Nº 5 - novembro 2012
Pedro Abrantes, Investigador do Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL); pedroabrantes@iscte.pt
Resumo: O artigo discute, em termos teóricos e empíricos, a relação entre a expansão dos sistemas educativos e o advento da modernidade, especificando o caso português no contexto europeu. Depois de uma revisão de um conjunto de estudos sobre os sistemas educativos e a modernidade, nem sempre explorando a sua relação, procedemos a uma análise dos dados do European Social Survey 2008, de modo a aferir qual o impacto da escolaridade na estruturação de classes, na mobilidade social e nas orientações culturais dos indivíduos. A tese central é a de que, sobretudo em Portugal, o sistema educativo tem contribuído para padrões desiguais de desenvolvimento, a que designamos por uma modernidade dual.
Palavras-chave: educação; modernidade; Portugal; desigualdades
Abstract: The relation between educational systems expansion and modernity is discussed, both theoretically and empirically, focusing the Portuguese case in the European context. Based on a literature review concerning educational systems and modernity, not always exploring the relation between them, a data analysis of the European Social Survey 2008 is presented, in order to sketch the impact of schooling in classes’ structure, social mobility and individual cultural orientations. The main thesis is that, particularly in Portugal, the educational system is contributing to unequal patterns of development, denominated here as a dual modernity.
Keywords: education; modernity; Portugal; social disadvantages
Introdução
Enquanto os opinion makers – entre os quais, alguns cientistas sociais – não se cansam de anunciar a crise da escola, a sua qualidade decrescente ou as suas promessas não cumpridas, os padrões de escolarização continuam em expansão, em todo o mundo, assentes em investimentos crescentes dos governos e organismos internacionais, mas também dos indivíduos e famílias. Este cenário reflete-se na vida das escolas: muitos professores, jovens e pais duvidam da relevância do sistema educativo, mas permanecem no seu interior. Como nota Fernández Enguita (2007: 56): “contrastando com tanto nihilismo educativo, como encontramos por toda a parte, a instituição educativa possui hoje uma importância económica e social nunca antes igualada”.
O presente artigo procura compreender este paradoxo, através de uma análise da relação entre escolarização e modernidade. Desta forma, pretendemos ampliar o conhecimento sobre as mudanças introduzidas efetivamente pela escola moderna, tanto na vida dos indivíduos como na estruturação das sociedades. Defende-se que o advento da escolaridade de massas tem constituído um motor do processo de transformação social de grandes proporções, em todas as dimensões da vida social, a que se tem designado de “modernidade” e que não tem abrandado, mas sim adotado um caráter eminentemente dual, refletindo igualmente tensões entre a democracia e o capitalismo como principais referentes da organização social. Por conseguinte, viajando em primeira ou em segunda, crentes ou céticos, poucos indivíduos (e países) querem hoje abandonar o comboio.
Esta tese é sustentada não apenas numa revisão de teorias de referência no campo sociológico sobre a modernidade e a expansão dos sistemas educativos, mas também numa análise dos dados do European Social Survey (ESS) 2008, aprofundando-se o caso de Portugal no quadro europeu. O objetivo desta exploração empírica foi testar a hipótese de que a escolarização constitui hoje um elemento central: na estruturação das classes socioprofissionais (ponto 3); na mobilidade dos indivíduos entre essas classes (ponto 4); nas atitudes e valores dos indivíduos, em diversas esferas da vida (política, media, religião, nacionalismo, família, orientações de vida) (ponto 5).
1. Quadro teórico
Em versões diversas e nem sempre convergentes, a modernidade tem sido um tema central da agenda sociológica, enfatizando transformações de fundo e que atravessam as sociedades de todo o mundo, associadas a processos tão diversos e complexos como a industrialização e informatização da economia (Giddens, 1990, Reich, 1993; Castells, 1996), a transformação e abertura da estrutura de classes e expansão das “novas classes médias” (Esping-Anderson et al., 1993; Costa et al., 2000), à globalização dos circuitos de dominação e exploração (Sousa Santos, 2001; Reygadas, 2008), à precarização das relações laborais (Beck, 2000), aos processos de racionalização e reflexividade (Giddens, 1990; Ritzer, 1993) ou a individualização dos estilos de vida e das biografias (Touraine, 1992; Dubet, 1994; Giddens, 1994; Bauman, 2001; Beck e Beck-Gernsheim, 2003).
Um debate importante na última década diz respeito ao suposto caráter universal deste processo. Na sua formulação clássica, tratar-se-ia de um processo global, até porque as regiões e classes em que está mais avançado funcionariam como referente de transformação das restantes, libertando-as progressivamente da sua ancoragem às raízes tradicionais. Mesmo as teorias do sistema-mundo não contrariam propriamente esta ideia, ainda que acrescentem que esta tendência unidirecional resulta de processos de dominação e dependência, não de uma escolha livre dos povos. No entanto, a investigação em regiões “periféricas” tem permitido encontrar padrões de transformação estrutural não totalmente convergentes, o que tem alimentado a noção de “modernidades múltiplas” (Eisenstadt, 2001; Tavolaro, 2005; Galucci, 2009). Também em termos de classes sociais, será precipitado considerar que os modos de vida observados entre operários industriais, empregados executantes ou trabalhadores desqualificados tenderão a replicar os modelos das “novas classes médias” ou, se não o fazem, estão aferrados a tradicionalismos, pois algumas transformações recentes podem ser modernas e específicas destes grupos, como a adesão a uma “cultura de massas” (Bloom, 1989). A própria posição de “vanguarda da modernidade” atribuída frequentemente à classe dos profissionais (a “nova classe média”) esconde a sua relação tensa e ambígua – mas ainda assim subordinada – com as elites de poder (Noordegraaf e Schinkel, 2011).
