N.º 27 - dezembro 2021
Bruno Baptista
Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, Departamento de Sociologia,
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia.
Cidade Universitária de Lisboa, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal.
E-mail: bruno.m.s.baptista@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4830-7373
Telma Talina Mendes
Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, Departamento de Sociologia,
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia.
Cidade Universitária de Lisboa, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal.
E-mail: telma_mendes@iscte-iul.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1643-6426
Fernando Luís Machado
Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, Departamento de Sociologia, Centro de Investigação e Estudos de
Sociologia. Cidade Universitária de Lisboa, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal.
E-mail: fernando.machado@iscte-iul.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8711-0338
Resumo: Numa perspetiva sociohistórica, analisa-se a génese e consolidação da sociologia da cultura em Portugal enquanto especialidade sociológica. A partir de contributos teóricos e metodológicos da sociologia da ciência, analisam-se a origem e o trajeto daquela especialidade, as bases institucionais em que assentou o seu desenvolvimento e os fatores externos e internos ao campo sociológico que favoreceram esse desenvolvimento. Identificam-se também os temas constitutivos da sua agenda de investigação, a importância relativa desses temas em termos de volume de publicação, as obras de referência e os contextos institucionais e científicos associados à formação dessa agenda temática.
Palavras-chave: sociologia da ciência, sociologia da sociologia, especialidade sociológica, sociologia da cultura.
Abstract: The current paper analyses the genesis and consolidation of sociology of culture in Portugal as a sociological specialty, in a sociohistorical perspective. Considering the theoretical and methodological contributions of sociology of science, the paper analyses the origins and the path of Portuguese sociology of culture, the institutional foundations that supported its development, as well as the external and internal factors that favored that same development. It also aims to identify the main topics of the research agenda, its relative significance in terms of publication volume, reference works, and the institutional and scientific contexts of that agenda.
Keywords: sociology of science, sociology of sociology, sociological specialty, sociology of culture.
Introdução: a cultura nas ciências sociais
O conceito de cultura tornou-se insubstituível na procura pela compreensão da constituição da subjetividade e ação humana. Uma primeira definição adiantada pelos académicos das ciências sociais europeias no início do século XX identificava a cultura como o “que de melhor se dizia e pensava” (Turner, 2009, pp. 4-5), o capital intelectual de uma elite, a aptidão artística e a capacidade do público de compreender os artefactos e as elaborações intelectuais destes criadores e pensadores e de lhes atribuir uma avaliação que lhes fizesse justiça e os legitimasse. Mais tarde, surge uma segunda tentativa de definir o conceito que vem envolver as forças mentais e morais da vida humana (Scott, 2011), abordagem que alude a uma linguagem partilhada de significados, símbolos, sentimentos e representações que orientam os indivíduos de uma determinada sociedade no seu quotidiano através da construção daquilo que se torna o senso comum, os costumes e estilos de vida. Cultura vem, então, substituir ideias que estavam até então associadas pela filosofia ao espírito (geist/esprit) e à alma (seele/arne).
As primeiras abordagens sociológicas ao conceito de cultura são indissociáveis da própria génese da sociologia. Análises sobre a(s) cultura(s) das sociedades europeias estão presentes nos estudos pioneiros de autores clássicos como Weber, Durkheim, Marx, Simmel e dos transatlânticos associados à Escola de Chicago. Foi, em boa parte, através das constantes reinterpretações das obras clássicas que este subdomínio da sociologia começou a dar os primeiros passos em direção à diferenciação e consolidação. Um dos princípios fundamentais da sociologia da cultura, na sua fase inicial, é o de que os significados dos símbolos, representações, ideologias, são relacionais, isto é, são desenvolvidos entre indivíduos em concordância ou em contraste com outras representações sociais. A sociologia da cultura (que foi sendo criada à medida que ia sendo institucionalizado o estudo da cultura enquanto objeto) veio, então, dar uma forma mais composta ao conceito, adicionando-lhe um caráter crítico daquela que era a visão de outras ciências sociais, nomeadamente a antropologia, que, apesar dos seus imprescindíveis contributos, definiria cultura de uma forma totalizadora, instrumentalizando o termo como medida de comparação entre as diferentes pessoas e sociedades do mundo[1], mas também das visões pretensiosas das humanidades que definiam cultura como a vanguarda académica, literária e artística, visões que foram expostas pelos seus efeitos de exclusão social e de manutenção de hierarquias.
A institucionalização dos estudos sociológicos sobre a cultura acabou por criar uma especialidade que hoje é conhecida como sociologia da cultura. No panorama contemporâneo, são muitas as ramificações que constituem a sociologia da cultura, domínio que foi ganhando destaque no discurso sociológico, quer como tópico de análise quer como lente para observar o social (Jenks, 1998). Na Europa, a sociologia da cultura é muitas vezes referida como uma tradição francófona, mas as teorias clássicas e a produção científica da especialidade espalharam-se por todo o continente. Em Portugal, onde a formação do campo sociológico esteve fortemente condicionada até à restauração da democracia em abril de 1974, mas conheceu um desenvolvimento rápido e sustentado nas décadas subsequentes, a sociologia da cultura constituiu-se como uma das especialidades sociológicas mais produtivas. O presente artigo visa fazer uma reconstituição sociohistórica do processo de génese e consolidação da sociologia da cultura em Portugal, assinalando as suas bases institucionais, a sua agenda temática, os seus autores e obras de referência, os contextos e fatores associados a essa génese e consolidação, não sem antes chamar a atenção para a pertinência de se aplicar a perspetiva sociológica à própria sociologia, aplicação que se pode desdobrar em múltiplas concretizações e que, neste caso, toma como objeto a formação de uma especialidade sociológica[2].
