N.º 16 - July 2018
Nuno Caetano Nora
Departamento de Sociologia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho,
Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal.
Email: nunonora@hotmail.com
Vidas congeladas: Socializados para o trabalho, formados para o não emprego?
Resumo: Atendendo às transformações experimentadas pelo mercado de trabalho nas últimas décadas, encetadas com a crescente globalização das trocas comerciais e agravadas com a crise económica e financeira de 2008, sobressai uma flexibilização e precarização das relações laborais. Neste artigo pretendemos analisar as lógicas de reação/adaptação dos licenciados nas áreas das Ciências Sociais e Humanas, quando o seu futuro profissional se confina a situações de trabalho precário e flexível. Entendemos o método biográfico como a estratégia adequada para compreender os significados e sentidos que os indivíduos atribuem às escolhas realizadas durante o seu trajeto de vida. Foram efetuadas dez entrevistas aprofundadas a licenciados residentes nos distritos do Porto, Braga e Viana do Castelo. Os resultados obtidos indicam que, embora de forma diferenciada, as manifestações de precariedade laboral e de não emprego têm um impacto negativo no processo de construção e consolidação da identidade profissional dos licenciados entrevistados.
Palavras-chave: precarização, flexibilização, licenciados em Ciências Sociais e Humanas, identidade profissional.
Life on standby: Socialized for labour, graduated for non-employment?
Abstract: Many changes have shaped the labour market in the last decades, initiated with the increasing globalization of trade and exacerbated by the 2008 economic and financial crisis. Among these changes, flexibility and insecurity of labour relations stand out. In this paper, we intend to analyse the ways social and human science graduates react/adapt when their professional future is confined to insecure and flexible work. The biographical method is for us the most suitable strategy to understand the senses and meanings that individuals attribute to the choices they make along their life-path. Ten in-depth interviews were conducted to social and human science graduates who reside in the district of Porto, Braga and Viana do Castelo. The results obtained indicate that, albeit differently, the forms of job insecurity and non-employment have a negative impact in the process of forging and consolidating a professional identity for the graduates interviewed.
Keywords: job insecurity, employment flexibility, social and human science graduates, professional identity.
Introdução[1]
A identidade profissional dos indivíduos constitui um processo de construção social, iniciado a montante do exercício de uma atividade profissional efetiva. Este processo tem origem no seio familiar, intensificando-se durante o percurso escolar. Desenvolvem-se estratégias individuais, mas sobretudo familiares, para que os jovens indivíduos alcancem um futuro promissor, mediante o desempenho de uma profissão.
De um ponto de vista disciplinar, a Sociologia tem apresentado duas correntes teóricas-metodológicas distintas na área da socialização e da identidade social. Num polo, vários autores (cf. Berger & Luckman, 2003; Bourdieu, 2006; Durkheim, 1999; Giddens, 2004) destacam o conceito de socialização e a primazia das estruturas sociais sobre os indivíduos. Desta forma, os indivíduos aprenderiam os valores, os costumes, os saberes e as capacidades transmitidas pela geração precedente. Segundo esta conceção, a socialização é entendida como “o processo através do qual as crianças, ou outros novos membros da sociedade aprendem o modo de vida da sociedade em que vivem” (Giddens, 2004, p. 27). Por intermédio da socialização, os indivíduos vão incorporando predisposições familiares (Bourdieu, 2006), condicionantes para o seu percurso de vida, estratégias individuais e coletivas do grupo ou classe social em que estão inseridos. No polo oposto, encontramos a abordagem interpretativa e acionalista de Weber (1979) e, sobretudo, de Mead (1972), que entendem as identidades dos atores sociais mais como resultados decorrentes de sistemas da ação social do que como produtos de trajetórias biográficas. Segundo Dubar (1997, p. 115),
foi sem dúvida George Herbert Mead, em sua obra intitulada Mind, Self and Society [Espírito, si-mesmo e sociedade] (1934), quem primeiro descreveu, de maneira coerente e argumentada, a socialização como construção de uma identidade social (um self, no vocabulário de Mead) na e pela interação — ou comunicação — com os outros.
Dubar (1997; 1998; 2006) coloca as questões relacionadas com o trabalho e o emprego no centro da discussão de todas as transformações sociais vivenciadas nas últimas décadas. Este agrega diferentes autores e correntes que, à partida, podem parecer antagónicas, com uma inspiração teórico-conceptual que nos parece muito influenciada por Norbert Elias (2000) e a sua teoria da configuração. O autor entende a estrutura e a ação como forças equivalentes da mesma configuração que é a sociedade. Dubar (1997) demonstra que a identidade individual é sempre uma identidade relacional e coletiva, na medida em que os indivíduos, condicionados pelas estruturas, família, escola, empresas entre outras instituições, mas também na interação com os outros indivíduos, constroem identidades e identidades profissionais. As identidades profissionais são
construções sociais que implicam a interação entre trajetórias individuais e sistemas de emprego, de trabalho e de formação. Resultados sempre precários ainda que muito fecundos de processos de socialização, essas identidades constituem formas sociais de construção de individualidades, a cada geração, em cada sociedade. (Dubar, 1997, p. 330)
A década de noventa do século XX foi marcada pelo desenvolvimento social e económico da sociedade portuguesa. O estado social passou a proteger os indivíduos em caso de desemprego e ao atribuir bolsas de estudo aos alunos que comprovassem falta de recursos para frequentar a universidade, entre outros benefícios sociais, promoveu o acesso ao ensino superior. Esta realidade proporcionou uma confiança no futuro, em que a obtenção de um curso universitário deixou de estar unicamente ligado à melhoria da posição social e financeira (N. Alves, 2005). No entanto, a posse de um curso superior passou a ser interpretada pelos indivíduos, pelas famílias e pela sociedade em geral, como uma necessidade incontornável para quem pretende uma posição de destaque na competição pelo emprego desejado.
Os jovens, ao escolher o seu curso universitário, procuram dar seguimento a um processo que permita alcançar o seu “emprego de sonho”. A procura de realização pessoal, a vocação, o aprofundamento de conhecimentos ou simplesmente o acesso a uma profissão de que se goste (M. G. Alves, 2005) são agora, a par das expetativas de melhoria de vida e um bom salário, motivos para trabalhar.
Trabalho, emprego, desemprego, não emprego, flexibilidade e precaridade
A crise económica (2008), que assolou a Europa e o mundo, teve particular impacto em Portugal, país cuja economia tem um crescimento anémico e que entrando em recessão, viveu o aumento das taxas de desemprego. O desemprego jovem, em especial junto dos licenciados, cresceu exponencialmente. Além disso, as alterações nas relações laborais já identificadas nas últimas décadas intensificaram-se. Todas as formas de trabalho flexível e precário passaram de uma exceção contratual para se tornar a regra de contratação de milhares de licenciados que anseiam por uma oportunidade no mundo laboral.
