N.º 28 - abril 2022
Mara Clemente
FUNÇÕES: Concetualização, Metodologia, Investigação, Análise formal, Redação do rascunho original
FILIAÇÃO: Iscte — Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos de Sociologia.
Av. das Forças Armadas, 1649-026, Lisboa, Portugal
E-mail: mara.clemente@iscte-iul.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5038-7328
Resumo: O artigo analisa o papel das organizações não governamentais (ONG) na construção do campo de combate ao tráfico de pessoas, isto é, na conceituação do tráfico e das suas vítimas e na elaboração de políticas e práticas para o combater. Mobilizando entrevistas, observação e investigação documental e adotando uma perspetiva histórica, o artigo incide na análise da experiência portuguesa. O artigo argumenta que, em contextos caracterizados por um alto nível de institucionalização do campo de combate ao tráfico e por uma fragilidade estrutural da sociedade civil organizada, as ONG envolvidas no processo de terceirização dos serviços antitráfico não interpelam as políticas e as práticas do combate ao tráfico — incluindo a controversa abordagem securitária, focada na persecução dos traficantes, que caracteriza o combate ao tráfico. Tais práticas incluem o silenciamento de qualquer debate sobre a prostituição, pelo menos no aparelho de combate ao tráfico.
Palavras-chave: tráfico de pessoas, ONG, estudos críticos do tráfico, Portugal.
Abstract: This article analyses the role of non-governmental organizations (NGO) in the construction of the counter-trafficking field, that is, in conceptualizing human trafficking and its victims, and developing policies and practices to combat it. Using interviews, observation and documentary research, and adopting a historical perspective, this article analyses the Portuguese experience. This article argues that, in contexts with a high level of institutionalization in the counter-trafficking field and a profound weakness of civil society organizations, the NGOs involved in outsourcing counter-trafficking services do not challenge counter-trafficking policies and practices — including a controversial security-oriented approach, focused on prosecuting traffickers. Such practices include silencing any debate about prostitution, at least in the counter-trafficking field.
Keywords: human trafficking, NGO, critical trafficking studies, Portugal.
Introdução
Nas últimas décadas, o “tráfico de pessoas” tem sido repetidamente descrito como uma questão global fundamental.[1] Vários instrumentos internacionais contra o tráfico reconhecem às organizações não governamentais (ONG) um papel essencial na sua prevenção, na proteção das suas “vítimas” e na persecução do crime. O combate ao tráfico é também um “campo” (Bourdieu, 1984) atravessado por inúmeras tensões. Dentro dele, diferentes definições de tráfico e prioridades conflituantes têm gerado historicamente fortes contrastes. Em particular, há duas questões principais abertas nos debates sobre tráfico. Uma diz respeito às tensões entre o objetivo da proteção de “pessoas traficadas” e o da perseguição do crime do tráfico e, em particular, a histórica subordinação do primeiro objetivo ao segundo. Uma segunda tensão põe em causa a relação entre o tráfico — e, em particular, o tráfico para exploração na prostituição — e a prostituição. Trata-se, neste caso, de duas questões identificadas em conformidade com os lobbies neo-abolicionistas, mas que são distintas de acordo com os vários movimentos pró-direitos das/os trabalhadoras/es do sexo. Em particular, ativistas e organizações neo-abolicionistas — entre as quais as feministas ditas radicais — concebem a prostituição como uma expressão da violência patriarcal masculina contra as mulheres. Elas descrevem a migração para o trabalho sexual como tráfico e, considerando a demanda de prostituição a principal causa do tráfico, vêem a abolição da prostituição como a sua solução. No entanto, ativistas e organizações pró-direitos das/os trabalhadoras/es — incluindo ativistas e organizações feministas — enquadram a prostituição como uma forma de trabalho e argumentam que a migração para o trabalho sexual é tráfico apenas quando mulheres, homens e pessoas trans são forçados a se prostituir contra a sua vontade. Elas pedem a descriminalização ou legalização da prostituição e a atribuição de direitos civis, laborais e humanos aos trabalhadores/as do sexo como meio de lidar com os abusos no mercado do sexo e de combater o tráfico.[2]
Estas duas questões constituem alguns dos principais elementos críticos no campo português de combate ao tráfico, acabando por colocar em causa os direitos das pessoas traficadas (Clemente, 2017b). Focando-se no caso português, o artigo examina o papel das ONG na construção do campo de combate ao tráfico de pessoas e, em particular, na conceptualização do tráfico; a elaboração das atuais políticas e práticas de combate ao tráfico; e o potencial e as limitações das ONG para desafiá-las.[3] Ao questionar as ONG ativas no combate ao tráfico e, em particular, a sua contribuição para discussões, como aquelas centradas na relação entre tráfico e prostituição, bem como aquelas relativas às tensões entre os direitos das pessoas traficadas, por um lado, e as respostas dos governos, por outro lado, o artigo visa reforçar os estudos críticos sobre tráfico. O artigo também procura contribuir para o debate sobre a independência política e moral das ONG em relação aos governos e organizações internacionais, e o seu papel e importância no estabelecimento ou desafio das atuais formas de governo do tráfico.
O artigo argumenta que, em contextos caracterizados pela forte institucionalização do combate ao tráfico, bem como pela fraqueza estrutural da sociedade civil organizada, a “ONG-ificação” do campo de combate ao tráfico permanece incapaz de questionar o seu governo controverso. Tanto a abordagem centrada na segurança nacional quanto a presença de ONG constituem uma forma de “doxa” no campo de combate ao tráfico neoliberal. As ONG minimizam qualquer forma de luta ou resistência em favor da justiça social para as pessoas traficadas e, seguindo uma lógica disciplinar, parecem trazer o campo de combate ao tráfico perto do funcionamento de um “aparelho” — isto é, um “estado patológico” em que a instituição dominante (neste caso, o Estado) consegue impedir qualquer reação ou oposição articulada pelos atores que governa (aqui, as ONG de combate ao tráfico), privando o campo de qualquer luta construtiva e dialética (Wacquant, 1989). Entre os debates em que as ONG permanecem silenciadas estão aqueles relativos à prostituição.
Os estudos críticos de tráfico e as ONG de combate ao tráfico
Atualmente, existe um amplo consenso entre atores estatais e não estatais, no que diz respeito ao combate ao “tráfico”, discursivamente enquadrado como uma violação criminosa dos direitos humanos. No entanto, desde o final da década de 1990, um corpo crescente de estudos “anti antitráfico” (Marcus & Snajdr, 2013) tem chamado a atenção para a agenda controversa relacionada com o combate ao tráfico.