Sociologia da sociologia: pertinência e aplicação a uma especialidade sociológica
A sociologia, como qualquer outra disciplina científica institucionalizada, pode ser constituída como objeto de estudo sociológico, foco de uma sociologia da sociologia que contribua para a capacidade autorreflexiva da disciplina, tanto mais necessária quanto ela se tornou um campo altamente desenvolvido e diferenciado. A compreensão reflexiva das suas condições de exercício, das suas práticas e dos seus efeitos sociais pode socorrer-se, desde logo, dos instrumentos teórico-metodológicos e do património de investigação empírica da sociologia da ciência, nomeadamente dos contributos notáveis de Robert Merton e Pierre Bourdieu, decisivos para o estudo da ciência enquanto instituição social numa constante relação com contextos e fatores externos e internos ao campo científico como um todo e entendível, também, como uma realidade histórica. Em Portugal, embora haja uma literatura abundante sobre a sociologia da autoria de sociólogos, não há muitos exemplos de aplicação dessa perspetiva sociohistórica à disciplina, que a tome como um objeto empírico igual a qualquer outro. Os estudos que mais se aproximam dessa objetivação sociológica da disciplina são os que têm incidido sobre a sua história e não tanto sobre o seu funcionamento como campo científico ou comunidade científica (Ágoas, 2013; Cruz, 1983; Garcia et al., 2014; Machado, 2020; Pinto, 2004; Silva, 2016). Entre os tópicos de investigação de uma tal sociologia da sociologia, sensível à dimensão histórica, estão a autonomia do campo sociológico e suas condições; a relação da sociologia com o campo político; as repercussões sociais da sociologia; a interdisciplinaridade; as condições de definição dos objetos de estudo e das agendas de investigação; as hierarquias internas da disciplina; as relações de cooperação, competição e conflito dentro da comunidade sociológica; e a internacionalização dos sujeitos e objetos de investigação (Machado, 2020).
A formação de especialidades sociológicas é outro tema que pode ser acrescentado a este caderno de encargos e para a sua análise podemos convocar os trabalhos de sociologia da ciência sobre a formação de disciplinas e subdisciplinas no campo científico em geral ou no campo sociológico em particular, entre os quais o artigo emblemático dos “mertonianos” Jonathan Cole e Harriet Zuckerman sobre a própria sociologia da ciência (Cappell & Guterbock, 1992; Cole & Zuckerman, 1975; Hagstrom,1965; Stehr & Larson, 1972). Numa formulação sintética, podemos identificar três tipos de fatores associados a essa formação. Há fatores de natureza cognitiva relacionados com o trabalho corrente dos cientistas, como o confronto com novos problemas ou enigmas, a adoção de novas técnicas ou dispositivos de pesquisa ou a emergência de interpretações alternativas de determinados fenómenos. Há fatores sociais internos ao campo científico, como a busca de reconhecimento por via da inovação na escolha dos temas de pesquisa num contexto de forte competição entre investigadores ou a capacidade de os investigadores seniores atraírem estudantes, recursos e suporte institucional para a consolidação de novas frentes de pesquisa. E há, finalmente, fatores sociais externos, entre os quais estão as novas questões que as sociedades colocam a si mesmas e as levam a interpelar a ciência — ou, mais prosaicamente, as procuras das políticas públicas — ou ainda os modos de financiamento da investigação, que podem favorecer a exploração de novas zonas especializadas nas fronteiras do conhecimento disponível.
Génese e desenvolvimento de bases institucionais
Depois de restaurada a democracia em abril de 1974, a sociologia portuguesa teve um trajeto linear e progressivo de crescimento e consolidação e atingiu, no início do século XXI, um patamar de institucionalização avançada, tendo-se tornado um campo científico completo, estável e internacionalizado. Se tomarmos cinco dimensões fundamentais desse processo de institucionalização — ensino, investigação, publicação, associação, internacionalização —, verificamos em todas elas ocorrências e desenvolvimentos que justificam esta afirmação (Machado, 2020). A sociologia da cultura acompanhou esse movimento geral da disciplina e tornou-se um domínio consolidado de investigação sociológica (Tabela 1). Embora não esteja entre os domínios de investigação que apareceram ainda no tempo do Gabinete de Investigações Sociais (GIS) criado por Adérito Sedas Nunes, em 1962, em Lisboa, foi um dos que surgiram logo na década de 1970, poucos anos após o derrube da ditadura. Tomando as dimensões de institucionalização referidas acima, faremos neste ponto a reconstituição, em grandes linhas, da génese e desenvolvimento das bases institucionais que tornaram a sociologia da cultura uma especialidade plenamente estabelecida no campo sociológico em Portugal, apesar de no início ter sido recebida nos meios académico e artístico com um misto de entusiasmo e desconfiança (Santos, 2012). Apontaremos também os fatores e contextos, externos e internos ao campo sociológico, que favoreceram esse processo.