Se existe uma profusão de estudos sobre a modernidade, poucos autores têm analisado a relação entre este processo e a concomitante expansão dos sistemas educativos e, por conseguinte, a profunda transformação nos regimes de socialização dos indivíduos. Devemos aqui referir duas exceções. Por um lado, o debate internacional candente entre os autores que defendem que a democratização educativa tem permitido uma progressiva transformação e fluidez da estrutura de classes (Lipset e Bendix, 1959; Buchanan e Hannun, 2001; Breen e Jonsson, 2005) e aqueles que postulam que a escola tem tido um papel fundamentalmente de reprodução e legitimação das desigualdades sociais (Bourdieu e Paseron, 1970; Erikson e Goldthorpe, 1993; Fitz et al., 2006). Por outro, os estudos socio-históricos sobre o desenvolvimento dos sistemas educativos modernos, demonstrando que a racionalidade tem constituído um alicerce central, tanto na organização das escolas como nos conteúdos curriculares, tendo sido particularmente decisiva a afirmação de um sistema educativo controlado pelo Estado, contra a antiga primazia da Igreja (Archer, 1979; Petitat, 1982; Manacorda, 1983; Vincent et al., 1994). Podemos supor a importância desta “forma escolar” emergente no distanciamento do espaço-tempo, na “desincrustação” dos sistemas sociais, na confiança nos sistemas abstratos ou na secularização da normatividade, através da mudança nos quadros dominantes de socialização dos indivíduos, ainda que exista alguma escassez de dados empíricos sistemáticos sobre este processo[1].
Importará atender a especificidades nacionais no desenvolvimento dos sistemas educativos modernos (Müller e Karle, 1993; Prats e Reventós, 2005). No Reino Unido, a escolarização de massas esteve efetivamente associada à industrialização e urbanização. Mas, na Alemanha ou na Suécia, foi impulsionada, no século XIX, pelas comunidades locais, em grande medida, ainda com características rurais e ascendente religioso (Archer, 1979). E, nos países da Europa do Sul, muito influenciados pelo modelo francês, este processo esteve mais intimamente vinculado com a afirmação do Estado-Nação e, em particular, de uma “nobreza de estado”, favorecendo um modelo altamente burocrático e centralista, em tensão manifesta com a Igreja, o tecido empresarial e as culturas locais (Petitat, 1982; Fernández Enguita, 2007). Noutras regiões do mundo, a estruturação dos sistemas educativos obedeceu igualmente a singularidades económicas, culturais e políticas, pelo que devemos ir mais além de uma mera constatação de uniformização resultante do aumento dos padrões de escolarização em todo o mundo (Buchmann e Hannum, 2001). Estas variações na configuração dos sistemas educativos tiveram, certamente, impactos diferenciais na socialização das novas gerações e, por conseguinte, na consolidação da(s) modernidade(s), explicando por exemplo que Müller e Karle (1993), Duru-Bellat (2000) ou Van de Werfhorst e Mijs (2010) encontrem variações nacionais significativas no potencial da educação para gerar padrões de mobilidade social, irredutíveis à sua estrutura económica e política, associando por exemplo um padrão mais forte de reprodução socioescolar a países em que a diferenciação por vias (académicas vs. vocacionais) é mais precoce, em que as reprovações são massivas ou em que o setor privado alcança maior expressão.
Em Portugal, o debate sobre a modernidade foi lançado, logo nos momentos iniciais da implantação da disciplina no país, em particular, pelo influente trabalho de Sedas Nunes (1964), no qual se propõe uma visão dual da economia e da sociedade nacionais, segmentadas entre um setor urbano, moderno e escolarizado e um outro rural, pobre, iletrado e tradicionalista. Esta discussão foi retomada e aprofundada, a partir dos anos 80, pelos estudos de Boaventura Sousa Santos (1985, 1990, 1993, 2011) sobre o lugar “semiperiférico” no mundo e o estatuto singular do Estado, de António Barreto (1995, 2004) sobre os padrões de mudança social, ou de um coletivo do CIES-ISCTE sobre os processos de recomposição socioprofissional da população e dos seus “padrões de vida” (Machado e Costa, 1998; Costa et al., 2000; Costa et al., 2009).
