro. Diminuiu também substancialmente a sua fonte de receitas para funcionamento gerada pelo bar e pelos eventos de angariação de fundos.
Num primeiro momento do confinamento, em março de 2020, a RDA69 decidiu reduzir o preço das refeições na sua Cantina, tendo em conta a diminuição de rendimentos das pessoas que frequentavam a Cantina, mas cedo percebeu que mesmo esta diminuição não era suficiente perante a perda de rendimentos. Além disso, tornaram-se evidentes as necessidades das pessoas no território. Abriu, assim, uma “Cantina Solidária” onde se passou a servir refeições gratuitamente. Para o seu funcionamento, recorreu-se ao trabalho voluntário dos membros e a donativos materiais e monetários, o que permitiu servir refeições na Cozinha (RDA69, 2020b).
A RDA69 foi profundamente afetada pela pandemia em termos do seu funcionamento e públicos abrangidos, abrindo as suas portas a pessoas em situação de carência e atuando numa perspetiva de apoio alimentar de emergência.
Esta mudança levou a uma reflexão sobre o tipo de relação que a RDA69 queria desenvolver com os seus públicos, alterando a relação entre os que ajudam e os que são ajudados para uma perspetiva horizontal e de entreajuda, o que se concretizou na criação de uma Esplanada Solidária.
Atualmente, os participantes na RDA69 são mais diversificados, incluindo um grupo de pessoas em grandes dificuldades alimentares e habitacionais.
Por sua vez, a diminuição das suas atividades com potencial de angariação de fundos tem desequilibrado as contas e gerado dificuldades financeiras, não sendo as receitas suficientes para suprir as necessidades.
Atividades desenvolvidas para fazer face à crise pandémica
Em resposta às necessidades evidenciadas no território foi criada uma “Cantina Solidária” que colmatava as necessidades alimentares da população fragilizada, entre ela as pessoas sem abrigo, imigrantes ou jovens, e também de membros cujos rendimentos foram significativamente afetados na situação pandémica (RDA69, 2020b).
A “Cantina Solidária” abriu em março de 2000, durante o primeiro confinamento. Serviu cerca de 200 refeições diárias durante 6 meses, recorrendo a campanhas de donativos e ao apoio da Junta de Freguesia de Arroios e dos vizinhos que doaram alimentos. Estes eram confeccionados pelos membros em regime voluntário, alguns deles com maior disponibilidade de tempo dado terem a atividade laboral suspensa. A escolha e a confeção de alimentos tiveram de ser adaptadas ao público, considerando-se em particular, alimentos de fácil ingestão para pessoas com problemas de dentição.
A RDA69 articulou-se numa rede informal de organizações congéneres que desenvolveram formas de cantinas populares, ajuda alimentar ou cabazes no Porto (Rede de Apoio Popular Mútuo), em Arroios, Penha de França (Disgraça), Barreiro (Cooperativa Mula), Bairro da Cova da Moura, numa lógica que descrita como sendo de “desmonetização da ajuda”.
Esta Cantina encerrou em setembro de 2020, com o desconfinamento, em parte por falta de disponibilidade dos voluntários que regressaram aos seus empregos e trabalhos, e em parte por se questionar o modelo de atuação.
A RDA69 retomou parte das suas atividades, mas deu continuidade a alguns serviços e formas de ajuda mútua iniciadas com a “Cantina Solidária”, que assumiu a forma de uma “Esplanada Comunitária”, onde procuram atuar de forma mais próxima da sua matriz principal, numa perspetiva de entreajuda horizontal.
A “Esplanada Comunitária” foi criada em setembro de 2020, para que as pessoas se pudessem juntar para conversar, ter acesso a alguns serviços gratuitos (como, por exemplo, o carregamento do telemóvel, água, máquina da roupa, WC e internet).
Foram criadas as condições para as pessoas confeccionarem a sua própria comida através da disponibilização de uma cozinha móvel com fogão, panelas, especiarias, comida enlatada, massa, arroz e vegetais. Diariamente, cerca de 40 pessoas passaram a cozinhar coletivamente e a ajudar na montagem da cozinha e na sua limpeza e arrumação.
Com a criação da “Esplanada Comunitária” pretendeu-se ultrapassar as fronteiras entre quem dá ou faz e quem recebe ou usufrui, que se revelaram no funcionamento da “Cantina Solidária” (RDA69, 2021). A “Esplanada” está organizada para o desenvolvimento de relações horizontais e sociabilidades de ajuda mútua e comunidade.
Foram também desenvolvidas atividades pontuais que visaram a aproximação entre as pessoas que passaram a frequentar o espaço como reconstrução de canteiros, uma sessão de spa, festas de aniversário, etc.
Numa perspetiva de esbater as fronteiras entre as pessoas e criar novas formas de sociabilidade, foi criado, em 2021, um Grupo de Trabalho, incluindo vários tipos de participantes, com a responsabilidade de organizar uma atividade semanal de jantar que envolvesse toda a gente no planeamento, gestão e execução, e cujas receitas geradas contribuíssem para a atividade da “Esplanada”. O objetivo era tornar a RDA69 um espaço de pertença de todos os participantes, que o usam de diversas formas.