Convém, antes de avançar na nossa exposição, realçar as diferenças entre quatro conceitos fundamentais para o desenrolar de toda a nossa problemática teórica. São estes, o conceito de trabalho, o conceito de emprego, o conceito de desemprego e o conceito de “inemprego ou não emprego” (Araújo & Jordão, 2011). O conceito de trabalho tem sido definido pelas Ciências Sociais como “um processo que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (Marx, 2002, p. 211). Atualmente considera-se o trabalho como qualquer ação sobre a natureza, pessoas e ideias com o objetivo de aumentar o seu valor para o futuro. Muitas destas ações são consideradas trabalho mas não são um emprego, como por exemplo o estudar (Freire, 1997).
O conceito de emprego, segundo Marques “completa ou mesmo se sobrepõe ao conceito de trabalho, a posse de um emprego é objeto de uma carga socioinstitucional definida pelas condições de trabalho, remunerações direta e indireta, regalias sociais, proteção social, etc.” (Marques, 2000, p. 137). Parece, assim, existir uma evolução do trabalho para o emprego, uma conquista de direitos e regalias, em que o trabalhador, mediante um contrato de trabalho, consegue alguma previsibilidade e estabilidade na sua vida profissional. O emprego incorpora também uma carga simbólica, pois a determinados empregos estão associadas determinadas posições de maior ou menor destaque na sociedade.
A referida crise económica acentuou uma tendência, já verificada nos anos anteriores, para a flexibilização do mercado de trabalho e consequente perda de direitos e regalias dos trabalhadores (Kovács, 2006; Marques, 2000). O emprego, como o conhecíamos, traduzido num contrato de trabalho por tempo indeterminado, passa a ser privilégio de alguns; os novos contratados, com particular incidência nos indivíduos que procuram o primeiro emprego, são agora, na melhor das hipóteses, contratados a termo. Verifica-se, ainda, inúmeras formas de trabalho precário, das quais enumeramos as que consideramos mais relevantes para a nossa investigação, nomeadamente trabalho independente, falso independente, estágios profissionais, trabalho a tempo parcial involuntário, trabalho desqualificado e subemprego.
Seguindo de perto o pensamento das autoras Araújo & Jordão (2011), entendemos o desemprego como um conceito diferente de
não-emprego ou inemprego, o primeiro referindo-se a uma pessoa que perdeu algo conquistado em um primeiro momento, o segundo referindo-se a uma situação em que se encontra a pessoa que nunca teve uma relação jurídica de emprego (contrato de trabalho sem termo). O “inemprego” integra então a não-actividade laboral (a pessoa está actualmente sem actividade laboral, mas pode já ter trabalhado precariamente) e as situações laborais precárias ou trabalho precário. (Araújo & Jordão, 2011, p. 290)
Os licenciados, em especial os licenciados em áreas menos valorizadas pelo mercado de trabalho, são particularmente afetados pela situação de não emprego. Estão, assim, sujeitos a situações de precariedade e de flexibilidade contratual e laboral. No entender de Kovács (2005), existe uma tipologia que exemplifica a heterogeneidade dos trabalhadores em situação de trabalho flexível, que passamos a expor:
- Flexibilidade qualificante: Situação por opção (escolhida); — trabalho altamente qualificado (profissional) permitindo e exigindo aprendizagem continua; —posição e capacidade de negociação dos indivíduos com o empregador; — forte mobilidade externa (entre empresas); — perspectivas profissionais: actividade profissional intensa, ligada a uma série de empresas sem vínculos estáveis.
- Flexibilidade precária transitória: Jovens com níveis de educação elevados/médios; — trabalho pobre em conteúdo limitando fortemente o uso de competências e a aprendizagem no trabalho; — falta de capacidade de negociação com empregador; — procura de uma situação profissional melhor
- Flexibilidade precária estável: Forte mobilidade lateral, sobre todo o mercado de trabalho externo; — perspetivas profissionais: forte probabilidade de um percurso marcado pela precariedade e ameaça de desemprego. (Kovács, 2005, p. 87).
Identidades em movimento. Consolidação, rutura e reconfiguração
Até à década de setenta, terminada a licenciatura, a maioria dos diplomados iniciava o processo de transição da universidade para o mercado laboral (Chaves, 2010; Gonçalves, 2017; Marques, 2006; M. G. Alves, 2005; N. Alves, 2005). Este processo de inserção profissional realizava-se num intervalo temporal relativamente curto durante o qual os licenciados substituíam a condição de inativo pela de ativo empregado. Poderíamos definir a inserção profissional como “o período que mediava entre a conclusão da formação académica e a obtenção de um emprego estável a tempo inteiro” (N. Alves, 2005, p. 89). Este período temporal coincidia com a transição de jovem para adulto, de estudante para trabalhador, um momento de afirmação, autonomia e independência económica.
Ao longo das últimas décadas, com a desregulamentação dos mercados económicos e consequente precarização e flexibilização das relações laborais, o processo de inserção profissional deixou de ser linear, para se apresentar naquilo a que Marques (2006) classifica como o “espaço-tempo de descontinuidades”. Um processo que se prolonga no tempo, apresentando diversas possibilidades e caminhos a seguir, “após o termo de uma licenciatura e o início de actividades descontínuas: formação profissional, procura de emprego, emprego, desemprego, regresso aos estudos, inactividade, entre outras” (Marques, 2006, p. 31).
Numa situação típica de inserção profissional, tipo ideal, os indivíduos, após concluírem a sua formação superior, teriam acesso a uma profissão na área para a qual se formaram, com um contrato e condições de trabalho que garantissem estabilidade, podendo, assim, consolidar a sua identidade profissional. Na realidade, a identidade profissional passa por um processo de configuração e reconfiguração, associado a determinados momentos da vida profissional. Neste processo de constituição identitária, além dos aspetos pessoais, das histórias de vida dos indivíduos, bem como das relações interpessoais em contexto de trabalho, existe a necessidade de reconhecer que as
identidades estão, portanto, em movimento e esta dinâmica de desestruturação/reestruturação toma, por vezes, a forma de uma “crise das identidades”. Cada configuração identitária tem hoje uma forma mista no interior da qual as antigas identidades entram em conflito com as novas exigências da produção e onde as antigas lógicas que perduram entram em combinação e, por vezes, em conflito com as novas tentativas de racionalização económica e social (Weber). (Dubar, 1997, p. 330)
Neste sentido, Dubar (1997) apresenta quatro formas identitárias profissionais típicas:
- As identidades de empresa, referentes às descrições combinando mobilização e trabalho, ambição de promoção interna e convicção na cooperação (prioridade dada aos saberes de organização);
- As identidades de rede, que descrevem discursos mistos de individualismo, antecipações de mobilidade externa (“social”) e crença nos atributos da autonomia e do diploma (prioridade dada aos saberes teóricos e gerais);
- As identidades de categorias, implícitas aos discursos, valorizando a especialização, projetando-se no conjunto de “profissões” julgadas desvalorizadas (“bloqueadas”), e marcadas por conflitos (prioridade dada aos saberes técnicos);
- As identidades fora do trabalho, que surgem de descrições e do trabalho instrumental, da valorização da estabilidade questionada (“ameaça de exclusão”) e de afirmações de dependências dolorosas (prioridades dadas aos saberes práticos).
