N.º 13 - April 2017


Maria de Lourdes Lima dos Santos, Observatório das Actividades Culturais (extinto) & Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais. Av. Prof. Aníbal Bettencourt 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. E-mail: mlimasantos@sapo.pt

Processo de confronto. O caso Correia da Serra

Resumo: O presente texto enquadra-se num trabalho de análise de situações de confronto biográfico que realçam quer os desafios, riscos, ameaças e tensões de mudança implicadas no confronto, quer, por outro lado, as posições e disposições do próprio sujeito envolvido. Os três casos anteriormente estudados partem de fontes bem diferentes: um texto diarístico (“Diário de William Beckford em Portugal e Espanha”); um texto memorialista (“Memórias do Marquês de Fronteira e d´Alorna”) e um texto ficcional (“Os Maias” de Eça de Queirós).
Neste artigo, a fonte principal consiste nas epístolas relacionadas com a estadia de Correia da Serra nos Estados Unidos, onde se relacionou, enquanto embaixador de Portugal, com as figuras cimeiras desse emergente país.
Como corolário, desenvolve-se um modelo de análise das situações de confronto no percurso biográfico, acentuando obstáculos, riscos e ameaças, bem como as formas de expressão e de luta desenvolvidas pelo sujeito em apreço.

Palavras-chave: Confronto, Biografia, Sujeito.

Confrontational processes: The case of Correia da Serra

Abstract: The present text fits in an analysis based on situations of biographical confrontation that highlight both the challenges, risks, threats and tensions of change implied, and, on the other hand, the positions and dispositions of the subject involved. The first three cases came from very different sources: a daily text (“William Beckford’s Diary in Portugal and Spain”); a memorialist text (“Marquis de Fronteira and d’Alorna Memoirs”) and a fictional text (“The Maias” of Eça de Queirós).
This article, which main source consisting of epistles related to Correia da Serra in the United States, is a reference for his action as ambassador of Portugal, dealing with the prominent figures of that emerging country.
As a corollary, a model of analysis of situations of confrontation is developed through a biographical path, accentuating obstacles, risks and threats, as well as forms of expression and struggle developed by the subject in question.

Keywords: Confrontation, Biography, Subject.

Resumé: Ce texte fait partie d’un travail d’analyse de situations conflictuelles biographiques qui mettent en evidence, d’une part, les défis, les risques, les menaces et les tensions impliquées dans l’évolution de la confrontation, et, d’autre part, les positions et les dispositions du sujet concerné. Les trois cas antérieurs sont exposés à partir de sources très différentes: un texte autobiographique (“Journal de William Beckford au Portugal et en Espagne”); un texte mémorialiste (“Marquis de Fronteira et d’Alorna souvenirs”) et un texte de fiction (“Maias” de Eça de Queirós).
Dans cet article, la source principale se compose des lettres liées au séjour Correia da Serra aux États-Unis, où il se rencontre, comme ambassadeur au Portugal, avec les personnalités de ce pays émergent. En corollaire, l’article développe un modèle d’analyse des situations conflictuelles dans le chemin biographique, mettant l’accent sur les obstacles, les risques et menaces, ainsi que sur des formes d’expression et de lutte développées par le sujet.

Mots-clés: Confrontation, Biographie, Sujet.

Para um modelo de análise[1]

Num determinado tempo e lugar, uma determinada pessoa pode ter de passar por um processo de confronto com situações marcadamente novas e difíceis que lhe aparecem como decisivas na sua vida — para além das particularidades de cada caso, a análise da configuração e do desenvolvimento desse processo de confronto poderá ser feita através da aplicação de um modelo de que aqui pretendo apresentar algumas componentes.

Na origem desta pretensão estão três trabalhos que reuni e publiquei recentemente num livro (Santos, 2014) em que analiso o modo como se desenvolveu, para cada um dos casos estudados — “Ostracismo, mudança e paixão” — o respectivo processo de confronto. Embora estes ensaios tivessem sido produzidos independentemente uns dos outros, ao decidir reuni-los num só livro, abri-o com um prefácio onde alertei o leitor para os seus aspectos comuns.

Depois disso pareceu-me que valeria a pena voltar a pensar no que se me apresentara como transversal e regular no desenvolvimento dos três diferentes casos e tentar retomar o esboço de um modelo de análise já avançado nos “Ensaios”, mas ainda pouco explorado em termos de poder, eventualmente, ser transposto de forma mais sistemática para o estudo de outros casos que correspondam a um processo de natureza idêntica.

É esse o objectivo do presente texto que integra duas partes: uma 1.ª em que passarei em revista determinados aspectos dos três referidos casos capazes de elucidar a pretendida proposta para um modelo de análise do processo em causa e uma 2.ª em que apresentarei um exercício de aplicação dessa proposta a um novo caso específico.

Mas convém avançar desde já uma indicação preliminar sobre a natureza do que aqui se entende como confronto. Trata-se de um processo que surge e se desenvolve num determinado contexto, em torno de uma determinada problemática nuclear (“Ostracismo, mudança e paixão” para os casos estudados nos “Ensaios”), podendo assumir um maior ou menor grau de frontalidade, de consciencialização e de violência conforme sejam, por um lado, os desafios, riscos, ameaças e tensões de mudança implicadas no confronto, e conforme sejam, por outro lado, as posições e disposições do próprio sujeito envolvido no dito processo. De qualquer modo, este exige que o sujeito em causa enfrente situações com forte incidência sobre o decurso da sua vida habitual, face às quais poderá ter necessidade de fazer importantes alterações nas suas actividades, nas suas relações com os outros, nas suas estratégias ou até mesmo na sua visão do mundo, sendo que o processo tanto pode prolongar-se por um período considerável na trajectória de vida do sujeito como ter um desfecho relativamente rápido.

A passagem à primeira parte deste texto, acima enunciada, ao revisitar os casos já estudados poderá ajudar a ter uma melhor percepção da natureza de um processo deste tipo e, consequentemente, dos procedimentos a utilizar para configurar um modelo de análise do mesmo.

Farei, assim, um rápido balanço dos três casos reunidos no citado livro dos “Ensaios”, partindo da ideia básica de que o processo de confronto eclode e desenvolve-se face a situações todas elas diferentes, mas todas com a comum qualidade de serem factor de significativas perturbações e alterações na vida dos sujeitos nele implicados. Importará, a partir deste balanço, destacar as regularidades que se detectam ao longo do evoluir do processo.

No primeiro caso (“Ostracismo e errância — O caso William Beckford”), trata-se do confronto com uma situação de exclusão social a que fica exposto um jovem inglês do séc. XVIII, milionário e aristocrata, depois de ter sido publicitada na imprensa de Londres a sua condição de homossexual (o estudo do processo só abrange o período da sua estadia em Lisboa e da sua tentativa, frustrada, de integração na corte portuguesa). No segundo caso (“Mudança, imobilismo e tensão — O caso Fronteira”), o confronto é com sucessivas situações de mudança num contexto de grande agitação na sociedade portuguesa da primeira metade do séc. XIX e o sujeito implicado é um membro da grande aristocracia tradicional, que virá a combater nas fileiras liberais e a ser exilado (neste confronto o processo projecta-se num largo período, das invasões francesas até ao termo das lutas liberais). No terceiro caso (“Anatomia de uma paixão — O caso Carlos/Maria Eduarda em ‘Os Maias’”), o confronto desdobra-se face a duas situações excessivas — uma de envolvimento numa desmesurada paixão que decorre no ambiente da “alta sociedade lisboeta”, no terceiro quartel do séc. XIX, e outra de anulação desse envolvimento uma vez descoberto o incesto que o estigmatiza.

O facto dos materiais utilizados como base de trabalho para os “Ensaios” serem de natureza diferente — um texto diarístico (“Diário de William Beckford em Portugal e Espanha”) e um texto memorialista (“Memórias do Marquês de Fronteira e d´Alorna”), no primeiro e segundo caso, e um texto ficcional no terceiro (“Os Maias”) — não impediu que pudesse usá-los com o mesmo objectivo de caracterização de um processo de confronto, na medida em que qualquer deles me permitiu dispor de narrativas minuciosas dos modos pelos quais diferentes sujeitos experienciaram processos desse tipo em diferentes casos. Como deixei explicitado nos “Ensaios” (no Prefácio e nas Breves Considerações Finais), em qualquer dos três estudos há uma “personagem narradora” (sujeito real nos dois primeiros casos, sujeito ficcional no último) que recria ou cria a narrativa de que me servi para recriar/construir a minha própria “narrativa” de investigação sobre o que aqui designo como um processo de confronto.

Para já, faço notar que na abordagem dos diferentes casos dos “Ensaios” privilegiei três linhas de análise: a. articulação entre o nível da história pessoal e o da história colectiva; b. caracterização dinâmica e longitudinal do confronto em curso; c. identificação das estratégias e contra-estratégias convocadas pelo sujeito no quadro do processo.

Neste sentido, verificam-se, logo à partida, duas regularidades: uma comum perspectiva que orienta a abordagem dos três diferentes casos e um comum objecto de análise (o processo de confronto). Mas, ao longo do estudo destes casos, vão podendo ser encontradas outras regularidades ou aspectos transversais para lá das especificidades de cada um deles.

Assim, com vista a identificar e sistematizar essas outras regularidades passíveis de integrar a minha proposta para o pretendido modelo analítico, um primeiro aspecto a tomar em conta tem a ver com o evoluir do processo ao longo da sua duração. Dada a dificuldade de se poder demarcar o preciso início e termo de um processo deste tipo, estabeleci o tempo de duração em função de critérios tais como o período contemplado no próprio texto que utilizei no primeiro caso (os sete meses da estadia em Portugal descritos no “Diário de William Beckford”) ou o longo período que eu própria privilegiei como particularmente pertinente para o estudo do segundo caso (os cerca de trinta anos abarcados nos 4 primeiros tomos das “Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna”) ou ainda o período atribuído ao processo pelo próprio narrador no terceiro caso (os aproximadamente dois anos do caso Carlos/Maria Eduarda em “Os Maias”). Enfim, sabemos que Beckford, antes e depois daquele período de sete meses, não estava nem viria a estar alheio a ambíguas situações de exclusão semelhantes às que integram o dito período, que Fronteira, por sua vez, não fecharia o seu confronto entre o “Portugal velho” e o “Portugal novo” imediatamente a seguir à vitória liberal e que Carlos já antes (e depois) do seu caso com Maria Eduarda se defrontava com uma sociedade portuguesa a que não se sentia pertencer. Com efeito, qualquer dos sujeitos dos três casos — nenhum deles um revolucionário, mas também nenhum deles um reaccionário — atravessou o que poderíamos designar um “difuso processo de confronto” a montante e a jusante do período que escolhi como o mais relevante em cada caso, demarcando-lhe assim um início e um termo (privilégio de investigação que, mesmo explicitado, não deixa de ser discutível…).

Mas mais importante do que procurar delimitar rigorosamente o tempo de duração do confronto é procurar conhecer as suas sucessivas fases, na sequência das quais, aliás, melhor se entenderá o tipo de desfecho para que tende o processo estudado: a. superação do confronto (caso de Fronteira — regresso a Portugal culminando com a vitória do exército liberal onde estava incorporado); b. impossibilidade de superação (caso de Carlos/Maria Eduarda — separação trágica dos amantes por ter sobrevindo uma situação inultrapassável); c. suspensão do confronto (caso de Beckford — saída de Portugal sem ter sido ultrapassada a sua condição de excluído da Corte).

De qualquer modo, em cada caso e ao longo do devir do processo, tive como constante a necessidade de identificar as situações que se vão sucedendo, os contextos sociais em que se vão verificando e as formas por que se vão manifestando os respectivos sujeitos — preocupação que, aliás, corresponde às três linhas de abordagem, já acima referidas, que privilegiei nos estudos dos “Ensaios” e que tenho por constitutivas do modelo de análise a propor.

Todavia, sendo diferentes nos três casos as situações, os contextos, os comportamentos e o próprio fulcro do confronto (“Ostracismo” no caso Beckford; “Mudança” no caso Fronteira; “Paixão” no caso Carlos/Maria Eduarda), há que avançar para lá da grande generalidade daquelas linhas e identificar concretamente algumas outras regularidades entre as diferenças.

Antes de mais, e ainda em termos do devir do processo, as fases que distingui são muito mais alargadas no caso Fronteira, até pela longa duração que o mesmo abrange, além de apresentarem uma muito mais desenvolvida análise do contexto e da articulação entre história pessoal e história colectiva, facultada pela densa informação fornecida pelo material-base utilizado no estudo. Assim sendo, dividi o percurso deste processo em dois longos períodos — I. Aprendizagens de um Grande do Reino (onde distingui: 1. os aprendizados de natureza escolar e de recreação e 2. o início da carreira militar); II. Entre lutas e exílios (onde distingui: 1. as vivências ligadas ao primeiro exílio e 2. ao segundo exílio). Passando ao devir menos longo do caso Beckford, preferi fazer uma cronologia do processo de confronto passo a passo (a partir das notas diarísticas sobre as sucessivas iniciativas e contra-iniciativas visando possibilitar, ou não, a sua apresentação a D. Maria I) e desenvolvi a análise da relação entre a história pessoal e o contexto de um modo não tão estritamente ligado a um faseamento do confronto. Por sua vez, no caso Carlos/Maria Eduarda, o devir do processo é sistematicamente analisado de acordo com um esquema em que distingo claramente as seguintes componentes: a. os sucessivos momentos no decurso do processo; b. os eixos de análise considerados relevantes para a sua caracterização; c. os elementos de contextualização que os enquadram. Dentro deste esquema, vou abordando cada um dos momentos (distingui seis: 1. Enamoramento. 2. Expansão da paixão. 3. Ameaça de ruptura e triunfo da paixão. 4. Reafirmação e “normalização” da paixão. 5. Revelação brutal e catástrofe. 6. Fecho do processo.) segundo os vários eixos de análise (considerei quatro: 1. Situações específicas ao longo do processo. 2. Formas de expressão da paixão. 3. Obstáculos, riscos e meios de superação. 4. Estratégias para uma estabilização da paixão.) e segundo o respectivo enquadramento social (características da sociedade lisboeta nos finais do séc. XIX). Na verdade, mesmo sem se ter lido os “Ensaios”, não será difícil ver que, para lá das “variações” entre eles, há uma mesma perspectiva subjacente ao tratamento dos três casos que sempre contempla a configuração do processo ao longo do seu devir e analisa as acções e representações dos sujeitos nessas diferentes fases, procurando identificar as várias estratégias que desenvolvem para se defrontar com mudanças tidas como decisivas na sua vida e procurando relacionar a dinâmica do processo com a dos contextos em que decorre. No entanto, esta abordagem é feita de um modo mais sistemático e estruturado no último caso; por isso mesmo, julgo que ele melhor poderá servir para responder à questão acima colocada no sentido de elencar componentes comuns passíveis de conduzir a um pretendido modelo de análise.

Assim, remetendo para as componentes atrás enunciadas relativamente ao terceiro caso (momentos, eixos de análise e elementos de contextualização), considero-as não só como utilizáveis, mas até necessárias no estudo de diferentes casos de um processo de confronto, estando o seu uso naturalmente condicionado pela especificidade de cada caso e pelas próprias características do material-base disponível. Aliás, a respeito desta última condicionante, julgo oportuno deter-me um pouco mais sobre um dos eixos de análise já acima referidos para o mesmo terceiro caso, uma vez que pode constituir um bom exemplo da maior sistematização para que, neste mesmo caso, foi possível avançar. Trata-se do referido eixo “2. Formas de expressão”, o qual, como escrevi no ensaio em causa, abrange

Uma grande variedade de manifestações, mais ou menos deliberadas, mais ou menos conscientes, tendo por sujeito o(a) apaixonado(a) e dando conta das suas ideias, emoções e acções que ocorrem associadas às situações elencadas no anterior eixo de análise [‘1. Situações específicas ao longo do processo’]. (Santos, 2014, p. 139)

Nesta análise foi possível construir vários “núcleos expressivos” (episódio fundador; figura da eleita; tensão real/imaginário; estado de êxtase; estado de auto-recriminação; estado de bem-aventurança; estado de culpa sem remissão; silenciamento e apagamento), procedimento que nos outros casos não foi viável levar a cabo dadas as próprias características (e limitações) da informação fornecida pelo material-base. Trata-se, assim, de um entre os vários motivos que podem condicionar a aplicação de um modelo, exigindo a flexibilização ou alteração de alguma das suas componentes.