A sociologia da cultura foi, tal como todas as restantes especialidades entretanto estabelecidas, afetada pelo desenvolvimento tardio da sociologia portuguesa, extremamente limitada nos seus passos por uma ditadura de quase cinco décadas, que não permitiu o florescimento que a disciplina teve noutros países ocidentais ao longo do século XX e gerou o que Adérito Sedas Nunes chamou “desperdício de vocações sociológicas” (Nunes, 1963, p. 461). Assim, quando, em 1979, aparece a primeira publicação de sociologia da cultura em Portugal, as suas homólogas nos países europeus de referência estavam num patamar de desenvolvimento muito superior. Nesse mesmo ano, Pierre Bourdieu publicava La Distinction. Critique Sociale du Jugement, obra fundamental da sociologia, que analisa de forma inovadora as práticas e gostos culturais dos franceses e, no Reino Unido, autores de referência dos estudos culturais tinham publicado, desde o final da década de 1950, estudos igualmente influentes, como é o caso de Culture and Society, de Raymond Wiliams, The Making of the English Working Class, de Edward P. Thompson ou, mais tarde, de Resistance Through Rituals. Youth Subcultures in Post-War Britain, de Stuart Hall.
Na sua fase de arranque, a sociologia da cultura deve muito ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), a primeira instituição a dedicar-se a este domínio de pesquisa, e a Maria de Lourdes Lima dos Santos, pioneira na aprendizagem, investigação e ensino e autora das primeiras publicações académicas da especialidade — exemplo, neste caso, para retomar a ideia de Sedas Nunes, de uma vocação sociológica não desperdiçada. A primeira dessas publicações ainda é, de resto, do tempo do GIS, no qual Maria de Lourdes Lima dos Santos entrara em 1966. GIS que só viria a transformar-se em ICS-UL em 1982, atingindo por essa via uma muito almejada estabilidade institucional. Será a mesma Maria de Lourdes Lima dos Santos que irá criar e lecionar a partir de 1983 a primeira cadeira de sociologia da cultura do país, oferecida na licenciatura em Sociologia do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, de cujo corpo docente faziam parte também outros investigadores do ICS-UL. E será ainda ela a defender, em 1985, no Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, a primeira tese de doutoramento em sociologia da cultura, com o título Intelectuais Portugueses na Primeira Metade de Oitocentos, um estudo de sociologia histórica sobre a formação, nesse período, de uma nova “intelligentsia crítica e criativa” para o qual a autora se socorre de uma amostra de cinquenta intelectuais, cujas origens e trajetórias sociais, formação académica, profissionalização e instâncias de consagração são identificadas. Sem prejuízo de outras razões terem contribuído também para a opção por um objeto histórico, uma tal opção não pode ser dissociada da circunstância de se estar então numa fase de institucionalização inicial da investigação sociológica, e também numa fase em que as políticas científicas em Portugal eram incipientes, o que significa que não se dispunha de financiamento regular para operações custosas de recolha alargada de informação primária, como passou a ser possível mais tarde.
Se durante a sua primeira década de existência, entre 1979 e 1989, a especialidade permaneceu pouco ativa — tirando os trabalhos da fundadora, só há, nessa década, as primeiras publicações de Idalina Conde, docente do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, que tinha sido aluna de Maria de Lourdes Lima dos Santos, e com quem trabalharia durante anos —, as coisas mudam a partir da década de 1990, sob o efeito de um conjunto de fatores externos ao campo sociológico e ao campo científico no seu conjunto. Em concreto, podemos identificar três fatores, dois que favoreceram o desenvolvimento da sociologia como um todo, e por consequência também o desenvolvimento da sociologia da cultura, e um que teve uma influência específica na afirmação desta especialidade. O primeiro fator foi a expansão do sistema universitário português, ao nível das licenciaturas, mestrados e, mais tarde, de programas de doutoramento, expansão que abrangeu todas as áreas académicas, incluindo a sociologia, criando assim as condições para que novas gerações de sociólogos se formassem, parte dos quais enveredariam pela vida universitária e pela investigação. O segundo fator foi o desenvolvimento do sistema científico nacional por via de políticas públicas inclusivas, que não deixaram de fora, antes contemplaram, as ciências sociais em igualdade de estatuto com outras áreas disciplinares. O terceiro fator foi o aumento da procura da sociologia por parte das autoridades públicas, o que, no caso da sociologia da cultura, veio a tomar a forma da constituição de um observatório, em 1996, que teve um papel decisivo na consolidação desta especialidade (Machado, 2020).
Foi neste contexto que, ao longo dos anos de 1990, se formou uma nova geração de doutorados em sociologia da cultura, que ajudaram a dinamizar equipas especializadas neste domínio em vários centros de investigação, eles próprios em processo de consolidação por efeito de políticas científicas favoráveis. Fazem parte dessa geração Augusto Santos Silva, da Universidade do Porto, Alexandre Melo e António Firmino da Costa, do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa e Eduardo Jorge Esperança, da Universidade de Évora. No caso de Augusto Santos Silva e de António Firmino da Costa os objetos escolhidos foram as culturas populares, no de Alexandre Melo, o mercado da arte e no de Eduardo Jorge Esperança, o património e as políticas culturais.
A presença em unidades de pesquisa de todo o país, em particular nas universidades públicas em que é lecionada sociologia ao nível graduado e pós-graduado, foi, com efeito, um aspeto fundamental do processo de institucionalização da sociologia da cultura. Especificando, podemos dizer que esse aspeto se desdobra em quatro planos: i) aumento do número de centros de investigação com enfoque nas temáticas culturais; ii) interpenetração entre especialidades sociológicas, no contexto da cada vez maior diferenciação interna de abordagens e temas, em que uma determinada especialidade vai muitas vezes beber a outras; iii) interdisciplinaridade, mais presente em alguns centros do que noutros e também com configurações diferentes, mas que faz jus a uma tradição histórica da análise da cultura em várias ciências sociais; e iv) internacionalização, através da cada vez mais frequente formação de equipas com investigadores estrangeiros e portugueses e consequente formação de redes, partilha de dados e divulgação de resultados no plano internacional.
