N.º 33 - dezembro 2023
Nuno Oliveira
FUNÇÕES: Concetualização, Investigação, Recursos, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Iscte — Instituto Universitário de Lisboa, CIES — Centro de Investigação e Estudos de Sociologia.
Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal
E-mail: nuno.filipe.oliveira@iscte-iul.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9935-1334
Resumo: Neste ensaio examino as diferenças existentes entre o multiculturalismo e o interculturalismo assumindo que não somente representam modelos diferentes, como a sua institucionalização se situa a escalas distintas. Primeiro, ofereço um sistema de premissas para identificar o âmbito de uma prática ou política multicultural. Segundo, coloco em relevo os autores que entendem o interculturalismo como uma mera variação retórica do anterior multiculturalismo. Terceiro, procuro mostrar como podemos diferenciar os dois modelos partindo das suas lógicas institucionais. Finalmente, e com a brevidade de um ensaio, aponto algumas fragilidades ao multiculturalismo que tornam mais pertinente a crítica ensaiada pelos defensores do interculturalismo, bem assim como as suas principais propostas. Concluo salientando algumas premissas do interculturalismo onde se sustentam diferenças substantivas com o multiculturalismo.
Palavras-chave: muliculturalismo, interculturalismo, cultura, grupos.
Abstract: In this essay, I examine the differences between multiculturalism and interculturalism assuming that not only they represent different models, but also their institutionalization occurs at different scales. First, I offer a system of premises to identify the scope of a multicultural practice or policy. Second, I highlight those authors who understand interculturalism as a mere rhetorical variation of earlier multiculturalism. Third, I try to show how we can differentiate the two models starting from their institutional logics. Finally, and with the brevity of an essay, I point out some weaknesses of multiculturalism that make the critique rehearsed by the defenders of interculturalism more pertinent, as well as their main proposals. I conclude by emphasizing some premises of interculturalism where substantive differences with multiculturalism are supported.
Keywords: muticulturalism, interculturalism, culture, groups.
Introdução
O interculturalismo tem assumido o lugar de linguagem normativa de disseminação institucional. A União Europeia adotou o conceito de interculturalismo para as suas políticas de integração de imigrantes; o Banco Mundial usa a mesma noção; e, da mesma forma, a UNESCO — Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura incorporou uma variação da palavra — diálogo intercultural — no seu léxico.
Um debate sobre as virtudes e falhas do multiculturalismo em face da ascensão de um novo modelo ao qual gradualmente se convencionou chamar de interculturalismo teve o seu fulcro numa colecção de artigos no Journal of Intercultural Studies cujo objectivo era entrar em diálogo com o recém-publicado livro de Ted Cantle (2012), Interculturalism: the new era of cohesion and diversity. Uma das questões que definia, para usar a terminologia de Bourdieu, um campo de lutas simbólicas pelo poder da representação legítima, é que vários autores, em particular Meer e Modood (2012), construíam o seu argumento pela inexistência de diferenças entre interculturalismo e multiculturalismo, e que, na realidade, as (novas) promessas do interculturalismo estariam contidas nos vários multiculturalismos que as precederam.
O argumento deste texto, com a brevidade que cabe a um ensaio, é que existem diferenças de natureza substantiva entre o multiculturalismo e o interculturalismo e por isso não se trata apenas de um efeito retórico ou de um modismo na sucessão de slogans com impacto social e político pretendido. Estas diferenças, argumentarei, residem quer nos seus pressupostos quer nas lógicas institucionais que, presumivelmente, implementariam os mesmos.
Em rigor, existe todo um debate sobre os significados da interculturalidade que não se conjuga com a ideia de interculturalismo enquanto modelo de organização da diversidade cultural. Nesta acepção, a interculturalidade é basicamente aquilo que Canclini (2009, p. 15) especifica como “o que acontece quando os grupos entram em relações e intercâmbios”. É, no fundo, a faceta dialógica do multicultural. Creio, contudo, que especificar a diferença entre um e outro termo pelo princípio do movimento versus a estanquicidade[1] não se reveste de muita acuidade analítica. Desde logo, porque dificilmente encontramos um momento histórico em que os grupos não se encontraram em relação. O primado do relacional para estabelecer uma diferença analítica interna ao pensamento intercultural é um mero efeito retórico na medida em que, com a globalização, deixaram de existir grupos humanos fora de uma situação sintagmática; i.e., figuracional. Mas primeiro gostaria de me debruçar sobre o discurso multicultural para a partir daqui poder iluminar aquilo que eu julgo serem as diferenças essenciais entre os dois modelos, enquanto formas políticas e institucionais de organização da diversidade.