Voltando a considerar os aspectos transversais aos diferentes casos, é de notar uma recorrência de descontinuidade no devir do processo, sendo que a sequência dos diferentes comportamentos de afirmação ou de negação, de ambivalência ou de adequação que o sujeito vai protagonizando ao longo do confronto, não corresponde a um desenvolvimento linear. Recordo aqui as sucessivas alternâncias na expressão de confiança/desconfiança de Beckford quanto à possibilidade de ser admitido na Corte; de Fronteira quanto à possibilidade de resistir às prisões, aos exílios, às batalhas; de Carlos quanto à possibilidade de se fazer amar por Maria Eduarda, de superar mentiras e calúnias ou ainda de afrontar o incesto. Também não surpreende que essas descontinuidades nas formas de expressão dos comportamentos de cada sujeito apareçam, em regra, associadas a determinados incidentes externos que vão ocorrendo no decurso do processo (por exemplo, expressões de desconfiança ou desânimo quando se intensificam as intrigas dos cortesãos portugueses apoiantes do embaixador inglês que bloqueia a admissão de Beckford, fazendo-o querer suspender as suas estratégias para ficar em Portugal; quando se tornam bem claras as ameaças de morte a Fronteira, um Grande do Reino, obrigando-o a interromper as suas actividades de militar anti-miguelista e a fugir do país; quando surge o escandaloso pasquim sobre Carlos e Maria Eduarda, levando-o a querer terminar a sua relação com ela; etc., etc.). Neste ponto, julgo que se impõe passar à segunda parte, ou seja, à aplicação do modelo de análise que proponho para processos de confronto (de acordo com a definição de “confronto” inicialmente avançada), tendo como alvo um novo caso.

O caso Correia da Serra — Confronto com um novo mundo

Em termos de consideração prévia, avanço desde já o elenco de um conjunto de operações que julgo indispensável accionar para que o pretendido modelo de análise seja viável:

a. Ponderação do material-base a ser usado para o estudo em causa — material que, logo à partida, condicionará a informação sobre o devir do processo e a quantidade e qualidade dos dados que sobre ele fornece.

b. Identificação da problemática central do confronto — elemento fulcral e sobre-determinante da análise.

c. Articulação entre a história pessoal do sujeito envolvido no confronto e o contexto histórico em que este decorre — indispensável para o entendimento das sucessivas situações específicas de cada caso.

d. Detecção das principais tensões/obstáculos com que o sujeito se defronta ao longo do processo e das estratégias que convoca no sentido de as superar.

e. Caracterização das redes de relações (as hostis e as favoráveis) em que o sujeito se vai movendo. Demarcação das descontinuidades que atravessam o processo.

f. Avaliação do tipo de desfecho do confronto face ao respectivo devir — consequência das anteriores operações através das quais se foi restituindo a configuração do processo.

Uma vez levadas a cabo as operações a. e b., é necessário, nas que se seguem, adoptar uma abordagem que integre as componentes do modelo, o que implica distinguir os vários momentos do devir do confronto e considerá-los à luz dos eixos de análise tidos como mais pertinentes, nomeadamente: as situações relevantes por que o sujeito vai passando ao longo do processo em causa, a nível tanto do contexto pessoal como do colectivo; os obstáculos, riscos e ameaças com que se vai defrontando; as estratégias que vai adoptando para superar dificuldades e tensões e as formas de expressão por que essas estratégias se vão manifestando — isto sem perder de vista o desenvolvimento da relação entre os diferentes eixos no decurso do confronto. Quanto à operação referida na alínea g., ela pode funcionar como complemento para a análise do caso na medida em que permite associar determinado fecho de um devir a determinados contextos e actuações que se foram verificando ao longo do processo.

Entremos, então, na abordagem do novo caso, para o que se pressupõe o accionamento das operações acima elencadas.

Preâmbulo

O Abade Correia da Serra não é propriamente uma das figuras mais estudadas ou sequer mais referidas por quem faz pesquisa sobre o séc. XIX. Curiosamente, Onésimo Teotónio Almeida, ao apresentar recentemente um trabalho de Richard Beale Davis relativo ao Abade, declara que

Do Abade Correia da Serra confesso que lhe fixei apenas o nome na minha 4.ª classe quando nos faziam decorar a história de Portugal (…) O Abade tinha, com o duque de Lafões, fundado a Academia das Ciências. Nem eu sabia o que era uma Academia e muito menos o que eram ciências. Mas registei-lhe o nome e ele veio comigo na bagagem trazida de Portugal, sem pesar nada porque não o trazia sequer no consciente (…). (Davis, 2012, p. 9)

Muitos de nós que ainda aprendemos assim a História de Portugal também registámos apenas assim o nome de Correia da Serra.

Aconteceu inesperadamente a Onésimo Teotónio Almeida deparar-se com o citado trabalho sobre o dito Abade que entre 1812 e 1820 vivera nos Estados Unidos e estivera em Washington onde cerca de 150 anos depois o mesmo Onésimo se encontrava sem nunca ter sabido daquela estadia. Começou a interessar-se pela figura e depois de vários contactos e diligências encontramo-lo a prefaciar a edição portuguesa do livro de Beale Davis a que acrescentou um Posfácio de Léon Bourdon, autor também de um outro estudo sobre Correia da Serra, publicado vinte anos depois daquele.

Aconteceu-me também inesperadamente deparar há pouco tempo com esse mesmo livro de Davis (2012), editado pelo ICS-UL que foi meu lugar de pertença profissional. Vi que integrava uma colecção de cartas de Correia da Serra e, com o meu habitual interesse pela escrita de registo pessoal do género memorialista, diarístico ou epistolar, iniciei a leitura com a curiosidade aguçada pela promissora descoberta desta figura de que, finalmente, iria saber muito mais do que o facto de ter fundado a Academia de Ciências com o duque de Lafões. E, à medida que ia lendo, foi-me ocorrendo a ideia de que a ida e estadia de Correia da Serra para os Estados Unidos poderia servir-me para construir um novo caso ilustrativo de um processo de confronto.

Nos finais do séc. XVIII, princípios do séc. XIX, a América ou melhor os Estados Unidos representavam para alguns europeus um novo mundo em que projectavam os seus desejos de mudança e de liberdade. Correia da Serra era um deles.

Nasceu em 1751 numa família de ideias liberais obrigada a exilar-se cinco anos depois para fugir à perseguição do Santo Ofício, ao que parece desagradado com as investigações científicas do pai de Correia da Serra (médico, advogado e cientista). Cresceu em Nápoles onde estudou (o botânico Verney e o filósofo Genovesi foram seus mestres); foi depois ordenado presbítero em Roma, em 1775, e formou-se em Direito Civil e Canónico em 1777. Regressou finalmente a Portugal no ano seguinte, aos 27 anos, na companhia do duque de Lafões que conhecera naquela cidade quando este aí se instalara num prudente exílio voluntário. Correia da Serra (CS) manter-se-ia em Portugal até aos 44 anos, período em que desenvolveu a sua reconhecida actividade como secretário da Academia das Ciências de Lisboa que ajudara a fundar com o Duque de Lafões. Como acontecera com seu pai, também ele foi alvo de perseguição pelo Santo Ofício e teria de interromper o trabalho científico a que se vinha dedicando e fugir para Londres, em 1795, aí continuando as suas investigações e participando nos estudos e publicações da Royal Society. O reconhecimento da importância desta actividade científica de CS valeu-lhe ser nomeado conselheiro e agente dos negócios de Portugal em Londres, graças a alguns amigos influentes que, apesar de tudo, mantinha no seu país. Ironicamente, depois desta lisonjeira nomeação, com a chegada de um novo embaixador de Portugal em Londres, CS teria, uma vez mais, de defrontar-se com nova perseguição — esse embaixador era precisamente da família do Grande Inquisidor, o que faria o Abade dizer a um seu amigo inglês: “não há mais infeliz fatalidade do que, depois de estar seis anos fora de Portugal, em paz, cair novamente nas garras da mesma família que me obrigou a sair do meu país, depois de me terem levado à loucura e à insanidade.”(Correia da Serra, carta para Edward Smith, 1801, citado em Davis, 2012, p.46). O dito embaixador, que vinha procurando arruinar a reputação de CS, recusou aceitar a sua demissão, o que levou este a enviá-la directamente para Portugal, seguindo para Paris em 1801. Aqui voltaria a publicar vários trabalhos e a contactar com muitos cientistas de nomeada, tanto franceses como de diversos países, estabelecendo uma importante rede de relações académicas internacionais.

Em 1812, com 61 anos, parte finalmente para os Estados Unidos, viagem que já intentava fazer em 1808 — à decisão não terá sido alheia uma nova situação de perseguição política devido às suas orientações liberais em tempo do domínio imperial de Napoleão que ordenou a sua expulsão de França. Iria permanecer nesse novo mundo até 1820, vivendo em “estado de graça” até 1816 quando, já no cargo de ministro plenipotenciário de Portugal para os Estados Unidos América (nomeado nesse mesmo ano por D. João VI), teve de enfrentar uma outra situação também ameaçadora embora de uma natureza diferente das anteriores. Competia-lhe desta vez impedir que os navios portugueses fossem atacados, apresados, espoliados da sua carga e vendidos nos portos dos Estados Unidos, permanecendo os assaltantes quase sempre incólumes — nesta nova confrontação CS teve de lutar face a duas frentes, a dos assaltantes e a do governo dos Estados Unidos. A sua luta ficaria suspensa quando D. João VI teve de deixar o Brasil e voltar para Portugal a seguir à revolução de 1820 e este seu ministro plenipotenciário deixou de ter a possibilidade de ir para o Brasil como esperava e regressou a Lisboa onde morreria em 1823.[2]

De acordo com esta breve resenha, poder-se-á dizer que CS se deparou, ao longo da sua vida, com cinco processos de confronto ou pelo menos com quatro, não incluindo a primeira fuga quando aos seis anos teve de ir para a Itália com os seus pais. Sucedem-se, assim, os seguintes confrontos:1. confronto com a perseguição movida pelo Santo Ofício e fuga de Lisboa para Londres em 1795; 2. confronto com a perseguição movida pelo embaixador de Portugal em Londres e mudança para Paris em 1801; 3. confronto com a perseguição sob o regime napoleónico e saída para os Estados Unidos em 1812; 4. confronto com este novo mundo (e particularmente com o que respeita à referida questão do apresamento dos navios portugueses) e regresso a Lisboa em 1821.

É este quarto confronto que aqui irei tomar com objecto de análise, visando uma aplicação da proposta de modelo que inicialmente avancei. Escolhi-o fundamentalmente porque, ao contrário do que acontece em relação aos outros confrontos anteriores com que CS se deparou, disponho, no caso deste, de cerca de oitenta cartas (apresentadas no acima citado livro de Davis (2012)) que me fornecem o material-base para poder construir o processo em causa, utilizando uma narrativa epistolar, género próximo da narrativa autobiográfica que tenho tido como material privilegiado para a análise deste tipo de processos.

Há, no entanto, uma reserva a fazer: o referido conjunto de cartas é predominantemente caracterizado por narrativas onde é raro o tom intimista e onde, pelo contrário, são frequentes as mensagens de natureza prática. CS não estava propriamente interessado em fazer literatura epistolar e raramente se detinha a explorar os seus “estados de alma” mesmo nas cartas enviadas aos amigos mais chegados. Assim sendo, é possível, contudo, identificar nessas numerosas cartas uma diversidade de assuntos que não dão conta apenas de situações factuais (marcação de visitas, envio e recepção de encomendas, troca de notícias sucintas sobre ocorrências várias, etc.) mas também de situações que, directa ou indirectamente, remetem para o modo como CS vivia no seu novo mundo e vivia o seu novo mundo (actividades a que se dedicava, acontecimentos que captavam a sua atenção, reflexões que desenvolvia acerca de questões científicas, culturais e políticas, apreciações sobre comportamentos de algumas das pessoas com que contactava, problemas com que se defrontava, formas como os procurava resolver e até uma ou outra observação confidencial a quem lhe merecia maior confiança).

O período que considero para o caso CS corresponde ao de toda a sua estadia nos Estados Unidos, onde distingui dois momentos: I. Os tempos felizes de demanda (1812 a 1816) e II. Os tempos decepcionantes de luta (1816 a 1820), este segundo momento abrangendo o período de conflito agudo à volta do apresamento dos barcos portugueses a que acima aludi. Para ambos os momentos irei explorar os eixos de análise já atrás enunciados: A. Situações relevantes; B. Obstáculos, riscos e ameaças; C. Estratégias e formas de expressão.

I. Os tempos felizes de demanda

A. Situações relevantes

Este primeiro momento é atravessado por quatro tipos principais de situações relevantes vivenciadas por CS (passíveis de ser captadas através das referidas cartas) que remetem para: 1. Relacionamentos com diversas personalidades; 2. Viagens pelos Estados Unidos; 3. Intervenção e aconselhamento no domínio do ensino nos Estados Unidos; 4. Considerações de natureza política.

Passo a analisar os modos como se configuram.

1. Relacionamentos com diversas personalidades

Era decerto elevada a capacidade de CS para se relacionar e fazer amigos como o atesta não só o elevado número de destinatários das cartas de CS, mas também a grande frequência da sua correspondência com muitos deles (particularmente com Thomas Jefferson, então ex-Presidente dos E.U. e com Francis Walker Guilmer, jurista e estudioso de botânica sediado em Filadélfia, ambos figurando com grande destaque tanto no primeiro como no segundo momento do processo em causa).

No conjunto das cartas publicadas no trabalho de Davis (2012) aparecem algumas que foram enviadas a CS por alguns dos seus destinatários e que constituem, também elas, uma fonte de informação sobre este, ao mesmo tempo que possibilitam um melhor conhecimento sobre a natureza da rede de relações que foi tecendo após a sua chegada. Entre as missivas que logo surgem após essa chegada contam-se, como era de esperar, as que cumprem fundamentalmente propósitos de apresentação e preparação de primeiros contactos — CS levou consigo cartas de apresentação de amigos cientistas europeus (e também de alguns diplomatas) que, por sua vez, tinham amigos no meio científico e cultural dos E.U. aos quais recomendaram o ilustre recém-chegado que rapidamente foi acolhido nesse meio e alvo de um entusiástico reconhecimento.

CS instalou-se em Filadélfia onde residiria na maior parte dos seus “tempos felizes de demanda” deste 1.º momento, embora passasse alguns breves períodos noutras cidades (Boston, Lexinton, Chambersburgh, Winchester, Charlottesville e Washington), quase sempre nas pausas entre as suas alargadas deambulações pelos E.U. Mas Filadélfia, importante centro para onde convergiam muitos dos emigrantes qualificados que vinham da Europa, era para CS a cidade de eleição a respeito da qual disse a um novo amigo que “não há um local, excepto Paris, que seja mais do meu agrado do que a sua acolhedora cidade.” (Wistar, carta, 27 setembro, 1813, citado em Davis, 2012, p. 134). Este Wistar foi um dos muitos elementos do meio científico e cultural de Filadélfia com que CS cedo se relacionou — botânico, futuro professor de anatomia na Universidade da Pensilvânia (a cumulatividade de interesses científicos em áreas diferentes era comum no campo académico de então) e membro da American Philosophical Society (APS) para a qual, aliás, CS foi convidado a entrar logo após a sua chegada, acrescentando assim uma sociedade americana à lista das principais sociedades científicas europeias a que já pertencia.

Esta sociedade funcionaria como o centro donde irradiou a maior parte dos contactos que foram integrando a rede de relações em que CS se movimentou durante a sua estadia nos E.U. (muitos desses contactos prolongar-se-iam pelo 2.º momento) e também como centro onde se radicou muita da sua actividade científica, quer em termos de apresentação de resultados das suas excursões de pesquisa, quer em termos de trabalho docente, conforme adiante se verá. Nos começos da estadia de CS, a APS era ainda dirigida por Thomas Jefferson (presidente dos E.U. de 1801 a 1809) ao que parece a primeira grande figura americana a quem CS escreveu.

