N.º 30 - dezembro 2022

João Teixeira Lopes
FUNÇÕES: Concetualização, Aquisição de financiamento, Administração do projeto, Recursos, Supervisão, Validação, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Departamento de Sociologia,
Instituto de Sociologia da Universidade do Porto. 4150-564 Porto, Portugal
E-mail: jmteixeiralopes@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6891-7411

Rita Correia Madeira
FUNÇÕES: Concetualização, Análise formal, Investigação, Metodologia, Visualização, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Departamento de Sociologia,
Instituto de Sociologia da Universidade do Porto. Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal
E-mail: ritacmadeira99@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0527-5903

Sandra Mendes Couto
FUNÇÕES: Concetualização, Análise formal, Investigação, Metodologia, Visualização, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Departamento de Sociologia,
Instituto de Sociologia da Universidade do Porto. 4150-564 Porto, Portugal
E-mail: sandrafmcouto@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0304-0238

Resumo: O presente artigo expõe os resultados de uma primeira investigação realizada no âmbito do “SHS — Soil health surrounding former mining areas: Characterization, risk analysis, and intervention” nos concelhos de Arouca e Castelo de Paiva. Adotou-se uma metodologia qualitativa, procurando captar memórias e histórias orais associadas à exploração mineira desenvolvida nestas áreas, analisando, simultaneamente, a perceção do risco.
Os resultados revelam que as minas estão na base da produção e da reatualização de identidades coletivas e de histórias orais, através das quais as pessoas se reconhecem e projetam uma identidade de base local. Por outro lado, apesar de permanecerem ativos alguns riscos, as pessoas tendem a ignorá-los, realizando atividades de turismo e lazer junto às minas desativadas. Tal acontece porque os riscos são geralmente associados ao passado, como consequência do trabalho mineiro. Os dados permitem compreender que ainda que a população reconheça a importância das minas, desejando a sua preservação e patrimonialização, fazem-no com dificuldade em relembrar este período pelas tragédias e dificuldades vividas.

Palavras-chave: exploração mineira, memórias, identidades coletivas, risco.

Abstract: This article presents the results of a first investigation carried out under the “SHS — Soil health surrounding former mining areas: Characterization, risk analysis, and intervention” in the municipalities of Arouca and Castelo de Paiva. A qualitative methodology was adopted, seeking to capture oral memories and histories associated with mining developed in these areas, simultaneously analyzing the perception of risk.
The results show that mines are the basis of production and re-updating of collective identities and oral histories, through which people recognize themselves and project a local-based identity. On the other hand, although there are still some active risks, people tend to ignore them, performing tourism and leisure activities near the decommissioned mines. This happens because risks are generally associated with the past as a consequence of the mining work. The data also allows us to understand that while the population recognizes the importance of the mines, desiring their preservation and patrimonialization, they present some hardships in remembering the experienced tragedies and difficulties.

Keywords: mining, memories, collective identities, risk.

Introdução

A memória surge como uma ponte que liga o passado e o presente, sendo comum afirmar que “relembrar é viver duas vezes”. É caracterizada como um fenómeno coletivo e social que sofre flutuações, transformações e mudanças (Pollak, 1992, citado em Silva, 2021). Noutro sentido, é dotada do estatuto de testemunho oral, podendo tornar-se fonte histórica e, ao mesmo tempo, objeto de análise (Pollak, 1989, 1992, citado em Silva, 2021). Assim, estudar as minas de Regoufe (Arouca) e Pejão (Castelo de Paiva) levantou a necessidade de mobilizar a(s) memória(s) numa tentativa de resgate do passado, por um lado, e de preservação das histórias destes territórios, por outro.

O presente artigo resulta de um trabalho de investigaçã0[1] realizado no âmbito do projeto “SHS — Soil health surrounding former mining areas: Characterization, risk analysis, and intervention” (NORTE-01-0145-FEDER-000056), cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) através do Programa Operacional Regional do Norte — Norte 2020 (Sistema de Apoio à Investigação Científica e Tecnológica (SAICT) — “Projetos estruturados de I&D&I”- Horizonte Europa — Aviso NORTE-45-2020-75).

O projeto “SHS — Soil health surrounding former mining areas: Characterization, risk analysis, and interventionaborda, tal como se pode ler no website do IS-UP ([Instituto de Sociologia da Universidade do Porto], s.d.), incide sobre questões ambientais relacionadas com os resíduos resultantes de atividades de exploração mineira. É um estudo integrado que pretende efetuar uma caracterização dos resíduos mineiros, dos solos e das águas afetados por estas estruturas geológicas para identificar os impactos ambientais e contribuir para a sua mitigação através da avaliação da saúde dos solos e da água. Ao mesmo tempo, pretende avaliar o impacto sociológico associado à exploração dos recursos geológicos e a perceção dos riscos e perigos para a população.

Trata-se, pois, de um projeto multidisciplinar que envolve, além da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) e do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP), vários parceiros da mesma universidade, tais como: a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), o Instituto de Ciências da Terra (ICT) e o Centro de Investigação em Química da Universidade do Porto (CIQUP/FCUP); a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e o Centro de Recursos Naturais e Ambiente (CERENA); a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e o Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ADS). É uma ocasião, em suma, para “estabelecer sinergias entre as diferentes áreas do saber envolvidas”, garantindo a “partilha, o desenvolvimento e a promoção do conhecimento” (Torres et al., 2022, p. 57).

Relativamente à perspetiva particular da sociologia, o objetivo inicial consistia em abordar a questão do risco nas localidades de Arouca e de Castelo de Paiva, onde se situam, respetivamente, as minas de Regoufe e do Pejão. No entanto, sabendo que, atualmente, os riscos ambientais e de saúde em torno dessas minas são mínimos e que os responsáveis locais colocaram obstáculos a uma análise centrada nessa categoria (uma vez que i) o consideravam irrelevante; ii) estavam concentrados em reutilizar o legado das minas como recurso de desenvolvimento local; iii) tinham receio de reações infundadas de insegurança por parte das populações), optou-se por recentrar um pouco a pesquisa: o foco passou a estar no papel das minas na construção de identidades e memórias coletivas. Neste sentido, e sem descurar totalmente a questão da perceção de risco, pretendeu-se:

  • Identificar as perceções e as práticas de risco ambientais e de saúde da comunidade que vive perto da mina de Regoufe e da mina do Pejão;
  • Compreender se, em cada um dos casos, a mina pode ser encarada como uma dimensão da identidade local e comunitária da população autóctone;
  • Perceber que memórias sobre as mesmas são ativadas;
  • Apurar quais as preocupações e planos futuros para as minas, tendo como foco as questões socioambientais.