Estas formas identitárias profissionais típicas poderiam ser associadas a quatro momentos[2] específicos de uma biografia profissional ideal.
Objetivos da pesquisa
A questão inicial desta pesquisa foi a de perceber que consequências têm uma situação de não emprego para a consolidação da identidade profissional em formação. Esta foi a pergunta que orientou o nosso estudo empírico, com vista a perceber as dinâmicas adotadas pelos licenciados em Informação e Jornalismo, Humanidades, Educação, Ciências Sociais e do Comportamento, Ciências Empresariais e Direito, quando confrontados com uma situação de trabalho flexível e/ou de não emprego.
O objetivo geral deste estudo incorre na necessidade de compreender as lógicas de reação/adaptação dos licenciados das referidas áreas de conhecimento, quando o seu futuro profissional se vê confinado a situações de trabalho precário e flexível. Estas situações de precariedade obrigam inúmeras vezes os indivíduos a aceitar trabalhos fora da sua área de formação, não existindo assim uma consolidação da identidade profissional.
Relacionando uma vez mais a precariedade e a flexibilidade com identidade profissional, apresentamos os seguintes objetivos específicos de investigação:
- Identificar as situações de trabalho flexível em que os entrevistados se encontram;
- Perceber se uma situação de precariedade e de não emprego acarreta consequências físicas e psicológicas para os entrevistados, nomeadamente quando existe a necessidade de aceitação de trabalho numa área diferente à de formação de base.
Opções metodológicas
O estudo realizado assume uma essência interpretativa com o auxílio a técnicas qualitativas de recolha de dados. O “enfoque biográfico” (Marques, 2009, p. 59) prende-se, justamente, com a intenção de compreender os significados e sentidos que os indivíduos atribuem às escolhas por si efetuadas durante os seus trajetos de vida, mas, também, para ilustrar as várias dimensões relacionadas com vivência do não emprego dos entrevistados. Bertaux (1981) defende que, através das histórias de vida, podemos não só aceder à subjetividade, mas, também, às dimensões culturais e sociais em que a experiência dos indivíduos se constrói.
A participação neste estudo esteve vinculada aos seguintes pressupostos: a) ter no mínimo o grau académico de licenciado; b) nunca ter tido uma relação jurídica profissional com um contrato de trabalho sem termo. Estas foram as condições eliminatórias para participar no estudo empírico. Juntamente com estes pressupostos, construiu-se uma amostra respeitando os seguintes critérios:
- Contemplar várias situações de não emprego, emprego flexível e trabalho precário (trabalho independente, falso independente, estágios profissionais, trabalho a tempo parcial involuntário, trabalho desqualificado e subemprego);
- Incluir indivíduos a trabalhar numa área relacionada com a sua formação académica e incluir indivíduos a trabalhar fora da sua área de formação académica;
- Manter uma repartição equitativa referente ao sexo dos indivíduos;
Após a definição dos critérios de seleção partimos para o recrutamento de voluntários para a participação do nosso estudo empírico. Para aceder aos indivíduos que se enquadrassem no perfil desejado, utilizamos dois grupos de procura e oferta de emprego, existentes numa rede social: o grupo “emprego Porto”, com 28944 membros e o grupo “emprego Braga”, com 10543 membros.
Foram efetuadas dez entrevistas aprofundadas com base num guião, estruturado pelos seguintes temas: a) rotinas, projetos e estratégias para ultrapassar uma situação de não emprego; b) constrangimentos decorrentes da situação laboral em que se encontram; c) retrospetiva do percurso de formação tendo em conta a atual situação profissional.
As entrevistas foram realizadas durante os meses de março e junho de 2015, em locais acordados previamente entre o entrevistador e o entrevistado, procurando manter-se um ambiente confortável e privado. Recorreu-se à gravação áudio dos discursos dos entrevistados, sendo que a duração média das sessões foi de uma hora e meia.
Como tratamento do conteúdo das entrevistas, recorremos, sobretudo, à análise temática. Mediante a identificação, análise e descrição de padrões ou temas, esta técnica de tratamento da informação permite-nos apresentar e organizar os dados de uma forma sintética e compreensiva. Verificamos que existem algumas regularidades nos discursos dos indivíduos que vivenciaram situações similares durante a sua socialização familiar, percurso escolar e inserção profissional e que partilham quadros de referência simbólica, que é necessário analisar e compreender à luz de um pilar teórico-metodológico referido no quadro deste estudo. Ao considerar que os entrevistados se encontram em situação de trabalho precário e flexível, recorremos à tipologia criada por Kovács (2005), mediante a qual procuramos definir as trajetórias dos indivíduos no mercado de trabalho a partir de dois eixos: o da estabilidade de emprego e o da qualificação. Aplicamos também a tipologia utilizada por Dubar (1997), de forma a identificar qual das quatro formas identitárias típicas resulta da situação de não emprego vivenciada cada por cada um dos entrevistados. Foi nossa intenção potenciar os contributos das propostas tipológicas destes autores, dando visibilidade às lógicas de reação/adaptação dos licenciados nas áreas das Ciências Sociais e Humanas.
Perfil sociográfico dos entrevistados
Consultando as tabelas 1 e 2, podemos verificar que o nosso grupo de entrevistados é composto por cinco indivíduos do sexo feminino e cinco do sexo masculino. Dois dos entrevistados nasceram e fizeram o seu percurso escolar no distrito do Porto, um nasceu no Porto, estudou no Porto, até ingressar na universidade em Braga. Um dos entrevistados nasceu em Andorra, permanecendo neste principado até ingressar na universidade, também em Braga. Do distrito de Viana do Castelo temos duas das entrevistadas, uma de Monção e outra de Ponte de Lima, onde realizaram o seu percurso escolar até ingressarem na Universidade do Minho. Os restantes cinco entrevistados são naturais do distrito de Braga, onde realizaram todos os seus percursos escolares, inclusive os seus cursos universitários.
A média de idades dos nossos entrevistados é de 24,1 anos, sendo que os mais novos têm 21 anos e a mais velha tem 29 anos.
Situações laborais e identidades profissionais
Os quatro subpontos seguintes agrupam os entrevistados de acordo com a sua situação laboral e as consequências que a mesma tem para a sua identidade profissional. A fim de podermos analisar melhor a especificidade da subjetividade destas situações e na impossibilidade de apresentarmos aqui a história de vida de todos os entrevistados, optamos por apresentar uma biografia representativa de cada situação vivenciada.
Estágio, uma etapa no processo identitário
Ao analisar a situação laboral dos indivíduos, constatamos que dois destes estão a realizar um estágio profissional. Um deles efetua um estágio profissional apoiado pelo IEFP numa empresa de consultadoria. A outra entrevistada realiza um estágio obrigatório pela Ordem dos Advogados, sem qualquer tipo de remuneração; antes tinha também efetuado um estágio profissional também patrocinado pelo IEFP.