Convergindo na ideia da erosão dos laços tradicionais, estas três linhas apresentaram retratos distintos mas complementares de uma modernidade à portuguesa. Embora a expansão do sistema educativo seja um fator considerado por todos, não tem sido acompanhado por uma reflexão sobre as características desta nova socialização escolar de massas e qual o seu impacto nos regimes de modernização. Além disso, indicadores como o aumento do desemprego e dos contratos precários, bem como a persistência dos baixos salários, do hiato dos níveis de produtividade face aos parceiros europeus e da falta de competitividade da economia portuguesa, ao longo da última década (Reis, 2009; Murteira, 2011), obrigam-nos a colocar em causa o lugar “semiperiférico” no sistema-mundo ou a ideia de uma “modernidade inacabada”, refletindo o dilema de uma sociedade escolarizada de forma tardia e incompleta, no quadro de um programa regional muito exigente e ambicioso. Enquanto o segmento mais qualificado da população tende a integrar-se no projeto de desenvolvimento europeu (ainda que de forma subordinada), a fração desqualificada descobre, todos os dias, a injustiça de se localizar num limbo estrutural, perdendo sistematicamente a competição quer com os trabalhadores mais qualificados do espaço europeu (sobretudo, desde a entrada dos países de leste) quer com os trabalhadores mais baratos dos restantes continentes.
Será ingénuo defender que este problema resulta de uma divisão entre um segmento escolarizado e modernizado da sociedade e outro desqualificado e tradicionalista, esquecendo as profundas relações (de exploração e exclusão) que existem entre ambos os grupos e o caráter intrinsecamente moderno (e escolarizado) dessas relações (Reygadas, 2008). Tanto a escolaridade como a falta dela são fenómenos modernos, gerando novos hiatos económicos e tensões sociais. A valorização da “vida da escola” fez-se a par com a desvalorização da “escola da vida”, sendo a classificação de um segmento da população como “iletrado” ou “desqualificado” per si um processo próprio da modernidade, incrustado nas relações sociais de produção (Glasman, 2004). Além disso, as classes desfavorecidas não deixam de atravessar intensas transformações, em termos de situação económica, redes sociais, orientações políticas e padrões culturais, nem sempre convergentes com o modelo das “novas classes médias”, sendo fundamental estudá-las como elementos constitutivos da modernidade e não meras reminiscências da vida tradicional.
Depois de um debate algo politizado entre a teoria de que a escola portuguesa não acompanhou o processo de democratização social, tornando-se uma instância conservadora (Stoer, 1986), e a tese de que o ensino unificado havia coartado a relação entre educação e economia (Grácio, 1986) – não sendo de excluir que ambos os processos tenham ocorrido em simultâneo, como uma dupla rutura – a relação entre sistemas educativos e modernidade também não tem estado muito presente na agenda da sociologia portuguesa. A hipótese que colocamos é a de que o sistema educativo português, alargando rapidamente o ensino superior e mantendo em simultâneo altos padrões de reprovação e abandono no nível básico, tem contribuído para esta dualização, já não entre uma sociedade moderna e outra tradicional, mas entre um setor dinâmico e competitivo, integrado no projeto europeu da “sociedade do conhecimento”, e outro, ainda maioritário, que se caracteriza por padrões de consumo de massas, mas níveis de produção desajustados face ao modelo europeu, que, portanto, só subsiste através do recurso sistemático a apoios públicos. E não falamos, neste caso, apenas dos operários ou empregados dos serviços, mas também, talvez ainda num grau mais decisivo, dos empresários e dos trabalhadores independentes (Reis, 2009). O cenário que descrevemos aponta, pois, para uma “modernidade dual”, aliás bem visível em estudos de referência sobre a juventude portuguesa (Cabral e Pais, 1998)[2].
2. Notas metodológicas
Os dados empíricos em que se baseia o presente artigo foram recolhidos no âmbito da 4ª edição (2008) do European Social Survey (ESS), realizado por um consórcio de universidades europeias sob supervisão da City University (Reino Unido) e financiamento da União Europeia. Este inquérito permitiu recolher informações sobre uma amostra de 56.752 residentes em 31 países europeus, relativamente a 662 variáveis. A base de dados foi, então, trabalhada para o presente artigo, incluindo a construção de variáveis compósitas e a análise de correlações.
O objetivo seria testar o peso da escolaridade na estrutura de classes, na mobilidade socioprofissional e nas orientações culturais dos indivíduos, em comparação com outras variáveis sociais como a geração, a origem social e o lugar de classe atual. Tratando-se de categorias com um significado social complexo e profundo, torna-se importante explicitar os critérios teórico-metodológicos que presidiram à sua construção:
- Escolaridade. Diferenciamos quatro grupos, correspondendo aos níveis de qualificação mais comuns na Europa: ensino superior (licenciados, mestres e doutorados), secundário superior (em Portugal, corresponde ao ensino secundário completo), secundário inferior (em Portugal, corresponde ao ensino básico completo) ou apenas estudos inferiores.
- Geração. Comparámos os trabalhadores nascidos antes de 1970 com aqueles que nasceram entre 1970-1984, considerando assim aqueles cuja infância decorreu ainda sob a égide do Estado Novo, daqueles que cresceram já num contexto de modernidade democrática. Não consideramos os nascidos a partir de 1985, pois muitos encontram-se ainda a estudar, o que distorce os dados.