A correspondência entre os dois iniciou-se precisamente com uma das tais cartas de apresentação e preparação de primeiros contactos:

Quando deixei a Europa há dois meses, vários dos seus correspondentes e amigos naquela parte do mundo [Jefferson tinha sido ministro da América em França em 1785], favoreceram-me com cartas de recomendação para si, sabendo quão ardentemente desejava ter a honra de o conhecer. (Jefferson, carta para Correia da Serra, 6 março, 1812, citado em Davis, 2012, p. 125)

Jefferson respondeu, dando-lhe conta, por sua vez, da vontade de também o conhecer:

Se a sua curiosidade o levara visitar esta parte dos EUA [Monticello onde Jefferson habitualmente residia], como a sua carta me dá motivo para esperar, ficarei muito feliz em recebê-lo em Monticello para lhe expressar pessoalmente o meu grande respeito e receber de si mesmo directamente as cartas dos meus amigos do outro lado do oceano [eram as cartas de recomendação enviadas por Lafayette, Du Pont, Thouin e Humboldt], dando-me o prazer de o conhecer. (Jefferson, carta para Correia da Serra, 17 abril, 1812, citado em Davis, 2012, p. 126)

O encontro dos dois e começo da, porventura, maior amizade de CS no seu novo mundo teve lugar somente no ano seguinte devido às longas viagens de CS pelos E.U. Comentários de Jefferson sobre CS — “o maior devorador da ciência em livros, homens e coisas que eu já alguma vez conheci e com um carácter o mais amável e cativante”(Jefferson, carta para Correia da Serra, 17 agosto, 1813, citado em Davis, 2012, p. 61) e de CS sobre aquele numa conversa com um outro amigo (Biddle, advogado e editor de um jornal literário de Filadélfia que, anos atrás tinha trabalhado com Jefferson na legação de Paris)[3] mostram como cada um deles admirou o outro e como essa recíproca admiração se repercutiu vantajosamente sobre a reputação de ambos.

Embora não houvesse então meios capazes de permitir uma rápida troca de cartas e as frequentes e não raras erráticas viagens de CS também não concorressem para a facilitar, mesmo assim este conseguiria marcar vários encontros, designadamente para passar algumas temporadas na casa de Jefferson onde acabou por ter o seu quarto. Também convivia regularmente com outros amigos de Filadélfia, sobretudo os já referidos Wistar e Biddle bem como Vaughan, bibliotecário da APS e homem de negócios (enquanto tal trataria dos negócios de CS) e o jovem Guilmer, estudioso de botânica e de direito, grande admirador de CS e seu protegido. Para além do convívio com os novos amigos, CS também participava frequentemente nas sessões da APS — movia-se, assim, numa rede de relações benéficas em termos dos seus interesses científicos e culturais e das suas necessidades de apoio no novo mundo e, ao mesmo tempo, benéficas em termos do acrescido prestígio que a sua presença trazia à referida instituição e aos que com ele conviviam.

Relativamente à dimensão científica e cultural dos seus relacionamentos, o conjunto de cartas deste 1.º momento mostra como CS se preocupava em ser útil aos seus pares e não se poupava a esforços para os informar sobre questões que os interessavam, quer fornecendo-lhes referências bibliográficas, quer enviando-lhes encomendas com plantas, sementes ou pedaços de minério recolhidos ao longo das suas viagens pelo território americano; pelo seu lado, recebia também esse tipo de atenções, não só dos seus amigos de Filadélfia mas igualmente de muitos cientistas com que contactou nos vários lugares dos Estados Unidos por onde viajou (também para estes relacionamentos foram muito vantajosas as suas ligações à APS cujos membros lhe davam cartas de apresentação para os colegas em lugares distantes).

Relativamente à dimensão de convivialidade, CS era, ao que parece, um conversador interessante e animado que facilmente se tornava figura central de um serão e que, inclusivamente, as mulheres ainda achavam fascinante apesar da sua avançada idade. Nem sempre, porém, lhe era agradável a hospitalidade com que era recebido e, por vezes, fora do centro cultural e cosmopolita de Filadélfia, impacientava-se com uma agitada sociabilidade mundana que não correspondia ao tipo de convívio que ele desejava e que encontrara naquela cidade emblemática da sua demanda do novo mundo. Daria conta daquela sua impaciência a um dos amigos do circuito de Filadélfia:

Que hospitalidade excessiva têm os habitantes da Carolina! Eu pretendia passar incógnito, e fazer apenas uma visita ao botânico Sr. Elliot e às plantas da região, mas ele e os Rutledges [uma grande e famosa família que incluía vários governadores estaduais] lançaram-me num turbilhão de convites para jantares, ceias, clubes, concertos, de que só no final de uma quinzena, com um forte safanão, me consegui desenvencilhar e mesmo assim a sua hospitalidade perseguiu-me até às fronteiras da Carolina do Sul. (Correia da Serra, 17 dezembro, 1815, citado em Davis, 2012, p. 160)

2. Viagens pelos Estados Unidos

Se, como se viu acima, Filadélfia tem para CS um valor emblemático na sua demanda do novo mundo, ela representa a vertente urbana dessa demanda que tem necessariamente de ser complementada pela vertente “selvagem” dos territórios inexplorados que as suas alargadas e frequentes viagens lhe revelariam. É surpreendente o facto de este europeu citadino com mais de 60 anos e saúde débil se ter aventurado a fazer viagens de muitos meses por vastos espaços na maior parte dos casos carecidos de vias de comunicação minimamente razoáveis, privado de todo o conforto e sujeito a riscos e a condições de clima não raro bastante adversas.

Movê-lo-ia a curiosidade face a esses espaços ainda pouco conhecidos e a vontade de recolher dados sobretudo acerca da flora e dos minérios que aí encontrava, podendo dizer-se que as suas viagens correspondem a verdadeiras expedições de exploração científica. Nas cartas, as referências de CS às suas excursões não se detêm propriamente a descrever e comentar os encantos das paisagens (tendência que, aliás, só viria a tornar-se habitual entre os viajantes quando se tornou comum a expressão do gosto romântico pela natureza) mas mostram uma particular atenção quanto à existência de recursos naturais capazes de proporcionar uma maior riqueza para os E.U. Neste sentido, escreveu a Madison (então Presidente dos E.U.), um dos seus novos amigos também ligado à APS, advertindo-o sobre a existência de minérios de ferro, prata e chumbo nos territórios do norte da nação (territórios por onde CS viajou longamente) e lembrando-o de que “O primeiro passo a dar é explorar estas e outras coisas desconhecidas ou de existência insuspeitada.”. Na mesma carta, referindo-se ao sal, “que é na Europa uma importante fonte de receitas”, fazia uma curiosa advertência ao Presidente:

se, no Oeste, as salinas que pertencem a proprietários privados fossem propriedade da União, que grande receita já receberiam! O passado não pode ser anulado, mas os recursos para o futuro são uma imensa reserva que não pode ser alienada da mesma maneira.

E para que não fosse mal-entendido, acrescentava mais adiante:

naquilo que agora tomo a liberdade de lhe escrever espero que possa ver uma prova do verdadeiro interesse que tenho na felicidade desta nação e na prosperidade deste governo, que é na verdade algo de muito real porque nada tenho a pedir de ambas as coisas. (Correia da Serra, carta para Madison, 10 dezembro, 1814, citado em Davis, 2012, pp. 147-148)

Nem sempre viajava só, algumas vezes levava um ou dois companheiros como aconteceu numa viagem com os seus amigos Jefferson e Guilmer, os três subindo os Picos Otter metidos numa rústica carroça, “a explorar as suas encostas para assuntos que tinham a ver com botânica” (Correia da Serra, carta para Guilmer, 3 outubro, 1815, citado em Davis, 2012, p. 67), conforme notícia fornecida ao irmão daquele último. Guilmer, aliás, acompanhou CS em várias viagens, entre as quais uma que fariam a seguir à referida ida aos Picos (já sem Jefferson, demasiado frágil para continuar a acompanhá-los), tendo como objectivo visitar a longínqua reserva índia dos Cherokees no Tennessee.

CS levava habitualmente várias cartas de recomendação que utilizava ao longo dos seus percursos e que, como acima ficou dito, lhe facultavam os contactos com outros cientistas — serve de ilustração uma carta de Jefferson para um seu correspondente, dizendo a respeito do seu amigo europeu:

o Senhor Correia da Serra (…) é talvez o homem mais instruído do mundo, não só em livros, mas também em homens & coisas, e o mais amigável & interessante que jamais vi. Embora nenhuma ciência lhe seja estranha, tem predilecção pela botânica. Se por acaso tiver ido ao Kentucky como a sua última carta parecia indicar, receba-o e dê-lhe toda a atenção com que os nossos irmãos do Kentucky se podem honrar. (Jefferson, carta para Samuel Brown, 28 abril, citado em Davis, 2012, p. 139)

Este tipo de cartas funcionaria também como uma espécie de salvo conduto sobretudo para as viagens aos territórios mais remotos, caso da viagem aos Cherokees em que levou uma carta do Presidente Madison para o agente do governo junto daqueles índios, um tal general Meigs que por acaso se cruzou com CS e Guilmer quando seguiam por uma deserta estrada de montanha. Como Meigs não estava disponível para os acompanhar, orientou os dois viajantes para casa do filho onde ficaram algum tempo e, de acordo com o que o general depois contou a Madison, “Monsieur De Serra esteve constantemente ocupado a examinar as produções vegetais que a natureza aqui oferece e informou o meu filho e filha sobre as qualidades de um número de plantas que eles antes desconheciam.” (Meigs, carta para Madison, 22 dezembro, citado em Davis, 2012, p. 161). CS incitaria Guilmer a ir fazendo anotações botânicas bem como um registo de observações que depois este usou para publicar um artigo sobre The Institutions of the Cherokee Indians (não raro, as descobertas resultantes desta e doutras viagens eram comunicadas em sessões da APS).

As viagens de CS prolongaram-se a um ritmo intenso por todo este 1.º momento da sua estadia de tal modo que acabou por conhecer grande parte dos E.U. Esta vertente da sua demanda pelo novo mundo é animada por uma curiosidade de homem das “luzes”, particularmente interessado no valor útil da ciência para a riqueza das nações, sendo-lhe indiferente, como cidadão do mundo, se esta era ou não a sua nação. Ao mesmo tempo, através das viagens empenhava-se não só em descobrir e conhecer, mas também em dar a conhecer, formando e estimulando jovens para aprofundarem os seus conhecimentos e fazerem as suas carreiras científicas (o caso de Guilmer é exemplar a esse respeito, mas não é único).

O interesse e curiosidade de CS e os seus conhecimentos científicos, particularmente em botânica e em geologia, cumulativamente com as descobertas que foi fazendo sobre os territórios que explorou ao longo das suas muitas viagens teriam concorrido para o pedido de ajuda que Jefferson lhe fez para recuperar e compilar os diários manuscritos do capitão Clark feitos durante a expedição deste até ao Pacífico. A Louisiana tinha sido comprada pelos E.U. a Napoleão e Jefferson, então Presidente, enviara dois exploradores, Lewis e Clark, para mapear e descrever esse território; Lewis morrera pouco depois e os seus manuscritos encontravam-se na maior desordem, arrecadados na casa da viúva de um Dr. Barton, médico e naturalista, que teria tido o encargo de vir a prepará-los para publicação. CS dispôs-se a cuidar do assunto, decerto empenhado em poder reunir e conhecer todos esses documentos onde, conforme a descrição na carta que Jefferson lhe enviou, havia registos de todas as ocorrências durante a viagem, descrições de animais e plantas, glossários de palavras dos índios, um mapa em grande escala do território percorrido, etc. Nessa mesma carta, Jefferson informava CS que eram propriedade do governo todos esses manuscritos, ou seja,

os frutos desta expedição, realizada com grande gasto de dinheiro e de risco de valiosas vidas. Contêm exactamente toda a informação que era nosso objectivo obter para benefício do nosso próprio país e do mundo. A sua recuperação tornou-se agora um dever imperioso. O seu local de depósito mais seguro, assim que puderem ser reunidos, será a Philosophical Society, que sem dúvida terá a gentileza de os receber e preservar, sujeitos às ordens do governo. (…) Para si, meu amigo, é devido um pedido de desculpas por envolvê-lo no problema desta investigação. Deve ser visto no interesse que tem por tudo o que pertence à ciência, e nas suas amáveis ofertas para me ajudar nesta pesquisa. (Jefferson, carta para Correia da Serra, 26 abril, 1816, citado em Davis, 2012, pp. 185-186)

CS, ele próprio já um membro da APS, seria, assim, convidado a assumir um papel importante relativamente a uma questão relevante para o futuro cultural e económico dos E.U.

3. Intervenção e aconselhamento no domínio do ensino nos Estados Unidos

Os amplos conhecimentos de CS em diversas áreas faziam dele um útil consultor, sendo frequentemente abordado para se pronunciar sobre diversos projectos, muito em particular sobre programas de ensino superior para novas escolas, caso da Universidade da Pensilvânia em que Jefferson estava muito empenhado. A este respeito há duas interessantes cartas com pareceres de CS — uma para Jefferson, na sequência de um plano que este lhe enviou, comentando a questão da existência (ou não) de estudos teológicos no programa da referida universidade, outra sem designação do destinatário (segundo R. Davis seria para um tal Rawle, um outro membro da APS, empenhado, ao que parece, nos trabalhos da mesma universidade), comentando as possíveis matérias a serem tratadas em determinadas cadeiras.

Na carta para Jefferson, as observações de CS mostram-no bem independente do seu estatuto de Abade, ao avançar as razões por que, apesar de tudo, defendia a inclusão de um departamento de teologia,

convencido como estou de que superstição e religião, na maior parte da humanidade, deverão sempre existir, sendo este o resultado natural da proporção desigual com que as diferentes faculdades mentais estão geralmente associadas na natureza humana. Faz mais sentido neutralizá-las do que deixá-las sozinhas a funcionar de acordo com a sua natureza cáustica. O Senhor [Jefferson] tem feito muito na América para as neutralizar, retirando-lhes qualquer ajuda do governo e quebrando-lhes a sua velha aliança, mas isso ainda não é tudo; a melhor forma de as neutralizar é através do conhecimento infundido nos seus sacerdotes (…) Se forem cultos terão, na medida certa, um pensamento liberal e neutralizarão a insensatez que faz parte das suas crenças. Se forem ignorantes, mergulharão cada vez mais fundo no fanatismo e no disparate, que como se sabe são e serão sempre doenças muito epidémicas e perigosas. (Correia da Serra, carta para Jefferson, 9 dezembro, 1814, citado em Davis, 2012, p. 144)

Na outra carta é de notar que CS, nos seus minuciosos comentários ao plano recebido, preocupou-se fundamentalmente com a relação entre as matérias a ensinar e as condições das respectivas instituições de ensino e os interesses dos respectivos países. Remeto para duas passagens significativas, uma relativa à disciplina de Anatomia Comparada:

Estou perfeitamente convencido de que a Anatomia Comparada, se tratada abertamente e em toda a sua extensão, é um refinamento da ciência para a qual as vossas instituições de ensino ainda não estão maduras. Mas ensinada como a chave da Zoologia e envolta no seu vigor, como é praticada agora em Paris e Gottingen, proporciona uma base sólida e mais importante a esta ciência, retirando-a da sua situação inferior de ciência de nomenclatura e mero inventário de espécies formado a partir das características externas destas. (Correia da Serra, carta para Rawle, 14 março, 1816, citado em Davis, 2012, p. 177)

A outra passagem é relativa à cadeira de Agricultura:

Deixei a Europa há quatro anos dividida entre a Agricultura Química e Botânica, e como sempre acontece, a divisão fez-se de acordo com os diferentes interesses dos países. Naqueles mais a norte, onde as novas culturas não poderiam ser facilmente introduzidas e o solo não é dos melhores, os adubos e as alterações do solo eram, naturalmente, os principais objectivos e a Agricultura Química assumiu a liderança. (…) Os países que a partir do seu solo e do seu clima têm uma grande variedade de plantas vegetais úteis para introduzir ou para trazer para a cultura são a favor da agricultura botânica, como se pode ver nos trabalhos de autores franceses, italianos e alemães do Sul (…) Estou convencido de que a Pensilvânia está na situação de ser capaz de obter lucro de ambos. (Correia da Serra, carta para Rawle, 14 março, 1816, citado em Davis, 2012, p. 179)

Para além dos seus pareceres e aconselhamentos no domínio do ensino, CS também trabalhou ele próprio como docente, leccionando cursos de Botânica na APS para o que fazia questão de ir todos os dias de manhã ao campo colher as plantas que considerava necessárias para as sessões. Esta avançada preocupação com a vertente prática do ensino está também presente nas suas recomendações para se dotar a nova universidade da Pensilvânia com “um jardim de experiências” destinado à cadeira de Botânica.