A entrevistada a realizar o estágio obrigatório pela Ordem dos Advogados afirma que tinha conhecimento prévio de que teria que realizar o referido estágio.
Previa o estágio para a Ordem dos Advogados, que é obrigatório. Sabia que muitos destes estágios se desenvolvem sem qualquer remuneração. O contrato ao abrigo do qual fui remunerada através de medida de incentivo ao emprego do IEFP terminou no mês passado. Neste momento, continuo a trabalhar na mesma entidade mas sem qualquer remuneração ou vínculo além do compromisso do meu patrono em acompanhar-me até ao final do estágio para a ordem dos advogados (só deverá terminar em meados do próximo ano). (Advogada, mestre em Direito, Estágio da Ordem, 26 anos)
A entrevistada certifica não estar satisfeita com a sua entidade patronal, pois considera que esta não sabe motivar os colaboradores. No entanto, admite que esta empresa permite um estágio muito participativo. Realça também o facto de ter uma boa relação de trabalho com os seus colegas de trabalho. Afirma, ainda, estar a desempenhar funções que se enquadram com a sua formação, considerando que se sente desqualificada por não receber qualquer salário pelo trabalho que desempenha.
Não gosto da empresa. Existe um certo despotismo na forma como é gerido o escritório. Não se promove a motivação nem a sã convivência entre os funcionários e colaboradores (embora, apesar disso, esta última exista). A entidade patronal permite-me um estágio muito participativo, o que é muito bom. Todavia, considero que não respeita ou motiva como deveria os seus colaboradores e funcionários. (Advogada, mestre em Direito, Estágio da Ordem, 26 anos)
A entrevistada considera que está numa situação laboral precária, que adia a sua independência financeira e os seus projetos pessoais de constituir família, pois ainda vive com os pais e depende financeiramente destes. A insatisfação com a sua identidade patronal faz que não vislumbre um futuro profissional nesta empresa para além do referido estágio.
Apesar das referidas contrariedades, afirma que estas não têm um grande impacto na sua saúde física e psicológica, afirmando que apenas se sente estressada devido ao volume de trabalho.
Só não me ressinto mais da inexistência de horário, com a correlativa instabilidade de expectativas, e de jornadas longas de trabalho porque faço um grande esforço de aproveitar o pouco tempo que tenho para estar com família, amigos e namorado, mesmo que muito cansada. Não me prejudicou demasiado porque com os curtos tempos e orçamento que tenho invisto o máximo neles. (Advogada, mestre em Direito, estágio da Ordem, 26 anos)
Fazendo uma retrospetiva do seu percurso académico e profissional, a entrevistada reafirma a opção pelo Direito. No entanto, refere que hoje optaria por realizar o mestrado apenas depois de começar a trabalhar. Considera ter sido bastante ativa no que diz respeito às encolhas sobre o percurso académico e profissional.
Salientamos a semelhança de percurso profissional entre os dois entrevistados estagiários, ainda que o entrevistado mais novo, 21 anos, Consultor, licenciado em Gestão, realize agora o seu primeiro estágio, após terminar a licenciatura, apresentando uma visão mais otimista do seu trabalho e do seu futuro. A entrevistada de 26 anos já efetuou um estágio profissional e está a realizar o estágio obrigatório pela Ordem dos Advogados sem receber qualquer remuneração, pelo que esta realidade afeta a sua vida pessoal ao não lhe permitir ser financeiramente independente, uma vez que gostaria de constituir a sua própria família.
Podemos concluir que existem algumas contrariedades, recorrentes do seu vínculo contratual (estagiários) precário, manifestando consequências na sua vida profissional mas também pessoal. No entanto, as identidades profissionais observadas referentes a estes dois entrevistados não se reconfiguram em crises identitárias. Os indivíduos entendem a realidade objetiva (estagiários) como uma situação já esperada, considerando-a normal e temporária. Verifica-se nestes dois casos uma flexibilidade precária transitória, na medida em que é esperado que, acabando os seus estágios profissionais, os sujeitos possam mudar o seu vínculo contratual. A forma identitária apresentada é a identidade de rede, visto que a situação de estagiário pressupõe um estado transitório, que se traduz, para já, numa não identificação com a empresa.
Procurando o primeiro emprego, identidades em suspenso
Analisamos agora dois entrevistados que terminaram as suas licenciaturas e desejam começar a trabalhar na sua área de formação. Ambos os entrevistados têm 21 anos e concluíram as licenciaturas há cerca de um ano. O entrevistado licenciou-se em Gestão e a entrevistada, licenciada em Relações Internacionais, não tendo conseguido emprego, optou por efetuar um mestrado em Políticas Comunitárias. Afirma passar os dias em casa, enviando currículos e estudando para o mestrado. Considera que a falta de trabalho a obrigou a reformular vários projetos pessoais.
Inicialmente quando ingressei no ensino superior, queria só fazer a licenciatura mas depois com o decorrer do curso tive noção que só a licenciatura era insuficiente, e assim decidi ir para mestrado para me especializar em algo com mais saída profissional e que me desse mais um grau académico. O objetivo principal era trabalhar assim que terminasse a licenciatura. Tive de adiar muitos planos devido à falta de trabalho como, por exemplo, viver sozinha ou com o meu namorado e ser independente dos meus pais, ter carro próprio, progredir na carreira, pois, ainda nem a iniciei. (PE, FM Políticas Comunitárias, 21 anos)
Ainda assim, entende que a sua situação laboral não prejudicou as suas relações familiares. Sente-se, no entanto, incomodada por depender completamente dos pais. Para tentar contornar a sua situação laboral continua a enviar currículos e, além do mestrado que frequenta, está também a realizar um curso para ser formadora na área em que se licenciou. Afirma estar disponível para trabalhar noutra área com exceção da área comercial. Admite que concorre a empregos que, à partida, estão abaixo das suas expectativas e afirma não estar disponível para correr o risco de montar o seu próprio negócio.
Neste momento, envio currículos para todas as áreas possíveis, exceto comercial. Aliás noventa por cento dos currículos que envio são respostas a anúncios desse género. Trabalho por objetivos e onde a remuneração por vezes é inferior ao salário mínimo nacional. Não considero montar o meu próprio negócio porque envolve um certo risco que não sei se estou disposta a correr porque tanto posso ter sucesso como ficar numa situação pior que a actual. (PE, FM Políticas Comunitárias, 21 anos)
No entanto, considera como positiva a posse do curso universitário que escolheu, pois é uma área de que gosta bastante, admitindo, no entanto, não lhe estar a abrir muitas portas no mercado de trabalho. A total dependência financeira dos pais obriga-a a alterar os projetos pessoais de viver com o namorado e constituir família. Afirma receber abono e bolsa de estudo para o mestrado que frequenta. A dependência económica que tem em relação aos pais faz com se sinta
Mal e de certa maneira incompetente por não conseguir ter independência. Também o facto de ter de pedir dinheiro aos meus pais com 21 anos é uma situação má. (PE, FM Politicas Comunitárias, 21 anos)
A sua vida social é limitada por falta de recursos económicos mas afirma que nunca se sentiu descriminada por não ter trabalho. Refere a importância de estar ocupada a realizar o mestrado, uma vez que assim não fica tão desmoralizada com a falta de emprego, considerando que a sua situação laboral não afeta a sua saúde física e mental para além da referida desmoralização de não conseguir arranjar emprego. A entrevistada admite a opção de ter que vir a trabalhar fora do país, ainda que essa situação não seja do seu agrado. As contrariedades na inserção no mercado de trabalho levam a entrevistada a repensar o seu percurso académico, afirmando que agora escolheria um curso com mais saídas profissionais. Assumindo as responsabilidades pelas escolhas efetuadas refere, no entanto, que se sentiu desamparada na escolha de área relativa ao secundário e também na escolha do curso universitário.