- Classe social (de origem e atual). Agregámos as profissões dos indivíduos, considerando a existência de cinco diferentes classes: empresários, dirigentes e profissionais liberais (EDL); profissionais técnicos e de enquadramento (PTE); empregados executantes (EE), operários industriais (O) e trabalhadores desqualificados (TD)[3].
Utilizámos a análise de correlações como principal procedimento estatístico, procurando ponderar o peso da escolarização, relativamente a outros fatores eventualmente importantes na definição dos padrões culturais, como a classe socioprofissional, a origem social e a geração.
3. A escola e a recomposição da estrutura de classes
O efeito da escola na estrutura de classes e nas desigualdades sociais constitui um tema complexo. Por um lado, é sabido que a expansão do ensino terciário está intimamente associada a um alargamento exponencial, nas últimas décadas, das “novas classes médias”, compostas pelos profissionais técnicos e de enquadramento (Esping-Anderson et al., 1993; Costa et al., 2000), mas é difícil de medir qual é a causa e a consequência: enquanto os mais estruturalistas tenderão a pensar que foi a transformação económica a “abrir” mais ocupações com estas características, incentivando os projetos de escolarização dos indivíduos, não podemos negar que a escolarização gera per si pressões para o alargamento desta classe, seja pelo aumento das expectativas individuais[4]ou por movimentos coletivos de afirmação baseados nas qualificações escolares[5]. Por outro lado, depois de um período de relativa quebra, entre 1950 e 1980, as desigualdades (pelo menos, na sua vertente material e quantificável) parecem ter estabilizado na Europa, rompendo-se o seu vínculo a um processo de escolarização que manteve a sua tendência ascendente (Reygadas, 2008; Carmo, 2010).
Os dados do European Social Survey 2008 confirmam estas tendências, acrescentando nuances interessantes. A correlação entre níveis de escolaridade e classe socioprofissional é muito forte em Portugal (0.617), sendo superior à média europeia (0.506). Aliás, entre os trabalhadores mais velhos é possível observar, no nosso país, um forte deficit de qualificações face aos lugares de classe disponíveis. Se considerarmos os trabalhadores apenas nascidos entre 1970 e 1984 (em 2008, entre os 24 e ou 38 anos), este desequilíbrio reduz-se, mas permanece longe de validar as teses da “sobre-educação”[6]. É verdade que, comparando os trabalhadores nascidos antes e depois de 1970, a taxa de licenciados que obtêm uma posição nas classes dominantes (EDL e PTE) desce ligeiramente na geração jovem, tanto na Europa como em Portugal, sendo que no nosso país existe uma concentração no grupo dos PTE e um acesso muito diminuto à classe dos EDL (quadro 1). Porém, os valores não deixam de indicar uma correlação muito alta entre formação académica e o acesso às classes favorecidas, além de que estamos a comparar trabalhadores em momentos diferentes da carreira, sendo previsível que uma parte dos jovens licenciados que não estão integrados nestas classes, possa estar em vias de as integrar[7].
Quadro 1. Relação entre a escolaridade e a classe socioprofissional, entre a população ativa nascida antes de 1970 e entre 1970 e 1985
Estes dados refutam a tese da “desvalorização dos diplomas” (Bourdieu e Passeron, 1970; Grácio, 1986), pelo menos ao nível do ensino superior. Quanto aos diplomas do ensino secundário, é verdade que existe uma desvalorização, no sentido em que deixou de garantir a “fuga” às funções mais desfavorecidas das hierarquias sociais, como ocorreu com a geração mais velha. Em todo o caso, este fenómeno é sobretudo marca do referido deficit de qualificações na sociedade portuguesa entre os anos 50 e 70, pois na Europa o peso dos diplomas do ensino secundário na fuga ao trabalho desqualificado não se desvalorizou. Mesmo em Portugal, a verdade é que a posse de um diploma do ensino secundário reduz para metade as possibilidades dos jovens ingressarem na classe dos trabalhadores desqualificados[8].
Além do lugar de classe, existem outros importantes indicadores de desigualdade socioeconómica, mas a educação parece igualmente uma vantagem importante, em vários itens analisados (quadro 2). Seguindo padrões europeus, em Portugal, o nível de escolaridade tem uma correlação forte com os rendimentos, a autonomia no quotidiano de trabalho, a influência nas decisões da organização e significativa (mas não tão forte) na possibilidade de um contrato mais estável. É verdade que, nos três últimos itens, o peso da educação parece ocorrer via classe socioprofissional, mas opõe-se a um efeito geracional. Já no caso do rendimento do agregado doméstico, não apenas a correlação com o nível educativo é especialmente forte (mais em Portugal), como supera mesmo o nível de correlação com a classe socioprofissional, o que sugere que, no interior de cada classe, o nível educativo não deixa de impor assimetrias de rendimentos. Acresce que a correlação entre nível educacional do próprio e do parceiro é extremamente alta (0.720 em Portugal; 0.623 na Europa), o que contribui para acentuar as desigualdades nos rendimentos e estatuto entre agregados domésticos. A situação relativamente ao desemprego é curiosa, pois a educação parece apenas ter um efeito dissuasor no desemprego de longa duração, na Europa, e de curta duração, em Portugal, mas importa acrescentar que o desemprego de longa duração no nosso país era, até 2008, bastante reduzido.