No curso do processo de institucionalização da sociologia portuguesa, a sociologia da cultura foi-se afirmando em cada vez mais lugares e, chegados a uma fase de institucionalização avançada da disciplina, verificamos que a especialidade é pesquisada por equipas multigeracionais nos principais centros de investigação sociológica do país. Em termos históricos, o destaque vai, como já vimos, para o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), logo seguido pelo Centro de Investigação e Estudos em Sociologia do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa (CIES-Iscte). O ICS-UL tem investigadores que muito contribuíram para o avanço do domínio, desde logo a fundadora Maria de Lourdes Lima dos Santos, mas também José Machado Pais, da geração seguinte, com contributos no tema das práticas culturais, e Teresa Duarte Martinho, de uma geração posterior, que tem desenvolvido pesquisa regular sobre instituições, atividades e políticas culturais e sobre profissionais da cultura. No final de 2020, o grupo de investigação “Identidades, Culturas, Vulnerabilidades” do ICS-UL, assente em métodos etnográficos, era coordenado pela antropóloga Susana de Matos Viegas e contava maioritariamente com outros antropólogos e “sociólogos inclinados para a antropologia”.
O CIES-Iscte, por sua vez, sendo a unidade de investigação que concentra o maior número de sociólogos a nível nacional, tem uma equipa ampla, reunida no grupo de investigação “Sociedade do Conhecimento, Competências e Comunicação”, muito abrangente quanto ao âmbito temático, âmbito que se estende à sociologia da cultura. Além dos contributos pioneiros de António Firmino da Costa sobre as culturas populares urbanas, de Idalina Conde, no estudo da arte, artistas e públicos, e de Alexandro Melo sobre os mercados da arte, há os trabalhos de Eduardo de Freitas, em colaboração com Maria de Lourdes Lima dos Santos, sobre práticas de leitura. O centro acolheu, depois da extinção do Observatório das Atividades Culturais, em 2013, os principais colaboradores desse observatório, com destaque para José Soares Neves e Rui Telmo Gomes, autores ou coautores de um grande número de publicações sobre vários temas desta especialidade.
Depois do ICS-UL e do CIES-Iscte, cronologicamente falando, a sociologia da cultura encontrou também um lugar e equipas especializadas no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC). No IS-UP, o grupo de investigação “Recomposições Sociais, Cultura e Território” tem como principais objetivos a análise das políticas culturais, dos modos de relação entre criação cultural e artística e os contextos sociais envolventes (com especial atenção às culturas juvenis urbanas e expressões musicais alternativas) e a compreensão dos processos criativos e organizacionais no meio artístico. Este grupo de investigação toma frequentemente como terreno empírico a região Norte em geral e, em particular, a cidade do Porto. Entre os investigadores que compõem o grupo destaca-se, pela produção profícua, Augusto Santos Silva, focado inicialmente nas culturas populares e, mais tarde, nas práticas e, especialmente, nas políticas culturais; mas também Helena Santos, com investigação sobre públicos da cultura; João Teixeira Lopes, com pesquisas sobre públicos da cultura e práticas culturais na região Norte e também autor ou coautor de vários estudos feitos no quadro do Observatório das Atividades Culturais; Natália Azevedo, focada não só nos públicos e na receção cultural, mas também no turismo cultural e desenvolvimento local; e Paula Guerra, que tem marcado o seu espaço na sociologia da cultura através do estudo sistemático das culturas juvenis contemporâneas, especialmente as ligadas à música, como os movimentos punk e rock.
Tabela 1 Uma cronologia da sociologia da cultura em Portugal (1979-2018)
No caso do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o grupo de investigação “Cidades, Culturas e Arquitetura” tem como principais focos temáticos o património e as culturas espaciais, assim como a cultura e o desenvolvimento urbano e as políticas culturais associadas a esse desenvolvimento, e ainda o turismo nas cidades, tópicos que, em muitos aspetos, tocam a sociologia urbana. Destacam-se, nesta unidade de investigação, Carlos Fortuna, precursor nesta linha de estudos, em particular em cidades médias, nomeadamente em Coimbra; Claudino Ferreira, que tem feito trabalho conjunto com Carlos Fortuna e fez uma investigação aprofundada sobre a Expo 98 enquanto megaevento cultural e as representações que nela se construíram sobre Portugal; Paula Abreu, cujos interesses se estendem também à produção e consumos culturais, especialmente relacionados com a música; e Pedro Quintela, com interesses nas políticas culturais, produção cultural e culturas urbanas.
O quinto conjunto de investigadores dedicados à sociologia da cultura é o da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) e, diferentemente dos casos anteriores, estes investigadores encontram-se dispersos por várias unidades de investigação daquela Faculdade — Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Instituto de Comunicação, Instituto de História Contemporânea e Instituto Português de Relações Internacionais. Contam-se, neste grupo, Diogo Ramada Curto, João Sedas Nunes, João Pedro George, José Alberto Simões, Dalila Cerejo, Patrícia Pereira, Cláudia Madeira e Nuno Medeiros. No CICS.NOVA existe um grupo de investigação denominado “Educação, Conhecimento e Cultura”, mas o seu trabalho está mais ligado à educação do que à cultura. Os temas estudados pelos investigadores da NOVA FCSH são muito diversos: práticas culturais em geral e ligadas ao livro e à leitura, em particular; escritores; língua portuguesa e seus leitores; artes performativas; rap como cultura juvenil; graffiti.[3]
Além do trabalho realizado nos centros de investigação ao longo dos anos, a constituição, em 1996, do Observatório das Atividades Culturais (OAC) deu um grande contributo para a consolidação da sociologia da cultura como especialidade sociológica. O OAC, financiado pelo Ministério da Cultura, com a direção científica do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, através de Maria de Lourdes Lima dos Santos — que assim prolonga o seu protagonismo na formação e desenvolvimento desta especialidade — e o apoio do Instituto Nacional de Estatística, surge com a missão de colmatar a necessidade de conhecimento científico sobre o setor cultural, de modo a apoiar a conceção, implementação e avaliação de políticas públicas. Foi justamente sobre este tema que versou o seu primeiro estudo de grande envergadura, publicado em 1998 com o título As Políticas Culturais em Portugal. Além dos temas diversificados da sua agenda de investigação — instituições e atividades culturais, profissionais da cultura, políticas culturais, públicos da cultura —, o observatório construiu e sistematizou indicadores sobre o setor que até então não estavam disponíveis e foram fundamentais para muitos dos estudos realizados.