Destarte, a nossa análise debruça-se essencialmente nas memórias e histórias orais, enquanto fontes históricas, e nas perceções de risco, procurando, assim, captar o impacto — social, cultural, histórico — da exploração mineira nestes territórios.

Enquadramento teórico

A sociedade de risco

Verifica-se que a “revolução industrial transformou um mundo baseado na agricultura, pecuária e manufatura, num mundo industrial de produção em larga escala”, sendo que, com “a chegada da segunda metade do século XX e o advento da sociedade pós-industrial onde a escala de produção e consumo foram multiplicados e elevados a uma escala muito maior”, se potencializaram “os riscos das atividades originadas da evolução tecnológica” (Silveira, 2018, pp. 131-132).

O atual padrão de desenvolvimento (que envolve atividades de mineração e desmatamento, utilização de produtos tóxicos, entre outros) força os limites do planeta Terra e potencia a aceleração de desastres naturais e crises económicas e sociais, salientando o carácter plural do conceito de risco e a multidimensionalidade das suas repercussões (Ferreira, 2022). As consequências são, pois, várias: problemas de saúde (por exemplo, diferentes tipos de cancro ou mesmo transtornos do foro psicológico), crises alimentares e energéticas, especulação financeira, escassez de água e organismos geneticamente modificados (Santos, 2019) cujos vários efeitos na alimentação humana são ainda desconhecidos.

Assim, as sociedades atuais são sociedades de risco(s). Como refere Ulrich Beck (2001), um dos principais cultores do conceito, a segunda modernidade radicaliza a primeira, trazendo, ao nível global, um novo tipo de capitalismo, de economia, de sociedade e de vida pessoal, uma vez que proliferam as consequências imprevistas da ação humana, que já não podem ser controladas como outrora (através de uma aceleração da complexidade, isto é, do aumento da diferenciação funcional). Esta perda de ligação entre meios e fins, causas e efeitos, anula a ilusão de progresso infinito ou a crença ilimitada no cálculo racional.

Giddens (1999/2007) faz uma distinção entre riscos externos, que advêm das fixidades da tradição ou da natureza, e riscos fabricados — que são socialmente criados e se relacionam com o conhecimento crescente que os indivíduos têm sobre o mundo. O autor conclui que vivemos num mundo em que os riscos fabricados por nós enquanto sociedade são tão (ou mais) ameaçadores que os riscos externos. Viver numa era global implica, então, enfrentar vários riscos e as suas conjugações amiúde imprevisíveis.

Areosa (2008) reflete sobre a noção de risco enquanto cenário de incerteza, ainda que seja difícil definir o conceito, já que este oscila mediante o contexto social onde é produzido. O risco depende, ainda, de emoções, sentimentos e perceções. Ele pode ser minimizado, localizado e evitado, mas nunca dissipado totalmente.

Para o mesmo autor, a visão dos atores sociais sobre os riscos a que estão sujeitos é limitada. Efetivamente, “os cidadãos normalmente apresentam carência de conhecimentos teóricos sobre os problemas e agem, frequentemente, na defesa de seu interesse próprio, de sua qualidade de vida e de sua família” (Fernandes et al., 2016, p. 230), ignorando os riscos. Beck (2000, p. 30) fala mesmo de uma “civilização do risco” onde “a vida quotidiana está culturalmente cega” já que “os sentidos anunciam normalidade onde, possivelmente, espreitam ameaças”.

Nem sempre, contudo, a perceção de risco é incorporada nas práticas sociais. Por vezes, as representações sociais dominantes e as projeções identitárias criadas pelos poderes locais geram processos de amnésia social, particularmente quando a conscientização do risco é encarada pelo sistema político, em conluio com as populações, como memória não desejada. Entra-se, assim, no que Beck apelidou de “irresponsabilidade organizada” (Beck, 2001, p. 236).

Ora, nos nossos casos de estudo, aconteceu, precisamente, este fenómeno de (des)atenção oblíqua. Queremos com isto dizer que, por a atividade mineira estar desativada e por as minas se situarem longe das vivências quotidianas, as memórias, resgatadas através dos relatos, selecionaram dimensões do passado, criando um fio narrativo que menospreza os perigos e que, acima de tudo, os quer esquecer.

Na verdade, ao lidarmos com uma (re)construção subjetiva (Pineau & Legrand, 2013), mobilizamos estórias que são simultaneamente constituídas (pelas circunstâncias das trajetórias pessoais) e constituintes, ao abrirem novas margens de interpretação sobre o contexto social imediato (do presente). Não será exagerado dizer, então, que os sentidos atribuídos ao passado variam de acordo com as experiências de vida, mas também as posições no espaço social e os interesses de cada agente (Bourdieu, 1993). Ora, tais orientações são igualmente motivadas por uma certa sociologia pragmática, leiga espontânea (a razão prática dos agentes sociais) que tende a maximizar retoricamente os proveitos territoriais pela (re)elaboração da memória, afastando as perceções de risco e enfatizando as potencialidades estratégicas do turismo, novo mantra de desenvolvimento local.

Sociologia, territórios, identidades e memórias coletivas: a importância das histórias orais

As “diferenças socioespaciais condicionam e reflectem-se nas condutas dos indivíduos e na forma como estes interagem entre si”, referia Carmo (2009, p. 259) ao debruçar-se sobre a importância do território e das territorialidades. Na verdade, as populações produzem identidades em torno dos locais onde vivem (Fernandes et al., 2016). Neste sentido, é possível afirmar que a dimensão espacial é imprescindível na análise da realidade social. Tal se justifica pelo facto de não estarmos “perante um conceito neutro, como se se tratasse de um conceito universal e único para aqueles que o enunciam” (Stoer et al., 2004, p. 117), e sim face a um lugar teórico e empírico que é “determinado pela sua apropriação por parte da comunidade e é, pois, político nesse sentido” (Stoer et al., 2004, p. 117).