Regras de ouro para identificar um multiculturalista
Existem pelo menos duas formas — e estas eu tomo como sendo as principais — de interpretar o fenómeno multiculturalismo. Uma, de cariz teórico-filosófico, inscrita sobretudo nas teorias políticas e na lógica normativa que nelas se encontra implicada (Kymlicka, 1995; Parekh, 2000). Outra, mais prática, relacionada com as políticas concretas, com as posturas ideológicas, com os conteúdos discursivos e práticos (Vertovec & Wessendorf, 2010). Não sendo totalmente dissociáveis, estas duas posturas, contudo, têm-se mantido separadas e as suas consequências só tangencialmente se tocam. Melhor dizendo, o que é do domínio da teoria social e política dificilmente possui tradução directa no domínio prático das políticas concretas. A melhor dicotomia que pode ser aqui evocada é a britânica diferença entre politics e policy.
Esta distinção é apenas analiticamente correta; e muito embora se tenha escrito largamente sobre as distorções das aplicações locais — leia-se, práticas e concretas — dos quadros mais abstractos e teóricos, creio que Mouzelis (2012) forneceu a chave para o enigma quando salientou que as asserções paradigmáticas sofrem, por norma, modificações quando instanciadas ao nível sintagmático.
Por outro lado, na literatura sobre multiculturalismo, foram recenseadas inúmeras possibilidades que caracterizam os multiculturalismos realmente existentes. Entre estas salientamos a distinção entre multiculturalismo radical ou policêntrico (Shohat & Stam, 1994), entre fraco e forte (Grillo, 2005) ou as nove possibilidades elencadas por Delanty (2003/2010) no seu livro Community que se afiguram demasiado extensas para aqui as reproduzir.
Não obstante, se raciocinarmos em termos ideal-típicos, podemos identificar no multiculturalismo quatro aspetos diferenciadores que são transversais a qualquer uma das modalidades em que este seja equacionado:
i) Ontologicamente é sobre grupos e não sobre o indivíduo;
ii) É sobre direitos dos grupos;
iii) É sobre uma forma particular desses direitos, designados por culturais;
iv) É sobre perspectivar a arena distributiva em termos de uma cisão entre maioria/minoria.
Porque é importante termos presente estes 4 elementos? Porque eles permitem destrinçar o núcleo daquilo que podemos designar com propriedade multiculturalismo daquilo que é, tanto as suas declinações da linguagem organizacional, em particular estatal, mas também académica quando, dotando a noção de uma elasticidade que ela teoricamente não tem, amalgama qualquer política que vise proteger alguma forma de diversidade cultural sob o chapéu inflado do multiculturalismo. Esta destrinça permite também comparar o multiculturalismo com o quadro social que paulatinamente o tem a vindo a substituir: o interculturalismo. E esse será parte do argumento: que é, não apenas possível, como aconselhável, que se destrincem estas duas categorias, porque elas representam de facto e de jure coisas distintas.
Recentemente — 2012 — assistiu-se a uma acesa discussão entre partidários do multiculturalismo e defensores de um novo paradigma, o interculturalismo,[2] e não deixa de ser curioso que o pomo da discórdia não era a sua incomensurabilidade, mas antes a sua sobreposição; ou seja, para os partidários do multiculturalismo, o interculturalismo não trazia nada de novo e verdadeiramente relevante enquanto modelo de acomodação da diversidade cultural. Quanto a nós esta perspectiva pode ser colocada em causa. Numa primeira asserção, que pode desde já ser avançada, importa notar que a diferença deve ser encontrada ao nível das lógicas institucionais e dos seus efeitos nas diversas arenas sociais, e menos nos postulados paradigmáticos.