4. Considerações de natureza política

Depois das sucessivas lutas entre os E.U., a Inglaterra e a França que tinham marcado o final do séc. XVIII, a paz ainda não chegara ao novo mundo no período correspondente a este 1.º momento do caso em análise. Por vezes, as próprias viagens que CS planeara fazer ficavam afectadas pelo clima de guerra, caso da ida até às fronteiras do Canadá em que não chegou a poder visitar Niágara. Travava-se então a Guerra anglo-americana que em 1812 os E.U. tinham declarado aos ingleses, uma vez que estes continuavam a interferir no seu comércio marítimo. A Inglaterra mandara um exército para o Canadá, na altura sua colónia, e obrigara os E.U. a recuar. Seguidamente, os ingleses ultrapassaram as fronteiras e ocuparam Washington. A guerra terminaria em 1815, mas um ano antes, CS, acompanhado por Guilmer, tinha visitado as ruínas da capital e testemunhado a controvérsia que o acontecimento tinha suscitado (de recordar as divergências entre os federalistas e os democratas-republicanos, os primeiros contrários à Guerra de 1812 aprovada pelos segundos).

Em cartas a Jefferson, CS adverte-o relativamente ao perigo de secessão da Nova Inglaterra onde permaneceu três meses durante os quais, conforme diz, conviveu

com todos os partidos, mas sobretudo com os líderes da oposição [Jefferson, como é sabido, liderava os democratas-republicanos, enquanto na Nova Inglaterra dominavam os federalistas, seus opositores]. Estou convencido de que embora muitos deles estejam assim devido a sentimentos partidários ou a interesses privados, ainda existe entre eles maior traição do que, daquilo que me recordo das nossas conversas, parecia estar consciente. (Correia da Serra, carta para Jefferson,20 setembro, 1814, citado em Davis, 2012, pp. 140-141)

Referia-se às conversas dos dois que se tinham seguido a uma outra carta anterior em que já aludira a esta questão de forma elíptica — “A minha permanência durante três meses na Nova Inglaterra permitiu-me estudar tanto a doença como o remédio, mas poderá ajuizar melhor se o meu ponto de vista sobre o assunto está correcto quando me encontrar consigo.” (Correia da Serra, carta para Jefferson,10 abril, 1814, citado em Davis, 2012, p. 136). Na carta de 20 de setembro, alvitrava a criação de “comités de segurança pública” nos estados do Leste (estes comités seriam, porventura, o “remédio” para a “doença”, ou seja, para o perigo de secessão) e acrescentava cortesmente: “O Senhor e o actual governo melhor conhecem os caminhos a seguir, mas espero que me perdoe por esta intromissão nos seus assuntos de Estado.” (Correia da Serra, carta para Jefferson, citado em Davis, 2012 p. 142). Jefferson partilhava com CS as preocupações quanto a esta guerra, receoso de que se ela “continuar, será exigido mais um ano de sofrimento para os homens, bem como de dinheiro até que os nossos legisladores consigam chegar a um regime militar e financeiro capaz de nos levar a bom porto numa guerra cuja duração se desconhece.”; no entanto, não acreditava que a Convenção de Hartford, convocada pelos federalistas e então a decorrer, resultasse naquela secessão (a traição temida por CS) que os ingleses esperavam, e opinava com uma segurança que veio a confirmar-se: “Quando souberem, porque eles [os federalistas] vão saber, que aí nada será feito, vão abrir mão e completar a paz no mundo, dando o seu aval à situação existente antes da guerra.”(Jefferson, carta para Correia da Serra, 27 dezembro, 1814, citado em Davis, 2012, pp. 153-154).

Ainda na mesma carta, e na sequência das suas preocupações com a guerra em curso, é bem visível a confiança que CS lhe merecia quando o informa e o consulta sobre uma questão colocada por um amigo comum (um Sr. Say, economista francês). Esse amigo estava interessado em instalar-se nos E.U. e queria saber preços das terras, trabalho, produção, etc. nos arredores de Charlottesville, questão a respeito da qual Jefferson fazia vários comentários sobre a dificuldade de lhe dar uma resposta uma vez que

Agora não temos preços fixos (…). Na maioria dos países, o melhor padrão permanente é talvez uma quantidade fixa de trigo. Mas aqui, o bloqueio de toda a nossa costa, impedindo qualquer acesso aos mercados, tem pressionado o preço do trigo e aumentado o de outros bens, em direcções opostas e, juntamente com os efeitos do excesso do papel-moeda, não deixa realmente nenhuma medida comum de valores a que se possa recorrer.

Dizia que ia ter de pensar para poder informar Say o melhor possível, até porque era do seu agrado a intenção deste que visava combinar um plano de funcionamento de uma fábrica de algodão em escala moderada com um plano de pequena agricultura —

Para mim, um tal acréscimo à nossa sociedade rural seria inestimável, e posso facilmente imaginar que pode ser um benefício para os filhos & descendentes dele se fixarem num país onde, se se possui empreendimentos & talentos, o caminho para se chegar à fortuna e à fama se encontra aberto. Mas se, neste momento da sua vida, com hábitos formados sobre o estado da sociedade francesa, uma mudança para alguém tão completamente diferente resultará em felicidade pessoal, o Senhor [CS] pode julgar melhor do que eu. (Jefferson, carta, 27 dezembro, 1814, citado em Davis, 2012, pp. 152-153)

Alguns meses depois, noutra carta a CS, Jefferson volta a pedir-lhe a opinião sobre a mesma questão e remete-lhe em anexo a carta que se propõe enviar a Say. Receando que a informação que preparou para este possa ter sido influenciada pela parcialidade relativa ao seu próprio país, insistia:

Sobre isto, um estrangeiro seria melhor juiz do que um nativo, e ninguém melhor do que o Senhor [CS]. Por isso deixei a carta aberta, e peço-lhe que a leia, e se encontrar alguma coisa que deva ser corrigida, agradeço-lhe que o anote numa carta ao Sr. Say, com quem acredito está particularmente familiarizado. (Jefferson, carta para Correia da Serra, 6 março, 1815, citado em Davis, 2012, pp. 154-155)

Não encontrei nas posteriores cartas de CS para Jefferson qualquer resposta a esta questão mas pareceu-me interessante incluir os excertos das cartas citadas na medida em que ilustram não só o apreço em que a opinião de CS era tida mas também, a um outro nível, dão conta das dificuldades económicas em que o país se encontrava devido à guerra e à inexperiência dos seus legisladores, sem que, malgrado isso, tais dificuldades impedissem Jefferson de ter uma visão dos E.U. como lugar promissor, optimismo que, como é sabido, viria a intensificar-se e a generalizar-se no período de paz e fortalecimento da economia que sucedeu ao final da Guerra anglo-americana.

Conforme acima se viu, CS, que era nitidamente a favor da democracia jeffersoniana, não se coibia de enviar sugestões de medidas políticas não só a Jefferson, mas também a Madison, o Presidente então em funções, um e outro democratas-republicanos. Viu-se já (acima no ponto 3.) como numa carta a Madison, referindo-se às salinas existentes no Oeste, o aconselhava a não alienar importantes recursos naturais dos E.U. a proprietários privados, mas a torná-los propriedade da União. Nessa mesma longa carta apresentaria igualmente comentários e recomendações relativas à questão da Guerra de 1812, então ainda em curso. A partir da leitura de jornais ingleses e continentais que conseguia receber, CS informava Madison sobre as diferentes opiniões apresentadas nuns e noutros — os primeiros “a aumentar o alarido contra esta nação enquanto ninho de jacobinos”, ao mesmo tempo que, nos segundos, “o continente parece simpatizar convosco enquanto vítimas de uma guerra de pirataria e de vingança. Como permaneceis sozinhos no centro de tudo, todos os olhos estão concentrados em vós.” — e passava a adverti-lo quanto à estratégia a adoptar:

Uma resistência digna, sem imitar no mínimo o que o continente neles [os ingleses] muito desaprova, mas, pelo contrário, seguindo o plano francês de mostrar moderação e autocontrolo, assegurará e prenderá ao vosso serviço todos os sentimentos dos continentais e forçá-los-á [aos ingleses] a fazer a paz.

e remata dizendo:

Eu não peço perdão por falar de uma forma tão livre e aberta com o chefe de uma grande nação, pelo contrário, considero isso como o maior elogio que posso prestar às suas qualidades pessoais, e uma prova da alta estima e veneração (…). (Correia da Serra, carta para Madison, 10 dezembro, 1814, citado em Davis, 2012, pp. 148-149)

Para além destas considerações políticas relativas às relações entre os E.U. e a Europa e particularmente à Guerra anglo-americana, a troca de correspondência de CS, sobretudo com Jefferson, já depois de conseguida a paz, dá também a conhecer como os dois amigos viam o que então se estava a passar em França, país pelo qual ambos sempre muito se interessaram. Jefferson comentaria o retorno de Napoleão de Elba para Paris (notícia com algum atraso, uma vez que, dias antes, este já tinha sido novamente vencido pelos ingleses) nos seguintes termos: “Tanto quanto podemos julgar pelas aparências, Bonaparte, para além de ser um mero militar Usurpador, parece ter-se tornado a escolha do seu país; e os aliados, por sua vez, os usurpadores &espoliadores do mundo europeu.”— e acrescentaria cepticamente: “A partir da experiência dos últimos 25 anos, temo que os costumes não avancem por necessidade de mãos dadas com as ciências. Estas, porém, são especulações que podem ser adiadas para o nosso encontro em Monticello.” (Jefferson, carta para Monticello, 28 junho, 1815, citado em Davis, 2012, p. 156). Alguns meses depois, Jefferson voltaria a escrever a CS sobre o clima político na França (com Luís XVIII regressado ao trono no meio de grande agitação) de novo com grande pessimismo e, desta vez, preocupado também com a notícia da possível ida do amigo para esse país:

Que efeito terá a aparente restauração dos Bourbons em relação aos seus movimentos? Vai tentar o seu regresso? Não vejo nisto uma restauração calma. Pelo contrário, considero que a França se encontra num estado ainda mais vulcânico do que em qualquer outro momento anterior. (…) Estas não são conjunturas, meu caro amigo, para o meio das quais o Senhor possa ser lançado. Não têm nada a ver com a tranquilidade do seu carácter. (Jefferson, carta para Monticello, 1 janeiro, 1816, citado em Davis, 2012, p. 164)

CS responder-lhe-ia que “A sua opinião sobre os assuntos europeus presentes e futuros corresponde ao que eu próprio penso, mas vejo poucas hipóteses de escapar à necessidade de voltar para lá.” (Correia da Serra, carta para Jefferson, 12 fevereiro, 1816, citado em Davis, 2012, p. 174). As considerações de ordem pessoal que, por esta mesma altura, ambos reciprocamente exprimem a respeito desta presumível partida (suscitada por dificuldades de dinheiro de CS) serão tidas em conta no ponto seguinte.

B. Obstáculos, riscos e ameaças

Para este primeiro momento só se revelam nas cartas dois tipos de obstáculos, riscos ou ameaças — os que remetem para problemas de saúde e os que remetem para problemas de dinheiro. Em qualquer dos casos, eles não são propriamente causados pela vinda de CS para os E.U. Mesmo no que respeita à saúde, apesar das suas frequentes queixas contra o clima, a verdade é que CS já não era novo e, ao que parece, sofria há muito de diabetes e reumatismo. Em Filadélfia, num inverno rigoroso, estar cercado de neve deixou-o em tão más condições de saúde que falou disso a Guilmer em duas cartas seguidas, no mesmo mês de Fevereiro: “A minha saúde ressentiu-se muito, e só nesta última semana senti algumas melhoras com o exercício” e dias depois escreveu: “a minha mente está quase tão congelada como o meu corpo.” (Correia da Serra, carta para Guilmer, 6 e 8 de fevereiro, 1816, citado em Davis, 2012, pp. 167-168). Queixou-se também mais de uma vez dos ataques de reumatismo que dificultavam as suas deslocações como, por exemplo, quando estava a dar os seus cursos de Botânica na APS: “Dei aulas quase todos os dias, à tarde, com fortes dores reumáticas, indo ao campo num cabriolé todas as manhãs para reunir as plantas necessárias.” (Correia da Serra, carta para Jefferson, 16 junho, 1816, citado em Davis, 2012, p. 188) ou quando pretendia ir apresentar ao Presidente Madison as credenciais por altura da sua nomeação para ministro de Portugal nos E.U.: “Há alguns dias recebi, via Inglaterra, a minha nomeação e as minhas credenciais, e teria partido imediatamente para Washington e Montpelier se um ataque de reumatismo, que levou a melhor sobre mim, não tivesse aumentado com maior gravidade.” (Correia da Serra, carta para Madison, 10 julho, 1816, citado em Davis, 2012, p. 189). Ao que parece, as doenças surgiam frequentemente associadas aos problemas financeiros e melhoravam quando estes eram resolvidos… Não raro as cartas de Portugal tardavam e faziam tardar a chegada das tão necessárias letras de câmbio — Vaughan, o já referido homem de negócios e bibliotecário da APS com quem CS fizera amizade e que o ajudava com as questões de contabilidade, receberia várias vezes notícias dessas preocupações, do que pode ser exemplo a seguinte passagem de uma carta escrita cerca de um ano depois da sua chegada aos E.U.:

Tanto tempo estive sem cartas de Portugal, tão pouco sabia do estado das coisas, que a minha impaciência tinha conseguido o melhor de mim. (…) Finalmente os navios recentemente chegados de Lisboa trouxeram-me (…) não apenas cartas, mas letras de câmbio no valor de 987 libras esterlinas e a certeza de 450 libras terem sido enviadas para Paris para pagar grande parte do que eu devia. Juntamente com isso, a certeza de recuperar ainda o que me é devido e de colocar em ordem os pagamentos futuros de cada parte do meu parco rendimento. (Correia da Serra, carta para Vaughan, 27 setembro, 1813, citado em Davis, 2012, pp. 132-133)

Poderia então desistir de ter de regressar à Europa como com muita pena já anunciara a alguns dos seus correspondentes (em cartas a Jefferson, Biddle e Madison). Aliás, nessa carta para Vaughan dava conta da sua satisfação em poder continuar nos E.U. a conviver com os amigos “por mais algum tempo e agora com um tempo repousado e com uma mente tranquila” e pedia-lhe para avisar a dona da sua pensão em Filadélfia de que era “um pensionista estável e que ela pode contar comigo [e que em vez] do meu baú inglês mais apto para viagens, ela terá o maior dos baús americanos que eu comprei, que é mais adequado a uma vida sedentária”, acrescentando a terminar: “A minha saúde ainda não está boa, mas tenho esperança de que vai ficar muito melhor com um descanso de algumas semanas:” (presumivelmente a solução, mesmo que temporária, dos seus problemas de dinheiro não deixaria de ajudá-lo a superar os problemas de saúde).