Escolhia um curso com mais saídas profissionais, porque não tenho muitas saídas profissionais em Portugal, é difícil ser-se técnico de Relações Internacionais neste país. Não culpo ninguém porque as escolhas foram minhas. Contudo, tenho noção que muita gente, aquando da entrada no ensino superior, tentou-se informar sobre as áreas e realizaram testes psicotécnicos para saberem em que áreas se enquadravam, enquanto eu sempre escolhi sozinha e optei por não fazer essas mesmas coisas. O Governo tem algo de culpa e podia abrir mais vagas para a área de Relações Internacionais. (PE, FM Políticas Comunitárias, 21 anos)
Podemos verificar que as situações dos dois entrevistados que procuram o primeiro emprego na sua área de formação apresentam-se semelhantes. Os dois admitem procurar emprego ativamente, enviando currículos diariamente, respondendo a ofertas de trabalho e apresentando-se a entrevistas sempre que são solicitados.
O processo de construção da identidade profissional de ambos os entrevistados aparenta estar em suspenso. O processo que foi iniciado na formação escolar foi agora interrompido, na medida em que, terminados os estudos, os entrevistados não tem hipótese de consolidar as suas identidades profissionais no exercício de uma profissão e mediante a socialização no local de trabalho. Consideramos, assim, que no caso destes dois entrevistados, as formas identitárias construídas tornam-se em produtos sociais abertos, não necessariamente fracionados, nem divergentes, pois, apesar das condicionantes que as suas situações profissionais apresentam, existe ainda uma esperança de virem a trabalhar na sua área de formação académica. Não existe no imediato uma necessidade de reconfiguração da identidade profissional de formação.
Identidades em formação, identidades em exercício
Dois dos entrevistados, apesar de estarem a trabalhar em áreas diferentes da sua formação académica, aparentam aceitar as profissões que desempenham. Verificamos que ambos os indivíduos já estavam inseridos no mercado de trabalho aquando do termo da sua licenciatura. Um dos indivíduos, licenciado em Sociologia e operário de profissão e a entrevistada licenciada em História e freelancer, apesar de estarem a trabalhar em áreas diferentes da sua formação académica, aparentam aceitar as profissões que desempenham.
Passamos a analisar a biografia do entrevistado licenciado em Sociologia e operário de profissão.
Ainda não tinha uma convicção forte da profissão que gostaria de ter. Estava muito focado em acabar o ensino secundário e não tinha ideia de seguir o ensino superior. Pensava que ia arranjar emprego e começar a fazer dinheiro. Quando, por imposição da minha mãe como referi anteriormente, ingressei no ensino superior. (Operário, FM Economia Social, 25 anos)
Ao analisar o discurso deste entrevistado, verificamos existir uma vontade própria de ter começado a trabalhar depois de concluir o ensino secundário, mas que, apenas por imposição da família, acedeu continuar o seu percurso de formação na universidade. O entrevistado deixa transparecer que nunca depositou muitas esperanças em trabalhar na área da sua formação académica, uma vez que entende o seu percurso universitário como uma forma de enriquecer os seus conhecimentos.
O entrevistado refere ter começado a trabalhar como operário quando estava a efetuar a licenciatura, sendo que esteve desempregado e voltou a ser chamado para trabalhar na mesma fábrica. A par do seu emprego, está a completar um mestrado em Economia Social, não estando, no entanto, satisfeito com esta opção. Como pensa que o seu futuro profissional vai passar necessariamente pela empresa onde desempenha funções de operário, prevê fazer uma especialização em Gestão que lhe permitirá subir na hierarquia interna da instituição empregadora.
Refere que aceitou voltar a trabalhar na mesma fábrica, pela necessidade de voltar ao ativo e por sentir que existe um preconceito com os desempregados.
Porque necessitava de voltar ao ativo, existe muito preconceito contra os desempregados. Como por exemplo, considerarem que é alguém preguiçoso. Como era algo que me estava a deixar desconfortável, aceitei a primeira oportunidade que surgiu. (Operário, FM Economia Social, 25 anos)
O entrevistado refere existirem alguns conflitos com a Direção da fábrica onde trabalha, nomeadamente com as chefias de topo, visto que considera não poder usufruir dos seus plenos direitos no que diz respeito à atividade sindical. No entanto, declara como sendo bom, o ambiente entre colegas de trabalho e mesmo com as chefias diretas. O entrevistado afirma que, apesar de trabalhar num ambiente de fábrica, as funções que desempenha são de grande responsabilidade e não são muito repetitivas. Considera manter-se na mesma empresa mas gostaria de progredir na carreira, visto que pensa ter qualificações a mais para o tipo de trabalho que desempenha.
Igualmente, afirma não pensar trabalhar na área da sua formação, dado que atualmente se sente mais operário do que Sociólogo e a necessidade de trabalhar foi sempre mais forte do que pretender trabalhar especificamente na área da sua formação.
A nível pessoal, considera-se frustrado, na medida em que o tempo e o dinheiro que investiu na sua formação superior em nada beneficiam a sua situação laboral. O entrevistado gostaria de constituir família e considera que não sofre nenhum impedimento económico resultante da sua situação profissional para atingir essa ambição. Não fosse o facto de viver com os pais, considera-se economicamente independente dos mesmos. Nunca associou a sua situação laboral a problemas de saúde e para já não considera a possibilidade de emigrar, pois encontra-se a trabalhar.
O entrevistado afirma que se fosse hoje, talvez optasse por um mestrado que pudesse ser mais bem aproveitado para progredir na empresa onde trabalha. Em relação à sua licenciatura em Sociologia considera:
Não posso dizer que não escolheria Sociologia, pois, atualmente, vejo as coisas de forma muito diferentes graças à licenciatura que tirei. Foi, sem dúvida, uma experiência muito enriquecedora, mas não é compatível com o mercado de trabalho.