Até à sua extinção em 2013 — depois da direção de Maria de Lourdes Lima dos Santos, entre 1996 e 2007, o OAC foi dirigido por José Machado Pais e por José Luís Garcia, ambos do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa — o Observatório das Atividades Culturais desenvolveu 45 projetos e produziu mais de 70 publicações, materializadas em suportes editoriais próprios (coleção OBS-Pesquisas, “Docs” e Revista OBS); promoveu a participação em redes europeias de pesquisa; desenvolveu redes de relações entre sociólogos e agentes culturais; e aproximou o campo sociológico do campo político, em especial, das políticas públicas na área cultural, a nível nacional e local. Este último ponto coloca a questão do estatuto da pesquisa por encomenda na atividade dos sociólogos e, por extensão, o problema da autonomia do campo sociológico em face de instâncias externas, neste caso, o campo político. Trata-se de uma questão complexa, um objeto por excelência para a sociologia da sociologia, em que encontramos sociólogos que manifestam fortes reservas relativamente à possibilidade de essa autonomia ser mantida num contexto deste tipo e outros que consideram que o trabalho por encomenda em nada belisca o exercício do ofício de sociólogo segundo os melhores padrões deontológicos e teórico-metodológicos (Machado, 2020). Independentemente deste debate, que aqui não cabe desenvolver, é de notar que a extinção do OAC não pode ser dissociada do lugar que a cultura ocupa nas prioridades de política pública e do investimento que nesse quadro lhe é destinado. Dito por outras palavras, a extinção não é surpreendente se pensarmos que Portugal é dos países europeus que menos investe na área cultural.[4]
No final de 2018, cinco anos depois da extinção do OAC, foi constituído o Observatório Português das Atividades Culturais (OPAC) no Centro de Investigação e Estudos em Sociologia do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, que acolheu vários membros do descontinuado OAC, um dos quais, José Soares Neves, assumiu a direção da nova estrutura. Além deste, fazem parte do OPAC outros membros da anterior equipa do OAC, como Rui Telmo Gomes, Maria João Lima e Jorge Santos, e investigadores que colaboraram em vários estudos lá realizados, como António Firmino da Costa, aqui na qualidade de membro do Conselho Consultivo, do qual faz também parte Maria de Lourdes Lima dos Santos. Os principais objetivos do OPAC são a produção e divulgação pública de dados sobre os diversos domínios culturais, a contribuição para os debates em torno da cultura e o acompanhamento e avaliação de políticas públicas. Uma diferença fundamental entre o OAC e o OPAC, embora haja uma subentendida passagem de testemunho entre os dois, é que o OPAC não conta com o financiamento regular do Ministério da Cultura de que aquele beneficiava, dispondo apenas do financiamento atribuído, caso a caso, aos projetos que desenvolve.
O trabalho desenvolvido nos centros de investigação de todo o país e o impulso adicional dado pelo Observatório das Atividades Culturais — e, mais recentemente, a uma escala ainda limitada, pelo Observatório Português das Atividades Culturais —, fizeram com que o volume de publicação em sociologia da cultura crescesse na década de 1990 e mais ainda nas décadas seguintes, em contraste com os anos de 1980, em que, como nota Santos (2012), se observou um crescimento muito lento, explicado pela falta de encomendas e respetivo financiamento e também, acrescentamos nós, pela falta de financiamento para a investigação científica em geral, sociologia incluída. A Bibliografia Temática e Cronológica da Investigação Sociológica em Portugal (1964-2018), compilada por Machado (2020), mostra claramente essa evolução do volume de publicação. A bibliografia, com 2.074 referências, da autoria ou coautoria de sociólogos, inclui artigos publicados em 16 revistas científicas editadas em Portugal, livros e capítulos de livros de editoras generalistas e editoras especializadas de ciências sociais, e teses de doutoramento. A análise da distribuição dessas 2.074 referências ao longo do tempo revela que 72% são datadas de 2000 em diante e 37% são dos anos de 2010 a 2018. Na sociologia da cultura, os valores homólogos são 70% e 31%, respetivamente.
