N.º 32 - agosto 2023

Rahul Kumar
FUNÇÕES: Concetualização, Análise formal, Metodologia, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Instituto de História Contemporânea, Universidade NOVA de Lisboa & Departamento de Ciências
Sociais da Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Setúbal. IHC-UNL,
Colégio Almada Negreiros, Sala 327, Campus de Campolide da NOVA, 1099-085 Lisboa, Portugal
E-mail: rahul.kumar@fsch.unl.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4799-149X

O processo de integração europeia foi, possivelmente, o fator mais decisivo no percurso da formação social portuguesa desde o 25 de Abril de 1974. Para a generalidade dos analistas e quase todas as forças políticas, a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE) encontra-se diretamente associada à construção do sistema democrático, tendo contribuído para ultrapassar a herança institucional e política do Estado Novo, para modernizar as infraestruturas e a estrutura produtiva do país, para transformar uma sociedade rural, pobre, e em muitas dimensões bastante conservadora, numa sociedade mais afluente, moderna, dinâmica e aberta. Sob a ideia de convergência, parte substancial da sociedade portuguesa ambicionou fazer parte do pelotão da frente, e sonhou tornar-se europeia. A base deste consenso europeísta, que persiste mesmo depois da grande crise financeira de 2007 e das políticas de austeridade que se lhe seguiram, assenta numa série de leituras sobre as causas do atraso português — normalmente imputado a razões de natureza interna — e sobre a lógica da integração europeia — tomada quase sempre como um projeto cosmopolita e democrático, de paz e prosperidade.

O livro de João Rodrigues, O neoliberalismo não é um slogan, tem como ponto de partida a emergência e a trajetória política do neoliberalismo, como objeto a União Europeia e como tema central o lugar de Portugal nesta história. O neoliberalismo é, sem dúvida, um fenómeno problemático e um conceito controverso: se, por um lado, os atores classificados como neoliberais rejeitam o qualificativo, argumentando que ele é utilizado de forma derrogatória pelos seus adversários políticos, por outro lado, no campo das ciências sociais a utilidade analítica da ideia de neoliberalismo é frequentemente questionada. Contra estas duas perspetivas, o autor mostra de forma convincente a formação da doutrina neoliberal, identificando os seus princípios teóricos e discutindo as suas prescrições. Essa história das ideias não é, todavia, apresentada de forma desencarnada. É inserida de forma consistente nos quadros geopolíticos que facilitaram a sua institucionalização. Ao olhar de forma atenta para processos de mudança institucional, o livro coloca as teorias neoliberais no centro da construção da União Europeia, talvez o mais perfeito modelo de neoliberalismo incrustado, e da integração de Portugal nessa organização política supranacional.

O argumento encontra-se organizado em seis capítulos que discutem, de forma cruzada, o lugar do neoliberalismo na história do pensamento económico e o lugar que esses debates e ideias ocuparam no espaço público. A primeira secção, com o título “Não é mesmo um slogan”, apresenta uma cartografia bastante completa daquilo que o autor designa como o arquipélago neoliberal: um conjunto de escolas de pensamento, instituições académicas, think thanks e organizações internacionais a partir das quais um influente coletivo de intelectuais procurou renovar o liberalismo clássico e repensar a relação entre estado e mercado para além do laissez-faire do século XIX. O mercado surge aqui não como uma instituição natural, mas como uma construção política, deliberadamente fabricada e protegida. Segundo o autor, o centro da ideologia neoliberal assentou na procura de “soluções políticas para subordinar a atuação dos poderes públicos à promoção da concorrência mercantil em áreas crescentes da vida social” (p. 23). Mais do que reduzir o tamanho do estado, a ação do neoliberalismo concentrou-se na definição do próprio carácter do estado — ou seja, tratou de assegurar, com base em interesses de classe específicos, que as intervenções do poder político, idealmente exercido por elites tecnocráticas não eleitas, seriam marktconform.