Historicamente focados no tráfico de mulheres no mercado do sexo, os instrumentos normativos e políticos e os programas de combate ao tráfico têm sido criticados, em primeiro lugar, por aquilo que deixam de lado: a proteção das/os profissionais do sexo (Doezema, 2010). Duras críticas envolvem o foco de combate ao tráfico nos interesses de segurança dos Estados-nação. Estes últimos têm colocado entre as suas principais preocupações do combate ao tráfico o controlo da migração e a interceção e punição de redes de tráfico por meio de intervenções como a cooperação interestadual, o aumento dos controlos nas fronteiras, políticas e práticas restritivas de migração, operações de resgate, detenção e deportação de migrantes, e reabilitação forçada (Andrijasevic, 2010; Bernstein, 2018; Doezema, 2010; O’Connell Davidson, 2015). Enquanto isso, os interesses das pessoas traficadas têm sido tradicionalmente tratados como secundários em relação à sua cooperação na investigação criminal e a perseguição dos traficantes. Tais interesses são ainda mais complicados devido aos estereótipos e expectativas racistas e sexistas em relação às vítimas (Kempadoo et al., 2012; Lee, 2011). O impacto dessas medidas sobre a mobilidade e a cidadania de mulheres e homens traficados, e trabalhadores migrantes que nem sempre são rotulados como tal, tem levado a pesquisa mais crítica a questionar o uso da categoria conceitual de “tráfico” (Agustín, 2007; Marcus & Snajdr, 2013).
Apesar dessas críticas, nas últimas décadas, o combate ao tráfico tem mobilizado progressivamente vários atores numa série de programas e iniciativas que contam com a participação de um número crescente de ONG. Dentro do reduzido corpo de literatura que se concentra em tais intervenções, uma série de análises de nível macro produziram panorâmicas internacionais e regionais de ONG de combate ao tráfico e as atividades em que estão envolvidas (ver, por exemplo, Limoncelli, 2016; Tzvetkova, 2002). Alguns desses estudos indicam que certos desafios enfrentados pelas ONG — especialmente aquelas que se encontram em jovens democracias — resultam da sua dependência de instituições governamentais, da experiência técnica limitada dos seus funcionários e de atitudes conservadoras em relação ao género (Tzvetkova, 2002). No entanto, eles enfatizam o potencial e a contribuição tanto das ONG quanto das suas redes para compensar essas deficiências e promover as mudanças institucionais e políticas necessárias no combate ao tráfico (Noyori-Corbett & Moxley, 2018; Tzvetkova, 2002).
Uma abordagem mais cautelosa parece ser a daqueles investigadores que enfatizam a provisão processual “fina” de assistência exigida por políticas, convenções e leis antitráfico (Bearup, 2016). Interpretando a reintegração como um fenómeno profundamente relacional, Luke Bearup argumenta que, embora as ONG estejam progressivamente a tornar a “reintegração” das vítimas de tráfico como o seu objetivo, elas podem ou não ajudar na realização substantiva deste objetivo de forma totalmente independente do Protocolo de Palermo.
As críticas ao papel das ONG no campo de combate ao tráfico aumentam, especialmente numa série de estudos ao nível micro, que se concentraram nos esforços que estão sendo feitos para proteger as pessoas traficadas por ONG específicas. Tais estudos destacam a reprodução de normas patriarcais, de género e de classe, bem como a negação da agência dos “sobreviventes ideais” por meio da implementação de certas “políticas de segurança” e uma tendência de se engajarem em práticas disciplinadoras (ver, por exemplo, Bose, 2018; Guha, 2019). Mesmo antes dessas atividades de reabilitação, operações de resgate que envolvem ativistas brancas — geralmente recrutadas por organizações feministas seculares e grupos religiosos — atraíram alguma controvérsia. Esses esforços contribuíram normalmente para o controlo e vigilância do estado de imigrantes e da sexualidade das mulheres (ver, por exemplo, Bernstein, 2018; Shih, 2016) e raramente levam à punição dos traficantes. Embora a falta de treinamento e autoridade formal possa colocar ativistas e voluntários em situações desafiadoras, o ambiente profissional em que as ONG de combate ao tráfico contratam funcionários pela sua competência profissional e não pelos seus compromissos ativistas, juntamente com a necessidade de equilibrar os seus próprios interesses com os dos clientes que representam, pode dificultar significativamente qualquer possibilidade de construção de um movimento antitráfico, que inclua as pessoas traficadas e as suas necessidades (Musto, 2010). Além disso, de acordo com Jennifer Musto (2010, 2013), a “ONG-ificação” de intervenções antitráfico — isto é, a terceirização de algumas atividades para ONG — e colaborações e parcerias multiprofissionais em que as ONG participam, apesar das suas vantagens potenciais, colocam uma pressão sobre a possibilidade de as ONG desafiarem as políticas dos governos que as financiam.
O combate ao tráfico em Portugal e os seus atores: instrumentos de análise
A partir do final da década de 1990, as relações de poder transnacionais e o campo de combate ao tráfico transnacional têm estimulado os atores institucionais portugueses a enfrentar a questão do tráfico (Clemente, 2019). O financiamento europeu sustentou as atividades que conduziram às alterações legislativas introduzidas no Código Penal e na Lei da Imigração em 2007. Orientado principalmente por objetivos de justiça penal que visam assegurar a perseguição e repressão das redes de tráfico, o quadro legislativo de combate ao tráfico português subordinou substancialmente os direitos dos migrantes traficados à sua cooperação em investigações criminais de traficantes, bem como a sua identificação pelas forças policiais (Clemente, 2017b). Refletindo a definição transnacional do tráfico como um problema criminal, os esforços de combate ao tráfico em Portugal têm-se caracterizado pela intensificação da cooperação interestadual e do controlo das fronteiras.
Outro ator de destaque, e motor da construção do campo de combate ao tráfico português, é a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG). Sendo uma entidade do Estado, integrada na Presidência do Conselho de Ministros, à CIG foi atribuída a coordenação das atividades de combate ao tráfico. A presença e o papel da CIG, tradicionalmente empenhada no combate à violência de género, estão fortemente relacionados com o facto de, também em Portugal, o tráfico ter sido identificado, em primeiro lugar, com o tráfico de mulheres para exploração sexual e como uma forma de violência de género, além de ser visto como um problema criminal. Na realidade, a conceituação portuguesa do tráfico mudou ao longo dos anos e este foi posteriormente descrito como uma questão relacionada com os homens explorados para trabalho e, em tempos mais recentes, este foco alargou-se para incluir os menores (Clemente, 2019).[4]
Na análise do campo de combate ao tráfico português, utilizarei os instrumentos analíticos de Pierre Bourdieu (1984, 1986, 1989, 1990; ver também Bourdieu & Wacquant, 1992) de “campo”, “capital”, “habitus” e “doxa”, conectando-os ao conceito analítico de ideological closure (fechamento ideológico) de Reyhan Atasü-Topcuoglu (2015). Bourdieu descreve diferentes segmentos do espaço social em termos de “campo”. A sociedade como um todo é um campo que contém diferentes campos caracterizados por uma autonomia relativa. De acordo com Bourdieu, pensar em termos de campo é pensar em termos relacionais (Wacquant, 1989). Na verdade, ele define o campo como uma rede, ou uma configuração, de relações objetivas entre posições (Bourdieu & Wacquant, 1992). O campo é uma estrutura de dominação na qual diferentes agentes (tanto individuais quanto coletivos) se envolvem em lutas. A posição desses agentes é determinada pelo tipo e volume de “capital” que detêm (Bourdieu, 1986). Aqui, o capital aponta para qualquer recurso generalizado — tanto monetário quanto não monetário; tangível e intangível — que fornece aos seus detentores poder e uma posição vantajosa dentro de um determinado campo. O capital, em todas as suas diferentes formas — económicas, culturais, sociais e simbólicas —, refere-se tanto aos recursos usados na luta quanto àqueles sujeitos à apropriação dentro de cada campo (ou “mercado”; Bourdieu, 1984).