Mesmo que escolhesse outra área, iria ter sempre a necessidade de saber mais sobre o comportamento das pessoas na sociedade. (Operário, FM Economia Social, 25 anos)
Ao analisar a exposição do entrevistado, podemos deduzir que não existe um grande conflito entre a identidade profissional em formação e a identidade profissional em execução, traduzindo-se numa forma identitária, identificada por Dubar (1997), como sendo “identidade de empresa”, na medida em que ele se identifica com as necessidades da empresa (admite efetuar um novo mestrado, que seja valorizado pela identidade patronal), aspirando a uma promoção interna e mantendo uma forte convicção na cooperação entre colegas de trabalho.
Esta situação pode ser explicada no nosso entender por dois fatores. O primeiro relaciona-se com o facto de o entrevistado realizar o seu percurso universitário a par do seu trabalho de operário, o que se traduz numa identidade profissional de formação, mas também numa identidade profissional em execução; ainda que as duas sejam diferentes, são construídas simultaneamente.
O segundo fator diz respeito à perceção do entrevistado do curso superior realizado, visto como uma forma de enriquecimento pessoal e não depositar, a montante, expetativas muito altas em conseguir emprego na sua área de formação.
Como vimos em relação ao entrevistado anterior, também a entrevistada Licenciada em História e que se assume profissionalmente como freelancer, desenvolveu uma identidade profissional em execução durante o seu percurso de formação; as várias experiências profissionais que foi realizando despertaram-lhe curiosidades e até paixões por outras áreas que não a da sua formação. Poderemos então afirmar que, apesar de ter desenvolvido uma identidade profissional ligada ao seu percurso académico e curso superior, desenvolveu também uma identidade profissional por via do seu trajeto profissional. Hoje em dia, a entrevistada considera que, fruto dos seus vários empregos, trabalha na área da sua formação, dando explicações de História, mas também trabalha em outras áreas relacionadas com o seu percurso profissional.
Podemos resumir a exposição da entrevistada, afirmando que esta está muito satisfeita com o seu percurso de formação, nomeadamente com o curso superior escolhido. O sentimento em relação ao seu percurso profissional é também bastante satisfatório, na medida em que afirma estar realizada com a sua vida profissional. O discurso desta entrevistada parece, à primeira vista, traduzir uma situação de precariedade qualificante (Kovács, 2005), afirmando a entrevistada que se encontra nesta situação laboral por opção própria e os trabalhos que vai efetuando permitem-lhe uma qualificação cada vez maior. Vive uma situação laboral intensa, manifesta uma capacidade de negociação forte com as empresas às quais presta serviços e apresenta uma forte mobilidade externa (entre empresas).
A forma identitária resultante do percurso desta entrevistada é em tudo semelhante à forma identitária de rede (Dubar, 1997), na medida em que exprime um discurso assente no individualismo e uma crença nos atributos da autonomia, mas apresenta a particularidade de, em vez de destacar o diploma universitário (próprio da identidade de rede), sublinhar os conhecimentos práticos desenvolvidos no percurso profissional.
Ao analisar o discurso de ambos os entrevistados, concluímos que não existiu necessariamente uma reconfiguração da identidade profissional em formação, uma vez que, a par da construção da identidade profissional em formação, desenvolveram também uma identidade profissional em exercício. A entrevistada foi desenvolvendo várias identidades profissionais consoante os projetos profissionais que abraçou. Assim, podermos afirmar que o processo de construção da identidade profissional em formação dos dois entrevistados não foi suficientemente consolidado para criar uma rutura entre a identidade profissional em formação e a identidade profissional em execução.
Reconfigurações de identidades profissionais em formação
Analisaremos neste subponto os casos dos três entrevistados que, por falta de trabalho na sua área de formação, se viram obrigados a reconfigurar a identidade que foram assimilando ao longo do seu percurso académico; aceitando trabalhos para o qual são sobre qualificados.
Realçamos agora a situação experimentada pela entrevistada licenciada em Sociologia que se encontra a trabalhar num call center na vertente de telemarketing. Esta entrevistada apresenta uma identidade de formação alicerçada num percurso universitário realizado com uma plena identificação com o curso escolhido.
Após a conclusão do ensino superior, a entrevistada realizou várias formações que considerou uma mais-valia para o projeto de trabalhar na sua área de formação.
Em setembro meti-me em formações ligadas à área, tirei atendimento e relação interpessoal, gestão de stress profissional e organizacional e tirei também cuidado no idoso que acaba por ser a outra vertente do social… centro de dia e lares de idosos. Tirei também o CAP até fevereiro e comecei a trabalhar nessa altura. Enquanto estive a fazer as formações mantive-me a procurar emprego ativamente porque não sou pessoa de estar parada em casa. Eu aceitei porque, como se costuma dizer, o dinheiro não cai do céu. Eu também não consigo estar parada, faz parte de mim ser ativa. Já estava parada há algum tempo e farta de estar em casa. Apesar de estar sempre a ajudar a minha família, não tinha aquela rotina de teres horários de trabalho e teres o dinheiro, estava mesmo cansada de estar sem trabalho… os meus pais davam-me algum dinheiro para eu gerir durante o mês, tens alguma liberdade mas não é a mesma coisa de ganhares o teu dinheiro. Mas custou-me imenso aceitar trabalhar nesta área, não me identificava nada com este tipo de trabalho, ainda hoje acabo por não me identificar com vendas, mas tento levar da melhor maneira. (Operadora de call center, licenciada em Sociologia, 23 anos)
O emprego na área de telemarketing apresenta-se como a única alternativa que vê em termos profissionais, referindo, no entanto, que não se identifica com este emprego nem com a área de vendas no geral. A entrevistada afirma ter uma boa relação com a sua entidade patronal, admitindo porém, estarem sujeitos a uma grande pressão para apresentar resultados, e a um ambiente competitivo que acaba por se refletir numa relação tensa entre colegas. Considera que o vínculo contratual que mantém com esta empresa não lhe transmite grande segurança, pois tudo está dependente dos resultados das vendas que faça. Afirma não estar contente com as funções que desempenha.
Não, não, mas é o que tem que ser… Eu estou mesmo a trabalhar com a perspetiva de encontrar uma coisa melhor, se possível na área da Sociologia. Ali é que não posso ficar, tu não podes ser operador de telemarketing toda a vida. Mesmo financeiramente ganhas pouco e não tens estabilidade nenhuma, hoje estás a vender uma coisa, amanhã outra completamente diferente, e depois ou te adaptas ou vais para a rua. (Operadora de call center, licenciada em Sociologia, 23 anos)
A entrevistada identifica o trabalho na área da Sociologia como o grande projeto da sua vida profissional e mantém grandes esperanças em conseguir concretizar a sua ambição, tendo declarado que mantém uma procura ativa por empregos na sua área de formação.
A nível pessoal, a entrevistada afirma não se sentir economicamente independente dos pais, adiando o seu projeto de viver com o namorado.
Mesmo por não ter condições monetárias, ainda não tenho estabilidade para sustentar uma casa. Sim, claro que não tenho uma casa para pagar, não pago água luz e alimentação, mas para as minhas coisas não peço dinheiro aos meus pais. Claro que não sou independente a cem por cento.