Porém, antes disso, gostava de me debruçar sobre os quatro elementos elencados acima.
A ontologia dos grupos
O multiculturalismo é sobre grupos e sobre como a pertença ao grupo possui precedência em relação ao indivíduo. Mas não é a qualquer grupo, é ao grupo cultural, entendendo-se este, nos termos de Young (1990), como as suas formas culturais, práticas e estilos de vida. Deste postulado extrai-se um segundo que é o da natureza grupal da sua epistemologia, o que faz com que associado ao multiculturalismo se encontre um relativismo e que os termos contra os quais este se opõe são os do universalismo (Young, 1995). Voltaremos a este ponto.
A ontologia grupal confronta em particular a doutrina liberal e a incidência que esta coloca no indivíduo. Aqui o multiculturalismo é essencialmente um comunitarismo na medida em que a experiência individual é sempre mediada pelo reconhecimento coletivo. Repare-se que — e isto deriva directamente da teoria de Taylor (1992) — não é qualquer experiência colectiva, o que redundaria basicamente numa sociologia; trata-se sim de reconhecimento de uma identidade coletiva. Ora é esta identidade coletiva, segundo o primado da ontologia grupal, que permite a coalescência da identidade individual, ou seja, como diz Taylor (1992), a cultura fornece o horizonte de significado para a pessoa, e por isso deve ser objecto de reconhecimento porquanto ela estabelece a condição de autoestima que faz parte da dignidade universal humana.
Que consequências de nível epistemológico possui uma tal postura? Primeiro, que o conhecimento é relativo ao grupo que o enuncia. Podemos encontrar na ideia de Epistemologias do Sul (Santos & Meneses, 2009), por exemplo, esta doutrina. Em muitos autores pós-coloniais a lógica é radicalizada e é justamente porque o poder é parte inerente do conhecer que alguns saberes foram subalternizados em relação a outros (vide Mbembe, 2005). Mas o raciocínio pode ainda ser mais extremado e chegarmos a um ponto onde se reivindica que apenas os próprios grupos podem sobre eles emitir juízos ou enunciados de verdade. Temos exemplos disso em campanhas movidas por alguns académicos para que apenas africanos possam escrever sobre africanos ou ciganos possam dizer alguma coisa sobre os ciganos. Seguramente, Taylor não partilharia destas opções, desde logo porque mais recentemente afastou-se de versões radicalizadas orientando agora a sua teoria do reconhecimento por versões não essencialistas da mesma, onde cabe a ideia de “reasonable accomodation” [ajustamento concertado][3]. Para Appiah (2018) isto é apenas uma forma de essencialismo inadmissível porque responde igualmente a guiões culturais obrigatórios e formulados pela imposição duma identidade colectiva que, em termos de autonomia, deveria poder ser rejeitada, debatida ou criticada.
O direito dos grupos
Existem várias discussões sobre o alcance de tais direitos. A melhor síntese dos vários contributos foi, em nossa opinião, produzida por Aylet Shachar (2001). Sustentando-se na distinção entre multiculturalismo forte e fraco, o primeiro obrigaria a “uma redefinição fundamental das nossas noções de cidadania” (Shachar, 2001, p. 28). Desde logo, porque as identidades dos grupos passam a ser extensamente refletidas no domínio legal, formal e constitucional para que estes possam governar os seus membros de acordo com regras próprias. A relação com o Estado passa a diferenciar o laço de cidadania republicana, abrindo este a formas específicas de autogoverno e à inclusão oficial das “vozes” dos grupos identitários no quadro constitucional e no discurso público. A relação entre cidadão e Estado é substituída pela representatividade do grupo identitário e as suas pretensões de justiça, sobretudo cultural, mas não exclusivamente. No segundo caso, o das formas fracas de multiculturalismo, estas prender-se-iam com o equilíbrio entre acomodação de grupos identitários sem negligenciar os direitos do indivíduo, ou seja, as políticas de acomodação multiculturais serviriam como mediadoras entre os três vértices do triângulo inclusivo, o Estado, o grupo e o indivíduo, não sobrepondo os direitos do grupo a nenhum deles. Kymlicka (1995, 2007) tem sido um dos principais proponentes desta visão. Através da noção de direitos das minorias, Kymlicka estabelece claramente que estes direitos só podem ser incorporados quando não contradizem nem os direitos humanos, nem os princípios democráticos, de liberdade individual e justiça social.