Outra forma de ilustrar o grande aumento do volume de produção científica nesta área é a contabilização das teses de doutoramento em sociologia da cultura concluídas entre 2000 e 2018, contando apenas as que foram publicadas em livro e as que, não o tendo sido, têm como autores docentes de carreira do ensino superior. Trata-se de um conjunto numeroso em que se conta a tese de João Teixeira Lopes (2000), sobre práticas culturais no Porto; a de Jorge Manuel Martins (2005), sobre os profissionais do setor do livro; a de Claudino Ferreira (2006), sobre as representações de Portugal no contexto da Expo 98; a de Vera Borges (2007), sobre o mundo do teatro; a de Cláudia Madeira (2007), sobre o hibridismo nas artes performativas; a de Luís Melo Campos (2008), sobre músicos e modos de relação com a música; a de José Alberto Simões (2010), sobre o hip-hop; a de Paula Abreu (2010), sobre a indústria musical e o mercado da música; a de Dulce Magalhães (2010), sobre a cultura do vinho; a de Teresa Duarte Martinho (2011), sobre os mediadores culturais; a de André Brito Correia (2012), sobre a experiência teatral; a de João Pedro George (2013), sobre literatura “maldita”; a de Paula Guerra (2013), sobre o mundo do rock alternativo; a de Idalina Conde (2014), sobre a singularidade dos artistas; a de Natália Azevedo (2014), sobre políticas culturais e desenvolvimento local na Área Metropolitana do Porto; a de Nuno Amaral Jerónimo (2015), sobre o humor; a de Manuela Reis (2016), sobre cidadania e património; e a de Nuno Medeiros (2018), sobre o setor da edição e difusão do livro. São, na grande maioria dos casos, teses elaboradas por docentes e investigadores universitários, de todas as regiões do país, especializados no domínio da cultura, e que dão testemunho, tanto os autores como as teses, do grau de consolidação atingido por esta especialidade sociológica.
Um último aspeto da institucionalização da sociologia da cultura é o relativo aos eventos científicos de apresentação e debate de resultados de investigação, sejam eles eventos generalistas com espaço para esta especialidade, sejam eventos específicos deste campo temático em concreto, de âmbito nacional ou internacional. Esses eventos têm ocorrido em grande número, por iniciativa de instituições diversas, e por essa razão a sua análise extensiva seria certamente proveitosa. Mas porque tal análise não cabe no âmbito deste artigo, consideremos somente os 11 congressos nacionais organizados desde 1988 pela Associação Portuguesa de Sociologia. Verificamos que em todos eles a sociologia da cultura esteve representada em mesas próprias e que, nesse âmbito, foram apresentadas e publicadas nas respetivas atas perto de duas centenas de comunicações. A presença regular e ativa da sociologia da cultura na esfera do associativismo científico vem a resultar na constituição, em 2011, na mesma Associação Portuguesa de Sociologia, da secção temática “Arte, Cultura e Comunicação”, que teve como primeiros coordenadores Claudino Ferreira da Universidade de Coimbra, Paula Guerra, da Universidade do Porto e Vera Borges do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa.
A construção de uma agenda e os seus contextos
Como se vê, no espaço de quatro décadas, entre a primeira publicação em 1979 e o final dos anos de 2010, a sociologia da cultura, favorecida por fatores externos e internos ao campo sociológico, foi-se consolidando e tornou-se uma especialidade plenamente institucionalizada, no plano do ensino, da investigação, da publicação, do associativismo científico e da internacionalização. Neste contexto, é interessante, para o exercício que aqui fazemos de aplicação da perspetiva sociológica à própria sociologia, analisar a agenda de investigação da sociologia da cultura, que temas a compõem, que volume de produção têm esses temas, por que ordem foram aparecendo e que trabalhos de referência podemos sinalizar em cada um deles. Diga-se, aliás, que os temas escolhidos e a frequência do seu estudo não são, obviamente, independentes das escolhas estratégicas dos investigadores, que visam maximizar o seu capital científico, nem dos contextos institucionais em que eles operam. Basta pensar como o Observatório das Atividades Culturais marcou fortemente a agenda desta especialidade, seja pelo que nela incluiu, seja pelo que não incluiu. É essa análise geral sobre a agenda da sociologia da cultura que apresentamos neste ponto com base na informação da Bibliografia Temática e Cronológica da Investigação Sociológica em Portugal (1964-2018) sistematizada por Machado (2020).
De acordo com a nossa categorização, e outras seriam naturalmente possíveis, a sociologia da cultura compreende oito temas, apresentados na Tabela 2, no qual indicamos também as primeiras publicações e obras de referência de cada tema, sejam estas as teses de doutoramento de docentes e investigadores de carreira, sejam estudos de outra natureza, marcantes pelo seu pioneirismo ou exaustividade ou por ambas as coisas. Os temas são, por ordem cronológica do seu aparecimento: “intelectuais, artistas e escritores”, “públicos da cultura”, “políticas culturais”, “práticas culturais”, “instituições e atividades culturais”, “dinâmicas culturais das cidades”, “profissionais da cultura” e “culturas populares”.
Trata-se, como se vê, de uma agenda diversificada e essa diversidade não surpreende se tivermos em conta que a sociologia da cultura, com 198 referências, é o segundo mais produtivo dos 16 domínios consolidados incluídos na Bibliografia referida. Mas é também uma agenda assimétrica. Com efeito, 87% dessas referências são sobre instituições, atividades, políticas, autores, práticas e públicos das “culturas cultivadas”, o que significa que o igualmente vasto e heterogéneo universo das “culturas populares” só recebe a atenção de 13% das publicações desta especialidade, mostrando que, salvo honrosas exceções, esse universo não tem interessado aos sociólogos. Mesmo que se possa argumentar, e pode, que é redutor categorizar a cultura nestes termos, distinguindo apenas dois tipos numa realidade complexa, é indesmentível que a atenção sociológica está fortemente concentrada num determinado universo cultural, e isso é um ponto que merece reflexão. Mas comecemos por analisar os temas em que incide essa esmagadora maioria de publicações que privilegia um conceito letrado de cultura para voltarmos depois à questão das culturas populares. Em termos ao volume de publicação, há um tema, “instituições e atividades culturais”, que se destaca de todos os restantes; há dois temas, “políticas culturais” e “práticas culturais”, com produção significativa, mas num patamar abaixo do anterior; e há quatro temas, “intelectuais, artistas, escritores”, “públicos da cultura”, “dinâmicas culturais das cidades” e “profissionais da cultura”, com menos publicações, mas não ocasionais.