Sinto-me triste, não foi isto que eu planejei para mim. Sonhava ter uma casa minha, estar com o meu namorado, ter a minha vida e ter as minhas coisas. Eu também quero acreditar que as coisas vão melhorar. (Operadora de call center, licenciada em Sociologia, 23 anos)
A entrevistada refere que o trabalho que desempenha tem consequências para o seu bem-estar físico e psicológico.
Sim, sem dúvida, há dias que eu estou completamente insuportável. Eu não vejo televisão há imenso tempo, porque ando irritada com o meu trabalho e nem consigo ouvir sons. O meu namorado, coitado, não sei como ele me atura.
Eu sou bastante frustrada por não exercer aquilo de que gosto e depois descarrego nas pessoas mais próximas. É horrível trabalhar. Se calhar a minha saúde mental está afetada, porque é um trabalho muito cansativo, exigem números e resultados. Uma coisa que dá cabo de mim é também a falta de perspetiva no futuro, aquilo não é futuro para ninguém.
Depois respondes a anúncios para a tua área e não consegues nada, porque te pedem experiência, se ninguém me dá uma oportunidade como é que alguma vez vou ter experiência? (Operadora de call center, licenciada em Sociologia, 23 anos)
Sem grandes perspetivas profissionais, esta entrevistada refere que, apesar de adorar o seu curso de Sociologia, muitas vezes pensa que deveria ter escolhido um curso superior que tivesse maior empregabilidade, identificando o sistema de ensino e as empresas como os responsáveis pela atual situação laboral de milhares de licenciados. Na sua perspetiva, o Ministério da Educação permite a abertura de cursos superiores que, à partida, estão identificados com a falta de empregabilidade, por um lado; por outro, as empresas deveriam criar oportunidades de emprego orientadas para os recém-licenciados.
O discurso da entrevistada reflete uma grande frustração, dado que não consegue trabalho na sua área de formação e, por outro lado, o emprego que mantém por necessidade económica é considerado pela própria como causador de inúmeras consequências nefastas para o seu bem-estar.
A situação vivenciada e o seu discurso são representativos das realidades experimentadas pelo entrevistado mestre em Jornalismo Desportivo e trabalhador num call center e pelo entrevistado mestre em Geografia e operador de supermercado. Analisando o discurso dos três, encontramos semelhanças a nível das suas histórias biográficas, já que apresentam uma forte identificação com o curso superior realizado, gerando uma grande esperança em encontrar um trabalho na sua área de formação. As formas identitárias aqui identificadas assemelham-se mais uma vez à de identidade de rede (Dubar, 1997), dado que os indivíduos apresentam-se fortemente ligados à sua identidade de formação académica, na medida em que privilegiam os saberes teóricos adquiridos durante a sua formação em detrimento dos conhecimentos ligados à sua atual condição profissional. Os entrevistados encontram-se numa situação de flexibilidade precária estável (Kovács, 2005), pois não se perspetiva uma mudança para outro setor de atividade. A necessidade de um emprego propicia a aceitação de trabalhos que não desejam e para os quais são sobre qualificados. O mesmo se confirma num estudo realizado em 2014, que aborda a incidência da sobre educação em Portugal ao longo de um passado recente e ao nível dos diplomados da Universidade do Porto. Segundo Gonçalves (2017), ao considerar a população empregada ao longo dos últimos quinze anos, verifica-se, um aumento de diplomados em empregos não qualificados. O autor do estudo afirma que os diplomados sobre educados caracterizam-se por auferir salários mais reduzidos e terem uma limitada satisfação no trabalho. A investigação identifica as áreas científicas (importância das Artes, Humanidades, Ciências Sociais, Comércio e Direito) dos diplomados como uma das determinantes para a sua situação laboral (Gonçalves, 2017, p. 65).
Por último, iremos analisar a situação laboral de uma entrevistada que é licenciada em Ensino Básico — 1º ciclo. A entrevistada afirma ter começado a trabalhar como professora de atividades extracurriculares logo após ter terminado a licenciatura. Apesar de estar a realizar o seu sonho profissional, a sua situação contratual deixa a entrevistada muito renitente em relação ao seu futuro como professora. O seu vínculo contratual com o município de Monção é renovado mediante um concurso público a cada nove meses. A professora é contratada para acompanhar os alunos nas atividades extracurriculares duas horas por dia, quatro dias por semana, auferindo um salário de 323 euros.
Apesar de me sentir revoltada por trabalhar tão poucas horas por dia, tenho um contrato de trabalho onde a entidade empregadora cumpre as suas obrigações e é algo que me deixa segura. Contudo, o contrato é de nove meses e tenho de estar constantemente a concorrer ao município e faz com que não consiga planificar a minha vida pessoal.
Quando o contrato acaba, no verão, tenho de arranjar um trabalho (precário) para poder auferir algum tipo de rendimento. Em setembro, volto a concorrer ao município. Não estou minimamente satisfeita, sinto que o meu trabalho não é minimamente valorizado. Às vezes parece que o Estado desvaloriza o que faço e trata-me como uma professora de segunda por ser professora de atividades extracurriculares, pois tenho de trabalhar com os professores das turmas e por vezes essa relação é difícil. (Professora, mestre em Educação Especial 1º Ciclo, 29 anos)
Podemos verificar no discurso da entrevistada o seu descontentamento com o seu contrato laboral, em que o seu parco salário, aliado a um contrato de nove meses, se traduz na necessidade de, durante o período das férias de verão, ter de trabalhar temporariamente como lojista ou empregada de restaurantes. As funções que desempenha na escola são também desvalorizadas pelas próprias colegas professoras das turmas dos alunos, traduzindo-se num sentimento de desvalorização pela própria em relação ao trabalho que desempenha.
Não me sinto a desempenhar a função para a qual estudei na plenitude porque falta-me mais tempo de trabalho, no fundo, sinto que os professores de artes plásticas não são vistos como professores mas sim como “amas”, pois a nossa disciplina não é de caráter obrigatório no plano escolar, então torna-se difícil perceber quem são os miúdos que vêm às aulas por motivação. (Professora, mestre em Educação Especial 1º Ciclo, 29 anos)
A entrevistada, apesar de se considerar apaixonada pelo seu trabalho, pensa seriamente em mudar de profissão, na medida em que, para além das dificuldades económicas do baixo salário auferido e contrato de trabalho precário, sente também uma desvalorização do trabalho que realiza por parte dos seus colegas de profissão, da entidade empregadora e até pelos pais dos alunos.
Eu penso que a maneira como tratam os professores que passam por uma situação igual à minha desqualifica qualquer um. Recebo um salário miserável, para que é que estudei tanto? (Professora, mestre em Educação Especial 1º Ciclo, 29 anos).
A entrevistada considera ter a vida completamente em suspenso e devido à precaridade do seu contrato laboral tem adiado constantemente o seu sonho de constituir família. Tendo de recuar na opção de viver com o seu namorado, por dificuldades económicas, teve que voltar para casa dos pais.