Analisar as minas (no caso, de Regoufe e do Pejão) partindo da perspetiva dos atores sociais locais, no sentido de perceber se estas podem ser encaradas como uma dimensão relevante da identidade local e comunitária, implica aceder a memórias e histórias associadas a territórios específicos de forma a compreender como as emoções do passado e do presente moldam a identidade local e coletiva que é transmitida de geração em geração. Na verdade, “cada comunidade herda e reinterpreta diferentemente o seu próprio património tradicional” (Carmo, 2009, p. 276), tornando-se relevante aceder a representações do passado e do presente, garantindo uma dimensão sociohistórica à análise.

A memória, entendida como um conjunto de “construções do presente sobre o passado” (Silva, 2021, p. 223), torna-se, assim, um objeto de análise ao qual podemos aceder através de testemunhos orais (Amado, 1995; Pollak, 1989, 1992, citado em Silva, 2021).

O que distingue a história oral/vivida da história escrita é o facto de a primeira construir um quadro vivo e natural, repleto de linguagens verbais e não verbais, que conserva a imagem do passado a partir do redespertar dos cinco sentidos humanos. Além disso, verifica-se que a recolha de relatos individuais, ou seja, memórias autobiográficas, permite aceder à história coletiva: toda a memória individual está apoiada na memória grupal, todas as histórias de vida fazem parte da história em geral (Halbwachs, 1990).

No caso específico das antigas regiões mineiras, verifica-se que,

mais do que o património industrial, o património mineiro constitui por si só valor identitário e de representatividade’’. Não só pela especificidade das formas e equipamentos que acompanhavam os processos de extração e que chegaram até nós; também pelas lógicas sociais que o árduo trabalho no subsolo obrigava a estruturar” (Ribeiro, s.d.).

Neste sentido, as minas são um elemento de construção de identidades coletivas e de histórias orais, que caracterizam os territórios e as comunidades e as dinâmicas entre eles.

Metodologia

A abordagem metodológica é de cariz marcadamente qualitativo, uma vez que se pretende analisar a realidade dos atores sociais de forma holística e aprofundada, tendo por base as suas experiências e os significados que atribuem às mesmas (Creswell, 2014). Aceder a representações dos indivíduos sobre o risco e contactar com identidades e memórias coletivas através da história oral implica uma postura metodológica qualitativa ou indutiva, atenta aos fenómenos de comunicação e construção social da realidade e promotora da compreensão da sua profundidade, ainda que sem esquecer as condições materiais e objetivas em que se ancoram as práticas e representações.

Em termos de abordagem epistemológica, o presente trabalho enquadra-se na abordagem que Creswell (2014) denomina de construtivista já que se pretende compreender a realidade social dos indivíduos, valorizando o seu mundo da vida, os aos reportórios de conhecimento que vão tacitamente construindo e partilhando, partindo dos significados subjetivos que se criam e recriam no seio da sua comunidade local, que atua como quadro social e ponto de referência afetivo.

As técnicas de recolha de dados mobilizadas até então foram a análise documental e a entrevista. Relativamente à análise documental, esta serviu para contextualizar os territórios em estudo, recorrendo a informação estatística e a alguns documentos históricos de fontes digitais, a par de documentos estratégicos sobre a orientação política das autarquias. Já sobre as entrevistas, até à data, foram realizadas seis em Arouca e três em Castelo de Paiva, junto de diversos informantes-chave. Foi aplicado um guião flexível, sendo as entrevistas de caráter semiestruturado.

Para tratar e analisar a informação recolhida nas entrevistas procedeu-se à sua transcrição parcial e à interpretação do seu conteúdo, partindo-se de uma grelha de análise temática com várias dimensões e categorias.

No caso de Arouca, além da análise documental e das entrevistas, a equipa do IS-UP, acompanhada por uma profissional da Associação Geoparque Arouca, realizou uma visita às minas de Regoufe. Nesta visita foi possível recolher, de forma mais informal, algumas informações sobre a região e sobre as minas, bem como tirar algumas fotografias do local.

Resultados

O trabalho de investigação realizado até à data permitiu obter alguns resultados que importa aqui apresentar. É de referir que estes advêm da realização das primeiras aproximações e incursões ao terreno, sendo que o projeto SHS não está ainda terminado.

O concelho de Arouca e as minas de Regoufe

De acordo com dados provisórios dos Censos de 2021 (INE [Instituto Nacional de Estatística], 2022), o concelho de Arouca tem 21 154 habitantes, tendo perdido população relativamente ao ano de 2011 (taxa de variação de -5,4%) — tal como evidenciado na Figura 1. Verifica-se que, ainda comparando a 2011, existem menos jovens e mais idosos no concelho. A população residente é tendencialmente pouco escolarizada, ainda que esta situação pareça estar a inverter-se: o número de indivíduos com o 3.º ciclo, com o secundário/pós-secundário e com o ensino superior está a aumentar. De qualquer modo, em 2021, 14,7% da população residente em Arouca não tinha qualquer nível de escolaridade e 27,9% tinha apenas o 1.º ciclo. Por fim, constata-se que é uma população ligeiramente mais feminizada (Figura 1).

Figura 1 População residente em Arouca, por sexo, em 2011 e em 2021
Fonte: INE (2022).

Dados da PORDATA (Fundação Francisco Manuel dos Santos [FFMS], s.d.) revelam que, em 2019, o índice de poder de compra per capita em Arouca estava 27% abaixo da média nacional. Em 2020, de entre a população ativa, 4,2% encontra-se desempregada e inscrita no IEFP. Este valor é ligeiramente abaixo da média nacional; ainda assim, são 566 desempregados inscritos nos centros de emprego por mês. O setor de atividade que concentrava mais trabalhadores em 2020 era o das indústrias transformadoras. Em quarto lugar está o setor do turismo, com 6,4% dos trabalhadores do município. Tal como se pode ler no Plano Estratégico Arouca 2030 (Câmara Municipal de Arouca, 2020, p. 12):

Arouca, em 2019, já não é a Arouca de 1995, o que advém do resultado combinado das políticas e do investimento público com a consolidação de alguns setores económicos, mantendo-se a importância da indústria transformadora e com maior afirmação da construção civil e, sobretudo, das atividades na fileira do turismo (cultural e de natureza).