O segundo e o terceiro capítulos, “Engenharia política supranacional” e “Economia política dos consensos internacionais”, procuram situar o desenvolvimento do neoliberalismo no quadro da geopolítica internacional e construir uma periodização detalhada do processo de tradução institucional das teorias neoliberais. O autor mostra de que modo as hipóteses sobre mercados eficientes, individualismo metodológico ou agentes racionais, discutidas em colóquios académicos e encontros intelectuais, foram testadas e implementadas no mundo das instituições políticas. Se o Colóquio Walter Lippmann, que teve lugar em 1938 em Paris, é habitualmente considerado como local de nascimento oficial da ideologia neoliberal, e a chegada das ideias neoliberais ao poder é habitualmente associada à crise económica dos anos 1970, este livro defende que a institucionalização do neoliberalismo remonta aos anos 1950 e tem na CEE o seu primeiro modelo e teste político. O argumento pode ser resumido da seguinte forma: esta organização supranacional, de propensão federalista, teve como objetivo fundamental anular a possibilidade de uma economia política socialista no continente europeu e condicionar de modo significativo os efeitos da reconstrução democrática dos Estados Nacionais no pós-guerra, insulando as suas elites políticas de reivindicações redistributivas e democráticas. Sendo clara e comprovada a inspiração hayekiana para o processo de construção europeia, ancorado no mercado único e na moeda comum, nem por isso a integração se fez sem atritos. A diversidade dos modelos de proteção social nos vários países europeus, a sua sólida base nacional — a escala mais favorável aos arranjos democráticos — a par de um certo equilíbrio geopolítico favoreceram até aos anos 1970 o “reformismo do medo”. É perante o fim da radicalidade social-democrata do pós-guerra, da queda da URSS, do fim do socialismo no terceiro mundo, da intensificação das interdependências globais e da renovada hegemonia americana que o pacote de reformas neoliberal começa a ser aplicado de forma extensiva em todo o mundo, do Chile em 1973 à Europa de Leste no século XXI. Este pacote de reformas, apresentado em detalhe ao longo destes dois capítulos, teve também implicações decisivas no quadro europeu desde o fim dos anos 1970.

O avanço do neoliberalismo em Portugal e as suas consequências para a soberania nacional e para a democracia são analisados no capítulo seguinte. O “Neoliberalismo incrustado em Portugal” começa por reconstruir o debate entre os defensores do modelo de planificação socialista do período revolucionário e uma nova geração de economistas, quase todos formados em universidades britânicas e norte-americanas. Estes últimos foram os responsáveis pela importação e adaptação às circunstâncias específicas do debate político-económico português dos postulados teóricos do neoliberalismo organizados em torno da noção de “pequena economia aberta” (p. 237). Esta formulação, cristalizou uma imagem precisa da condição natural, e, portanto, inescapável, da posição de Portugal numa economia irreversivelmente mundializada. O vínculo externo, ou seja, o projecto de integração europeia que assegurou as condições materiais e institucionais de reconstrução da economia de mercado e de um certo regime de propriedade em Portugal depois do período revolucionário, revelou-se essencial para estas ideias saltarem do papel para a política. Os governos de Cavaco Silva representaram a manifestação institucional concreta deste novo modelo de governamentalidade. No seu momento positivo, para lá da oposição aos “excessos da revolução”, esse programa apresentou um horizonte de modernidade, de racionalidade económica, e, inclusivamente, de um certo investimento social que, em conjugação com a promessa de mobilidade social ascendente e de convergência com o centro europeu, assegurou uma década de europeísmo feliz e deu forma a um consenso social duradouro.

Concretizada a análise detalhada do processo de incrustação do neoliberalismo no espaço social português, o argumento procede para um balanço bastante crítico das consequências macroeconómicas das políticas de integração europeia. Em “Vulnerabilidades macroeconómicas nacionais”, João Rodrigues, em co-autoria com Paulo Coimbra, parte da Teoria Monetária Moderna — um quadro teórico heterodoxo que sublinha a importância da soberania monetária — para identificar os principais padrões e mecanismos explicativos do funcionamento de uma economia monetária de produção como a portuguesa. Os autores verificam que ao longo das últimas duas décadas, num quadro de subordinação do estado às instituições financeiras internacionais, e de recomposição do poder das classes dominantes, o mercado interno estagnou, a procura externa teve um impacto negativo no crescimento, e Portugal registou sempre défices crescentes na balança corrente. Não se trata de um exclusivo português: todos os outros países da Europa do Sul apresentam resultados semelhantes ainda que nenhum tão negativo. O livro argumenta que só a recuperação de uma série de instrumentos de política económica, desde logo a soberania monetária, articulada com políticas cambiais e orçamentais, poderá devolver a política macroeconómica ao controlo democrático. A identificação das prioridades de política pública e de uma série de medidas de desmercadorização do trabalho, da terra/natureza e da moeda para a construção de uma sociedade mais justa e democrática são, precisamente, o tema do último capítulo “Resgatar a economia política soberanista”.

Ancorado numa história das ideias económicas, O neoliberalismo não é um slogan é um livro fundamental para compreender a ideologia dominante do nosso tempo e um ponto de partida para uma leitura mais informada e realista do processo de construção da União Europeia. Ao longo das mais de trezentas páginas do livro, João Rodrigues leva verdadeiramente a sério a formulação de um economista e antigo ministro das finanças, Mário Murteira, de que “Portugal não pode ser compreendido sem uma visão ampla dos enfrentamentos de classes, nações e sistemas sociais à escala mundial” (p. 214). Desse ponto de vista, o livro inscreve a análise da sociedade portuguesa, e de muitos dos seus bloqueios e impasses, num quadro multiescalar e transnacional, no interior do qual é problematizada a ideia de inevitabilidade dos processos de globalização económica e a relação entre soberania democrática e participação em blocos económicos e políticos supranacionais.

Data de submissão: 28/07/2023 | Data de aceitação: 25/08/2023

Notas

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Autores: Rahul Kumar