Todavia, três anos depois, a ameaça de regresso forçado à Europa voltaria a fazer-se sentir, ao que parece novamente devido a dificuldades financeiras. Jefferson que, como acima se viu (A. Situações específicas, 4. Considerações de natureza política), ficara preocupado com o possível retorno de CS a Paris por altura dos agitados dias da restauração dos Bourbons, teria sabido daquelas dificuldades e, muito gentilmente, ofereceu-lhe uma possibilidade para permanecer nos E.U.:

Na verdade não lhe podemos oferecer a companhia da comunidade científica de Paris. Mas quem pode desfrutar da ciência ou pensar nela, em plena insurreição, loucura e massacre? Além disso, o Senhor possui toda a ciência dentro de si. Dos outros poucos pode obter de novo, e o prazer de a comunicar devia ser maior onde é mais desejada. Fique, pois, connosco, e torne-se nosso mestre. (…) Venha e faça desta a sua casa [a casa de Jefferson em Monticello], o local de descanso e tranquilidade (…) um quarto confortável, num país com recursos para a sua reforma, quando tal o decidir, e uma família sociável, cheia de afecto & respeito por si, quando estiver cansado de estar sozinho (…). (Jefferson, carta para Monticello, 1 janeiro, 1816, citado em Davis, 2012, pp. 164-165)

CS respondeu-lhe muito reconhecido — “Enquanto viver, sentirei a sua bondade e guardarei um sentido de gratidão de tanta gentileza.” — e, embora não deixando de afirmar que via “poucas hipóteses de escapar à necessidade de voltar para lá”, acrescentaria: “O que posso fazer é não escolher Paris, de forma precipitada para a minha residência, até ver o rumo que as coisas levam.” (Correia da Serra, carta para Jefferson, 12 fevereiro, 1816, citado em Davis, 2012, p. 174).

Pouco tempo depois, com a sua nomeação como ministro de Portugal nos E.U.,[4] as coisas levariam efectivamente um novo rumo, como se verá mais adiante na análise do 2.º momento.

C. Estratégias e formas de expressão

A partir dos aspectos acima destacados relativamente aos eixos A. e B., resultam desde já claras algumas das estratégias que orientaram CS nos “tempos felizes” do seu confronto com o novo mundo. Neste 1.º momento, conhecer o melhor possível os E.U. e desempenhar um papel de aconselhamento para o desenvolver do país são os seus dois objectivos fulcrais. No sentido de os levar a cabo, CS faria convergir eficazmente um conjunto de determinadas disposições, designadamente: a. a realização de viagens que lhe permitiram conhecer uma grande parte dos territórios dos E.U.; b. a reflexão sobre trabalhos de diferente natureza (científica, histórica e política) relativos aos E.U. e a subsequente troca de ideias, particularmente com membros da APS; c. a participação nas actividades desta associação (estando presente nas reuniões, dando pareceres sobre obras destinadas a publicação, fazendo palestras e ministrando cursos, orientando jovens por ela tutelados, etc.); d. a prática de um frequente intercâmbio epistolar, importante veículo para o exercício do seu papel de aconselhamento.

A apoiar estas disposições encontra-se uma importante rede de relações tecida a partir das cartas de recomendação ao dispor de CS e alargada pelo efeito bola de neve — novos relacionamentos viabilizados por anteriores relacionamentos — uma rede de relações em que se manifestam formas de expressão correspondentes à sua grande capacidade de atrair as pessoas e fazer amigos através tanto da sua simpatia como do seu saber (aspecto já referenciado atrás em A. Situações relevantes, 1. Novos relacionamentos com diversas personalidades). Como dizia Guilmer,

Ele leu, viu, compreende e lembra-se de tudo o que obteve em livros, ou que pode ser aprendido em viagens, por observação e nas conversas com homens instruídos. Ele é membro de todas as sociedades filosóficas no mundo e conhece todos os homens distintos vivos. (Guilmer, carta para o irmão, 3 novembro, 1814, citado em Davis, 2012, p. 66)

Qualidades estas que lhe eram reconhecidas por muitos outros que não apenas este seu grande amigo e admirador, ao mesmo tempo que, não raro, se referiam também à sua modéstia, simpatia e sentido de humor, caso de Tucker (representante da Vírginia no Congresso) que, evocando um serão em que CS tinha estado presente, escreveu:

O Abade teve uma oportunidade justa para exibir, sem ostentação, o seu conhecimento minucioso sobre a geografia, o solo, as produções naturais e o clima de um país [os E.U.] sobre o qual a maioria de nós não sabe nada. Além disso, disse alguns bons gracejos e ditos espirituosos e a noite passou de forma agradável. (Tucker, carta para Correia da Serra, 11 dezembro, 1816, citado em Davis, 2012, p. 74)

II. Os tempos decepcionantes de luta

A já referida nomeação de CS como Ministro de Portugal nos E.U. em 1816pareceu-me um bom marco para abrir o 2.º momento do percurso aqui em análise. A partir daqui, embora se mantenham algumas das características encontradas para os tempos iniciais, vão surgir alterações importantes, qualquer que seja o eixo analítico considerado.

Relativamente à nomeação, Jefferson leu a notícia no National Intelligencer (o jornal da Administração em Washington) e apressou-se a escrever ao amigo para o felicitar:

Se isto for aceitável para si, quero felicitá-lo sinceramente, mas ainda mais os meus conterrâneos, para quem tal será ainda maior satisfação. Espero que isto o prenda a nós para o resto dos seus dias, e que continue a visitar os seus velhos amigos como antes, e se contente que o recebamos e tratemos como nosso amigo, mantendo fora de vista o carácter político. (Jefferson, carta para Correia da Serra, 5 junho, 1816, citado em Davis, 2012, p. 187)

CS, na sua carta de resposta (depois de informações várias sobre a sua pouca saúde, as suas actividades relativas ao curso de botânica e aos apontamentos do capitão Lewis, etc.) reservou apenas meia dúzia de linhas para aquela notícia, em que, depois de agradecer as felicitações de Jefferson pela nomeação, escreveu a esse respeito: “pela coisa em si, embora deva valorizá-la, não me causa grande impressão. É um pouco como o dióspiro, chega tarde e amadurecido por fortes geadas” e encerrou o assunto com a devida gentileza: “Uma das evidentes vantagens que encontro nisso é o facto de que, mantendo-me na América, tenho assegurado um maior número de peregrinações a Monticello.” (Correia da Serra, carta para Jefferson, 16 junho, 1816, citado em Davis, 2012, p. 188). Cerca de um mês depois escreveu a outro seu amigo, o Presidente Madison, dando-lhe conta do forte ataque de reumatismo que, como acima já ficou dito, o impossibilitou de partir para Washington para lhe entregar as credenciais logo que as recebeu e dizendo-lhe que irá assim que conseguir caminhar com menos dor e que espera poder fazê-lo “da mesma maneira filosófica e amigável, sem cerimónia, como na minha última visita, e ser tratado do mesmo modo, sendo que nada é mais lisonjeiro para mim do que a sua amizade pessoal. Quanto ao futuro”, diria a terminar,

tenho boas expectativas que (pelo menos, durante a minha missão) o ministro português seja, para os Estados Unidos, uma espécie de ministro da família. De facto, neste momento, as nossas nações são ambas potências americanas, e serão sempre as duas soberanas, cada uma na sua parte do novo continente (…)

acrescentando o que para ele, podemos presumir, seria muito mais do que uma mera cortesia: “Tenho também a consciência de que nenhum ministro estrangeiro alguma vez veio para os Estados Unidos com um tal apego sincero a esta nação como eu, nem é provável que algum venha durante os próximos tempos.” (Correia da Serra, carta para Madison, 10 julho, 1816, citado em Davis, 2012, p. 189).

Enganou-se nas duas expectativas — relativamente a si mesmo, a de que iria ter um cargo tranquilo de “uma espécie de ministro de família”, e relativamente a Portugal, a de que este país e os E.U. iriam ser “sempre as duas [potências] soberanas, cada uma na sua parte do novo continente” — e, para além disso, não previu também que iria ser abalado o seu apego aos E.U.

Vejamos como se desenvolveu este 2.º momento do caso CS, durante o qual o seu confronto com o novo mundo vai passar de uma promissora demanda a uma desagradável contenda.

A. Situações relevantes

Os quatro tipos de situações relevantes anteriormente apresentadas podem reencontrar-se neste outro momento, embora seja agora necessário distinguir os aspectos que se mantêm e as alterações que vão surgindo.

1. Relacionamentos com diversas personalidades

De notar que, para o 2.º momento, tanto o número de cartas enviadas por CS (56) como o número dos seus diferentes destinatários (15) são superiores ao do 1.º momento (24 cartas e 8 destinatários), isto para um igual período de quatro anos (recordo, uma vez mais, que estou a limitar-me ao conjunto de cartas reproduzidas no livro de R. Davis) — apesar de tudo, trata-se de números bastante consideráveis para quem, como ele, dizia do seu pecado de não gostar de escrever cartas excepto por necessidade.

A troca de correspondência continuou também a ser dominantemente feita com os seus dois grandes amigos, Jefferson e Guilmer, seguindo-se com muito menor frequência Vaughan, Madison e Wistar bem como dois novos destinatários, Monroe e Randolph (respectivamente, o Secretário de Estado e o Governador da Virgínia, genro de Jefferson); para cada um dos restantes destinatários terá sido remetida apenas uma carta.

De acordo com toda esta série de cartas, não parece ter passado a haver grandes mudanças na constituição da rede de relações de CS, fundamentalmente composta por gente com interesses culturais e científicos (botânicos, médicos, naturalistas, advogados e filólogos, sócios da APS e também de uma mais recente Academy of Natural Sciences of Philadelphia de que CS fora eleito membro em 1814). O (pequeno) aumento de diplomatas e decisores políticos entre os seus novos relacionamentos aparece associado às suas novas funções como Ministro de Portugal.

Foi já sublinhada, relativamente ao 1.º momento, a importância das cartas de recomendação (tanto emitidas por determinadas personalidades a favor de CS como por ele mesmo a favor de outrem) enquanto via para o estabelecimento de uma rede de relações fiáveis — no 2.º momento elas continuam a desempenhar essa mesma função e a ser um meio de reconhecimento e promoção relevante, acentuando-se agora o papel legitimador de CS em favor de outrem. Vale a pena aludir aqui à situação relativa a um tal juiz Cooper que CS recomendou entusiasticamente para leccionar no Central College em Filadélfia (um projecto de Jefferson a que voltarei a fazer referência no ponto 3. Intervenção e aconselhamento no domínio do ensino nos E.U.). Trata-se de uma situação elucidativa a vários títulos — quanto ao relevo da reputação de CS nos meios académicos dos E.U., quanto à forma desassombrada com que ele se defrontava com aqueles que não hesitava em designar como medíocres e quanto à sua porfia em apoiar aqueles que achava competentes e dignos. Amigo de Cooper, seu companheiro de algumas viagens, CS tinha em alta conta os saberes deste como se vê na referida recomendação:

O Sr. Cooper trará consigo uma quantidade imensa de conhecimento útil, acompanhado de muita filosofia e de um grande entusiasmo pela divulgação da verdadeira ciência. Estarei muito enganado se a sua fixação no seu estado não vier a revelar-se uma época marcante na história do progresso literário da Virgínia. (Correia da Serra, carta para Jefferson, 26 setembro, 1818, citado em Davis, 2012, p. 218)

Meses depois Jefferson escrever-lhe-ia preocupado com as reservas levantadas por alguns professores quanto a receber Cooper no corpo docente, “alegando que tinham ouvido dizer que ganhara hábitos alcoólicos. Sem hesitar repeli a acusação (…) e o Sr. Madison foi tão insistente quanto eu”; no entanto, o problema ficaria adiado para uma reunião seguinte, mas, receando o resultado desta, Jefferson advertia CS:

pode ser preciso algum testemunho para refutar esta sugestão junto deles, & nenhum seria mais satisfatório do que o seu. E tanto mais que a sua relação com o Dr. Cooper o põe em posição de falar de conhecimento próprio, e não em base de boatos. Pode então escrever-me uma carta, como que de resposta a uma pergunta feita por mim, afirmando o que sabe sobre os hábitos de sobriedade do nosso amigo, e escrevê-la de maneira que eu possa lê-la aos visitantes [os elementos da reunião]. (Jefferson, carta para Correia Serra, 2 março, 1819, citado em Davis, 2012, p. 227)

CS assim faria, embora sem se preocupar em deixar claro o seu desprezo pela mediocridade dos que assim queriam pôr Cooper fora do caminho:

Durante os primeiros três anos da minha residência na América são inacreditáveis os mas com que essas pessoas, especialmente de um certo tipo, misturavam, quando me falavam dele, os elogios que não tinham como negar ao seu superior talento e sabedoria. (…) Tinham-mo descrito quase como um infiel, de temperamento violento e hábitos desregrados, e achei-o simplesmente um inimigo amargo dos hipócritas — não um homem violento mas de maneira nenhuma um homem disposto a tolerar —, e não assisti a um único exemplo de desregramento. Ele poderá sempre contar com o ódio cordial e também com o interesse [em denegri-lo] de todos os pirilampos literários que só brilham no escuro e que ele raramente tem a prudência de gerir. (Correia da Serra, carta para Jefferson, 22 março, 1819, citado em Davis, 2012, p. 231)

O empenho e generosidade com que CS exercia o seu papel de caucionador/conselheiro e também de orientador parece ter sido recebido, em regra, com o maior apreço, o que o levaria a exprimir claramente o seu desagrado quando achava que tal não acontecia como se verifica na carta a um amigo:

Os seus naturalistas de Filadélfia, a caminho da Florida, passaram por esta cidade sem me prestarem qualquer atenção. Não é muito correcto da parte deles, pois tinha falado com vários membros dos estados do Sul a fim de lhes conseguir cartas de apresentação e instruções. Todo o meu trabalho ficou perdido. (Correia da Serra, carta para Wistar, 31 dezembro, 1817, citado em Davis, 2012, pp. 207-208)

—este seria um dos raros casos em que, por qualquer razão, não foram reconhecidos os esforços de CS para ajudar outros cientistas. Esforços que, aliás, as cartas deste 2.º momento continuam a documentar através do envio de informações bibliográficas e científicas e de encomendas com exemplares de plantas ao longo do intenso intercâmbio que manteve com alguns amigos (muito especialmente com Jefferson e Guilmer), o que só teria abrandado quando as exigências do seu novo cargo o passaram a absorver e atormentar.

Ainda sobre os relacionamentos de CS é de notar que figuraram, entre eles, o terceiro e quarto ex-Presidentes dos E. U. (Jefferson e Madison, já presentes nas suas relações do 1.º momento), o agora quinto Presidente (Monroe) e o futuro sexto Presidente, (John Quincy Adams) que se manteve como Secretário de Estado de Monroe durante a vida de CS. No entanto, como se verá adiante, as suas relações com os dois últimos apesar de cordiais não deixariam de ser afectadas pelos infelizes incidentes em torno da questão do apresamento dos navios portugueses que ensombrou os quatro últimos anos da estadia de CS nos E.U.