Que direitos e que grupos?
Os direitos são de várias formas e os grupos também não se encontram definidos à partida. Primeiro, as formas de direitos. Segundo Joppke (2017), estes podem variar dentre isenções, benefícios especiais, tratamento privilegiado, e autogoverno. Deixemos de lado o autogoverno que aparece apenas em casos mais extremos e obedece basicamente ao primado da “autodeterminação dos povos” reconhecido pela ONU — Organização das Nações Unidas e decorrente da independência das nações anteriormente colonizadas. Concentremo-nos nos três primeiros.
Isenções: encontramos diversos exemplos na Europa, sobretudo em Inglaterra, porventura campeã da construção dos direitos das minorias imigrantes. Neste contexto, podemos mencionar a isenção concedida aos Sikhs de usar capacete em veículos motorizados; a isenção de obedecer a determinados critérios no abate de animais para muçulmanos e judeus; tolerância em relação a casamentos combinados (prática hindu) assim como ao lançar das cinzas dos mortos em rios; etc. Benefícios especiais: surgem quando se atribui a um indivíduo direitos em virtude da sua pertença grupal. Educação bilingue é o exemplo mais corrente. Finalmente, o tratamento diferencial enquadra o caso mais emblemático da ação afirmativa ou da discriminação positiva. O exemplo dos Estados Unidos com o sistema de quotas para minorias raciais e imigrantes, em alguns estados, configura o país onde o mais elaborado programa pode ser encontrado.
Que grupos?
Este ponto é respondido pela interrogação anterior. Não há nenhuma definição que estabeleça inequivocamente quem e quando um grupo se pode constituir como uma minoria. Com efeito, o processo é político por natureza, ou seja, está directamente ligado a jogos de poder e interesse carreados pelas elites destes mesmos grupos e dos efeitos de pressão destas sobre o Estado. Para um tal estatuto, não basta ser minoritário, o que obviamente não perfaz o critério de atribuição de um estatuto especial — basta lembrar que os ricos são minoritários em todas as sociedades, mas dificilmente se pode justificar um direito de proteção especial -; tem que se demonstrar que de alguma maneira se é oprimido. A estrutura maioria/minoria ou minorias pressupõe sempre, na lógica multicultural, que a relação entre as duas seja de opressão, presente ou legada de uma condição estrutural anterior (o domínio imperialista seria um caso). Aqui, as lutas pela categorização ou, para falar como Bourdieu, pelo poder legítimo de “di-visão”, apresentam-se como cruciais.
Que diferenças então podemos estabelecer com o interculturalismo? Partamos primeiro dos aspetos teóricos. Quanto a este ponto, Meer e Modood (2012) recensearam as principais características de ambos os paradigmas concluindo pela aproximação, quando não similaridade, entre os dois. E neste sentido, sugeriram que nenhuma substituição seria necessária, e que melhor seria mantermos a noção de multiculturalismo. Quais são essas similitudes? Segundo estes dois autores, devemos identificá-las nas críticas que os defensores do interculturalismo fazem ao multiculturalismo. Resumem-nas em quatro pontos principais: i) o interculturalismo é mais orientado para o diálogo e para a interacção do que o multiculturalismo; ii) o interculturalismo é menos “grupista” ou mais aberto à síntese do que o multiculturalismo; iii) o interculturalismo é mais empenhado em criar um sentido forte do “todo” relativamente a aspectos como coesão societal e cidadania nacional; iv) enquanto o multiculturalismo é iliberal e relativista, o interculturalismo é mais conducente à crítica das práticas não liberais, em virtude do processo de diálogo intercultural.