O combate ao tráfico pode ser considerado como um campo no qual estão em jogo diferentes definições de tráfico de pessoas e formas de o combater (capital cultural), uma autoridade legítima para reproduzir tais definições (capital simbólico), bem como os recursos económicos (capital económico) para a implementação de políticas, normas, programas e serviços baseados nessas definições (Atasü-Topcuoglu, 2015; Clemente, 2019). Seguindo a linha de pensamento de Bourdieu, o papel das ONG de combate ao tráfico deve ser analisado em relação a outros agentes neste campo. Esses agentes, com diferentes níveis de poder (tipos de capital), podem constituir um recurso (capital social) e instrumento de acesso a outros tipos de capital e/ou ser agentes concorrentes no campo. A posição de cada agente no campo de combate ao tráfico e as potencialidades e limitações das suas ações são afetadas pelo capital e sua distribuição entre os demais agentes desse campo.
Nos termos de Bourdieu (1989), o “habitus” é o produto da interiorização das estruturas sociais. Relacionado com o conceito de “habitus” está o de “doxa” com o qual Bourdieu (1990) indica o horizonte de crenças não questionadas partilhadas pelos agentes do campo. Todos os campos desenvolvem uma “doxa”, que separa discursos e interesses legítimos daqueles que são considerados ilegítimos.
Atasü-Topcuoglu (2015) introduz o conceito de “fechamento ideológico” para se referir ao grupo de definições comuns e lógicas práticas partilhadas por todos os atores no campo. Como aponta Atasü-Topcuoglu, a partir dos anos 2000, todos os atores do campo transnacional (indivíduos, organizações e estados) aceitaram uma problematização do tráfico como um problema migratório/de segurança, bem como a lógica prática das “3 Ps”, nomeadamente a prevenção do tráfico, a punição de traficantes e a proteção das vítimas. Essas lógicas práticas de combate ao tráfico também incluem a abordagem da Nova Gestão Pública (NPM) que apela a uma multiplicidade de atores no campo (órgãos governamentais, organizações supranacionais, académicos e ONG), a fim de reduzir os custos de abordagem de problemas sociais e de fornecimento de serviços sociais (Atasü-Topcuoglu, 2015).
Se, como sugere Atasü-Topcuoglu (2015), todos os conflitos, lutas e competições no campo de combate ao tráfico são exercidos no contexto do seu fechamento ideológico, de acordo com Bourdieu, quando a luta e a dialética que são constitutivas do campo cessarem, o combate ao tráfico pode começar a funcionar como um “aparelho”, limitando assim o potencial do campo para efetuar mudanças ou mesmo refletir sobre tais ações construtivas (Wacquant, 1989). Antes de apresentar os resultados da pesquisa realizada no campo português de combate ao tráfico, na próxima secção descreverei a metodologia empregada neste estudo.
Metodologia
Este artigo baseia-se em dados primários e secundários de dois projetos de pesquisa. O primeiro projeto (2014-2018) teve como objetivo o estudo da proteção dada a mulheres traficadas em Portugal. O segundo projeto (2018-2024), atualmente em curso, centra-se na construção de sistemas de combate ao tráfico na Europa do Sul. A recolha e análise de relatórios, planos de ação e sítios da Internet permitiram identificar as diferentes ONG que participaram em atividades de combate ao tráfico em Portugal nas últimas décadas. Além disso, o artigo baseia-se em cerca de cinquenta entrevistas qualitativas recolhidas com agentes de combate ao tráfico entre 2015 e 2019. Sete dessas entrevistas foram realizadas a representantes de organizações governamentais, cinco a agentes policiais e trinta e quatro a ONG. A seleção das ONG que participaram da pesquisa teve como base a composição da Rede de Apoio e Proteção às Vítimas do Tráfico (RAPVT). Criada em 2013, esta rede é composta por diferentes entidades nacionais (OG — organizações governamentais e ONG) que intervêm direta ou indiretamente no combate ao tráfico. Um segundo grupo de ONG é aquele do qual faz parte a Comissão de Apoio às Vítimas do Tráfico de Pessoas (CAVITP), criada em 2006 e composta por organizações da sociedade civil, leigas e religiosas. Outro grupo de ONG diz respeito aos membros da Rede sobre Trabalho Sexual (RTS) que, desde 2011, reúne ONG que intervêm em nome das profissionais do sexo. Algumas das organizações que participaram da pesquisa fazem parte simultaneamente de várias dessas diferentes redes.
Estas diferentes fontes de informação possibilitaram a recolha de dados específicos de cada ONG e do seu papel no campo de combate ao tráfico, incluindo material detalhado sobre a sua história, missão, visão e capital, bem como informações relacionadas com as atividades de combate ao tráfico por elas desenvolvidas, dados demográficos e tipos de tráfico que abordam. Durante as entrevistas prestei atenção especial à posição e às relações de cada ONG no campo de combate ao tráfico, bem como às suas evoluções ao longo do tempo. Para estudar o papel de diferentes ONG na implementação de políticas, normas e discursos sobre o tráfico e a construção do campo de combate ao tráfico português, a análise de dados teve em conta também uma perspetiva “histórica ou genética” (Wacquant, 1989, p. 37). Isso possibilitou reconstruir a situação em que políticas, normas e discursos, que hoje pertencem à ordem do quotidiano, ainda não se naturalizaram e, portanto, puderam ser questionados. Ao fazê-lo, considero o aviso de Bourdieu que, em diálogo com Loïs Wacquant, nos lembra que só existe história enquanto as pessoas se revoltam, resistem, agem (Wacquant, 1989). Por outras palavras, a adoção de uma perspetiva histórica permitiu-me compreender melhor quando é que o campo de combate ao tráfico português perdeu o seu potencial de debate e se configurou como um aparelho.