Arouca é o município da Área Metropolitana do Porto com a 7.ª maior percentagem de empresas neste setor, com 7,3% das empresas. Além disso, entre 2009 e 2019, verificou-se um crescimento de 51,2% no número de empresas não financeiras da área do alojamento, restauração e similares, o que revela a importância do setor (FFMS, s.d). A relevância do turismo no município é ainda visível no seu Orçamento Municipal para 2022: 9,60% do orçamento é dedicado ao Comércio e Turismo — o que corresponde a 1.492.900 euros para o setor do turismo e apenas 210.200 euros para mercados e feiras.

No website da Câmara Municipal de Arouca (s.d.a) pode ler-se que o concelho é, atualmente, composto por dezasseis freguesias. O território encontra-se povoado há muito tempo, havendo vestígios arqueológicos que remontam à pré-história. No entanto, a história de Arouca apenas ganhou destaque entre as terras vizinhas aquando da construção do Mosteiro, no século X.

O trabalho de investigação desenvolvido no âmbito do projeto SHS aborda uma época específica da história deste território: a época da exploração do volfrâmio nos anos da Segunda Guerra Mundial. Tal como explicitado por Pinto (2021), o volfrâmio, que abundava em Portugal, era essencial para a produção de armamento. Assim, em pleno Estado Novo, tanto ingleses como alemães vieram abastecer-se no país. As minas de Regoufe eram exploradas por uma companhia inglesa, sendo que, num local próximo, a exploração das minas de Rio de Frades estava a cargo dos alemães. Relatos da época falam de uma coexistência pacífica em Arouca, apesar do macroconflito bélico que se alastrava no demais continente europeu.

De acordo Silva J. M. L. (2011, p. 42), a sociedade de então era “conformada e conservadora, agrícola, migrante e fortemente religiosa”. O contexto era de empobrecimento e de carência, sendo que a exploração mineira surgiu como uma oportunidade de riqueza e desenvolvimento. Neste sentido, as freguesias mineiras da região (Alvarenga, Janarde, Covelo de Paivó, Cabreiros, Moldes e Canelas) passaram por um processo de crescimento populacional que se relaciona com a “corrida ao volfrâmio”. É de referir que se formou um novo grupo social na região composto pelos trabalhadores das minas. De acordo com o mesmo autor, os mineiros constituíam um grupo geograficamente disperso, mas caracterizado pela existência de fortes laços de solidariedade e traços específicos de identidade.

Em termos espaciais, as minas de Regoufe tinham, do lado norte e nordeste, as instalações técnicas e administrativas; a sudoeste estavam as instalações da lavaria, sucessão de tanques e maquinaria; já a nascente, as construções tinham caráter residencial (Pinto, 2021). Em visita ao complexo mineiro no dia 17 de fevereiro de 2022, foi possível observar e fotografar o que resta destas estruturas, bem como constatar que o local se encontra agora bem assinalado — os caminhos estão marcados com placas e existe um aviso de perigo que informa os visitantes que aquela é uma zona mineira desativada (Figura 2).

Figura 2 Fotografia do complexo mineiro de Regoufe

Como referido anteriormente, no caso de Arouca foram realizadas seis entrevistas a diversos informantes-chave, nomeadamente: uma profissional da Associação de Desenvolvimento Rural Integrado das Serras do Montemuro, Arada e Gralheira (ADRIMAG); o autor da dissertação de mestrado “A alimentação dos mineiros na época áurea do volfrâmio em Arouca”; um vereador da Câmara Municipal de Arouca; uma professora da escola Secundária de Arouca; uma estudante da FLUP residente no concelho de Arouca e, ainda, duas profissionais do Museu Municipal de Arouca.

No que concerne à primeira dimensão de análise, que remete para os conhecimentos da população sobre as minas, é possível afirmar que a população de Arouca não tem informações profundas face aos riscos associados à mina de Regoufe, ainda que estes sejam mínimos. Tais riscos são geralmente associados a um passado distante onde os trabalhadores da exploração mineira sofriam com problemas respiratórios. Relativamente a este último aspeto, é de referir que a consciência das pessoas da época sobre os perigos do trabalho mineiro surgiu tardiamente: “As minas foram consideradas um fenómeno muito bom na altura, mas imediatamente a seguir já foi considerado um fenómeno mau porque as pessoas morriam da doença das minas (…) As doenças respiratórias começaram a surgir muito rapidamente” (entrevista n.º 5).

Na atualidade há, portanto, algum desconhecimento e indiferença relativamente aos perigos da mina. Sobre esta dimensão de análise, os entrevistados revelam a existência de práticas como a visita ao complexo mineiro e outras práticas de lazer às quais se associa o risco de queda e a utilização de águas não controladas por não serem da rede pública:

As pessoas não imaginam, por exemplo, que o facto de terem ficado lá determinados minerais que com o contacto com a água e com o ar são libertados e que esses minerais depois podem trazer algum tipo de perigosidade (…). Por desconhecimento [as pessoas residentes] sentem-se perfeitamente seguras e não há motivo para alguma proteção. (entrevista n.º 3)

Passando para a questão da identidade local e da memória coletiva, os vários entrevistados concordam que as minas de Regoufe marcaram e continuam a marcar a comunidade, essencialmente porque vários arouquenses têm, ainda, vivências ou familiares ligados às minas. É importante referir que existe uma dualidade em torno do assunto: por um lado, a população reconhece a importância das minas e a centralidade do seu papel na comunidade, desejando preservar os relatos da época; por outro lado, é um assunto difícil de abordar porque se associa a tragédias e dificuldades (designadamente: doenças respiratórias, dureza do trabalho mineiro, processos de enriquecimento rápido ilícito seguidos por pobreza):

Se chegar ali e começar a falar das minas, eu acho que eles [os habitantes] sentem importância, reconhecem o marco histórico e a importância que teve na população e até nos seus próprios familiares, mas não acho que seja um assunto que as pessoas gostem de explorar (…). Porque ou os pais ou os avós tiveram uma história relacionada com as minas e nenhuma história que eu conheço, eu nunca ouvi falar de uma história que acabasse bem. (entrevista n.º5)

As memórias da época de exploração mineira em Regoufe estão ativas e tendem a ser transmitidas de geração em geração. Isto é visível pela quantidade de relatos (pessoais ou de terceiros) que a equipa do IS-UP recolheu. As histórias são, além de plurais, extremamente ricas e diversas, abordando inúmeros assuntos. Há quem se tenha debruçado sobre processos de enriquecimento veloz, sobre o contrabando do minério; há quem foque as dinâmicas de solidariedade entre mineiros; há quem explicite factos históricos — relatando, por exemplo, a proximidade entre alemães e ingleses ou o desenvolvimento económico da região, bem como a construção de inúmeras infraestruturas; e há, ainda, partilhas sobre as condições de trabalho e sobre as rotinas dos mineiros.