Ora, dizem Meer e Modood (2012), rebatendo cada um dos quatro pontos anteriores: i) o multiculturalismo assim como equacionado por Parekh (2000) e Taylor (1992) confere ao diálogo uma importância fundamental (a dialogia importa porque permite reconhecer os limites culturais das nossas próprias culturas); ii), se seguirmos Parekh, o diálogo entre as culturas é um valor ético em si mesmo e como tal universalizável; donde se conclui que o multiculturalismo, assim como equacionado por Parekh, tem pretensões universalistas; iii) importa distinguir o interculturalismo europeu com a ênfase na convivialidade e superdiversidade, do interculturalismo do Quebec com a ênfase na nacionalidade e no princípio a uma pertença grupal concorrente ao todo nacional. Acrescentaria a versão latino-americana do interculturalismo onde as pertenças grupais (raciais e culturais) são determinantes e conducentes a políticas de discriminação positiva; iv) o multiculturalismo coloca a questão política das narrativas nacionais — a quem pertencem estas e quem tem direito a reivindicá-las como parte da sua herança identitária e social, algo a que, na opinião dos autores, o interculturalismo é omisso.
Tendemos a concordar com qualquer um destes pontos e com a substância da análise de Meer e Modood. O que ela deixa por responder é, se não há qualquer diferença substantiva entre os dois termos por que razão os poderes políticos e o discurso público investiu tanto na sua mudança? Por que razão, em 2001, três das mais relevantes figuras políticas europeias, Merkel, Sarkozy e Cameron, pronunciaram-se publicamente contra o multiculturalismo (Cantle, 2012)[4], declarando a sua morte? Mesmo aceitando que existe uma diferença de grau entre enunciados políticos e analíticos, como quer Koopmans (2013), os efeitos concretos desta translação do multiculturalismo para o interculturalismo não são despiciendos. Devemos, em minha opinião, procurá-los na transformação acentuada das lógicas institucionais e organizacionais que se associam a este último.
Interculturalismo — diferenças de escala e de ênfase analítica
Começando pelo quadro geral europeu de integração de imigrantes e minorias étnicas, em 2008 consagrou-se o diálogo intercultural como o modelo a privilegiar. O White Paper on Intercultural Dialogue do Conselho da Europa propõe um conjunto de orientações para a “gestão da diversidade cultural”, afirmando o respeito e a promoção da diversidade. Afirma, em consequência, que o melhor modelo de governança da diversidade é a interculturalidade: “previne cisões étnicas, religiosas, linguísticas e culturais”. Ao fazê-lo, aposta na “promoção da compreensão mútua”, permitindo assumir “construtiva e democraticamente as nossas identidades diferenciadas com base em valores universais partilhados” (Conselho da Europa [CE], 2008, citado em Oliveira, 2020, p. 53).
Analisando o discurso enquanto um exercício de conceptualização dos principais eixos da integração, teremos que i) procura-se evitar o afastamento demasiado pronunciado dos valores grupais em relação aos valores centrais europeus assumidos como universais; ii) o diferencialismo dos direitos é substituído pela “gestão da diversidade”, ou seja, a tónica desloca-se dos direitos das minorias para a gestão dos seus traços culturais; iii) enfatiza-se a compreensão mútua, num registo de intercomunicação, contra a assunção dos diferenciais de poder que se estabelecem numa estrutura do tipo maioria/minoria.
A definição proposta por Zapata-Barrero (2015) cobre, de alguma forma, estes itens, identificando três modalidades de interculturalismo. Note-se que aqui o diálogo intercultural é elevado à categoria de “ismo” ombreando assim com os seus congéneres “assimilacionismo” e “multiculturalismo”, e sucedendo-os até como modelo de integração normativamente mais adaptado ao mundo global em que vivemos. Segundo Zapata-Barrero (2015), as três modalidades são a contratual, a coesiva e a construtivista.
O primeiro prende-se com a obediência a uma normatividade central, a da maioria, através da qual se estabelece a relação com as minorias. Corresponde à condição dualista segundo o esquema proposto por Bouchard e Taylor (2008) na sua revisão do multiculturalismo canadiano. O segundo diz respeito à noção de coesão e pode ser encontrado na aceção de Cantle (2012), segundo a qual as categorizações prévias não constituem os motivadores da ação humana, mas antes a confiança mútua desenvolvida através do sentimento de pertença a comunidades de partilha mais vastas. O terceiro diz respeito ao aproveitamento da diversidade como um recurso das cidades cosmopolitas e competidoras no sistema global, cuja melhor formulação podemos encontrar na cidade intercultural de Wood e Landry (2008). Analisaremos brevemente cada uma destas modalidades, mas em sequência inversa.