Resultados
A história inicial do combate ao tráfico
Uma preocupação para com o tráfico remonta ao final da década de 1970, quando uma série de artigos jornalísticos, denunciando a suspeita de tráfico de mulheres portuguesas para Espanha, encorajou a associação União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) a uma mobilização (Tavares, 2000). Entretanto, desde o final da década de 1960, uma organização religiosa, O Ninho, estava comprometida com a proteção das mulheres “prostituídas”. A história, a missão e as relações nacionais e internacionais das duas organizações diferem significativamente.
A UMAR, fundada em 1976, surgiu da participação mais ampla das mulheres nos acontecimentos do 25 de Abril de 1974. A mobilização das mulheres no seio da UMAR esteve ligada à luta mais ampla que mobilizou os setores mais progressistas da sociedade portuguesa após a Revolução de Abril. Num documento publicado no site da ONG, uma das fundadoras, Manuela Tavares, indica, entre as lutas da “1.ª fase de 1976/1977” da ONG, aquelas que foram empreendidas pela alfabetização das mulheres, pelo direito ao emprego e à igualdade de remuneração, pelo direito a casa e creches e pela melhoria das condições de vida nos bairros mais pobres (Tavares, 2008). Nos anos seguintes, a luta pela contraceção e pelo aborto, contra a violência de género e pela afirmação profissional, social e política das mulheres tornou-se central para o mandato da ONG.
A nível nacional, as relações da UMAR com o “campo do poder” (Bourdieu & Wacquant, 1992) são, historicamente falando, sólidas. Desde 1977, a ONG pertence ao Conselho Consultivo da CIG. Em tempos mais recentes, mesmo que em diálogo com vários interlocutores internacionais, a UMAR aparece focada na busca da sua própria agenda, usando as suas lutas nacionais como ponto de partida.
A segunda organização mencionada, O Ninho, foi fundada em 1967, antes da Revolução dos Cravos, seguindo o modelo do Ninho Francês, fundado em 1936. Ao contrário da UMAR, O Ninho tem um carácter para-religioso que, aliado às suas relações internacionais, desempenhou um papel decisivo na definição da sua missão e visão, cujo enfoque está nas intervenções dirigidas às “mulheres vítimas da prostituição” (O Ninho, s.d., para. 1).
Inicialmente, ambas as ONG partilhavam uma visão abolicionista da prostituição. No entanto, com o tempo, a posição da UMAR mudou. Os diálogos com outras organizações estrangeiras, o movimento LGBTQ português e pesquisadores (ver, por exemplo, Oliveira, 2004, 2011; Ribeiro et al., 2007; Silva & Ribeiro, 2010) contribuíram para o seu reposicionamento como uma organização pró-direitos dos trabalhadores do sexo em 2011, seguindo-se a sua entrada na RTS e a sua participação no debate público sobre o assunto.
A “chamada às armas”
Demorou aproximadamente vinte anos desde a mobilização do final dos anos 1970 até que o tráfico de pessoas lentamente entrasse na agenda política nacional. Em 2000, Portugal assinou o Protocolo sobre Tráfico e, em 2005, a Convenção do Conselho da Europa. Desde o final da década de 1990 a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) lançou uma “chamada às armas” de diferentes atores.
Numa época em que as ONG não tinham experiência de intervenção com mulheres traficadas, O Ninho foi uma das primeiras organizações que foram chamadas às armas no emergente campo de combate ao tráfico. O Ninho é uma organização certamente respeitada, como sugere a nomeação da sua diretora, Inês Fontinha, para o Prémio Nobel da Paz pelo trabalho na organização. Além disso, O Ninho partilha uma abordagem abolicionista da prostituição com a principal organização governamental na área, a CIG. No entanto, com o tempo, surgiram divergências entre os dois atores. A CIG, embora mantenha uma posição abolicionista, rejeita a fusão entre prostituição e tráfico sexual, bem como a necessidade de combater o tráfico intervindo nas políticas de prostituição (ver Varandas & Saraiva, 2000).[5]
Assim, a partir de 2007, outra ONG, a Associação para o Planeamento Familiar (APF), foi envolvida na mobilização institucional contra o tráfico. A APF surgiu antes da Revolução de Abril, em 1967, com o objetivo principal de promover o planeamento familiar. Descrevendo a sua história, a ONG enfatiza que “o grupo de fundadores da APF integra setores ligados ao catolicismo progressista dos anos 60, elementos ligados à chamada Ala Liberal, mas também outros ligados a movimentos de oposição ao regime” (APF, s.d., para. 7). A APF é caracterizada por um sólido capital social nacional. Com efeito, um dos seus fundadores e presidentes, Albino Aroso, foi Secretário de Estado do VI Governo Provisório. A ONG também pertence ao Conselho Consultivo do CIG. A APF recebeu a Ordem do Mérito do Trabalho pelos serviços prestados ao país atribuída pelo Presidente da República Portuguesa — ato que atesta o seu capital simbólico ainda que, à época, a APF não contasse com um capital cultural igualmente robusto sobre a questão do tráfico de pessoas. No entanto, desde 1997, a gestão do Espaço Pessoa — um centro de encontro e apoio às prostitutas da cidade do Porto — criou uma oportunidade para se envolver no combate ao tráfico.
A firme distinção da ONG entre prostituição e tráfico, bem como o seu tímido ativismo pelos direitos dos trabalhadores do sexo, contribuiu para uma expansão progressiva das suas atividades no campo de combate ao tráfico. De facto, embora a ONG faça parte da RTS desde 2011, foi somente em 2014 que ela descreveu publicamente a sua posição em relação ao trabalho sexual, enfatizando que “[o trabalho sexual] não poderá ser comparado à realidade do tráfico de pessoas, na medida em que o trabalho sexual envolve uma escolha e o tráfico uma privação da liberdade, sendo este considerado um crime de violação dos direitos humanos” (APF, 2014, para. 5). Além disso, a APF manteve uma certa relutância em partilhar a sua posição não abolicionista, tanto durante a pesquisa quanto em eventos públicos. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso do primeiro seminário do RAPVT norte, realizado no Porto a 8 de maio de 2017, durante o qual a diretora da casa de abrigo gerido pela APF evitou responder a perguntas do público sobre o assunto.
A institucionalização do campo de combate ao tráfico
O ano de 2007 representa um momento-chave na evolução do combate ao tráfico português. Mudanças importantes foram introduzidas tanto na Lei de Imigração quanto no Código Penal, com o artigo 160.º, fornecendo a definição atual do crime de tráfico. Em 2008, a Convenção do Conselho da Europa sobre o Combate ao Tráfico de Seres Humanos também entrou em vigor. De 2007 a 2013, durante a institucionalização da atenção burocrática, o envolvimento das ONG no campo permaneceu fraco.