As pesquisas sobre “instituições e atividades culturais”, que só apareceram em meados dos anos de 1990, mas se tornaram as mais numerosas nesta especialidade, abrangem uma grande variedade de assuntos: grandes eventos, como a Expo 98; entidades artísticas e culturais em geral e museus, galerias de arte e bibliotecas, em particular; serviços educativos de instituições culturais; setor do livro; artes plásticas; artes performativas globalmente consideradas ou, mais especificamente, a música e o teatro, ambos objeto de várias pesquisas.
Nos temas “políticas culturais” e “práticas culturais” — que começaram a ser estudadas antes do tema anterior, mas têm um volume de publicação comparativamente menor —, encontra-se também uma grande variedade de tópicos. No caso das políticas culturais, temos trabalhos sobre mecenato; democratização cultural; descentralização cultural; políticas à escala nacional, em áreas metropolitanas e à escala local; políticas e legislação sobre determinadas atividades, como o património ou o setor do livro; ou ainda despesas dos municípios com cultura. Quanto ao tema das “práticas culturais” — as da população em geral ou de certos segmentos dela e não as atividades de instituições culturais e artísticas —, encontramos, desde o início da década de 1990, pesquisas recorrentes sobre práticas de leitura; práticas culturais em geral, nas cidades de Lisboa e Porto; práticas culturais de determinados grupos, como os estudantes universitários; e outras práticas e consumos culturais, como a fotografia, a música, os consumos eruditos ou as sociabilidades no contexto de grandes eventos culturais.
No que respeita aos quatro temas menos estudados, mas em que há, ainda assim, regularidade de publicação, encontram-se, no tema “intelectuais, artistas, escritores”, além da tese de doutoramento fundadora de Maria de Lourdes Lima dos Santos, trabalhos sobre o meio literário em meados e na segunda metade do século XX; sobre o campo intelectual no Porto, também em meados do século XX, e a sua relação com o campo político do Estado Novo; e sobre artistas plásticos, fotógrafos e escritores, individualmente considerados. Sobre “públicos da cultura”, tema que se cruza parcialmente com o das práticas culturais — embora os estudos sobre públicos visem sobretudo determinar os seus perfis sociais e, em alguns casos, os seus modos de relação com os conteúdos culturais —, fizeram-se pesquisas sobre públicos em geral, incluindo os de grandes eventos como o Porto, Capital Europeia da Cultura, 2001; públicos em localidades específicas; públicos de exposições de artes plásticas, de festivais de teatro e dos Teatros Nacionais; e públicos do cinema em contexto cineclubístico. No tema das “dinâmicas culturais das cidades”, abordam-se aspetos como o turismo cultural, o entretenimento, o lazer, os equipamentos culturais das cidades e suas utilizações ou ainda práticas culturais específicas em zonas periféricas. No tema dos “profissionais da cultura”, finalmente, há pesquisas sobre profissionais do disco e do livro, tradutores, mediadores culturais, bailarinos, encenadores, atores, programadores culturais, leitores de língua e cultura portuguesa, monitores de exposições e ainda sobre aspetos do trabalho, qualificação e profissionalização associados às atividades culturais.
Tabela 2 Temas, obras de referência e autores da sociologia da cultura em Portugal
Nota: nas obras de referência que são teses de doutoramento, escolhemos a data da publicação em livro, sempre que essa publicação ocorreu
Vista, em grandes linhas, a agenda da sociologia da cultura no que toca ao universo das chamadas culturas cultas, sobre o qual incidem, como referimos, 87% das publicações desta especialidade registadas na Bibliografia Temática e Cronológica da Investigação Sociológica em Portugal (1964-2018) Machado (2020), voltemos à questão das culturas populares. Se as primeiras publicações sobre culturas populares surgiram quase ao mesmo tempo que as publicações pioneiras sobre culturas cultas, e se houve regularidade de publicação sobre o tema durante as décadas de 1980 e 1990, o número de estudos sobre essas formas de cultura, quer na vertente urbana, quer na vertente rural, caiu a pique depois disso, não havendo registo de publicações posteriores a 2010. Os tópicos estudados neste tema compreendem as festividades rurais, o fado, o artesanato, o associativismo em meio popular, as sociabilidades urbanas de cafés e tabernas, a cultura do consumo de vinho, o lazer, os grupos de música tradicional, a tauromaquia e, de modo mais aprofundado, as práticas e identidades culturais em meios populares — em concreto, um bairro histórico de Lisboa e uma freguesia do concelho de Guimarães — sobre os quais dois sociólogos de referência no contexto nacional fizeram as suas teses de doutoramento.