A incidência nas cidades acompanha a deslocação epistemológica no sentido do conhecimento local. Aqui o local não é apenas entendido como o que está próximo, no sentido que Geertz (1983) lhe emprestava, mas como o conhecimento de base urbana, espacial e local, na sequência da premissa de que a integração acontece ao nível urbano, consoante as realidades locais, e não nacional. Esta percepção é acompanhada também no domínio da implementação política, desde logo com o reconhecimento de que a integração dos imigrantes deve ser efectuada preferencialmente ao nível local, das cidades e dos bairros.
Segundo, a importância da diversidade cultural como um activo (um asset). Este activo pode, e deve, ser mobilizado pelas instituições públicas e representado, com maior ou menor insistência, no espaço público, nomeadamente através das formas mais estetizadas desta mesma diversidade. De tal ordem, que o discurso da diversidade das cidades passou a ser parte dos próprios dispositivos imagéticos e imaginários do urbano e da sua planificação. Mike Raco (2018) designa este fenómeno por curadoria da diversidade, termo que significa que, tal como nas exposições, a exibição da diversidade é cuidadosamente organizada através de técnicas de governança (tanto pública como privada) orientadas para recolher os maiores benefícios tanto económicos como sociais.
Significa que as práticas de governança intercultural, ao nível urbano, possuem afinidades, ou procuram aproximar-se com vantagens globais, dos modelos da cidade criativa. É neste sentido que as cidades abrem as suas portas aos imigrantes criativos, talentosos e com as competências ajustáveis a este modelo. O exemplo de Roterdão e da distinção entre fast e slow diversity exemplifica esta dinâmica e esta cisão antropogénica.
Relativamente às outras duas modalidades — a contractual e a coesiva — a um nível político-social reveste-se de particular interesse a substituição da noção de minoria étnica, e, por essa via, do modelo de sociedade estruturado pela assimetria (simbólica e material) maioria/minoria, pela ideia de intercomunicação horizontal. Neste contexto, a ideia de coesão social torna-se mais relevante do que a pertença a categorizações prévias — mesmo que estas sejam fundadas em esferas simbólicas e sociais produtoras de solidariedades específicas — ideia essa caracterizada por Cantle (2012, p. 157) como “o sentido de abertura, diálogo e interação entre culturas”.
Associado a esta transformação, o direito das minorias passa a não ter o mesmo destaque que obtivera com o multiculturalismo. Aliás, a preocupação desloca-se para os termos da coesão social e como pode esta ser assegurada. Neste sentido, a tónica é colocada na interação, e com ela, nas palavras de Cantle, imbricam-se termos como “interdependência”, “internacionalismo”, “globalização” e “superdiversidade”. O interculturalismo emerge assim como o signo para os tempos da “superdiversidade”, ou seja, dos espaços densamente diversificados, caracterizados por identidades e origens segmentadas e híbridas (Vertovec, 2007).
Isso mesmo é atestado pelo facto de a interculturalidade ter assumido o papel de linguagem amplamente difundida da disseminação institucional normativa internacional: do Banco Mundial, passando pelo Conselho da Europa, até à Comissão Europeia.
A ênfase encontra-se agora na rejeição de noções primordiais de cultura que giram em torno de conceitos binários ou de diferenças racializadas. Em alternativa, propõe-se processos dinâmicos de interação entre grupos e entre indivíduos, visando estabelecer a “coesão comunitária”. O encontro e a compreensão mútua substituem as ideias de alteridade e de separação comunitária.
Fragilidades do multiculturalismo?
Alguns autores têm questionado a pressuposta superioridade ética e prática do interculturalismo sobre o multiculturalismo. Esta não se afigura a questão correcta. Desde logo porque colocá-la no espaço abstracto do normativismo negligencia as transformações sociais, económicas e políticas que se encontram subjacentes a esta deslocação discursiva e prática. Porém podemos apresentar um conjunto de críticas ao multiculturalismo que se afiguram pertinentes.