As mudanças legislativas introduzidas neste período — principalmente orientadas por objetivos de justiça criminal — parecem contribuir para a participação limitada das ONG. A possibilidade de as ONG entrarem no campo de combate ao tráfico, acumulando capital económico e cultural e permanecendo numa posição central nesse campo é substancialmente condicionada pela partilha de uma abordagem focada na prossecução do crime do tráfico. Isso parece comprometer tanto os interesses das pessoas traficadas — cujos direitos, como a autorização de residência, estão essencialmente subordinados à participação em investigações criminais contra traficantes — quanto o papel de algumas ONG, exigindo uma nova e inesperada colaboração multissetorial em colaboração com a polícia.[6] Como um representante de O Ninho destaca:
O processo necessário para obter uma autorização de residência é extremamente complexo e requer um tempo considerável. Ser parceiro da polícia é um desafio tanto para nós quanto para as nossas vítimas: conversar é diferente de colaborar com a polícia. Então, o problema passa a ser o de contornar a lei [de imigração], de encontrar um artigo da lei que possa ajudar essas pessoas. (O Ninho, entrevista realizada em junho de 2015)
Neste contexto, a única ONG que institucionalizou a sua intervenção no campo de combate ao tráfico foi a APF. Em 2008, a ONG assumiu a gestão da primeira casa de abrigo portuguesa para mulheres traficadas. Além disso, desde 2012, através de cinco equipas regionais (as Equipas Multidisciplinares Especializadas, EME), a APF tem sido o motor de intervenções caracterizadas pelo seu envolvimento na identificação policial de presumíveis vítimas e a sua subsequente cooperação nas investigações contra os traficantes. A abordagem da ONG é resumida nas palavras de um representante da CIG:
…e há aquelas [ONG] que fazem o trabalho referido. O trabalho com os órgãos de polícia criminal, para a identificação formal da própria vítima, e com a vítima para que a relação de confiança entre vítima e órgão de polícia criminal se estabeleça e a vítima perceba que a polícia não é má. Não é o mau da fita, mas é alguém que está ali para a ajudar e para a proteger e que, portanto, trabalham nestas duas vertentes, de relação de confiança entre os atores, que leva à identificação da vítima e que levam, por outro lado, à condenação [dos traficantes]. (CIG, entrevista realizada em agosto de 2015)
A abordagem securitária no combate ao tráfico parece aumentar as tensões entre as organizações governamentais e algumas ONG abolicionistas no campo. Como um representante da CIG confirma:
Houve aqui um ator que durante muitos anos não forneceu dados e referia que tinha muitas vítimas de tráfico… Era O Ninho. Porque é que isso acontecia? Porque havia uma desconfiança no sistema, ou seja, havia uma desconfiança que se O Ninho dissesse “eu tenho tantas pessoas que identifico ou que sinalizo como potenciais vítimas de tráfico, e que são irregulares”, o SEF vai-lhes cair em cima e vai pôr estas pessoas todas fora e a perspetiva dos direitos humanos ou da defesa das pessoas não está aqui posta em questão… “Mas nós trabalhamos para a promoção dos direitos humanos e não trabalhamos para uma questão de criminalidade ou de alguém estar irregular no país”. (CIG, entrevista realizada em agosto de 2015)
Embora num lugar periférico, O Ninho e outras ONG explicitamente abolicionistas permaneceram no campo de combate ao tráfico. Por meio de financiamento estatal, elas continuam as suas atividades de informação sobre o tema, aceitando o convite institucional para deixar os debates em torno da prostituição fora do campo de combate ao tráfico. Nas palavras do representante de uma dessas ONG:
A CIG não tem querido discutir a questão do trabalho sexual. Nós pusemos essa questão (…) e fomos até aconselhadas, se queríamos ver os projetos aprovados, a não incluir as questões da prostituição. Porque diziam, diziam eles… eles, da CIG, que a questão da prostituição ia ser objeto de uma coisa autónoma. Estavam mais interessados em falar do trabalho, da exploração no trabalho que, como sabe, existe, de facto, não é? (Movimento Democrático de Mulheres — MDM, entrevista realizada em julho de 2016)
Com o tempo, algumas ONG têm afirmado uma posição pró-direitos dos trabalhadores do sexo. Nesse caso, como mostrarei a seguir, há uma relação ainda mais cautelosa entre a instituição governamental (abolicionista) que coordena a atividade no campo de combate ao tráfico, a CIG, e as ONG não abolicionistas.
A consolidação do campo de combate ao tráfico
O III Plano de Ação para a Prevenção e o Combate ao Tráfico de Seres Humanos 2014-2017 (III PAPCTSH 2014-2017), adotado em dezembro de 2013, inaugurou um período de consolidação do compromisso institucional com o combate ao tráfico em Portugal. Nesta fase, novas ONG adquiriram um papel importante no campo. Entre elas, a Saúde em Português e a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Ambas as organizações expandiram o seu capital económico e cultural e se envolveram em atividades de formação e sensibilização, bem como na gestão de duas novas casas de abrigo — uma para homens e outra para mulheres traficadas.
Fundadas na década de 1990, a Saúde em Português e a APAV são ONG relativamente novas. No seu site, a Saúde em Português realça que é uma organização “com sede internacional em Coimbra — Portugal, mas voltada para o mundo!” com projetos de cooperação para o desenvolvimento, de ajuda humanitária e de emergência (Saúde em Português, s.d.a). No entanto, a análise dos planos de atividades e orçamentos disponíveis sugere que, desde 2012, a ONG se tem afastado progressivamente da sua missão declarada, concentrando as suas atividades na área do tráfico e fazendo da gestão da casa de abrigo para homens traficados a sua principal fonte de financiamento. Em particular, em 2019, 226.000 euros dos 250.942euros que a ONG recebeu naquele ano foram utilizados para atividades relacionadas com a gestão desta casa de abrigo, e 18.362 euros do seu orçamento relacionou-se com a quarta edição de um projeto de sensibilização — Mercadoria Humana — que, nos últimos anos, percorreu o país com uma exposição sobre o tráfico sexual de mulheres (Saúde em Português, s.d.b).
Quanto à APAV, a missão histórica da ONG tem sido o apoio das vítimas de crimes e o contributo para o aperfeiçoamento das políticas públicas, sociais e privadas centradas no estatuto da vítima. Como sugere a atribuição do grau de Membro Honorário da Ordem da Liberdade pelo antigo Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, a APAV é uma organização com capital social e simbólico substancial. A mobilização estratégica deste capital social e simbólico, bem como a sua dependência do financiamento estatal, confirmam-se na descrição minuciosa, no seu sítio, da crise financeira vivida pela ONG no início dos anos 2000 (APAV, s.d.).