Através destas histórias relatadas em contexto de entrevista, foi possível compreender os modos de vida na época da exploração do minério. Os homens trabalhavam, tendencialmente, no interior das minas, enquanto mulheres e crianças se mantinham à superfície para lavar a terra à procura de pedaços de volfrâmio. Os trabalhadores passavam a semana no complexo mineiro, que se foi desenvolvendo como uma pequena aldeia que tinha todos os serviços necessários: dormitórios, cantinas, entre outros. Eram espaços marcados por um grande grau de investimento e desenvolvimento — foram os primeiros locais a ter eletricidade, nomeadamente. O volfrâmio marcou a comunidade da época, alterando rotinas do quotidiano e formas de estar, e continua a marcar, indiretamente, os habitantes do município pelas memórias e histórias (que estão muito presentes). É um importante símbolo da identidade local, um símbolo que une a população arouquense e a diferencia dos seus vizinhos — populações dos municípios que não passaram pelas mesmas vivências e, portanto, não partilham deste imaginário.

A senhora (…) saía de madrugada, vinha a pé trazer a sacola do comer ao marido, o reforço alimentar para ele comer e já fazia o contrabando. Ou seja, já levava algum, já levava outro saco porque, de uma forma ou de outra, já conseguia roubar algum minério e depois ia direto até ao Porto para vender no mercado negro (…). Eles faziam isso a pé. Saíam de madrugada e chegavam de madrugada a casa só para ir vender o volfrâmio porque, efetivamente, justificava. É obvio que isso teve impacto na comunidade na altura. Arouca nessa altura mudou radicalmente — é obvio que não falo por experiência própria, mas pelos testemunhos que tenho. (entrevista n.º 5)

A preservação destas memórias é percebida pela população como relevante, apesar de, tendencialmente, não reconhecerem as minas enquanto elemento de reivindicação por melhores condições de vida e por novas oportunidades. Segundo alguns entrevistados, a componente imaterial está a ser trabalhada em Arouca através de recolhas pontuais de histórias, de alguns processos de musealização e da utilização do território como base das aprendizagens na escola: “As pessoas não têm perceção do valor que têm lá, em termos naturais e culturais. [Para um projeto de refuncionalização] será preciso uma transformação mais social de capacitação das pessoas para adaptar às novas funcionalidades e novas atividades económicas” (entrevista n.º 2). Ainda, em outra entrevista:

Eu acredito que, a nível de entidades (o município, o Geoparque, mesmo a própria ADRIMAG, as escolas), temos noção do que ali está (…). A nível da população, eu acho que a população quer muito que as minas não sejam esquecidas, mas, na prática, eu acho que ninguém sabe ao certo o que é para fazer. (entrevista n.º 5)

Para os entrevistados, o futuro da mina e da região passa pela continuação deste trabalho de conservação, preservação e valorização. Além disso, admite-se um futuro (ainda) mais focado no turismo — há várias menções a um projeto de intervenção no sentido de refuncionalizar e musealizar a área das minas de Regoufe: “Eu acho que a comunidade identifica essa necessidade: é importante musealizar porque o entendem como forma de preservar memórias, preservar história” (entrevista n.º 6). Ainda, em outra entrevista:

No fundo eu tenho uma esperança que se pegue num dos complexos, e acredito no complexo de Regoufe nisso, para, basicamente, fazer um museu no próprio local. E não ser um museu de exposição: é reconstruir as casas, as estruturas, a maquinaria…voltar a ter o complexo como ele era. Criar ali um museu onde nós, ao entrarmos, sentimos o próprio mineiro, vestimos a pele do mineiro e andar a explorar as minas como elas eram na altura. (entrevista n.º 5)

Apesar destes relatos sobre o futuro do complexo mineiro de Regoufe, tais planos não parecem estar formalizados, uma vez que não existe menção aos mesmos em nenhum documento oficial do município. No Orçamento Municipal para 2022 (Câmara Municipal de Arouca, s.d.b) existe, no entanto, uma verba de 175.873 euros para “Aquisição/Valorização Turístico/Ambiental de Complexos Mineiros”, que inclui um projeto de valorização de um outro complexo presente no território (o complexo mineiro de Rio de Frades). Por sua vez, no Plano Estratégico Arouca 2030 (Câmara Municipal de Arouca, 2020), não há qualquer menção a investimentos ligados ao património mineiro.

É de destacar a preocupação com o desenvolvimento integrado da região, tendo em conta outras questões além do turismo, nomeadamente os problemas de envelhecimento e perda populacionais, falta de emprego e de acessibilidades, entre outros:

Quer-se musealizar, mas depois se tivermos lá umas coisas ao alto, uns painéis, e não tivermos vida… Eu não sei qual é a solução e temo que alguns espaços tendam a desaparecer naturalmente ou que fiquem só com plaquinhas (…). Musealizar é associado à turistificação — e sim, faz sentido — mas há mais mundo além de uma visita de lazer. (entrevista n.º 6)

Ainda assim, o turismo é entendido como central nesse desenvolvimento integrado: “Todo um conjunto de atividades complementares desenvolvem-se à volta do turismo. Se conseguirmos criar um núcleo de desenvolvimento no futuro ligado a estas questões, tenho a certeza que vamos conseguir fixar algumas pessoas e atrair novos investimentos” (entrevista n.º 2).