Primeiro, a ideia segundo a qual a cultura das minorias deve ser reconhecida e espaços legais providenciados para a sua acomodação, negligencia o facto de não existir apenas uma definição da cultura do grupo. Estas reivindicações são as mais das vezes os enunciados políticos das elites dentro desses mesmos grupos que, como qualquer elite, tendem a expressar o seu lugar social de poder e a reforçar as lógicas institucionais que lhe conferem o statu quo. Assim, na discussão sobre o véu, ou na sua forma mais extrema, da burka, tendemos a negligenciar que não se trata de um objecto isolado, como um objecto de cultura material, para falar como os antropólogos, mas de um marcador cultural ligado a uma determinada estrutura simbólica. O que ele enuncia é um índice de uma sociedade patriarcal pelo qual se podem desvelar uma sequência de obrigações morais e pessoais que constituem outras tantas condutas. É evidente que dentro do próprio islão existem posições diferenciadas e muitas delas tomam esse mesmo objecto como sintoma de rebelião feminina. Seja como for, o seu significado religioso e cultural continua a estar associado a noções muito concretas de vergonha do corpo feminino com implicações na distribuição de poder entre os sexos (Amara, 2003; Joppke, 2009). As reacções das mulheres iranianas após o assassinato de Mahsa Amini retirando o hijab em público mostram precisamente que os próprios actores do drama feminino têm consciência do seu lugar de sujeição.
Segundo, a crítica que salienta que a cultura da cidadania é a nacional e, por isso, inalienável de uma identidade nacional excludente, omite que as culturas que geralmente reivindicam um reconhecimento dentro desse quadro, são elas próprias fundadas numa determinada identidade nacional, frequentemente com pressupostos diferentes, mas definitivamente com o seu lugar geográfico e identitário também ele excludente.
Algumas elaborações decorrentes do afrocentrismo que ao criticarem o etnocentrismo do ocidente elaboram um outro etnocentrismo, desta feita onde todas as assunções de superioridade são invertidas. Assim, propala-se a ideia de que a génese de todos os fenómenos culturais significativos encontrar-se-ia em África e não na Europa: desde a etimologia até aos sistemas de governo, passando pelas “reais” conceções de pertença comunitária. Nada mais exemplificativo do que o discurso da religião tocoísta, com a sua teodiceia de uma “nova Israel” em Angola (Blanes, 2019) ou das várias modalidades de evangelismo africano (Echtler & Ukah, 2016)[5].
Terceiro, o relativismo contido na maioria das versões multiculturais não apenas se refuta a ele próprio filosoficamente, como esconde, em última análise, um essencialismo. Filosoficamente, a questão da objectividade nas coisas humanas que é disputada pela noção de comunidades de interpretação, diferentes consoante as suas culturas — ou seja, as coisas humanas são sempre alvo de um perspectivismo cultural —, nega-se a si mesma porque esta exigência torna-se ela própria universal.
A acusação[6] de Martin Hollis (1999/2002), para quem o relativismo dificilmente escapa à sua armadilha essencialista, é ratificada pela essencialização dos traços culturais cujo espaço é suposto ser discutido com a cultura da maioria. Com efeito, o multiculturalismo abre um espaço para a discussão da cultura da maioria e em simultâneo fecha esse mesmo espaço para a discussão da cultura do grupo. Quando reivindicados como hábitos ou modos de vida necessários à autoestima e, no fundo, ao reconhecimento do grupo, nunca são eles próprios colocados à discussão, num espaço neutro, não influenciado pela reivindicação do primado da cultura. Ou seja, se determinado hábito, fora da esfera do reconhecimento, possui razão objectiva para existir. Ao invés, são invocados e construídos — o que já de si é paradoxal — como fazendo parte da natureza das coisas, da sua essência.
É certo que Parekh (2000), no intuito de evitar uma tal acusação, sugeriu que a incidência devia ser colocada naquilo que ele designou como “dilemas multiculturais”; e sobre eles forneceu exemplos de eventos que cairiam nesta categoria. Sem surpresa, estes acabam por ser invariavelmente ligados à religião do ponto de vista da abertura de espaço (público e privado) para o seu exercício. Nunca da perspectiva do próprio grupo, da liberdade de adesão ou de rejeição por membros do próprio grupo (e isto é válido para qualquer religião).