A APAV, que tomou a gestão da segunda casa de abrigo para mulheres traficadas, afirma uma posição “neutra” em relação à venda de sexo — pelo menos a nível nacional. Enquanto isso, conforme sugerido pela sua participação numa das principais redes internacionais de ONG que trabalham com o tráfico, a nível internacional, a posição da ONG parece mais claramente definida. Trata-se da Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres (GAATW), conhecida pela sua ênfase na necessidade de diferenciar a prostituição “voluntária” da “forçada” e pela crítica às ideias abolicionistas, segundo as quais todas as formas de prostituição são vistas como exploradoras. No entanto, a ONG evita quaisquer atividades de defesa dos direitos dos/as trabalhadores/as do sexo, bem como qualquer atividade que questione a atual abordagem securitária na gestão do tráfico.
Durante a fase de consolidação do campo de combate ao tráfico português, várias ONG mantiveram a sua atividade, nomeadamente no domínio da formação e sensibilização — muitas delas sem experiência de trabalho com pessoas traficadas. O envolvimento no debate e nas intervenções de organizações com experiência em questões relacionadas com migrantes e/ou profissionais do sexo continuou marginal, apesar da criação da RAPVT em 2013. Esta rede, coordenada pela CIG e composta por organizações governamentais, não governamentais e policiais, surgiu em resposta à pressão internacional (ver Group of Experts on Action against Trafficking in Human Beings [GRETA], 2013, 2017). Mais uma vez, o acesso à rede foi efetivamente fechado para organizações não abolicionistas. Nas palavras de um representante da CIG: “Não tenho problemas que tais organizações [referindo-se a membros da RTS] fizessem parte da rede. [No entanto,] não vou convidá-las, como é evidente” (CIG, entrevista realizada em agosto de 2015). Num contexto caracterizado por uma escassez estrutural de recursos financeiros, a presença mais ampla de ONG — incluindo aquelas que trabalham com migrantes — parece limitada por uma reticência institucional substancial para abrir o campo de combate ao tráfico, como é destacado na entrevista com uma ONG representante:
As ONG — incluindo as organizações de migrantes — não têm recursos humanos suficientes para fazer parte de tantas redes como a RAPVT porque dá muito trabalho. É preciso ter pessoas envolvidas em projetos ou voluntários para ir às reuniões das redes durante a jornada de trabalho. Para as organizações menores, essa participação torna-se ainda mais complicada. Mas talvez também não haja vontade política para incluir essas organizações: essa vontade tem de vir de organizações governamentais e não governamentais. (UMAR, entrevista realizada em abril de 2018)
Entretanto, redes como a RAPVT, que potencialmente poderiam oferecer um espaço para o debate entre os diferentes atores (e a possibilidade de divergências), rapidamente perderam esta oportunidade. Uma representante da UMAR explica eloquentemente:
Tenho uma visão crítica do RAPVT. No ano passado [em 2017], a RAPVT não se reuniu nenhuma vez. Anteriormente, ela reunia-se uma ou duas vezes por ano. Houve encontros durante os quais se refletiu sobre o fenómeno [do tráfico]. Houve uma abertura para que as organizações fizessem perguntas e partilhassem ideias, mas ela perdeu-se com o tempo. Talvez tenha sido uma escolha política. (…) A participação das várias organizações na RAPVT acabou por estar muito alinhada com o que tinha sido previsto pelo PAPCTSH: todos os esforços foram feitos para atingir os seus objetivos. (UMAR, entrevista realizada em abril de 2018)
Portanto, tanto as ONG potencialmente críticas quanto os espaços de diálogo interinstitucional permanecem longe de entrar no campo de combate ao tráfico.
A fase de expansão
Durante a fase de consolidação do campo de combate ao tráfico, uma segunda avaliação da implementação da Convenção do Conselho da Europa teve lugar em Portugal. O resultado desta avaliação parece ter influenciado a elaboração do IV PAPCTSH — 2018-2021. Adotado em junho de 2018, ele inaugurou a atual fase de expansão, durante a qual a ideia de tráfico se ampliou e aumentou o número de atores em campo.
Até 2018, os casos de tráfico de menores pareciam limitados e a intervenção, quando necessária, era gerida no âmbito do sistema nacional de proteção de crianças e jovens em risco. No entanto, após a avaliação do GRETA em 2017, os menores começaram a aparecer, tanto nos dados (ver, por exemplo, Observatório do Tráfico de Seres Humanos, do Ministério da Administração o Interna [MAI/OTSH], 2018) quanto no debate público. A partir de então foi inaugurada a quarta casa de abrigo, desta vez para menores traficados com o apoio financeiro da UE. A sua gestão está a cargo da Akto: Direitos Humanos e Democracia. Esta ONG, fundada em 2015, indica no artigo 2.º do seu estatuto que tem como objetivos “fomentar a educação, a promoção e a intervenção em direitos humanos e democracia” (Akto, s.d.). Além da mais jovem ONG na área de combate ao tráfico, ela é também a única que, desde a sua fundação, apresenta o combate ao tráfico entre os seus objetivos (embora secundários). A gestão de uma casa de abrigo para menores traficados é atualmente a principal atividade e fonte de financiamento da Akto. A ONG também participa, como membro associado, na Plataforma Portuguesa dos Direitos da Mulher (PpDM). Esta rede, criada em 2004, representa Portugal no European Women’s Lobby (EWL), constituindo atualmente uma ativa plataforma abolicionista da prostituição.
Nesta fase, além da expansão cautelosa do número de atores em campo, houve um fortalecimento da posição dos atores existentes. É o caso da APF, que é atualmente a principal ONG na área de combate ao tráfico em Portugal. Para além do seu papel de coordenação das várias RAPVT regionais constituídas nos últimos anos com a ajuda do Estado e da UE, e da sua participação em inúmeros eventos institucionais sobre o tema, a APF tem estado envolvida na gestão de uma segunda casa de abrigo para homens traficados. Além disso, a ONG tem assumido um papel cada vez mais importante nas atividades relacionadas com o repatriamento das vítimas europeias do tráfico.
Discussão e conclusão
O envolvimento das ONG portuguesas no combate ao tráfico é um desenvolvimento relativamente recente. A partir do 25 de Abril de 1974, as associações cívicas ganharam maior visibilidade em Portugal, libertadas da desconfiança e hostilidade do poder central do Estado Novo (Franco, 2015). No entanto, uma multiplicidade de problemas enfrentados pela sociedade portuguesa contribuiu para que o tráfico — durante muito tempo identificado com a prostituição — fosse colocado no fundo das prioridades públicas. A partir do início do século XXI, o objetivo burocrático de construir o campo de combate ao tráfico português encorajou os atores governamentais a lançar uma chamada às armas a algumas ONG. Em contraste com outros contextos (ver Atasü-Topcuoglu, 2015; Bernstein, 2018; Limoncelli, 2016; Musto, 2010), foram as OG e não as ONG que estimularam a construção do campo de combate ao tráfico. Foi, sobretudo, a histórica dependência do Estado (Caria & Pereira, 2014; Casanova et al., 2019; Franco, 2015; Quintão, 2011) — que foi e continua a ser o principal financiador das atividades das ONG — que incentivou algumas delas para uma extensão limitada da sua missão, bem como para o acúmulo de capital cultural necessário para entrar no campo.