O caso das minas do Pejão, em Castelo de Paiva

O concelho de Castelo de Paiva pertence ao distrito de Aveiro e situa-se entre os limites de Arouca e o Rio Douro. Tal como se pode ler no website da Câmara Municipal de Castelo de Paiva (2013), é um concelho tipicamente rural que ficou marcado pela exploração carbonífera do Pejão. É, também, um concelho que se tem vindo a industrializar (destacam-se as áreas do calçado, têxtil, madeiras e mobiliário, metalomecânica e construção de roulottes/autocaravanas), uma vez que a localização privilegiada garante o escoamento dos produtos manufaturados. Assim, segundo dados da PORDATA (FFMS, s.d.), a percentagem de pessoas a trabalhar em atividades ligadas ao turismo como o alojamento, restauração e similares rondava os 4,1 pontos percentuais em 2020, permanecendo abaixo do comércio, das indústrias transformadoras, da construção e das atividades relacionadas com o setor primário. Efetivamente, apesar de em 2020 se ter verificado uma queda de 32,7 pontos percentuais nas dormidas em alojamentos turísticos relativamente a 2019, o número de empresas não financeiras do sector do alojamento, restauração e similares aumentou de 78 para 91, totalizando um crescimento de 16,7% (FFMS, s.d.).

À semelhança do que acontece no caso de Arouca, o concelho de Castelo de Paiva, composto por seis freguesias, perdeu população relativamente ao ano de 2011 (Figura 3). Dados provisórios dos Censos de 2021 (INE, 2022) revelam que o concelho conta com 15 589 habitantes, menos 6,8% do que em 2011. Neste período, a população revela-se, também, mais envelhecida, uma vez que o número de pessoas com mais de 65 anos tem vindo a aumentar e o número de crianças com menos de 14 anos tem diminuído. Há ligeiramente mais mulheres do que homens. Em termos de escolaridade, tem aumentado o número de pessoas com o ensino secundário/pós-secundário e com o ensino superior. De qualquer forma, 12% dos habitantes não têm qualquer grau de escolaridade e 25,4% apenas completou o 1.º ciclo. Relativamente aos rendimentos dos paivenses, em 2019, no universo dos trabalhadores por conta de outrem do município de Castelo de Paiva, os homens ganhavam em média, por mês, 896 euros e as mulheres 815 euros, segundo dados da PORDATA (FFMS, s.d.). O índice do poder e compra, por seu turno, rondava os 68% em 2019, estando abaixo dos valores de Arouca, já referidos.

Figura 3 População residente em Castelo de Paiva, por sexo, em 2011 e em 2021
Fonte: INE (2022).

Relativamente às minas do Pejão, de acordo com o website da Banda de Música dos Mineiros do Pejão (s.d.), a sua história remonta ao ano de 1859, quando o Conselho de Obras Públicas e Minas reconheceu a existência de carvão na zona. As concessões mais antigas são de 1884, sendo que a exploração estava a ser operacionalizada por uma empresa inglesa. A notoriedade da mina do Pejão aumenta com a Primeira Guerra Mundial e, no entretanto, foram localizados vários outros afloramentos de carvão na região que deram origem a novas minas — estas passaram a formar o Couto Mineiro do Pejão que tem, aproximadamente, 10 quilómetros, estendendo-se entre Germunde e o Alto do Pejão. A exploração permanece a cargo de estrangeiros até 1977, ano em que as minas são adquiridas pelo Estado português. Em 1994, são oficialmente encerradas, terminando um ciclo de exploração mineira com mais de um século.

Ribeiro (s.d.) reflete sobre a importância das minas do Pejão na comunidade de Castelo de Paiva, referindo que estas eram a principal estrutura territorial e socioeconómica do concelho. A autora acrescenta que, com o encerramento das minas, “muitos dos seus lugares tornaram-se fisicamente inúteis, contudo, conferem ainda um sentimento de pertença e de relacionamento entre os antigos mineiros” (Ribeiro, s.d., p. 2), mesmo que não exista uma estratégia local de preservação e valorização do património e do legado mineiro.

Relativamente a este caso, foram realizadas, como referido anteriormente, três entrevistas a diferentes informantes-chave. Foram eles: um representante da Associação Recreativa, Cultural, Patrimonial e Ambiental De Folgoso (ARCAF) (entrevista simultânea); uma vereadora da Câmara Municipal de Castelo de Paiva; o fotojornalista, autor do trabalho “Carvão de Aço” e, ainda, um guardião da Mina do Pejão.

Quando questionados sobre os conhecimentos da população sobre as minas, especialmente no que concerne a potenciais perigos, os entrevistados revelam que os habitantes do concelho tendem a viver despreocupados. Os perigos das minas são associados ao passado: quando a atividade mineira decorria em Castelo de Paiva havia uma forte prevalência de problemas respiratórios nos trabalhadores. Na atualidade, há preocupações pontuais com a possibilidade de aluimentos, sendo que a única prática de risco revelada pelos entrevistados se prende com as visitas de lazer à mina e práticas de desporto na zona. É de referir que esta população parece estar muito marcada por um incêndio na mina do Pejão, que ocorreu em 2017, cujo fumo era prejudicial à saúde: “Os aventureiros, que gostam de meter o nariz onde não foram chamados. Aí é que está o perigo. O perigo não está nas minas, mas é de quem vai ver e não sabe os limites” (entrevista C).

A mina do Pejão é apresentada como um símbolo da identidade local. Os entrevistados referem que esta diz muito àqueles que lá trabalharam, direta ou indiretamente. Acrescentam que a atividade mineira envolveu muita gente e garantiu o desenvolvimento e a maior visibilidade do concelho. No entanto, o património não está a ser, atualmente, devidamente salvaguardado e valorizado. Os jovens, que são poucos, já não têm grande ligação às minas: “Para a maior parte das pessoas as minas já não dizem nada. Para a maioria, mas uma grande maioria, as minas não dizem nada. Para aqueles que lá trabalharam, ainda lhes diz alguma coisa das memórias antigas” (entrevista C).