2. Viagens pelos E.U.

O desempenho das funções de Ministro de Portugal iria tornar menos frequentes e menos longas as viagens de CS. Seriam agora essas funções e não já a guerra que, por vezes, o obrigaram a desistir das viagens e das “herborizações” de que tanto gostava: “O meu verão tem sido ocupado (…) Em vez de ir ver as cataratas do Kanhawa, tenho estado a inspeccionar as intrigas da companhia de Pernambuco.” (Correia da Serra, carta para Guilmer, 21 agosto, 1817, citado em Davis, 2012, p. 200) — CS referia-se ao grupo de revolucionários que, em Pernambuco, tinha proclamado uma república independente e enviara representantes aos E.U. para pedir reconhecimento e apoio (Davis, 2012, p. 200, nota 220). No entanto, não perdia uma oportunidade de se dedicar a um dos seus temas favoritos, as herborizações, do que é exemplo uma outra carta para Guilmer onde, a certo passo, relata ter observado uma determinada espécie de orquídea

em flor ontem de manhã num riacho a cerca de uma milha e meia do Capitólio. Que Flora aquela nos arredores de Norfolk! Não só é muito primitiva, mas é também o ponto de contacto dos sistemas de vegetação do Sul e do Norte dos Estados Unidos. (Correia da Serra, carta para Guilmer, 30 abril, 1818, citado em Davis, 2012, p. 216)

— isto no meio das suas preocupações com os conflitos à volta dos movimentos independentistas da América do Sul e particularmente do Brasil. No ano seguinte, seria forçado a adiar encontros com os amigos mais chegados (Jefferson e Guilmer) e a ficar fechado em Washington no inverno, dado o agudizar daqueles conflitos: “Nas presentes circunstâncias seria muito imprudente da minha parte deixar a costa e afastar-me desta cidade, de Nova Iorque e de Boston, as três portas pelas quais as comunicações e as ordens me podem chegar.” (Correia da Serra, carta para Jefferson, 2 outubro, 1819, citado em Davis, 2012, p. 237). Os problemas ligados ao seu posto condicionariam assim os locais de permanência de CS conforme as suas cartas demonstram — os endereços donde iam sendo remetidas indicam que, se Filadélfia, a sua cidade favorita, continuava a figurar frequentemente no seu remetente, o mesmo iria passar-se com Washington, sobretudo em 1818 e 1819. Aliás, o seu desagrado pela capital aumentaria durante as férias do Congresso, de acordo com as suas palavras:

Os negócios obrigam-me a ficar nesta cidade desolada depois da dissolução do Congresso. Não imagina o vazio que isso traz aos olhos e ao espírito.” e termina com melancólica ironia citando Virgílio, “Todos os deuses sobre quem este império se fundou partiram, deixando santuário e altar. (Correia da Serra, carta para Guilmer, 11 março, 1819, citado em Davis, 2012, p. 230)

As suas deslocações constantes entre Washington e Filadélfia e as muitas idas esporádicas a Norfolk ou a Nova Iorque não permitiriam, particularmente a partir de 1818, a realização das longas viagens exploratórias de que, até aí, CS tinha podido desfrutar.

3. Intervenção e aconselhamento no domínio do ensino nos E.U.

Tal como se viu no 1.º momento, também no 2.º continua a verificar-se o empenho de CS nas questões de ensino, particularmente em relação aos projectos de Jefferson neste domínio. As cartas de um e outro dão agora conta de situações em que CS foi de novo solicitado para dar a sua opinião quer sobre o modo de funcionamento dos cursos, quer sobre os nomes a convidar para o corpo docente. Quanto a este último aspecto, já foi feita referência à sua recomendação sobre o Dr. Cooper, aos problemas que ela suscitou entre alguns docentes e à determinação com que CS os refutou. Aliás, para além da preocupação com este caso pessoal, na acima citada carta de 1819 ele confessava a Jefferson a sua ansiedade sobre o sucesso final do projecto que este estava a organizar (referia-se ao Central College de que viria a resultar a Universidade da Virgínia), isto porque

Assim que se institui um seminário de grande erudição, gente de grande e contagiosa mediocridade, sobretudo pessoas de Nova Inglaterra, instalam-se nele, e os seminários tornam-se raquíticos no que respeita à ciência. Não é porque esses estados tenham falta de homens de grande gabarito científico, mas, esses, guardam-nos para si mesmos. O preconceito geral a favor da instrução religiosa produz os mesmos problemas em toda a parte. (…) A mediocridade em todos os formatos encontra-se em todo o lado natural e fortemente unida. Mantêm-se juntos e ajudam-se uns aos outros como que por instinto. (Correia da Serra, carta para Jefferson, 22 março, 1819, citado em Davis, 2012, p. 231)

No ano seguinte Jefferson retomava a mesma ideia, descrevendo a CS a oposição com que o projecto da Universidade continuava a defrontar-se:

A [oposição] mais impaciente é a dos padres das diferentes seitas religiosas que temem o avanço da ciência como as bruxas temem a aproximação da luz do dia; e fazem má cara ao fatal arauto da subversão dos logros em que vivem. (Jefferson, carta para Correia da Serra, 11 abril, 1820, citado em Davis, 2012, p. 251)

De notar que é recorrente esta posição crítica de Jefferson e de CS relativamente ao ensino religioso e às dificuldades a que dava lugar, contrariando o entusiasmo de ambos face ao projecto do Central College a que CS também já se referira numa outra anterior carta ao amigo:

A perspectiva de ver um seminário para a juventude americana livre das amarras da influência e da governança clericais, e em que as ciências realmente úteis possam ser induzidas em mentes jovens, é uma visão tão agradável aos meus sentimentos que não posso abster-me de recordá-lo muitas vezes, e ter um interesse sincero no seu sucesso. (Correia da Serra, carta para Jefferson, 31 outubro, 1817, citado em Davis, 2012, p. 202)

De resto, era efectivamente inovador o projecto com que Jefferson vinha sonhando e que ultrapassava o da Universidade e respectivo Central College — como ele tinha exposto detalhadamente a CS, o seu projecto-lei propunha três níveis de instituições de ensino (escolas primárias em todos os condados, colégios distritais e uma universidade), devendo haver

uma selecção desde as escolas primárias, de indivíduos com talentos mais promissores, cujos pais sejam demasiado pobres para lhes darem uma educação superior a ser paga a expensas públicas através dos colégios e da universidade. O objectivo é pôr em acção aquela massa de talentos que permanece enterrada em pobreza em todos os países, por falta de meios de desenvolvimento

e, tendo o projecto-lei sido apresentado para apreciação pública pela Câmara dos Representantes, acrescentara, na mesma carta, ter esperanças de que o seu plano pudesse ser enfim concretizado, não deixando de observar com ironia que isso também pudesse, “afinal, ser um sonho utópico, mas sendo inocente, pensei que poderia retirar algum prazer dele até partir para a terra dos sonhos e lá dormir na companhia de todos os sonhadores do passado e do presente.” (Jefferson, carta para Correia da Serra, 25 novembro, 1817, citado em Davis, 2012, pp. 206-207).

CS, tal como o amigo, manteria vivo o seu entusiasmo ao longo das dificuldades por que foi passando este projecto a que, numa carta ao genro de Jefferson, se referiu nestes termos:

A instituição que ele [Jefferson] está prestes a estabelecer tem aos meus olhos mais importância de que ele talvez se dê conta. Além da influência da luz e do gosto nos futuros cidadãos da Virgínia, a rivalidade fará maravilhas noutros estados, conforme estou perfeitamente convencido pela minha própria observação, e não será indiferente ao mundo o grau de melhoramento mental de uma nação destinada a ter no mundo o papel que a vossa tem. Oxalá ele possa completar o seu trabalho. (Correia da Serra, carta para Randolph, 1 março, 1819, citado em Davis, 2012, p. 225)

A última observação tem a ver com o facto de Jefferson ter estado gravemente doente (recuperaria depois e viveria até 1826 — mais dois anos do que CS).

Já próximo da data em que CS deixaria os E.U., Jefferson escreveu a um amigo, contando que CS, então de visita em sua casa, estava “muito satisfeito com o plano e progresso da nossa Universidade e [tinha dado] algumas pistas valiosas sobre o ramo botânico.” E, visto ter-se tratado de uma visita de despedida antes de CS deixar os E.U., Jefferson acrescentava: “Ele vai fazer, espero, muito bem no seu próprio país, à instrução pública lá, tanto quanto compreendo, indo ficar no departamento que lhe é destinado.” (Jefferson, carta para William Short, 4 agosto, 1820, citado em Davis, 2012, p. 260, nota 379) — referia-se ao Brasil para onde CS esperava partir (destino que acabaria por ficar sem efeito uma vez que, depois da revolução de 1820, o rei teria de regressar a Portugal e CS também). Não consegui averiguar quais seriam os planos de CS para este presumível cargo, onde porventura iria tentar também fazer algo de novo num domínio como o do ensino que tanto o interessava. Apenas encontrei uma breve referência a este respeito numa das suas cartas dos inícios de 1820 onde dizia das razões que o levaram a decidir ir para o Rio de Janeiro:

O Rei tem sido ultimamente muito generoso comigo, dando-me um lugar altamente honroso junto dele como membro do seu Conselho, inspector das Finanças, e a estrela e trave da Ordem de Nossa Senhora da Conceição, agora a primeira do Reino. A instrução pública nos Brasis está para ser organizada, e os actuais ministros todos meus velhos conhecidos, desejam e esperam a minha ajuda. Não seria eu tolo se preferisse ficar aqui, em circunstâncias menos amigáveis, a ir para junto do meu povo, e ser-lhes útil a eles e a mim mesmo? (Correia da Serra, carta para Randolph, 4 fevereiro, 1820, citado em Davis, 2012, p. 248)

As experiências decepcionantes da luta em torno do apresamento dos navios portugueses (a analisar adiante nos eixos B. e C.) tinham minado, neste 2.º momento, o encanto de CS com o seu novo mundo ao ponto de preferir deixar os E.U. e desejar voltar para o seu país (provavelmente o Brasil aparecia-lhe como um território bem mais promissor do que o velho Portugal donde tivera de fugir muitos anos atrás).

Uma referência ainda aos interesses científicos em que CS continuava envolvido e que, mais ou menos directamente, alimentavam o seu envolvimento no domínio do ensino — é significativa a este respeito a sua preocupação em manter-se actualizado através da aquisição de livros e revistas de França e de Inglaterra, donde, não raro, destacava autores e títulos que lhe tinham merecido apreço e que recomendava a amigos como Guilmer e Jefferson — não deixa de ser surpreendente que, malgrado as vicissitudes por que iria passando neste 2.º momento, o idoso e aparentemente frágil Ministro de Portugal conseguisse conjugar estes seus interesses com as lutas políticas em que forçosamente teve de se envolver e que se situavam bem longe deles.

4. Considerações de natureza política

O 2.º momento aqui em análise enquadra-se no período de paz que sucedeu ao final da Guerra anglo-americana de 1812, conflito à volta do qual se tinha desenvolvido uma situação de abundante troca de informações e comentários de natureza política entre CS e Jefferson, conforme acima se viu (neste item 4., para o 1.º momento). Agora CS vai deparar-se com um conflito de outra ordem e que o envolve pessoalmente — a questão do apresamento dos navios portugueses. Dado que a dita questão, como já foi dito, vai ser adiante especificamente abordada, limitar-me-ei neste ponto a fazer algumas breves observações. Desde já, é de notar que raramente se encontram considerações sobre este conflito nas cartas de CS quer para o seu amigo Jefferson quer para outros amigos também mais chegados como se CS não os quisesse incomodar com um assunto para ele tão deplorável — aliás, numa carta a Jefferson, faria uma alusão a este respeito: “Respeito demasiado a sua pessoa e o seu descanso para desejar envolvê-lo o mínimo que seja neste sujo assunto.” (Correia da Serra, carta para Jefferson, 12 outubro, 1820, citado em Davis, 2012, p. 257).

Na verdade, ao mesmo tempo que, entre 1817 e 1820, trocava intensa correspondência com os governantes deste período sobre o conflito em causa (governantes que, por sua vez, criticavam entre si o que consideravam ser a demasiado insistente intromissão de CS nos assuntos do Estado americano), ele preferia escrever aos seus amigos sobre assuntos do domínio científico ou sobre problemas da criação da nova Universidade. Tal não significa que presumisse que ignorassem o que se ia passando, a julgar por breves alusões como, por exemplo, numa carta para Guilmer, dando conta da sua impossibilidade de ir ver as cataratas do Kanhawa por ter estado ocupado “a inspeccionar as intrigas da companhia de Pernambuco.” — CS referia-se de novo aos independentistas de Pernambuco que tinham proclamado um governo provisório que soçobrou em poucos meses, e rematava: “Não resistindo às expectativas sanguinárias de alguns, no final de 77 dias tudo estava absolutamente acabado, porque os artigos de jornal colocados pelo emissário de Pernambuco não podem dar existência ao que não existe.” (Correia da Serra, carta para Guilmer, 21 agosto, 1817, citado em Davis, 2012, p. 200). Dois meses antes, Rush, então Secretário de Estado, escrevera a Madison a justificar os procedimentos que adoptara por altura da tal tentativa dos independentistas de Pernambuco, carta a que Madison respondera diplomaticamente, dizendo que

o Senhor Correia da Serra pode, na situação actual, sentir algum conflito entre os seus dois papéis, o de filantropo e o de plenipotenciário, e pode esperar, para este segundo papel, alguma indulgência ganha por respeito ao primeiro: a conciliação, em qualquer caso, não podia estar mais bem conseguida. (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 299)

(“conciliação” porque tinha havido desacordo entre CS e Rush, o que este procurara mitigar conhecendo das boas relações de CS com Madison e Jefferson).

Não se sabe se Madison, de acordo com o pedido de Rush, enviou aquela carta a Jefferson e não se sabe se este lhe respondeu, mas, por outro lado, encontra-se, no conjunto das cartas que constituem o material-base desta análise, uma troca de correspondência entre CS e Jefferson (já em 1820) a que vale a pena fazer referência visto apresentarem considerações de natureza política a respeito do dito conflito que mostram como Jefferson estava bem a par do mesmo. Foi em termos de apaziguamento e de votos de boa-vontade que o ex-Presidente escreveu a CS, fazendo o seu comentário sobre a questão:

Durante os trinta & seis anos em que tenho estado em situações de lidar com a conduta e o carácter de nações estrangeiras, achei o governo de Portugal o mais justo, inofensivo e sem ambição, de todos aqueles com que me relacionei, sem excepção. Tenho a certeza de que esse é também o carácter do nosso. Duas nações assim nunca podem desejar ter querelas uma com a outra.

— prosseguiria apontando como causa dos conflitos a negligência ou a parcialidade de oficiais subordinados que não cuidaram da

prevenção dos actos dos bandidos sem lei que se encontram em cada porto de cada país. Os últimos saques de piratas que o vosso comércio sofreu, tal como o nosso & o de outras nações parecem ter sido cometidos por piratas renegados de várias nações, franceses, ingleses, americanos, que elas, tal como nós, não tiveram o cuidado suficiente de evitar

e afirmaria com grande optimismo esperar que “o nosso Congresso, agora prestes a reunir-se, fortaleça as medidas de supressão. Da sua vontade de o fazer não pode haver dúvida; porque todos os homens com princípios morais devem ficar chocados com estas atrocidades.” (Jefferson, carta para Correia da Serra, 24 outubro, 1820, citado em Davis, 2012, p. 261). Relatou também a CS, na mesma carta, ter conversado várias vezes com o Presidente (Monroe) sobre o assunto, o qual sempre lhe dera conta da sua indignação face a tais actos e da sua boa vontade para que não pudesse continuar a ser perturbada a harmonia das duas nações, boa vontade que Jefferson esperava também de CS — “Nisto, meu Exmo. Amigo, o Senhor pode ter um papel importante, e conheço demasiado bem o seu patriotismo e filantropia para duvidar de que dê o seu melhor para nos consolidar nestas coisas”.

No entanto, esta carta não se esgota nas considerações sobre o dito conflito, contendo igualmente interessantes alusões às expectativas de Jefferson quanto ao desenvolvimento das relações políticas entre os E.U. e Portugal, ou mais precisamente, entre os E.U. e o Brasil. Neste sentido, ao referir-se à prevista partida de CS para o Brasil, depois de desejar-lhe que aí “receba as honras e recompensas que merece, e que poderão fazer o resto da sua vida fácil e feliz” e aí continue a promover “essa harmonia íntima entre as nossas duas nações, que é tanto do interesse de ambas”, lembrar-lhe-ia a importância desse comum interesse para a promoção de um novo sistema de política americana que separe a América dos sistemas da Europa: “Todos os entrosamentos com essa parte do globo deverão ser evitados se quisermos que a paz & a justiça sejam as estrelas polares das sociedades americanas”. Fazia notar seguidamente que lhe enviava em anexo uma outra carta que escrevera para um amigo comum, onde falava mais desenvolvidamente deste assunto que tinha como fundamental. Segundo Davis, essa carta seria a que Jefferson enviou a William Short, declarando que

não estará distante o dia em que possamos requerer formalmente um meridiano de divisão no oceano que separa os dois hemisférios, de um lado do qual nenhum disparo será ouvido, nem nenhum americano do outro; e em que, durante a fúria das eternas guerras da Europa, nas nossas regiões, o leão e o cordeiro se deitarão juntos em paz. (…) e com este propósito, alegrar-me-ia ver as frotas do Brasil e dos Estados Unidos a singrarem juntas, como irmãs da mesma família, procurando o mesmo objectivo. (Jefferson, carta para William Short, 4 agosto, 1820, citado em Davis, 2012, p. 260, nota 379)

Não aparece nenhuma resposta de CS àquela carta de Jefferson de 24 out. 1820, aliás, tanto quanto se sabe, a troca de correspondência entre os dois amigos cessaria então. CS estaria demasiado preocupado com o regresso a Portugal depois da saída de D. João VI do Brasil e, futuramente, aqueles sonhos de aliança política deixariam de ter sentido — a evolução de Portugal e do Brasil iria tornar completamente anacrónico o que CS escrevera, quando da sua tomada de posse como Ministro de Portugal, na já atrás citada carta ao Presidente Madison: “De facto, neste momento, as nossas nações são ambas potências americanas, e serão sempre as duas soberanas, cada uma na sua parte do continente” (Correia da Serra, carta para Madison, 1816, citado em Davis, 2012, p. 189).

