N.º 31 - abril 20223

Raquel Rego
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Visualização, Redação do rascunho final, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal
E-mail: raquel.rego@ics.ulisboa.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7342-8695

Cristina Parente
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Visualização, Redação do rascunho final, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Departamento de Sociologia, Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Av. Panorâmica, s/n, 4150-574 Porto, Portugal
E-mail: cparente@letras.up.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7500-7050

Sílvia Ferreira
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Visualização, Redação do rascunho final, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais. Av. Dias da Silva, 165, 3004-512 Coimbra, Portugal
E-mail: smdf@fe.uc.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5549-5168

O número temático da SOCIOLOGIA ON LINE que aqui se apresenta pretende pôr em relevo as especificidades da análise sociológica em torno das problemáticas da “sociedade civil, das economias alternativas e do voluntariado”, temáticas que agregamos na constituição de uma secção da Associação Portuguesa de Sociologia (APS) com o mesmo nome. Foi a um duplo desafio que procurámos responder, com a seleção de artigos que integram este número: por um lado, discernir sobre o que há de específico no olhar sociológico de um objeto difícil de restringir; por outro lado, evidenciar os contributos que a reflexão e a prática a partir deste campo trazem em tempos de múltiplos desafios societais.

São muitos os termos e expressões que são usados para designar estes fenómenos sociais que estruturam as sociedades contemporâneas enquanto ação e organização da sociedade civil. Organizações não governamentais, organizações sem fins lucrativos, terceiro setor, economia social, economia solidária, economia popular e microempreendedorismo, empresas sociais, empreendedorismo social e coletivo, inovação social, setor voluntário, militantes, ativistas, movimentos sociais, participação cívica, etc. Os termos não são isentos de sentidos políticos e sociais e remetem para as inúmeras possibilidades para descrever e analisar o envolvimento dos indivíduos em sociedade, frequentemente de forma coletiva e mais ou menos organizada, com o intuito de produzir bens e serviços, responder a necessidades ou aspirações, intervir na representação dos seus membros ou da sociedade, em defesa de interesses comuns, ou tecer e fortalecer laços de pertença e de solidariedade.

Ao falarmos deste campo/objeto de estudo, nomeado por nós agora como “sociedade civil, economias alternativas, voluntariado”, assumimos a dificuldade em encontrar uma expressão curta e abrangente, dado que o âmbito é, ele próprio, tributário de diferentes especialidades da sociologia, tal como a sociologia do trabalho, das organizações e das associações, a sociologia económica, a sociologia das desigualdades e da ação política, ou mesmo da sociologia da cultura, além de ser   disputado com outras ciências sociais, sejam elas a economia e a gestão ou a ciência política.

O interesse da sociologia por este objeto de estudo não é novo. O trabalho de autores clássicos, como Max Weber, Émile Durkheim, Ferdinand Tönnies e Talcott Parsons, contribuiu para a construção da ideia de um espaço constituído por relações económicas específicas, solidariedade e comunidade, associativismo, e mesmo um sector específico. Todavia, à medida que o próprio campo se estrutura, alguns/as investigadores/as têm procurado identificar a especificidade do olhar sociológico (Barman, 2016; Bidet, 2010; DiMaggio & Anheier, 1990; Laville & Sainsaulieu, 1997; Sager, 2010), que muito resumidamente poderíamos descrever como um olhar relacional, plurifacetado, atento aos contextos espácio-temporais sociais, culturais, económicos e políticos dos atores e suas ações.

De facto a prática e a teoria nunca estiveram muito apartadas na análise deste objeto, tendo-se verificado um desenvolvimento concomitante entre iniciativas e organizações e o seu reconhecimento político e público e a investigação. Um momento alto deste encontro é o trabalho do Johns Hopkins Center for Civil Society Studies e, nomeadamente de Lester Salamon e de Helmut Anheier, que conduziram à criação do Manual das Nações Unidas para as Contas Satélites do Setor não Lucrativo (United Nations [UN], 2018). Um outro exemplo é o trabalho do CIRIEC — International Centre of Research and Information on the Public, Social and Cooperative Economy, que tem como lema ser um ponto de encontro entre cientistas e decisores, desempenhando um papel importante na delimitação da economia social na Europa e na interlocução com as instituições europeias.

Estes trabalhos têm evidenciado, não só o crescente reconhecimento público, mas também a importância, em número e centralidade, que se evidencia em tempos de crises. A pandemia COVID-19 foi um momento de visibilidade e mobilização, quer pela resposta às necessidades das pessoas e comunidades, quer pelos desafios que as organizações enfrentaram (Hespanha, 2020). Em nosso entender, a pandemia COVID-19 evidenciou uma das características mais marcantes das organizações e práticas, a da proximidade.

O número temático contém um conjunto de artigos científicos selecionados a partir da chamada lançada pela secção, em particular apelando a membros da secção e participantes no XI Congresso Português de Sociologia Identidades ao rubro: diferenças, pertenças e populismos num mundo efervescente, que teve lugar de 29 a 31 de março de 2021. Acrescem ainda neste número o que designámos por fichas de estudo de caso, elaboradas na sequência do Seminário de Outono da Secção, subordinado à temática Impactos da pandemia COVID-19 nas organizações de proximidade, ocorrido a 20 de novembro de 2020.