Embora historicamente as ONG portuguesas tenham priorizado outras questões e nenhuma delas se autoidentifique como ONG de combate ao tráfico, desde a fase de consolidação do campo nacional, o tráfico tem-se tornado uma das principais áreas de intervenção e financiamento de algumas ONG — especialmente as mais recentes e/ou com recursos limitados. Elas veem, nas palavras de Bourdieu (1990), o “interesse” ou a illusio do campo. Além disso, confirmando os seus argumentos teóricos, foram antes de tudo as ONG ricas em capital social que tiveram acesso privilegiado ao campo de combate ao tráfico. Apesar das suas diferenças em termos de história, afiliações partidárias e religiosas, as ONG com fortes conexões e relações institucionalizadas com atores dominantes como o Estado, ao partilharem com ele confiança e reciprocidade, ganharam primeiramente acesso ao campo. Não obstante as suas diferentes missões e visões, todas elas eram detentoras de capital simbólico que, segundo Bourdieu (1989), resulta do capital económico e cultural acumulado noutro campo, que se traduz em capital simbólico no campo de combate ao tráfico.
Ainda que surjam iniciativas como a RAPVT — mais uma vez estimulada pelo campo de combate ao tráfico transnacional —, o envolvimento de ONG no combate ao tráfico tem sido historicamente limitado, tanto em termos do número de ONG quanto de natureza do seu envolvimento. É importante ressaltar que nem todas as ONG no campo estão envolvidas num trabalho contínuo sobre o tráfico. Por vezes, quando solicitadas a participar neste estudo, expressaram resistência porque, apesar do seu envolvimento na RAPVT, como explica uma das ONG: “…não temos aprofundado a nossa experiência nesta área. Assim, receamos não poder contribuir para o seu estudo neste âmbito.” (Serviço Jesuíta aos Refugiados, comunicação e-mail, março de 2016).
As ONG com maior envolvimento na área (a APF, bem como Saúde em Português, APAV e Akto) tendem a restringir a sua atividade à gestão de serviços como casas de abrigo e ações de formação e sensibilização. Um dos principais protagonistas de combate ao tráfico português, a APF, alargou as suas intervenções à facilitação da identificação policial e posterior repatriamento das vítimas. Por meio das EME, a organização também acompanha as forças policiais durante operações de resgate e identificação de vítimas. Após a excecional mobilização do final dos anos 1970, com a institucionalização do campo, as ONG permanecem visivelmente distantes de qualquer forma de advocacy — isto é, de atividade de influência das políticas e das práticas de combate ao tráfico e proteção das pessoas traficadas. Ao contrário de algumas experiências no contexto internacional (Limoncelli, 2016), as ONG que tiveram a oportunidade de entrar no campo de combate ao tráfico e expandir progressivamente o seu capital ainda hoje não questionam a abordagem securitária, definida por um enfoque na segurança nacional. Assim, quando questionada sobre as suas preocupações, a representante de uma das ONG mais proeminentes no campo relatou que a sua preocupação principal é a “punição dos traficantes” (APF, entrevista realizada em julho de 2015).
Em contraste com o que acontece a nível internacional — onde atualmente a abordagem securitária ao tráfico geralmente funciona em conjunto com uma abordagem abolicionista da prostituição (ver, por exemplo, Bernstein, 2018) —, uma das principais características do campo português é o facto de esta abordagem ser partilhada e não contestada pelas organizações tímidas e/ou ocasionalmente pró-direitos das/os trabalhadoras/es do sexo mais próximas/os do campo do poder (a APF, mas também a APAV). Especialmente nas fases iniciais da construção do campo, a incerteza criada pelo tráfico — uma questão que foi por muito tempo distante das principais áreas de intervenção de muitas ONG — influenciou a sua definição, bem como o seu combate, aproximando estes dois dos institucionais. No entanto, é acima de tudo a forte dependência económica e política das ONG do Estado que as tem estimulado a partilhar os seus discursos securitários, bem como a entrar no campo de combate ao tráfico.
Essa dependência também encorajou as organizações abolicionistas — mantidas no campo, embora numa posição periférica — a aceitar o convite institucional para deixarem o debate em torno da abolição da prostituição fora do campo de combate ao tráfico. Intimamente relacionado com isso está o facto de, a partir da consolidação do campo, nenhuma das ONG mais próximas ao campo do poder abordar apenas o “tráfico sexual” de mulheres. Em vez disso, as ONG relatam trabalhar em vários tipos de tráfico e populações. De maneira mais geral, a conceituação do tráfico é fortemente influenciada pela definição institucional do problema que surgiu nos últimos vinte anos, primeiro como uma questão relacionada com as mulheres na indústria do sexo, depois, com os homens explorados no trabalho e, em tempos mais recentes, tem-se focado nos menores (ver também Clemente, 2019).
Um resultado positivo é que as práticas de vigilância do mercado do sexo, que podem impactar negativamente os interesses dos/as trabalhadores/as do sexo (ver, por exemplo, Agustín, 2007; Bernstein, 2018; Musto, 2013), são experiências relativamente excecionais em Portugal. Ao mesmo tempo, tudo isso exclui a possibilidade de a categoria conceptual e legal do tráfico poder ser mobilizada por profissionais do sexo cuja experiência de exploração possa constituir casos de tráfico.
No geral, o estudo — reforçando uma perspetiva crítica sobre as ações das ONG (Heins, 2008; Hirsch, 2003) — confirma que uma certa cautela deve ser exercida em relação à participação “substantiva” das ONG no combate ao tráfico, que poderia incluir desafiar as atuais políticas, normas e discursos sobre o tráfico em que estão envolvidas e das quais dependem para favorecer mudanças políticas (Bearup, 2016; Musto, 2010). Apesar da crescente importância desses “parasitas benignos” (Heins, 2008), devida à terceirização neoliberal de serviços de prevenção e proteção, parece que eles são incapazes de contribuir para qualquer expansão substancial do debate em torno do governo do tráfico e fazer com que o campo do combate contra o tráfico possa constituir um espaço de proteção substancial dos direitos dos migrantes explorados nos diferentes mercados de trabalho (formais e informais) — sem a subordinação dos seus direitos à perseguição dos “traficantes”, por exemplo, favorecendo alterações nas políticas de prostituição e, de forma mais geral, reivindicado políticas e práticas de proteção substancial dos direitos do trabalho e de cidadania da população migrante.