B. Obstáculos, riscos e ameaças

Para entender o conflito à volta do apresamento dos navios portugueses que atravessa este 2.º momento da estadia de CS nos E.U. é necessário fazer um sucinto relato sobre os acontecimentos que o despoletaram no final do ano em que CS tinha sido nomeado Ministro de Portugal nos E.U. (1816) e depois se foram sucedendo até à sua saída deste país.

No clima de hostilidade dos americanos em relação à Espanha (provocado pelos interesses expansionistas daqueles em relação ao território da Florida ainda detido pelos espanhóis), eram tolerados nos E.U. o apresamento e a venda, nos seus portos, dos navios espanhóis apanhados por corsários americanos envolvidos com rebeldes dos movimentos independentistas nas colónias espanholas (além dessa hostilidade, os bons negócios que essas vendas proporcionavam aos mercadores americanos também concorreriam decerto para a referida tolerância). Pouco depois de ter começado a desempenhar as suas novas funções como Ministro de Portugal, CS foi informado de que os corsários tinham recebido indicações para perseguir também os navios portugueses caso o rei de Portugal antagonizasse os rebeldes, o que o levou a decidir, desde logo, fazer um ofício (20 dez. 1816) a protestar contra a possibilidade de esses corsários assaltarem cidadãos e bens de Portugal, país, como aí dizia, em excelentes relações de paz com os E.U. Neste ofício, que foi recebido por Monroe e depois por Madison (aquele Secretário de Estado e este Presidente, por essa altura), ele sugeria “que fosse proposta ao Congresso a criação de mecanismos legais que de futuro impeçam esse tipo de actos” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 292), sugestão que, efectivamente, levou Madison a enviar uma nota ao Congresso no sentido de se criar a legislação necessária “de molde a que o poder Executivo pudesse preservar a estrita neutralidade dos Estados Unidos na guerra existente entre Espanha e as Colónias Espanholas, e evitar efectivamente perigos decorrentes para os navios do rei de Portugal [sublinhados meus]” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 293). Na verdade, três meses depois saiu a “lei da neutralidade” de 1817, mas os assaltos não deixaram de ter lugar e foram mesmo aumentando, embora com altos e baixos de acordo com o jogo de forças entre as duas partes envolvidas (o governo português com CS como seu representante nos E.U., e, do outro lado, os rebeldes independentistas e os corsários). CS continuaria a insistir junto dos sucessivos Secretários de Estado (Rush e depois Adams) e do novo Presidente (Monroe) com vista a conseguir que os navios portugueses capturados que chegavam aos portos americanos fossem restituídos aos seus legítimos proprietários, juntamente com as suas cargas, e que os corsários fossem castigados (de notar que, no final de 1818, o número de navios portugueses capturados ascenderia, ao que parece, a cerca de uma centena) (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 207).

A ineficácia dos tribunais ligada às influências que os corsários conseguiam accionar e a incapacidade ou a pouca vontade do governo americano em intervir decididamente (malgrado, como acima se viu, as boas intenções expressas junto de CS) permitiram o arrastar do conflito, continuando os incidentes de apresamento e venda dos navios portugueses nos portos dos E.U. a representar sérios obstáculos, riscos e ameaças ao sucesso do comércio marítimo de Portugal, à autoridade do seu governo e, claro está, à dignidade e eficácia do seu representante nos E.U. que, até ao fim da estadia, continuou a sua porfiada luta para procurar contrariar os acontecimentos que lhe tornaram tão amargos e conflituosos os últimos quatro anos nesse novo mundo que tanto o tinha entusiasmado.

Dos dois tipos de dificuldades com que, no 1.º momento, CS se tinha confrontado — falta de dinheiro e falta de saúde — se, neste 2.º momento, aquela não parece reaparecer, já a falta de saúde voltaria a fazer-se sentir, fortemente agravada pelos obstáculos deste outro conflito em que ele teria de se envolver. Isso aconteceu de forma particularmente aguda depois de o Secretário de Estado, Adams, ter respondido negativamente a um ofício (8 março, 1818) em que CS declarava que SM o Rei de Portugal esperava que “o Governo dos E.U. estivesse na disposição de satisfazer e indemnizar o prejuízo causado aos súbditos de SM por cidadãos americanos indignos dessa cidadania” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 303). O próprio Adams escreveu nas suas Memoirs que CS, por essa altura, tivera um dos seus ataques “daquela loucura melancólica” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 304) e sabe-se também que, efectivamente, pela mesma data, CS, numa carta a Vaughan, disse-lhe que tinha estado muito doente e acabara por ter de ir de barco a vapor de Baltimore para Norfolk “na esperança de que um clima mais ameno e a assistência médica do Dr. Fernandes [um médico português que aí vivia] me permitam alcançar um tempo bom e claro.” (Correia da Serra, carta para Vaughan, 27 março, 1818, citado em Davis, 2012, p. 212). Uma vez mais atribuiria ao clima as suas quebras de saúde, ameaçada desta vez pelo desgaste dos esforços e contrariedades a que este conflito o sujeitava.

No eixo analítico que se segue indicam-se os modos como se configurou essa sua luta.

C. Estratégias e formas de expressão

À medida que se ia agudizando a questão em torno do apresamento dos navios portugueses, CS nas suas cartas aos amigos começaria a introduzir, aqui e ali, breves confidências reveladoras da quebra do seu entusiasmo pelos E.U. Assim, numa carta a Madison, falando dos esforços deste e de Jefferson para melhorar a agricultura no tempo em que tinham sido chefes da nação, não deixou de acrescentar: “É muito ditoso para a sua nação dispor, neste momento, destes exemplos, que servem para contrabalançar os motivos de descrédito proporcionados por um tipo muito diferente de cidadãos, indignos de pertencer à mesma nação”, terminando com as metáforas agrícolas tão do seu gosto: “É também de esperar que venha das mesmas montanhas algum remédio capaz de extirpar essas ervas daninhas que prejudicam as vossas belas e promissoras colheitas” (Correia Serra, carta para Madison, 5 setembro, 1818, citado em Davis, 2012, p. 217). Vão no mesmo sentido as palavras que mais tarde dirigiu a Jefferson: “vejo com desgosto que o belo e novo carácter que tinha impresso à sua nação está a desvanecer-se depressa.” (Correia da Serra, carta para Jefferson, 12 outubro, 1820, citado em Davis, 2012, p. 258); comentários igualmente negativos foram incluídos também numa carta a Guilmer: “Falando em tom de confidência, tenho vindo a falar sobre o futuro da sua nação numa maneira bem mais optimista do que agora, no momento presente. (…) Pela minha parte, lamento muito ver em alguns casos sintomas bastante desencorajadores.” (Correia da Serra, carta para Guilmer, 28 dezembro, 1818, citado em Davis, 2012, p. 221).

Desanimado com a nação, não desistiria, contudo, da luta contra os adversários com que agora tinha de se confrontar face a este outro novo mundo decepcionante que foi descobrindo no 2.º momento da sua estadia. Essa luta manifestar-se-ia tanto através de formas de expressão mais formais a que já fiz referência — caso dos ofícios e cartas dirigidos ao Presidente dos E.U. (Madison e depois Monroe) bem como ao Secretário de Estado (Rush e depois Adams) — ou mais informais — caso das conversas com Adams que, aliás, o admirava e que, não raro, se encontrava com ele para tomar chá. Com a clareza e a firmeza habituais, CS não se coibia de indicar, insistentemente, as linhas de acção que, a seu ver, os governantes dos E.U. deviam desenvolver no sentido de resolverem o conflito em causa. Sabe-se que, em relação aos seus frequentes contactos com o governo no Rio de Janeiro, também sucedia, por vezes, que CS pouco se preocupava com as indicações que daí lhe chegavam, preferindo adoptar estratégias que lhe pareciam mais eficazes. É elucidativa quanto a essas estratégias e respectivas formas de expressão a série de iniciativas levadas a cabo por CS em maio de 1817 — a 13 de Maio quando, alarmado com os boatos sobre o sucesso da revolução republicana em Pernambuco e com a chegada de um porta-voz dos rebeldes junto do governo americano, enviou um ofício a Rush, o Secretário de Estado de então, dando conta das suas dúvidas em relação ao comportamento “da parte gananciosa e imoral dos cidadãos [americanos] envolvidos no comércio [referia-se ao envio de armas e munições para os rebeldes], particularmente em Nova Iorque e Baltimore” e em relação às “atitudes permissivas de alguns funcionários portuários dos Estados Unidos, em ocorrências semelhantes do passado”; ao mesmo tempo dizia esperar que a negligência destes funcionários pudesse ser evitada “se aprouvesse ao Presidente mandá-los consciencializar da vigilância que pretende deles”, o que poderia “assegurar a continuação ininterrupta da boa harmonia entre Portugal e os Estados Unidos” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 292 e 297). A 16 de maio, face às notícias entusiásticas sobre a revolução republicana de Pernambuco difundidas por alguns jornais americanos, CS conseguiu fazer publicar no National Intelligencer (o jornal da Administração em Washington) uma “Notificação Oficial da Legação de Portugal” declarando que os navios de guerra de Sua Majestade tinham bloqueado o porto de Pernambuco. A 22 de maio enviou uma nova Notificação para o mesmo jornal reafirmando o bloqueio que, entretanto, fora desmentido pelo emissário dos revoltosos recém chegado aos E.U. onde se apresentara como Ministro do novo governo de Pernambuco – nesta segunda Notificação, advertia “os navios americanos a não se aventurarem a navegar nessas partes, uma vez que a lei das nações relativa aos bloqueios estritos será rigorosamente aplicada” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 292 e 297).

A Rush não agradou a publicação destas Notificações, como deixou claro numa missiva enviada a CS, a 28 do mesmo mês, declarando-lhe que “qualquer comunicação que tivesse a fazer relativamente ao alegado bloqueio de Pernambuco e seu fundamento, [requeria que] fosse feita a este governo e não, sem o conhecimento deste governo, difundida através de um jornal.” No entanto, o desagrado de Rush relativamente às ousadas estratégias de CS manteve-se discreto e não foi dada ordem para publicar qualquer desmentido da existência do bloqueio — ao ministro português, dada a própria reputação e a sua rede de amigos influentes, permitia-se que adoptasse aquelas formas de expressão menos convencionais (viu-se já como Rush teve mesmo o cuidado de atenuar o seu desacordo com CS numa carta para Madison). E, desta feita, muitos mercadores americanos, face aos riscos do alegado bloqueio, cancelaram os envios de armamento para Pernambuco — CS poderia, assim, relatar o sucesso das suas iniciativas ao conde da Barca, seu interlocutor no Rio de Janeiro.

As dificuldades, porém, estavam longe de ter sido superadas — as investidas de corsários e rebeldes contra os navios portugueses não cessavam e a acção dos tribunais raras vezes resultava na prisão dos assaltantes. CS continuava incansavelmente a enviar ofícios, não já para Rush mas para Adams, o novo Secretário de Estado, tentando de novo que o governo dos E.U. indemnizasse “o prejuízo causado aos súbditos de SM (…) por cidadãos americanos indignos dessa cidadania” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 303). Mas Adams, apesar da sua relação cordial com CS, desiludi-lo-ia respondendo que o governo dos E.U. não se podia “considerar obrigado a indemnizar indivíduos estrangeiros por perdas e danos causados por capturas sobre as quais os Estados Unidos não têm controle nem jurisdição.” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 304). Ao mesmo tempo, o ministro português tinha também de se defrontar com os ataques que lhe eram dirigidos por jornais americanos que apoiavam os rebeldes (se bem que alguma imprensa moderada, por sua vez, não deixasse de mostrar a sua indignação face à impunidade com que os assaltantes actuavam) e que não raro o insultavam, caso de um artigo onde se declarava que “os verdadeiros filósofos têm pena de que o retrato dele [CS] patente no Museu de Filadélfia não esteja colocado no departamento dos animais selvagens, como sendo o mais notável dos retratos de tiranos, seus agentes e executores” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 306).

No ano seguinte, empenhado em conseguir pôr fim ao conflito, CS deitou mão a um outro meio — a redacção de uma brochura que, como revelou num despacho ao Encarregado dos Negócios Estrangeiros de Portugal (Vilanova Portugal), estava

a escrever, em segredo, em que são pormenorizadas todas as iniquidades que até aqui tão bem têm resistido a ser expostas, além das consequências que tudo isto vai trazer aos americanos, sendo este último aspecto, para eles, o que mais conta. (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 310)

Este texto, segundo Léon Bourdon (citado em Davis, 2012) (o autor do “Posfácio” que venho utilizando), corresponderá a um memorando intitulado An Appeal to the Government and Congress of the United States against the depredations commited by American privateers on the commerce of nations at peace with us, subscritopor “um Cidadão Americano”. O dito memorando teve larga distribuição e o certo é que depois disso o Congresso viria a aprovar uma nova legislação (em maio de 1820) contra as depredações dos corsários que, efectivamente, começaram a ser julgados com maior severidade e, nalguns casos, mesmo executados.

Para além das estratégias em que CS utilizou a escrita como forma de expressão (cartas, ofícios, despachos, memorandos), noutras socorrer-se-ia dos serviços de muitos apoiantes que foi convocando, conforme relatou num outro despacho enviado ao seu interlocutor Vilanova Portugal (a 6 Set. 1820), afirmando pela mesma altura que estaria a levar “perto da conclusão o desastrado negócio dos piratas” (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 315). Efectivamente, todo esse conjunto de estratégias accionadas pelo ministro português parecia estar enfim a obter alguns resultados mais consistentes, o que terá implicado, de acordo com o dito despacho, o adiamento da data que previra para a sua partida para o Brasil (inicialmente prevista para Junho de 1820). Aliás, o próprio anúncio da decisão de ir para o Brasil terá também sido usado como uma das suas estratégias. CS aludiu a esta viagem numa carta a Adams, escrita ainda nos finais de 1819 (volto às cartas da meu material-base). Trata-se de uma longa carta destinada a dar-lhe a conhecer os factos e considerações sobre a pilhagem “cometida contra a propriedade de súbditos portugueses por pessoas que vivem nos Estados Unidos e com navios aparelhados nos portos da União, para ruína do comércio de Portugal”. A concluir o seu minucioso relato, CS observava que, não tendo sido até então debelados os crimes cometidos, só o governo dos E.U. poderia tomar as disposições necessárias porque

só ele detém os meios para [o fazer], os quais estão constitucionalmente fechados a qualquer ministro estrangeiro. (…) Antes de tais meios convenientes serem estabelecidos, os esforços de um ministro português sobre este assunto (o único de importância, presentemente, entre as duas nações) pouco aproveitam aos interesses do Seu Soberano. Confiando nos esforços bem-sucedidos do governo [dos E.U.] para materializar tal desejável ordem de coisas, escolho este momento para visitar os Brasis [sublinhados meus], onde estou autorizado a ir por Sua Majestade. (Correia da Serra, carta para Adams, 23 novembro, 1819, citado em Davis, 2012, p. 242)

Na verdade, o próprio CS teve em conta a utilidade de usar a viagem como uma estratégia a favor do seu interesse em resolver o conflito, o que confidenciaria a Vilanova Portugal:

A minha presença prejudica os esforços daqueles que têm vontade de trabalhar a nosso favor, e a minha ausência funciona a favor deles… [refere-se aos apoiantes de que se rodeara] Dar a impressão de que estou longe, a preparar muito a sério a minha viagem, reforça o que quer que eles façam. (Bourdon, citado em Davis, 2012, p. 312)

O facto é que, ao longo de todo este processo, o desgaste provocado quer pela sua incessante luta para vencer os muitos obstáculos com que se ia defrontando, quer pelas suas inevitáveis crises de desânimo, e, por outro lado, os aspectos positivos da ida para o Brasil fortaleceriam de facto essa decisão de partir. Deixou claros os seus motivos numa carta para o genro de Jefferson em que incluiu uma cópia da carta a Adams acima citada e em que se queixava amargamente pelo facto de os navios portugueses serem tomados por corsários americanos

a não ser que sejam escoltados por corvetas de guerra, o que causa extraordinária despesa ao governo, e isto é a recompensa da conduta amigável e sem mácula em relação à vossa nação, e dos desejos manifestos de estreitamento da relação de amizade

dizendo a terminar:

O Rei tem sido ultimamente muito generoso comigo, dando-me um lugar altamente honroso junto dele, como membro do seu Conselho, inspector das Finanças, e a estrela e trave da Ordem de Nossa Senhora da Conceição, agora a primeira do Reino. A instrução pública nos Brasis está para ser organizada, e os actuais ministros, todos meus velhos conhecidos, desejam e esperam a minha ajuda. Não seria eu um tolo se preferisse ficar aqui, em circunstâncias menos amigáveis, a ir para junto do meu povo, e ser-lhes útil a eles e a mim mesmo? (Correia da Serra, carta para Randolph, 4 fevereiro, 1820, citado em Davis, 2012, p. 248)

E, de facto, partiu para Inglaterra nesse mesmo ano, convencido que daí seguiria para o Brasil, conforme disse na última carta ao seu amigo Guilmer, escrita na véspera do embarque: “Amanhã parto para Inglaterra no paquete Albione daí, em Janeiro, seguirei para o Brasil, onde estarei no princípio de Março.” (Correia da Serra, carta para Guilmer, 9 novembro, 1820, citado em Davis, 2012, p. 261). Mas CS ainda não sabia que os seus planos iriam ser alterados na sequência da revolução de 1820 em Portugal, sendo para aqui e não para o Brasil que teria de seguir.