Condensamos neste número estudos sociológicos com fundamentação teórica e baseados empiricamente nas práticas societais atuais. As fichas estudo de caso dão conta daquilo que é a sociologia da prática profissional neste campo de intervenção. O objetivo das fichas foi disponibilizar informação sobre estas organizações em contexto de pandemia, quer para dar visibilidade à forma como as organizações têm respondido aos desafios que enfrentaram, quer para poderem servir como ferramentas pedagógicas, cumprindo igualmente uma função de clarificação da prática de intervenção profissional dos sociólogos.

O primeiro artigo, “O olhar sociológico sobre a sociedade civil, economias alternativas e o voluntariado”, assinado por Sílvia Ferreira, Cristina Parente e Raquel Rego, pretende fazer uma reflexão teórica sobre a especificidade do olhar sociológico deste campo complexo ancorada na revisão da literatura. No segundo artigo, intitulado “Decrescimento e cuidado nas práticas das iniciativas locais”, da autoria de Graça Rojão, reflete-se sobre 52 iniciativas locais alternativas portuguesas a partir de duas matrizes, a saber o decrescimento e a perspetiva feminista sobre o cuidado.

Um terceiro artigo, “Economias alternativas, ultraliberalismo e pandemia: mulheres na agroecologia no Brasil”, as autoras, Natália Santos Lobo, Liliam Telles e Isabelle Hillenkamp, partem de uma perspetiva feminista das economias alternativas para estudar o efeito da pandemia COVID-19 na trajetória da agroecologia no Brasil, com base em uma pesquisa conduzida em duas regiões.

Tânia Leão escreveu o quarto artigo, “Organização, trabalho e voluntariado nos festivais de cinema: análise de dois casos portugueses”. A autora apresenta dados empíricos de dois festivais de cinema, discutindo a relação entre trabalho e voluntariado.

O último artigo pertence a Mara Clemente. No artigo, “Na luta e em luta contra o tráfico: organizações de mulheres e feministas no campo português do combate ao tráfico”, a autora questiona o papel das organizações feministas no combate ao tráfico.

Este número temático contém um dossier, composto por fichas de estudo de caso, sobre os “Impactos da pandemia COVID-19 nas organizações de proximidade”, elaborado em colaboração com profissionais e investigadores/as. Estas organizações foram descritas e analisadas nos seus aspetos organizacionais (missão, objetivos, atividades, recursos, modelos de gestão e governança) e na forma como foram afetadas (e os seus públicos, trabalhadores e membros) e fizeram face à pandemia COVID-19.

São apresentadas três organizações distintas: i) O Abrigo, uma associação sem fins lucrativos  (ficha de caso elaborada por Alexandra Ferreira da Silva, Graça Rojão e Sílvia Ferreira); ii) a CooLabora, uma cooperativa multisectorial (ficha de caso elaborada por Graça Rojão e Cristina Parente) e iii) a RDA69, associação criada por residentes numa zona urbana (ficha de caso elaborada por José Nuno Matos, Graça Rojão e Raquel Rego).  Num balanço geral, podemos dizer que a pandemia acentuou o papel da reciprocidade e do cuidado nestas organizações e na sua relação com as comunidades, embora também tenha colocado o desafio da sua sustentabilidade. Resta saber o que vai perdurar estando ultrapassada a situação de crise pandémica: as práticas de reciprocidade, de partilha e de mutualização manter-se-ão, ou serão abafadas pela força de uma sociedade neoliberal, onde prevalecem valores individualistas e consumistas?

Referências

Barman, E. (2016). Varieties of Filed Theory and the Sociology of the Non-profit Sector. Sociology Compass, 10(6), 442-458.

Bidet, E. (2010). Social Economy. In H. K. Anheier, & S. Toepler (Eds.), International Encyclopedia of Civil Society (pp. 1405-1410). Springer.

DiMaggio, P. J., & Anheier, H. K. (1990). The sociology of nonprofit organisations and sectors. Annual Review of Sociology, 16(1), 137-159.

Hespanha, P. (2020). A vulnerabilidade das instituições sociais básicas e a resposta de primeira linha. In J. Reis (Org.), Como Reorganizar um País Vulnerável? (pp. 447-486). Conjuntura Atual.

Laville, J.-L., & Sainsaulieu, R. (1997). Sociologie de l’association. Des organisations à l’epreuve du changement social. Desclée de Brower.

Sager, R. (2010). Theories of Nonprofit Sector, Sociological. In H. K. Anheier, & S. Toepler (Eds.), International Encyclopedia of Civil Society (pp. 1537-1543). Springer.

UN, United Nations. (2018). Satellite Account on Non-profit and Related Institutions and Volunteer Work (Studies in Methods). Department of Economic and Social Affairs/Statistics Division.

Notas

Por decisão pessoal, as autoras do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.

Autores: Raquel Rego, Cristina Parente, Sílvia Ferreira