Os entrevistados associam este processo de desvalorização ao próprio encerramento das minas — um evento marcado por forte contestação populacional (Lopes, 2015). Neste sentido, verifica-se que, no passado, a mina constituiu-se enquanto elemento de reivindicação: foram feitas várias exigências de investimento na região aquando do seu encerramento. Por oposição, atualmente, há, segundo um dos entrevistados, uma minoria interessada na preservação da memória e uma maioria que encara o investimento na mina como uma perda de tempo e dinheiro:

Acho que se cortou aqui muito a esperança neste território porque nós éramos identificados e estávamos na linha da frente nesta questão da exploração mineira — havia aqui um legado, um espólio, havia toda uma panóplia de atividades que marcavam os mineiros e os identificavam. De repente, com o encerramento, não se acautelou e não se cuidou. (entrevista B)

De qualquer forma, entre os entrevistados as memórias da mina permanecem. Foram vários os episódios relatados, abordando-se a dureza da vida na época e as difíceis condições de trabalho, os riscos para a saúde da atividade mineira, o forte espírito de solidariedade e companheirismo entre as pessoas que trabalhavam e viviam em torno da mina, os ritmos e características do quotidiano da época da exploração, entre outros assuntos. Segundo os testemunhos dos entrevistados, a mina de Pejão contou com o trabalho de cerca de três mil pessoas, muitas vezes redes familiares que dependiam destes rendimentos para subsistir. Associado à vida dura e marcada por doenças associadas à própria atividade, existiam, contudo, algumas regalias:

Recordo-me de terem posto médico próprio, de haver logo na altura o jornal (que era “O Pejão”) em que eles faziam questão de retratar todos os acontecimentos à época (…). Os filhos dos mineiros e os próprios mineiros, recordo-me de terem também acesso a aulas de natação (…). (entrevista B)

No que concerne ao futuro das minas do Pejão, foi salientada a necessidade de desenvolver um conjunto de ações a nível local no sentido de levar turistas à região. Há referências à criação de um centro de interpretação mineira, à requalificação do bairro social do Pejão, à inauguração de um museu e à criação de um percurso da atividade mineira. Os entrevistados destacam, ainda, a relevância de preservar as memórias da população e de introduzir uma componente pedagógica nas escolas sobre a atividade mineira da região:

Quando falo em museus, não tem de ser um museu à antiga, mas um museu dinâmico, um museu moderno. Há muito potencial (…). Não acredita a quantidade de espólio da mina que estava lá em cima [numa sala da Junta de Freguesia de Pedorido], tudo a apodrecer. Documentação, recibos de salários, fichas de saúde do posto médico que tinham dos mineiros, tarjas e bandeiras da altura do protesto do encerramento… (…). O que é certo é que há um grande espólio. E um espólio extremamente importante ainda que é o espólio vivo, que são as pessoas. E as pessoas a tendência é elas morrerem, como é óbvio. E isto ou se faz, ou é cada vez mais difícil recuperar a memória. (entrevista A)

Nesta linha, o Município de Castelo de Paiva procedeu à criação do Núcleo de Experiências Turísticas do Couto Mineiro do Pejão no presente ano. Este projeto surge, segundo o município, para promover a localidade e dar resposta a esta necessidade revelada pelos entrevistados (e restantes munícipes) de disseminar o património cultural associado às Minas do Pejão. Claro está que esta ação tem, ainda, objetivos turísticos: “procurando contribuir para o surgimento de novos e inovadores produtos e serviços, promovendo a competitividade do tecido empresarial de Castelo de Paiva, bem como a sua consolidação” (Câmara Municipal de Castelo de Paiva, 2022a, para. 13). A notícia publicada no website da Câmara parece alinhar-se com os desejos dos habitantes entrevistados, reconhecendo, inclusive, o impacto que a exploração mineira tem ainda hoje nos paivenses. Por outro lado, permanece junto dos dirigentes políticos a vontade de recuperar o edificado mineiro e desenvolver uma estrutura museológica que espelhe a história através de fotografias e documentos (Câmara Municipal de Castelo de Paiva, 2022a). Ao mesmo tempo, deram-se os primeiros passos para a requalificação do Cavalete do Fôjo através da assinatura do contrato com a construtora no valor de 275.799,07 euros, prevendo a conclusão da obra no máximo até ao mês de maio do próximo ano (Câmara Municipal de Castelo de Paiva, 2022b).

Para terminar, importa reforçar o facto de a população de Castelo de Paiva permanecer bastante afetada pelo encerramento da mina. Os entrevistados mencionam várias vezes esta questão, demonstrando que, na altura do término da atividade mineira, foram feitas várias promessas de investimentos na região que não foram cumpridas. Parece existir, portanto, um descontentamento face à (in)ação do Governo. Além disso, são reveladas várias fragilidades territoriais em termos de falta de transportes e outros serviços públicos e fraca cobertura de rede de telemóvel.

Conclusões

A comparação entre os dois casos em estudo, com base nos resultados das entrevistas, permite já salientar algumas conclusões relevantes.

No que concerne ao conhecimento da população sobre as minas e os seus riscos, os dados confirmam, tanto para Arouca como para Castelo de Paiva, o que é avançado pela bibliografia: existe, genericamente, desconhecimento e as pessoas tendem a viver despreocupadas. É neste sentido que Beck (2000) se refere a uma população culturalmente cega. Consequentemente, há nestes concelhos determinadas práticas que podem ter riscos associados, tais como as atividades de turismo e lazer junto às minas desativadas. Acrescenta-se que os riscos são associados ao passado, estando relacionados com memórias e relatos sobre o trabalho mineiro.

No caso de Arouca, já relativamente à dimensão da identidade e memórias coletivas, constata-se que as minas são um elemento identitário forte e atuante. A dimensão territorial e a história das minas chegam mesmo a ser aspetos integrantes da educação e formação dos mais jovens, inclusive em contexto escolar. Além disso, o território tem uma robusta estratégia turística e de valorização dos recursos locais. Em contraste, os entrevistados de Castelo de Paiva referem que, apesar da mina do Pejão ser importante na identidade dos habitantes (especialmente os mais velhos), ela é, atualmente, desvalorizada. Isto vem de encontro ao que é apresentado por Ribeiro (s.d.) relativamente à necessidade de uma intervenção local, no sentido de criar uma estratégia de preservação e valorização do património/legado mineiro.