D. Desfecho

Não foram tranquilos os tempos que mediaram entre a chegada de CS a Inglaterra e avinda para Lisboa — sabe-se que a sua débil saúde foi “afectada pelas contrariedades que se seguiram aos desapontamentos ocasionados pelas idas de um lado para o outro do nosso Rei”, como relatou o seu filho Eduardo[5] quando ainda se encontravam em Londres, desejando, “no entanto, que [isso] brevemente tenha fim, porque o Rei estará em Lisboa dentro de pouco tempo. Esperamos todos os dias a notícia deste agradável evento, para partirmos e nos juntarmos a ele.” (Correia da Serra, carta para Vaughan, 26 de junho, 1821, citado em Davis, 2012, p. 268) — D. João VI chegaria a Lisboa a 3 de julho e CS e o filho a 6 de Agosto. Já em Lisboa, no começo de 1822, CS escreveu a um amigo falando-lhe também das preocupações que tivera durante o referido período, mas dando conta da satisfação que sentia uma vez ultrapassada essa fase:

Desde que cheguei a Inglaterra até hoje, todo o meu tempo tem sido tomado por assuntos da nossa revolução, tanto para bem da minha nação como para o perfil que desejo ter entre os que devem julgar-me na posteridade, e creio que tenho tido algum sucesso. Presentemente estou sobrecarregado de trabalho, mas tenho a doce recompensa de ser olhado pelos reformadores e por aqueles que reformamos como um homem que não tem outro partido senão o bem do seu país, para satisfação de uma consciência tranquila. Assim o testemunharam da maneira mais lisonjeira, na sessão das Cortes de 18 de Agosto passado, o Rei (…), evidenciando os meus serviços em tempos passados e no momento actual, e manifestando também o seu desejo de que se verificassem as recompensas que contava aprovar para mim, juntamente com a resposta das Cortes, que mas aprovaram de imediato unanimemente e por aclamação, tanto a ala direita como a da esquerda, e acrescentando que era de toda a justiça. É um exemplo muito raro, e um dia assim paga bem os anos de sofrimento. (Correia da Serra, carta para DuPonceau, 12 janeiro, 1822, citado em Davis, 2012, p. 269)

Um dia depois enviou uma carta a Vaughan em que repetiria esta informação, acrescentando: “De doze ministros plenipotenciários, e embaixadores que estavam em serviço efectivo há doze meses, sou o único que foi recompensado (…). O Rei manteve-me no posto e a ser pago até que ingresse no novo posto que é vitalício” (Correia da Serra, carta para Vaughan, 13 janeiro, 1822, citado em Davis, 2012, p. 272).

Se não conseguiu deixar resolvido o conflito provocado pelo apresamento dos navios portugueses nos últimos anos da sua estadia nos E.U., pelo menos os esforços que aí desenvolveu, nesse sentido, enquanto Ministro de Portugal, foram reconhecidos e recompensados pelo rei e pelos novos governantes. Foi-lhe finalmente possível não só regressar ao seu país, mas ser aí recebido com grandes manifestações de consideração:

coberto de honras, sobrecarregado com o peso e as obrigações impostas sobre ele por sete ou oito cargos que lhe foram dados ou pelo Rei ou pelas Cortes. (…) é membro do conselho do Rei, membro do conselho da tesouraria, membro da comissão da real academia de Lisboa, recentemente nomeado deputado das Cortes, membro da comissão para julgar a rainha, membro da comissão da agricultura, membro da comissão da Diplomacia, membro…membro…etc.,

conforme o seu filho escreveu, comentando que, face a todos esses encargos, CS, como era de esperar num homem velho e doente, se encontrava muito cansado e muito desanimado por não conseguir curar-se apesar dos muitos remédios que tomava e que “são piores do que a doença em si, e consequentemente destrói com eles a pouca força que ainda sobra no seu corpo” (Correia da Serra, carta para Vaughan, 8 janeiro, 1823, citado em Davis, 2012, p. 276).

O marquês da Fronteira, nas suas “Memórias”, refere-se à chegada de CS a Lisboa em termos muito curiosos:

era uma verdadeira múmia; vinha acabar os seus dias à pátria. Tinha cor macilenta, voz quase extinta e uma notável magreza, mas uns olhos muito vivos que denunciavam o seu grande espírito e talento; não percebia a sociedade moderna nem compreendia nada do que se passava. (…) A primeira vez que foi à Câmara veio de lá completamente desorientado. Foi então que pela primeira vez leu a Constituição e, pelo que ouviu na discussão e leu, concluiu dizendo que estávamos mais democratas do que nos Estados Unidos, que instituições republicanas com uma monarquia era uma experiência muito arriscada e que lhe parecia que a reaparição do absolutismo era infalível. (Fronteira, 1928)

Talvez, ao contrário do que Fronteira pensava, CS não estivesse tão incapaz de entender o que se passava — na verdade, ele teve a infelicidade de ver os seus receios e prognósticos confirmar-se quando a restauração da monarquia absoluta teve lugar a seguir à contra-revolução de maio de 1823, acabando por morrer em setembro do mesmo ano, sem ter podido assistir à vitória dos liberais.

Síntese

O processo aqui analisado tem a particularidade de se desdobrar em dois tipos de confronto. Inicialmente, na sua demanda do novo mundo, CS confronta-se com um país geográfica, política e socialmente diferente dos países europeus que conhecia; no entanto, trata-se, neste 1.º momento da sua estadia, de um confronto pacífico, pode dizer-se um confronto feliz, uma vez que as situações com que se depara embora lhe exijam algumas alterações no que respeita às suas actividades e relacionamentos e lhe suscitem novas experiências e reflexões, não são propriamente situações ameaçadoras ou causadoras de grande tensão. No entanto, conforme se verificou ao longo do 2.º momento que distingui no decurso da presença de CS nos E.U., o confronto com este país irá mudar drasticamente, levando-o a modificar negativamente a sua visão do mesmo e a forma de nele viver -como escreveu Walsh (um dos seus amigos, membro da American Philosophical Society):

Toda a felicidade de M. Correia foi destruída com a sua nomeação como ministro. Tornou-se inquieto, desconfiado, obcecado com a doença e tem sido mais ou menos infeliz desde então. É o que dá alcançar o auge dos nossos desejos. Toda a sua filosofia desapareceu perante as razões de Estado. (Walsh, carta para Jefferson, 14 abril, 1823, citado em Davis, 2012, p. 117)

Efectivamente, é na sua nova situação como ministro que tem de se haver com os problemas de apresamento dos navios portugueses, o que leva à forte distorção na dinâmica do seu processo de confronto com o novo mundo no 2.º momento do seu desenvolvimento. Donde, a fase inicial (os primeiros quatro anos) ser caracterizada dominantemente por uma grande continuidade onde é difícil encontrar as alternâncias verificadas no evoluir dos outros casos analisados (ver atrás “Para um modelo de análise”), sendo que isso só vai verificar-se posteriormente (nos seguintes quatro anos), quando CS, no desempenho do cargo de ministro, passa a oscilar entre derrotas decepcionantes e sucessos promissores e está constantemente preocupado com a definição de sucessivas estratégias para procurar superar os sucessivos obstáculos com que tem de se defrontar.

Isto faz com que a identificação da problemática central do confronto possa, no presente caso, parecer relativamente ambígua — trata-se do confronto com um novo mundo ou antes do confronto com uma questão de apresamento de navios? De acordo com a definição avançada no começo desta análise, um processo de confronto pressupõe o desencadear de consideráveis alterações nas actividades do sujeito em causa, nas suas relações com os outros e nas suas necessárias estratégias, o que aparentemente só terá tido lugar quando do conflito no 2.º momento considerado. Dir-se-á que, chegado aos EU, CS manteve um estilo de vida não muito diferente do que tinha anteriormente — continuou a desenvolver os seus interesses científicos, continuou a relacionar-se com um tipo de pessoas próximas desses interesses e continuou a gozar do prestígio que já tinha na Europa. No entanto, não deixou, desde os primeiros anos da sua estadia no novo mundo, de se confrontar com as especificidades que aí encontrou, donde resultará a sua visão encantada desse outro país, manifestada nas cartas através do seu interesse quer pela natureza dos novos territórios (muitos deles ainda por desbravar) que conhece ao longo das suas viagens exploratórias, quer pelo perfil de alguns dos “pais fundadores” dos EU de que se tornou amigo (os “Presidentes filósofos” como chamou a Jefferson e Madison) e aos quais, a seu ver, se devia em grande parte o facto desta nação se apresentar como um mundo novo para onde convergiam expectativas individuais e colectivas de um futuro próspero.

E é precisamente esta visão, criada no positivo confronto inicial com um mundo tão diferente da Europa (visão próxima do que mais tarde seria o “sonho americano”), que torna tão dramático o desenvolvimento do processo no 2.º momento, podendo presumir-se que, sem os efeitos dos anteriores quatro anos, a questão do aprisionamento dos navios não teria, provavelmente, representado um abalo tão profundo para CS. Pressionado pelas preocupações e pelo afã a que o obrigou a dita questão, passou a ter dificuldades não só em manter as actividades e interesses do 1.º momento (viagens, leituras e relações de convivialidade) mas também em conservar as suas tão favoráveis disposições sobre os EU, decepcionado com o contacto directo com os jogos de poder então em acção. Neste sentido, julgo que, se a análise do confronto ficasse circunscrita àquele conflito, resultaria daí necessariamente prejudicada a procura de “restituição” do respectivo processo.

O desfecho apresenta também alguma ambiguidade — superação do conflito? sua suspensão? impossibilidade dessa superação? A saída do cargo de ministro e a partida dos EU, sem que a questão do apresamento dos navios tenha sido efectivamente resolvida a favor de Portugal, parece corresponder à ultima modalidade. No entanto, CS não deixou de marcar a sua posição, conseguindo, como se viu, algumas vitórias (as possíveis…), o que, aliás, muito terá concorrido para o apreço e as recompensas do rei e as homenagens recebidas no seu regresso a Portugal, podendo, então, falar-se de uma aproximação à primeira modalidade. A outra modalidade (suspensão do conflito) não é viável uma vez que CS, dada não só a sua idade e estado de saúde, mas também a evolução dos acontecimentos políticos em Portugal após a revolução, não teria qualquer hipótese de voltar aos EU para retomar o confronto e eventualmente vir a superá-lo no quadro daquela política de aliança entre o Brasil e os EU que Jefferson projectara e em que ele próprio estivera interessado.

O seu novo confronto depois do regresso já não diz respeito a esta análise — trata-se de um outro confronto cujo desfecho é o da impossível superação do conflito que trava com a doença e com a morte eminente, na tentativa de conseguir desempenhar os muitos cargos que em Portugal, enfim, lhe foram atribuídos pelo seu prestígio e saber. CS terminará assim a sua vida empenhado em corresponder a essa consagração tão importante para um homem como ele, figura notável e internacionalmente reconhecida enquanto tal, mas nem por isso imune à sucessão de perseguições e infortúnios com que tantas vezes teve de se confrontar.

Notas

[1]Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.

[2]O breve resumo da biografia de Correia da Serra que aqui apresento assenta em informações recolhidas do citado livro de R. B. Davis (2012) (do seu cap. II e dos prefácios e posfácio).

[3]Carta de Biddle para Jefferson, 28 Set., 1813, onde, referindo-se ao entusiasmo com que CS falara da visita que fizera a Jefferson, observa como esse entusiasmo expresso por uma pessoa como CS eleva “o nosso país na sua opinião e far-nos-á muita honra no exterior” (citado em Davis, 2012, p. 61).

[4]A nomeação foi assinada a 1 de Fev. de 1816, mas parece só ter chegado aos E.U. a 15 de Maio e CS só a 10 de Julho teve as credenciais para enviar ao Presidente Madison (Davis, 2012, pp. 71-72).

[5]Eduardo Correia da Serra nasceu em 1803, em França, filho de CS e de uma francesa, Esther Delavigne. Foi ter com o pai aos E.U. (por volta de 1817-1818) e veio com ele para Lisboa em 1821. CS conseguiu, antes de morrer, que o filho fosse legitimado. Apesar de lhe ter arranjado aqui um lugar lucrativo como sub-secretário de um ministro dos assuntos estrangeiros, nem o cargo, nem Lisboa interessaram a Eduardo que preferiu ir para Paris onde tirou o curso de medicina. Nas cartas de CS, só encontrei duas referências a Eduardo (o facto de este ser filho de um Abade não deixaria de exigir a CS alguma discrição). Ambas as cartas são dirigidas a Vaughan, numa contava-lhe que Edward ficara num colégio interno, nos E.U., que considerava particularmente adequado “a uma jovem mente francesa. É quase uma continuação da vida e dos estudos a que foi acostumado no colégio de Belleville, onde viveu em França.” (Correia da Serra, carta para Vaughan, 27 março, 1818, citado em Davis, 2012, p. 212); numa outra comentava: “o Edward, com cujo comportamento no mundo tenho grande razão para estar contente, manda-lhe lembranças (…).” (Correia da Serra, carta para Vaughan, 23 abril, 1821, citado em Davis, 2012, p. 266).

Referências

Davis, Richard Beale (2012). O Abade Correia da Serra na América. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, ICS-UL.

Fronteira, José Trazimundo Mascarenhas Barreto (1928). Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna (Vol. I e III) (p. 298). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Santos, Maria de Lourdes Lima dos (2014). Ensaios sobre três casos. Ostracismo, mudança, paixão. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, ICS-UL. O último trabalho integrado neste livro foi inicialmente publicado na Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Santos, Maria de Lourdes Lima dos (2011). O caso William Beckford: Ostracismo e errância de um jovem fidalgo inglês nos finais do séc. XVIII. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, XXII, 11-37.

Maria de Lourdes Lima Santos. Investigadora coordenadora emérita (jubilada) do Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa e ex-Presidente do extinto Observatório das Actividades Culturais (OAC).

Data de submissão: 06/03/2017 | Data de aceitação: 30/04/2017

Autores: Maria de Lourdes Lima dos Santos