Quadro 2. Níveis de correlação de vários indicadores da situação laboral e económica com a escolarização, origem de classe, classe socioprofissional atual e geração
Alguns autores têm sugerido que a estabilidade dos padrões de desigualdade e a sua forte associação com os níveis educativos podem ser compatíveis com uma erosão das classes sociais ou, pelo menos, da consciência e solidariedade de classe, sobretudo no contexto de vínculos laborais mais precários e temporários (Esping-Anderson et al., 1993; Beck e Beck-Gernsheim, 2003; Beaud e Pialoux, 2003). No entanto, uma pesquisa recente no Reino Unido mostra que a individualização não reduz a consciência individual dos efeitos da classe nos trajetos de vida, mas desloca-a do plano da exclusão e exploração para o plano da discriminação (Atkinson, 2010).
A este propósito, um dos resultados surpreendentes da pesquisa foi a constatação de uma correlação negativa entre educação e concordância com enunciados tais como: “governo devia reduzir desigualdades” (-0.064 em Portugal; -0.152 na Europa) ou “as diferenças no nível de vida deveriam ser menores” (-0.074 em Portugal; -0.151 na Europa). São níveis de correlação baixos, mas não redutíveis a um efeito geracional. Seria expectável que escolarização induzisse uma maior consciência das injustiças estruturais e da necessidade de solidariedade. Ao invés, a socialização escolar prolongada parece gerar uma indiferença ou um sentimento de justiça face às desigualdades, o que não deixa de ser um indicador da orientação mais meritocrática-individualista do que igualitária-coletivista dos sistemas educativos modernos (ver ponto 5).
Podemos concluir que a escolarização tem contribuído para um reforço das profissões técnicas e de enquadramento, não apenas em termos da sua dimensão quantitativa, mas também ao nível de um relativo fechamento do acesso àqueles que não possuem uma formação universitária, privilégios na sua situação laboral e económica, bem como um “sentido de justiça” (autolegitimação) da sua posição privilegiada. Relativamente às classes sociais desfavorecidas, não podemos testar a tese de uma possível erosão da consciência e solidariedade de classe, mas os dados do ESS confirmam a existência de três classes – empregados executantes, operários industriais e agrícolas, trabalhadores desqualificados – que variam notavelmente, em termos de condições laborais, sendo a escolaridade secundária um fator decisivo na distribuição dos indivíduos por estas três classes.
4. A escola e a mobilidade social
Mesmo confirmando que a escolarização é decisiva para o lugar de classe dos indivíduos, isso pode não incrementar a mobilidade e justiça social, caso os jovens mais escolarizados sejam aqueles que cresceram nas classes privilegiadas (tese da reprodução). Quanto ao peso da classe social de origem nas oportunidades escolares dos jovens, as desigualdades são evidentes em todo o continente e reforçadas no caso de Portugal[9], ainda que se note em ambos os casos uma redução nas gerações mais jovens, o que pode estar associado a sistemas educativos mais compreensivos. A nível europeu, a possibilidade do filho de um profissional técnico e de enquadramento obter um diploma do ensino superior é três vezes superior à do filho de um trabalhador desqualificado, na geração mais jovem, e quatro vezes superior, na geração mais velha. Em Portugal, esta proporção é de sete vezes, na geração nascida depois de 1970, e de vinte vezes, entre a população nascida antes dessa data. Como seria de esperar, este padrão de reprodução socioescolar em Portugal não resulta tanto da tendência dos filhos de PTE em obter uma licenciatura (valor apenas ligeiramente superior à media europeia), mas sobretudo da raridade dos filhos de trabalhadores desqualificados alcançarem esse nível[10]. O panorama inverso ocorre ao nível do abandono escolar precoce, ou seja, sem obter um diploma de ensino secundário inferior (ou unificado). Em Portugal, esta situação, dominante entre os filhos de trabalhadores desqualificados (86.7%) e de operários (65.6%) nascidos antes de 1970, reduziu-se entre os trabalhadores mais jovens, mas alcançando ainda percentagens altas (50% entre os filhos de trabalhadores desqualificados e 22.7% entre os filhos de operários), numa geração em que foi já residual entre as classes dominantes. Em termos europeus, a percentagem de abandono escolar precoce nas duas classes mais desfavorecidas era já baixo, entre a geração mais velha, reduzindo-se ainda de forma expressiva na geração nascida entre 1970 e 1984, tornando-se quase residual na classe operária[11].
Será, portanto, o caráter mais fortemente reprodutivo da educação portuguesa que explica as menores taxas de mobilidade social, tanto absolutas e relativas, face ao padrão europeu, ainda que a comparação entre gerações aponte para uma certa recuperação a esse nível.