Em termos de cidadania, como explica Aylet Shachar (2001), significa que a protecção externa às normas e valores do grupo não deve implicar restrições internas aos seus membros. Ora, creio que para superar este essencialismo sub-reptício que as estratégias grupais encerram — apropriadamente designado por “essencialismo estratégico” — as restrições internas devem também ser colocadas sob a ação do contraditório. O caso da burka, na sua forma extrema, mas também do hijab, é paradigmático. Alguns multiculturalistas defendem que apenas os membros dos grupos minoritários têm o direito de decidir sobre as práticas que lhes são afectiva e culturalmente coesivas. Contudo, sem interrogarmos a prática em si, dificilmente saberemos se ela é uma imposição que obedece a uma estrutura de poder que se confunde com a “pertença étnico-cultural”, ou se é uma prática assumida voluntariamente e apenas pela crença individual. A crítica a esta interrogação surgirá da constatação, dita óbvia, de que toda e qualquer prática tem uma origem cultural. Mas esta não pode ser uma justificação para a continuidade dessa prática.
Regressando aos traços mais reconhecíveis do interculturalismo, para concluir. Este difere do multiculturalismo em dois aspetos principais. Por um lado, desloca o foco do grupo para o indivíduo; por outro lado, o indivíduo é percecionado não do ponto de vista da justiça, mas da eficiência, ajustada ao requisito de uma qualquer esfera funcional. Esta é uma diferença de monta, porque os imperativos da ação política — a práxis do multiculturalismo — requerem grupos identificáveis na sua relação com o Estado para serem mobilizados e representados e categorias de pessoas para serem beneficiárias de direitos.
Significa isto que, da perspectiva do interculturalismo o Estado deixou de ser uma estrutura importante? De modo nenhum. Aliás, como é facilmente constatável pela obsessão com as fronteiras entre o hemisfério norte e o sul. Significa sim que as questões propriamente culturais foram remetidas para o nível local e que a mediação entre Estado e indivíduo não é mais o grupo nem a sua cultura, mas sim os direitos do indivíduo qua indivíduo.
De uma ou outra forma, as premissas do multiculturalismo têm sido objeto de reformulação consoante um molde que melhor se coadune com os seguintes três vectores: i) o ajustamento à escala local e aos novos mecanismos de governança da diversidade; ii) a reelaboração da pertença cultural enquanto escolha individual, rejeitando o grupismo; iii) a proposta de um pacto cívico de respeito à cultura central da sociedade de acolhimento que ressignifica a cultura da maioria como sendo a normativamente necessária (embora de maneira flexível e negociada). Sem sustentar qualquer julgamento ético sobre a bondade dos dois modelos, creio que existem diferenças pronunciadas, passíveis de serem identificadas, tanto nos universos discursivos como nas suas formulações práticas, que permitem estabelecer uma distinção consistente entre os dois modelos.
Referências
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Data de submissão: 31/05/2022 | Data de aceitação: 07/07/2023
Notas
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
[1]A definição de Canclini parece recorrer a uma dicotomia desta natureza: “multiculturalidad supone aceptación de lo heterogéneo; interculturalidad implica que los diferentes son lo que son en relaciones de negociación, conflicto y préstamos recíprocos” [o multiculturalismo implica a aceitação do heterogéneo; o interculturalismo implica que aqueles que são diferentes são o que são em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos] (Canclini, 2009, p. 15).
[2]A fonte primária desta discussão encontra-se em torno do artigo de Meer e Modood (2012) aqui referido no Journal of Intercultural Studies.
[3]Ver relatório Bouchard e Taylor (2008).
[4]Esta alusão é feita precisamente nas páginas 53 a 54 da obra de Cantle (2012) Interculturalism: The New Era of Cohesion and Diversity.
[5]Mas também franjas mais radicais do movimento negro para as quais recuperar a história africana representa inverter os termos do domínio da história tout court.
[6]Esta tomada de posição encontra-se explícita na página 32 do capítulo “Is universalism ethnocentric?” da autoria de Martin Hollis (1999/2002).
Autores: Nuno Oliveira