Outro fator diferenciador dos casos de estudo passa pelas representações em torno do encerramento da atividade mineira. Começando por Arouca, esta temática surge apenas associada ao empobrecimento da população pela falta de conhecimentos de gestão pessoal de dinheiro. Ou seja, o trabalho na mina de Regoufe trouxe um enriquecimento rápido que se desperdiçou devido a uma má gestão e esbanjamento. Já o encerramento da mina do Pejão (em Castelo de Paiva) está associado a uma revolta coletiva da população e a um descontentamento com a falta de investimento no local que dura até hoje. As partilhas dos entrevistados vão mais neste sentido, abordando, por exemplo, o direito às indeminizações pós-encerramento da mina e os momentos de revolução — o que não acontece no caso de Arouca.

De entre a totalidade dos entrevistados, as memórias das minas parecem estar vivas e muito presentes. Como já referido, foram vários os relatos e histórias (pessoais ou de terceiros) colecionadas pela equipa de investigação em contexto de entrevista. Nesta linha, verifica-se que nos dois concelhos os planos para o futuro passam pela preservação deste património imaterial, a par do restante património material ligado às minas. O turismo é apresentado como a solução para estes territórios, ainda que se admita a necessidade de uma intervenção holística que melhore as acessibilidades e os serviços públicos, aumentando a qualidade de vida dos residentes, e que capte novas pessoas e investimentos. Como referido, no município de Arouca esta aposta no turismo e no património local parece ser mais forte e estar mais desenvolvida.

Nestes territórios, a “responsabilidade de preservar o legado mineiro surge como uma oportunidade para o desenvolvimento de condições que assegurem o seu futuro” (Ribeiro, s.d., p. 1).

De forma geral, conclui-se que existem várias semelhanças entre as populações de Arouca e de Castelo de Paiva, nomeadamente no que diz respeito às suas perceções sobre o risco e sobre a necessidade de preservação das memórias locais. Por outro lado, há aspetos, em especial os que se relacionam com o desenvolvimento de estruturas locais de preservação do património e do legado mineiro, que afastam os dois territórios. Relativamente a este aspeto, um dos entrevistados em Castelo de Paiva chega mesmo a referir que o seu concelho deveria seguir a estratégia implementada pelos vizinhos arouquenses.

Em suma, o enfraquecimento da perceção das dimensões associadas ao risco e a mobilização da instrumentalização turística dos legados das minas (mais forte em Arouca do que em, Castelo de Paiva) não podem ser dissociadas do modo como a memória individual e a coletiva se articulam, produzindo amnésias e fenómenos de “irresponsabilidade organizada” ocultando e desocultando, destruindo e reconstruindo, concentrando as energias da reconstrução narrativa na projeção de um futuro que aproveita o que deve ser aproveitado (na perspetiva dos agentes) e remete ao limbo do esquecimento o que parece não servir para tal projeção.

Pistas para trabalho futuro

Tal como referido anteriormente, o projeto “SHS — Soil health surrounding former mining areas: Characterization, risk analysis, and intervention” continua o seu trabalho. A equipa pretende aprofundar o trabalho já realizado, realizando mais entrevistas a informantes-chave e prosseguindo com a análise de documentos relevantes sobre os territórios. Há que apostar mais no trabalho em Castelo de Paiva, uma vez que este caso se encontra menos explorado do que o de Arouca, para depois prosseguir com o processo de análise comparativa.

Além disso, é necessário operacionalizar a intervenção junto da comunidade estudantil de Arouca e Castelo de Paiva que o projeto contempla. Essa intervenção não partirá apenas da equipa do IS-UP: serão realizadas várias atividades pelos diferentes consórcios do projeto, no sentido de permitir o “contacto com as áreas em estudo e com os investigadores do projeto, contribuindo para o desenvolvimento do espírito crítico e científico, bem como para a curiosidade científica dos alunos, procurando-se estimular a sua criatividade e desenvolver competências artísticas” (Torres et al., 2022, p. 57).

No que concerne à intervenção partindo da área da sociologia, foi elaborado um plano de intervenção nas escolas que conta com duas sessões em cada concelho — sendo, então, necessário passar à prática. As atividades a desenvolver pelo IS-UP têm como principais objetivos a divulgação do projeto SHS e a apresentação da perspetiva da sociologia junto dos jovens; o acesso a representações sobre as minas e sobre a história do seu concelho, de forma a compreender como é que as histórias são transmitidas e apropriadas intergeracionalmente; o acesso, através dos jovens, a memórias sobre as minas e a novos contactos para realizar mais entrevistas.

As identidades locais são plurais e estão em permanente dinâmica, unindo as temporalidades da vida social. Será importante, do ponto de vista heurístico, compreender como as novas gerações fazem presente com o passado, isto é, adaptando, atualizando e modificando um património de reportórios herdado de acordo com as necessidades e os projetos de aqui e de agora, uma outra maneira, afinal, de fazer lugar.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer a todos os investigadores e investigadoras dos vários consórcios do projeto “SHS — Soil health surrounding former mining areas: Characterization, risk analysis, and intervention”.

Fica aqui, ainda, uma nota de agradecimento a todas as entidades de Arouca e de Castelo de Paiva que acolheram este projeto, facilitando contactos para entrevistas e documentação para análise sociológica. No mesmo sentido, agradece-se a todos/as os/as entrevistados/as pela sua disponibilidade e colaboração.

Associação de Desenvolvimento Rural Integrado das Serras do Montemuro, Arada e Gralheira (ADRIMAG)
Associação Geoparque Arouca (AGA)
Associação Recreativa, Cultural, Patrimonial e Ambiental De Folgoso (ARCAF)
Autor da dissertação de mestrado A alimentação dos mineiros na época áurea do volfrâmio em Arouca
Câmara Municipal de Arouca
Câmara Municipal de Castelo de Paiva
Escola Secundária de Arouca
Estudante da FLUP residente no concelho de Arouca
Fotojornalista, autor do trabalho “Carvão de Aço”
Guardião da Mina do Pejão
Museu Municipal de Arouca

Referências

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Data de submissão: 25/03/2022 | Data de aceitação: 07/09/2022

Notas

Por decisão pessoal, as autoras do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.

[1]Esta investigação foi realizada pela equipa do IS-UP: Leonardo Camargo Ferreira, Rita Correia Madeira e Sandra Filipa Mendes Couto sob a orientação científica do Professor Doutor João Miguel Teixeira Lopes.

Autores: João Teixeira Lopes, Rita Correia Madeira e Sandra Mendes Couto