Julgamos que o esquecimento ou desinteresse relativamente às culturas populares se devem a fatores institucionais do campo sociológico, mais especificamente da sociologia da cultura enquanto especialidade; e, por outro lado, a fatores disposicionais dos sociólogos que trabalham neste domínio. Do lado dos fatores institucionais, não sendo o único ponto a ter em consideração (haveria que perguntar também que lugar têm as culturas populares no ensino da sociologia e nas prioridades dos centros de investigação), sobressai o efeito que a constituição do Observatório das Atividades Culturais, em 1996, teve na agenda de investigação da sociologia da cultura. Ao dedicar-se exclusivamente ao universo das culturas cultas, e tendo promovido durante anos muitos estudos sobre diversos aspetos desse universo, o OAC deu-lhe uma visibilidade sociológica — que se soma ao prestígio social de que esse universo beneficia —, que gerou, indiretamente, invisibilidade das culturas populares. Mas os fatores institucionais não explicam tudo. A explicação passa também pelos habitus científicos dos sociólogos da cultura, que, pelos vistos, tirando os casos referidos, não incorporam disposições que os levem a interessar-se por essas culturas, apesar da sua vastidão e heterogeneidade. Podemos pôr a questão da seguinte maneira: se o OAC não tivesse existido ter-se-iam feito mais estudos sobre culturas populares? A julgar pelos temas dos trabalhos feitos fora do âmbito do Observatório, e também foram muitos, não é de crer que isso acontecesse.
Considerações finais
A sociologia da cultura é uma especialidade sociológica estabelecida nos planos do ensino, investigação, publicação, associação e internacionalização. A análise sociohistórica apresentada nestas páginas dá a conhecer a génese desta especialidade e o progressivo desenvolvimento e consolidação das bases institucionais que garantiram o seu estabelecimento como um dos domínios consolidados mais produtivos da investigação sociológica em Portugal. Há equipas multigeracionais nos principais centros de pesquisa do país dedicadas a esta especialidade, todos os anos os programas de doutoramento em sociologia recebem estudantes interessados em fazer pesquisa neste domínio e isso garante as condições fundamentais de reprodução deste subcampo de pesquisa. Diga-se, de resto, que o estabelecimento desta especialidade se estende à profissionalização extra-académica, em que é notória a presença de sociólogos na organização e planeamento do sector cultural, na gestão de organizações culturais e atividades conexas (Ganga, 2018).
Entre as bases institucionais que favoreceram a institucionalização da sociologia da cultura avulta o Observatório das Atividades Culturais, financiado por instituições governamentais, que, entre a data da sua criação e da sua extinção, foi responsável pela realização de um grande número de estudos, vários deles pioneiros, sobre uma diversidade de temas. A sociologia da cultura em Portugal é, por isso, um daqueles casos em que o desenvolvimento de uma especialidade sociológica é indissociável do movimento de procura de conhecimento sociológico do lado das políticas públicas. Sem a constituição de um observatório com financiamento estatal para estudar determinados aspetos da realidade cultural do país, que interessava aos governos conhecer, esta especialidade ter-se-ia desenvolvido menos. Além disso, ao terem sido solicitados ao Observatório estudos sobre determinados temas e não sobre outros, gerou-se um efeito de definição de agenda, que significa inevitavelmente que há assuntos que ficaram nessa agenda e outros não, como é manifestamente o caso das culturas populares urbanas e rurais. A génese e desenvolvimento da sociologia da cultura em Portugal é também, por isso, um caso de estudo, que está por fazer, sobre a relação entre o campo sociológico e o campo político e sobre a questão das condições de autonomia do primeiro em relação ao segundo.
Como em qualquer outra especialidade estabelecida e com um volume de publicação elevado, a sociologia da cultura foi-se desdobrando sucessivamente em novos temas e pode admitir-se que, seguindo a tendência de especialização inscrita no funcionamento dos campos científicos em geral, alguns desses temas venham a autonomizar-se como novas especialidades, por exemplo, uma sociologia da arte ou uma sociologia da música, tal como existem noutras sociologias, mais antigas, demograficamente maiores e institucionalmente mais diferenciadas do que a sociologia portuguesa. Por outro lado, em sentido contrário à fragmentação sucessiva dos campos de pesquisa — tendência negativa, na medida em que acabe por criar fronteiras internas à própria disciplina —, podemos perceber zonas de convergência da sociologia da cultura com outras especialidades sociológicas, como a sociologia urbana, a propósito das dinâmicas culturais das cidades; com a sociologia da comunicação, a propósito das práticas culturais online; ou com a sociologia do trabalho, organizações e profissões, a propósito dos profissionais da cultura e suas condições de atividade.
Referências
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Data de submissão: 28/07/2021 | Data de aceitação: 14/12/2021
Notas
Por decisão pessoal, os/as autores/as do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.
[1]A não esquecer, também, os contributos da antropologia a nível metodológico, sobretudo o método etnográfico, utilizado na análise e comparação de culturas diferentes. Esta herança é notória até na sociologia da cultura contemporânea, em que predominam os métodos de análise qualitativos.
[2]A sociologia da cultura, e isso confirma a sua consolidação como especialidade sociológica, tem sido objeto de sucessivos balanços temáticos (Conde, 1997, 2001; Fortuna et al., 1999; Martinho, 2008) e também de um balanço autobiográfico (Santos, 2012).
[3]Além do trabalho dos centros referidos, que têm a sociologia como área científica dominante ou uma das áreas dominantes, e fazem parte, por isso, do campo sociológico, é de mencionar o trabalho sobre temas culturais de alguns sociólogos integrados no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, uma unidade de pesquisa do campo das ciências da comunicação e estudos culturais. É o caso de Albertino Gonçalves, Jean-Martin Rabot, Rita Ribeiro e Emília Araújo.
[4]Antecedido pela Grécia, Portugal é o 2º país da UE, em igualdade com o Chipre e a Itália, que menos investe na cultura, cerca de 0,6% do PIB, segundo o Eurostat (2020).
Autores: Bruno Baptista, Telma Talina Mendes e Fernando Luís Machado