Este maior pendor reprodutivo pode-se explicar tanto pela procura como pela oferta. No primeiro caso, os fracos recursos económicos e os níveis muito baixos de escolaridade das classes sociais desfavorecidas, face à generalidade dos países europeus, terão dificultado o investimento económico necessário para manter os seus filhos em percursos longos de escolaridade, bem como um acompanhamento familiar eficaz a esses percursos. Importa lembrar que o trabalho infantil era ainda uma realidade comum, em certas regiões portuguesas, ate há pouco tempo, e que a generalidade dos pais tinha apenas o ensino primário, demonstrando sérias dificuldades em compreender a experiência escolar dos seus filhos, a partir “ciclo preparatório”, hoje 2o ciclo do ensino básico (Benavente et al., 1994). No segundo caso, o sistema educativo português tem-se caracterizado por uma estrutura relativamente centralista, erudita, hermética e orientada para o prosseguimento dos estudos, sobretudo no nível secundário (7º ao 12º ano), reprovando massivamente os jovens das classes desfavorecidas, o que tem constituído um incentivo forte ao seu abandono antes de obter uma certificação mínima (Sebastião, 1998; Abrantes, 2008). Ainda assim, note-se que a enorme evolução entre as gerações nascidas antes e depois de 1970 comprova os efeitos de democratização escolar relativa produzida a partir da revolução política, bem como a falácia daqueles que viam no ensino técnico do Estado Novo uma via alargada de mobilidade social, desmontada no período democrático (Grácio, 1986)[12].
5. Orientações culturais
Na análise do papel da escolarização na produção da modernidade, interessava-nos também observar o efeito da educação nas orientações culturais dos indivíduos, tanto ao nível da sua filiação em diversas instituições, como em termos de atitudes, valores, práticas e estilos de vida.
Em termos do recurso aos diferentes meios de comunicação, o nível de escolaridade tem uma correlação negativa com a televisão (sobretudo, na Europa) e uma correlação positiva, muito forte quanto ao uso de internet (sobretudo, em Portugal) e significativa quanto à leitura de jornais, sobretudo atendendo a que, neste último caso, a educação “joga” contra um efeito geracional adverso, isto é, os jovens leem menos jornais (quadro 3). A força destas correlações apoia a tese de que, mais do que a classe social ou a geração, é o baixo nível de escolaridade que induz a incorporação a uma “cultura de massas” e ao fechamento num “proletariado offline”, sendo, ao invés, os altos níveis de escolaridade que favorecem a leitura e a reflexividade, bem como os consumos especializados e interativos, através da internet.
Quadro 3. Níveis de correlação da escolaridade, origem social, classe socioprofissional e geração com as práticas mediáticas e políticas, em Portugal e na Europa
É interessante que a escolarização gera um maior interesse pela política, uma opinião mais favorável quanto ao estado da democracia, bem como uma maior participação em petições e manifestações, em todos os casos com correlações significativas e superiores ao impacto da classe, origem social ou geração (especialmente altas em Portugal). No entanto, a propensão para votar parece mais influenciada pela pertença geracional – os jovens votam menos do que os mais velhos – sendo a correlação com a educação até negativa, no caso português, devido à influência do fator geracional[13]. Esta desvinculação dos jovens relativamente às instituições formais da democracia constitui uma marca do processo de individualização, como mostram Beck e Beck-Gernsheim (2003). Em todo o caso, seria importante discutir os processos de socialização política, em particular no espaço escolar (Resende e Dionísio, 2005), explorando qual o motivo pelo qual a escolarização induz um maior interesse pela política mas um maior abstencionismo. É possível que uma melhoria das práticas de formação cívica, em particular através da criação de dispositivos de participação democrática na vida escolar, desde uma idade precoce, fomentassem hábitos e convicções acerca da importância da participação democrática.
Outro aspeto relevante é a correlação nula (valores inferiores a 0.1 em Portugal e na Europa) da escolarização (ou da geração) com a “confiança na ciência” e com a apreciação do “estado da educação”. Será aqui difícil de descortinar um avanço na confiança nos sistemas abstratos e de peritagem, apontados por Giddens (1990) como um fundamento das sociedades modernas, embora o próprio autor advirta que esta confiança não é totalmente baseada na razão ou no conhecimento, contendo um importante elemento de fé. Por seu lado, podemos também aqui vislumbrar os efeitos de uma relação mais distanciada e crítica com as instituições – mesmo aquelas que são especificamente modernas – própria do processo de “individualização institucionalizada” (Beck e Beck-Gernsheim, 2003). Já uma correlação forte, tanto em Portugal (0.287) como na Europa (0.329), impondo-se claramente aos fatores classistas e geracionais, estabelece-se entre escolarização e propensão para frequentar formação ao longo da vida, confirmando a ideia de que a população mais escolarizada, mesmo possivelmente mais crítica quanto à ciência e à educação, desenvolve uma “cultura da aprendizagem” que a faz buscar novos quadros de formação, ao longo do seu percurso biográfico (Ávila, 2005).