Efeito no trabalho e nos trabalhadores
A RDA69 não tem trabalhadores assalariados, funcionando integralmente com base no ativismo e colaboração dos membros. A situação de confinamento e lay-off suscitou maior disponibilidade por parte de alguns dos membros para dedicarem mais tempo ao trabalho na RDA69.
A “Cantina Solidária”, confecionando 200 refeições por dia, implicou um esforço significativo por parte dos membros da RDA69. Eram constituídas equipas, de pelo menos quatro pessoas, que trabalhavam quatro ou mais horas por dia na organização das refeições. Este trabalho revelou-se muito exigente e apenas possível dada a situação de suspensão das atividades laborais.
O fim do primeiro confinamento e o regresso ao trabalho de muitos dos voluntários, a par com o cansaço gerado pelo trabalho de manutenção da “Cozinha Solidária”, contribuíram para a decisão de a encerrar.
Balanço acerca dos desafios colocados
A “Cantina Solidária” foi uma experiência intensa que criou ou aprofundou as relações entre os membros da RDA69 e as pessoas do território, quer as que se encontravam em situação de vulnerabilidade e foram apoiadas pela “Cantina Solidária” e as que se envolveram na “Esplanada Comunitária”, quer as pessoas e entidades, como a Junta de Freguesia de Arroios, que apoiaram a “Cantina Solidária” com donativos.
Tratou-se de uma resposta emergencial a uma contingência e não se pretende que seja uma solução para problemas reconhecidos como persistentes e estruturais, como a pobreza, a precaridade e o desemprego, cuja solução deverá passar por outros mecanismos e outras entidades, incluindo uma responsabilidade e solução política.
Se a ação da RDA69 em tempos de pandemia, bem como o de outras organizações pertencentes à sua rede, mostra como um conjunto de pessoas se consegue organizar de forma autónoma — sem o enquadramento formal e institucional das organizações públicas ou privadas —, e desenvolver formas de ajuda, solidariedade e apoio, tal não deve significar que este deva ser o modelo de resposta a estes problemas ou deva ser replicado em outros espaços.
Na Carta Aberta às Comunas, a RDA69 faz o seguinte balanço:
Se algo ficou deste período foi o colocar em prática de diversas formas de auto-organização. Cantinas solidárias, ocupações, hortas, brigadas de bairro, redes diversas de apoio mútuo. Quem quer que tenha estado presente nestas experiências não pode simplesmente regressar à normalidade. (RDA69, 2020a)
A RDA69 e o cuidado
A RDA69, como outras organizações sem fins lucrativos, traduz uma forma de pensar em economia além da lógica mercantil.
A sua atuação no mercado, com atividades como a manutenção de um bar, visa gerar receitas que permitam colmatar as necessidades financeiras de pagar as despesas fixas, tal como renda, água e luz. Assim, os recursos do bar são um meio de manter as atividades e concretizar a missão, e não um fim em si mesmo.
Por seu turno, os seus principais recursos, os donativos e o trabalho voluntário, não pertencem à lógica mercantil, mas a uma lógica reciprocitária.
Assim, a RDA69 representa uma forma de economia que surge como alternativa à mercantilização da vida, implicando um outro significado de economia, como algo que engloba todas as atividades de provisão.
No seu dia-a-dia e na sua atuação durante a pandemia demonstra a existência de relações de reciprocidade e de cuidado que geralmente ocorrem nas esferas familiar e comunitária. A pandemia fez alargar os espectros da ajuda mútua do âmbito dos participantes habituais da RDA69 para outros grupos da comunidade, e procurou afirmar a sua lógica reciprocitária de solidariedade horizontal na sua evolução.
Esta economia substantiva é geralmente invisibilizada, apesar de ser fundamental no bem-estar das sociedades, como ficou evidente durante a pandemia. Todavia, mesmo no contexto da pandemia continuou a ser desvalorizada quando, por exemplo, surgiram os debates que puseram em oposição as opções “salvar as pessoas” ou “salvar a economia”. Este debate em si próprio demonstrou que existe algo profundamente errado na forma como vemos a economia, porque não a vemos como um meio, vemo-la como um fim em si próprio.
A RDA69 ao ensaiar formas de organização e relação além da estatização e monetização do cuidado, coloca a questão de o tornar numa responsabilidade coletiva, organizada de forma horizontal.
Referências
RDA69, Recreativa dos Anjos. (2020a). Carta Aberta às Comunas. Consultado em fevereiro de 2022, de https://rda69.net/2020/07/08/carta-aberta-as-comunas/
RDA69, Recreativa dos Anjos. (2020b). Início — About the first month of the community terrace. Consultado em 1 de fevereiro de 2022, de https://rda69.net/2020/11/03/about-the-first-month-of-community-esplanade/
RDA69, Recreativa dos Anjos. (2021). Início — Jantares da esplanada. Consultado em 1 de fevereiro de 2022, de https://rda69.net/2021/06/28/jantares-da-esplanada/
Data de submissão: 28/02/2022 | Data de aceitação: 21/12/2022
Notas
Por decisão pessoal, os/as autores/as do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.
Autores: José Nuno Matos, Graça Rojão e Raquel Rego