Apesar de trabalhar na área de formação, não consigo trabalhar com o número de horas suficientes para me garantir um salário minimamente aceitável. Neste momento e apesar de adorar o que faço, considero mudar de profissão. Pessoalmente, sinto-me professora e sei que faço bem o pouco que faço e desempenho o meu papel. Porém, sinto-me um pouco aquém dos resultados que prevejo porque sinto que existe uma desresponsabilização da escola e não há qualquer tipo de avaliação.
Já pensei em procurar trabalho noutra área mas é difícil candidatar-me e ser chamada para entrevistas porque não tenho experiência. Neste momento, encontro-me a entregar currículos para a área de vendedora, devido à minha forte capacidade de comunicação, contudo, sinto que me excluem pelas minhas qualificações. (Professora, mestre em Educação Especial 1º Ciclo, 29 anos)
A entrevistada encara a possibilidade de emigrar num futuro próximo como alternativa à sua situação laboral e admite que ainda não o fez porque tem relações pessoais sólidas e não pode, nem quer, tomar essa decisão sozinha. Fazendo uma retrospetiva do seu percurso profissional e escolar, a entrevistada afirma estar arrependida do curso superior escolhido e pensa que teria mais vantagens na área da saúde, como, por exemplo, na Pediatria. A entrevistada afirma que a sua situação laboral afeta as relações pessoais e a sua saúde:
Sinto-me um pouco revoltada por ter voltado a viver em casa dos meus pais e por estar perante uma situação como a do meu irmão: tem o 12º ano, trabalha em part-time num supermercado e aufere mais que eu. Sempre foi alguém que não gostou da escola e quando envia currículos, consegue obter respostas facilmente. Para mim esta situação é difícil porque eu sinto que me esforço imenso e não sou recompensada por isso.
Sim, afetou a minha saúde física e mental. Desde que trabalho como professora precariamente, tornei-me em alguém mais ansioso e receoso porque sinto que não consigo atingir os meus objetivos e é algo que me deixa mal. Em termos físicos, tive um desequilíbrio hormonal que provocou uma anemia. (Professora, mestre Educação Especial 1º Ciclo, 29 anos)
As consequências das situações laborais de não emprego e precariedade experimentadas por alguns dos entrevistados apresentam semelhanças com situações descritas em estudos efetuados sobre as implicações do desemprego (Caleiras, 2015; Marques, 2009). Sentimentos de desânimo, angústia, desvalorização, baixa autoestima e inutilidade são partilhados, quer por desempregados, quer por licenciados que experimentam situações de não emprego. Além destes retratos psicológicos, o desemprego e o não emprego são responsáveis pelo adiamento ou inviabilização de projetos de natureza familiar e afetivos.
A entrevistada responsabiliza a organização do ensino em Portugal, pois considera que os alunos, aquando das escolhas das áreas de estudo no secundário e das escolhas dos curso superiores a frequentar, deveriam ser mais acompanhados, mediante a informação estatística da empregabilidade real da oferta educativa.
A situação precária desta entrevistada reflete uma flexibilidade precária estável (Kovács, 2005), em que a falta de um salário aceitável para as suas necessidades básicas contribuiu para a possibilidade de ter de abandonar a profissão de professora.
Considerações finais
Os indivíduos, após terminarem as suas licenciaturas, aspiram legitimamente concretizar as expetativas criadas durante os seus percursos de formação, mediante uma atividade profissional para a qual se licenciaram. As transições entre o percurso de formação e a inserção profissional dos entrevistados revelam-se plurais, na medida em que os entrevistados manifestam diferentes níveis de adaptação e inadaptação às suas realidades profissionais. No entanto, de uma forma geral, as situações de não emprego e de precariedade por eles vivenciadas têm consequências em toda a sua vida social, vendo assim os seus projetos pessoais e profissionais adiados, e ficando em alguns casos com o seu futuro “congelado”. As reconfigurações identitárias necessárias para ultrapassar estas situações de não emprego e de precariedade são muitas vezes “forçadas”, por meio da aceitação de trabalhos que não desejam e para os quais são sobre qualificados.
Os dados empíricos provenientes da nossa investigação permitem-nos concluir que a forma de flexibilidade mais representada nesta análise a dez indivíduos é a flexibilidade precária estável (Kovács, 2005), situação que pode grosso modo ser caraterizada pela fraca perspetiva de mudança laboral, em licenciados com uma situação profissional instável e de baixos salários. Esta situação de precariedade resulta maioritariamente em formas identitárias de rede (Dubar, 1997), marcadas essencialmente por discursos de individualismo, antecipações de mobilidade externa, forte identificação com a identidade de formação académica, em detrimento do reconhecimento com as empresas e seus objetivos coletivos. As situações de não emprego e de trabalho precário têm consequências a nível físico e sobretudo psicológico nos indivíduos. No entanto, pouco se tem refletido sobre os resultados negativos para algumas empresas, que ao apresentarem a contratação com menos encargos possíveis, como principal objetivo, não conseguem integrar profissionais comprometidos com os objetivos e valores dessas organizações. Um dos temas mais comentados na agenda política europeia é a produtividade dos trabalhadores. Parece-nos importante considerar a realização de investigações que permitam uma análise comparativa entre a precariedade e a estabilidade laboral e como estas se refletem na produtividade dos indivíduos nas várias áreas e setores do mercado de trabalho.
Referências
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Nuno Caetano Nora. Mestre em Sociologia das Organizações e Trabalho pela Universidade do Minho, Portugal.
Data de submissão: 27/11/2017 | Data de aceitação: 20/03/2018
[1] Pretendemos com este texto apresentar parte dos resultados alcançados com um estudo realizado no âmbito de uma Dissertação de Mestrado intitulada “Vidas Congeladas — Socializados para o trabalho, formados para não emprego?”, esta Dissertação teve a orientação da Professora Doutora Ana Paula Marques. O referido estudo apresenta dois momentos de análise empírica: o primeiro, relacionado com a socialização familiar e escolar com vista a uma profissão e que foi apresentado no “III Seminário — Ser Diplomado do Ensino Superior: Escolhas, Percursos e Retornos”; o segundo, referente ao momento da inserção profissional, que apresentamos nesta comunicação.
[2] Segundo Claude Dubar, as configurações identitárias típicas, no campo do trabalho, poderiam abstratamente ser associadas a “momentos” privilegiados de uma biografia profissional ideal:
– Momento da construção da identidade correspondendo tradicionalmente à formação profissional inicial;
– Momento da consolidação da identidade ligado à inserção e à aquisição progressiva da qualificação nos planos de carreira profissionais;
– Momento do reconhecimento da identidade, pautado pelo acesso a responsabilidades nas carreiras empresariais;
– Momento de envelhecimento da identidade e da passagem progressiva à aposentadoria. (Dubar, 1997, p. 327).
Por decisão pessoal, o autor escreveu este texto segundo as normas do novo acordo ortográfico.
Autores: Nuno Caetano Nora