Em termos de religiosidade, foi possível constatar uma correlação negativa com o nível de escolaridade dos indivíduos, o que confirma a tese de que a socialização prolongada nos sistemas educativos modernos induz uma certa secularização, enquanto alicerce da modernidade (quadro 4). É interessante que este fator seja especialmente forte em Portugal, sendo que no contexto europeu a importância da escolaridade é secundária face ao peso da origem social. Por um lado, a tensão entre estado e igreja que presidiu ao desenvolvimento dos sistemas educativos da Europa do Sul (católica) foi muito maior do que noutras regiões da Europa. Por outro, em Portugal, a Igreja Católica teve uma forte associação com o regime autoritário do Estado Novo, pactuando com as perseguições políticas, a guerra civil e o fraco investimento na educação, o que tem consequências negativas na capacidade atual de mobilização dos jovens, já crescidos no ambiente democrático e com níveis mais altos de escolaridade.
Quadro 4. Níveis de correlação da escolaridade, origem social, classe socioprofissional e geração com a religiosidade e o nacionalismo, em Portugal e na Europa
No que concerne ao eixo entre valores nacionalistas e cosmopolitas, a escolarização parece induzir uma maior abertura face à unificação europeia e aos benefícios da imigração, embora mais visível no caso português do que na média europeia. Isto é, ao nível da população pouco escolarizada, a intensidade do sentimento nacionalista é semelhante, mas as classes portuguesas altamente escolarizadas são mais cosmopolitas do que as suas congéneres europeias, confirmado a tese de Monteiro e Costa (2004). O peso da socialização escolar neste item não é fácil de aferir, pois os sistemas educativos modernos têm uma forte componente nacional (frequentemente nacionalista) e outra internacional (tendencialmente universalista). É possível que a primeira seja suavizada num país pequeno e periférico, no contexto europeu, em que o desenvolvimento do sistema educativo foi mais recente e nunca foi decisivo para a consolidação do estado-nação (Teodoro, 2001), como ocorreu em Espanha, França ou Itália. Mas importará também notar que, em Portugal, a integração europeia tem sido particularmente benéfica para a população altamente escolarizada, devido ao aumento do investimento na educação, cultura e ciência, enquanto os efeitos são mais polémicos na agricultura e na indústria. Protegidos pelo corporativismo e pela exclusividade da língua, os licenciados portugueses beneficiam da mobilidade internacional dos quadros, mas talvez se tornassem mais belicosos quanto aos imigrantes, se estes entrassem frequentemente em competição pelos seus lugares profissionais, como ocorre mais amiúde entre a população pouco escolarizada. Em todo o caso, o peso incipiente do fator geracional deveria alimentar um debate sobre as dificuldades das organizações internacionais e, em particular, da União Europeia em socializar os jovens em valores mais cosmopolitas, através dos sistemas educativos formais.
No que concerne à esfera privada e familiar (quadro 5), a tese da individualização e desinstitucionalização (Beck e Beck-Gernsheim, 2003) adequa-se mais linearmente, surgindo como resultado tanto da socialização escolar prolongada como de movimentos propriamente geracionais, possivelmente sustentados em referências próprias das culturas juvenis e dos media, superando a variação explicada pela origem ou pertença de classe. Assim, a escolarização induz uma atitude favorável à igualdade de orientação sexual (isto é, contrária à homofobia), o que é particularmente visível em Portugal mas associado a uma mudança geracional de mentalidades. A frequência dos encontros sociais com amigos, fora da rede familiar, surge acentuada nos grupos mais jovens, estando em Portugal também relacionada com a escolarização. Por seu lado, a escolarização induz um forte repúdio à ideia da divisão tradicional do trabalho sexual, ou seja, de que a mulher deve privilegiar a família ao trabalho. É interessante que, neste caso, a socialização escolar surge como principal motor da transformação dos papéis de género, no sentido de uma maior igualdade, impondo-se aos fatores classistas e geracionais. Também a prática de co-habitação, sem vínculo matrimonial, surge mais disseminada entre a população mais escolarizada, sendo a correlação com a geração ou com a classe mais fracas. Já no caso do divórcio, a escolarização tem pouco impacto. Finalmente, o nível educativo tem uma correlação negativa com a parentalidade, ainda que, neste caso, devamos considerar que a média etária da população altamente escolarizada é mais baixa, pelo que uma parte considerável deste grupo está ainda em idade de procriar.
Quadro 5. Níveis de correlação da escolaridade, origem social, classe socioprofissional e geração com as atitudes na esfera privada e familiar, em Portugal e na Europa
O ESS providencia igualmente uma bateria extensa de indicadores quanto a valores e orientações de vida (criatividade, riqueza material, igualdade, segurança, experimentalismo, obediência, abertura à diversidade, humildade, fruição, liberdade, solidariedade, sucesso, diversão, tradicionalismo, proteção ambiental), a partir do grau de identificação do inquirido com um conjunto de enunciados. Uma primeira análise destes indicadores e dos resultados, inspirado por prestigiados estudos internacionais sobre o mapeamento de escalas de valores (Inglehart, 2001), permitiu agrupá-los em quatro orientações culturais diferenciadas (quadro 6).