Poder-se-ia argumentar que o aumento do envolvimento neoliberal de ONG e do Estado por meio da subcontratação de serviços públicos a ONG cria prestadores de serviço passivos. No entanto, pesquisas noutros campos indicam que as ações das ONG nem sempre são determinadas por lógicas neoliberais e, por exemplo, podem ser moldadas por contextos históricos particulares e regimes éticos locais, seguindo as próprias agendas das ONG (ver, por exemplo, Curtis, 2010; Mosse & Lewis, 2005). Para entender melhor o potencial e as limitações das ONG no campo de combate ao tráfico é necessário antes de tudo seguir o convite de Wacquant (2009, 2012) para considerar o neoliberalismo também como um discurso político, ao invés de simplesmente um projeto económico caracterizado, entre outros, pela mudança do estado de bem-estar para o estado carcerário e pelo surgimento de novas instituições de governo, como as ONG. Seguindo o argumento de Wacquant, a “ONG-ificação” do campo de combate ao tráfico pode ser entendida como parte do seu “fechamento ideológico”, que inclui — segundo Atasü-Topcuoglu (2015) — uma problematização da definição de tráfico como um problema migratório/de segurança, e a lógica prática das “3 Ps” e da abordagem do NPM já mencionada (Atasü-Topcuoglu, 2015). Como Atasü-Topcuoglu (2015, p. 3) aponta, “revelar o fechamento ideológico no (…) campo de combate ao tráfico é revelar as relações de poder no campo e os pontos cegos nas políticas de combate ao tráfico ao mesmo tempo”. A experiência portuguesa demonstra claramente que os agentes que podem questionar o fechamento ideológico atual — que inclui, entre as outras coisas, a distinção institucional instrumental entre tráfico (sexual) e prostituição — não entram no campo ou permanecem numa posição periférica. Por outras palavras, em contextos caracterizados por uma fraqueza estrutural da sociedade civil organizada, a rápida e forte institucionalização de combate ao tráfico — administrado por atores burocráticos dominantes de acordo com a atual problematização do tráfico e as suas lógicas — deixa as ONG com acesso e espaço limitados para a ação neste campo.
O foco no crime e na segurança — o que também torna o campo de combate ao tráfico português inerentemente um campo de repatriação — contribui ainda mais para a reprodução do atual “fechamento ideológico”. O que Bourdieu descreveria em termos de descompasso entre estrutura e ação parece poder surgir principalmente de eventos exógenos como, por exemplo, quaisquer alterações da ideia transnacional de tráfico e/ou do seu governo. Como resultado, apesar do papel atribuído às ONG de combate ao tráfico, elas parecem atuar apenas como motores neoliberais para a construção de um “aparelho” sem qualquer tipo de dialética substancial, servindo para manter a sua existência mais do que para servir os interesses de mulheres e homens traficados.
Vinte anos após o Protocolo de Tráfico da ONU, a pandemia da COVID-19 parece ter ativado uma nova “chamada às armas” contra o tráfico. Apesar da escassa evidência empírica, uma ampla gama de diferentes agências e organizações em todo o mundo apontou para o impacto da pandemia da COVID-19 no aumento do tráfico de pessoas. Uma das questões em aberto envolve a possibilidade concreta de que essa nova “chamada às armas” possa ser a ocasião para uma reconceptualização do tráfico e das iniciativas de combate ao tráfico de pessoas — não apenas das ONG, mas também da pesquisa mais ortodoxa.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer os revisores anónimos pelos comentários e as construtivas sugestões. Os meus agradecimentos também vão aos coordenadores da Secção Temática “Globalização, Política e Cidadania”, Alcides A. Monteiro (UBI), Fernando Bessa Ribeiro (UM) e João Carlos Graça (ISEG-UL), pelo rico debate e o feedback sobre o artigo durante o XI Congresso Português de Sociologia em março de 2021.
Financiamento
Este texto foi possível graças ao financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) do projeto “Trafficking of women for sexual exploitation in Portugal. A qualitative study of trafficked women, trafficking experiences and measures of assistance” (2014-2018) e do projeto “A articulação dos regimes de combate ao tráfico de pessoas na Europa mediterrânea. Atores, discursos e representações” (2018-2024).
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Data de submissão: 22/06/2021 | Data de aceitação: 06/04/2022
Notas
Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.
[1]O Protocolo das Nações Unidas Relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças (também conhecido como Protocolo sobre Tráfico ou Protocolo de Palermo), art. 3º, fornece a definição legal internacional de tráfico de pessoas amplamente entendido como o movimento forçado ou coagido de pessoas dentro e entre as fronteiras de um Estado-nação para fins de exploração.
[2]Para uma análise dos debates entre as diferentes posições sobre prostituição, inclusive dentro do movimento feminista, ver, entre outros, Outshoorn (2005) e Silva et al. (2013). Para um aprofundamento dos discursos sobre prostituição produzidos em Portugal pelas ONG, ver, entre outros, Oliveira (2017).
[3]O presente texto incorpora e estende análises anteriores, nomeadamente Clemente (2021b).
[4]Essa mudança na conceptualização do tráfico reflete-se, entre outras coisas, nos dados produzidos anualmente a nível nacional. Uma análise recente destes dados destaca a prevalência, a partir de 2011, de casos de exploração laboral, maioritariamente de homens, no setor agrícola, da construção e dos serviços domésticos, vindos da Europa Oriental (em particular, Romênia e Moldávia), América do Sul, África Ocidental e, mais recentemente, Ásia (em particular, Índia e Paquistão) (Clemente, 2017a). Como eficazmente apontado por Silva et al. (2013), a leitura dos dados sobre tráfico em Portugal deve levar em conta, entre outras coisas, a evolução da definição legal de tráfico, para lá do peso das contrastantes leituras da relação entre tráfico (para exploração sexual) e prostituição.
[5]Recorde-se que, tal como noutros contextos, também em Portugal as políticas da prostituição mudaram várias vezes ao longo do tempo. Desde 1982, a prostituição tem sido descriminalizada, mas não tem sido reconhecida pelo Estado como uma atividade profissional regulamentada e são criminalizadas atividades relacionadas, como a prática de lenocínio (Graça & Gonçalves, 2016; Oliveira, 2017). Para uma análise dos diferentes modelos jurídicos-políticos da prostituição e o seu impacto na vida das pessoas migrantes no mercado do sexo, ver também Silva et al. (2013).
[6]Estudos anteriores enfatizam como os tempos e os objetivos da justiça criminal, focados na punição dos traficantes, não correspondem facilmente às prioridades dos migrantes identificados como vítimas de tráfico e pelos quais os “traficantes” são primariamente facilitadores de percurso de mobilidade laboral; uma desconfiança substancial na polícia e nas suas formas de atuação é presente tanto entre as mulheres no mercado do sexo quanto entre algumas ONG (ver Clemente, 2017b, 2021b; Silva et al., 2013).
Autores: Mara Clemente