Quadro 6. Níveis de correlação da escolaridade, origem social, classe socioprofissional e geração com valores e orientações de vida, em Portugal e na Europa
Como seria de esperar, a escolarização está associada a um certo recuo das orientações tradicionalistas, ainda que as correlações sejam relativamente baixas. Também os efeitos da origem social, da classe socioprofissional e da geração são pouco expressivos, sugerindo uma maior uniformidade destas orientações ou a sua eventual associação a outros fatores que não aferimos. Por seu lado, tanto a orientação individualista-materialista como a orientação individualista-hedonista surgem correlacionadas de forma significativa, quer com os níveis de escolaridade quer com a faixa etária, embora a primeira seja particularmente decisiva no caso português e a segunda no caso europeu. Finalmente, tal como se havia já observado no caso das atitudes face às desigualdades sociais (ponto 3), a capacidade de a escola induzir orientações mais coletivistas e cosmopolitas surge bastante mitigada.
Esta análise confirma a tese de que a escolarização, a par de outros fatores com particular impacto na juventude atual, constitui um motor do processo de individualização, libertando os indivíduos das amarras do tradicionalismo e, sobretudo, incutindo-lhes uma orientação para o sucesso, o bem-estar, a autonomia e a experimentação pessoais[14]. No entanto, não é claro que esta orientação individualista se transfira de valores mais materialistas e de produção, para outros mais (pós-modernos?) de expressividade, consumo, criatividade e hedonismo, pois ambos surgem interligados. Esta constatação, sobretudo quando comparada com o efeito fraco na promoção de valores mais coletivistas e cosmopolitas, permite-nos também questionar que aprendizagens efetivamente tem veiculado a escola, sobretudo, através do seu “currículo oculto”. Serve de pouco construir programas de formação cívica, quando as escolas e as universidades continuam a funcionar num modelo que privilegia a competição e o sucesso individual, negligenciando as iniciativas em favor do grupo, da comunidade e do meio ambiente. Não significa que estas atividades não existam, mas surgem sempre como secundárias (e, eventualmente, preteríveis) face ao “core business” da escola. E os jovens incorporam essa hierarquia na sua socialização.
Por conseguinte, será pouco rigoroso dizer que os sistemas educativos preparam os jovens para a passividade. Pelo contrário, parecem formá-los para a busca ativa e contínua da riqueza, do bem-estar e da autonomia pessoais. Porém, os impactos da escola na sua abertura e tolerância à diversidade sociocultural, solidariedade face aos outros e envolvimento na defesa do bem comum parecem ser, até ao momento, dececionantes.
5. Notas finais
A análise teórico-empírica realizada permite, então, sustentar o argumento de que a escolarização tem constituído um motor dos processos de modernidade, na Europa, com pequenas variantes no caso português. Em contraste com opiniões de niilismo educativo frequentemente publicadas e tomadas abusivamente como públicas, a expansão dos níveis de escolaridade associa-se à transformação acelerada da estrutura de classes e de desigualdades (enquanto causa e consequência), embora não à sua dissolução, tem sido uma via crescente de mobilidade social e uma alavanca do processo de individualização, tanto na sua vertente materialista como hedonista.
Esta análise deixa, contudo, algumas pistas abertas para futura investigação. Relativamente às potencialidades do ESS, será importante explorar qual o peso de outros processos como a intensificação do trabalho feminino, as possibilidades de trabalhar e estudar ou a entrada massiva de imigrantes para funções desqualificadas nestes padrões. Não apenas o nível educativo, mas a área de formação poderá igualmente induzir diferenças na estrutura de classes, oportunidades de mobilidade e padrões culturais. E poder-se-á ainda explorar esta evolução em distintas regiões da Europa, associando os sistemas educativos com as variações nos processos regionalizados de modernidade. Mas existem outros desafios que se colocam pelas limitações do dispositivo metodológico do ESS, sobretudo no que concerne a uma análise longitudinal, sempre aconselhável em estudos sobre mudança social. Neste caso, de forma a aferir evoluções nas sociedades, comparámos duas diferentes gerações da população ativa, mas o espectro temporal que este procedimento cobre é pequeno (basicamente, a segunda metade do século XX), não permite destrinçar variações ao longo da vida (“efeito carreira”) de variações propriamente geracionais, nem mudanças que atravessem as sociedades de forma transversal[15]. Em particular, a exiguidade do lapso temporal (em Portugal, cobre o período usualmente associado à modernidade, mas na Europa não tanto) impede-nos discutir se estes efeitos da escolarização são próprios de um período específico dos sistemas educativos e da própria modernidade ou se são mais alargados no tempo, o que limita também a capacidade de previsão do futuro.
Um apontamento final sobre a recuperação do conceito de “sociedade dual” (Sedas Nunes, 1964), agora aplicado ao efeito da escolarização na modernidade. Contra os sonhos iluministas, a análise parece mostrar que o crescente acesso à educação formal tem inúmeros efeitos na estrutura e na mobilidade social, mas não necessariamente a redução das desigualdades sociais ou a erosão do sistema de classes. As assimetrias na escolarização podem assim gerar não apenas um efeito de dualização das estruturas sociais, modelos económicos e padrões culturais, particularmente visível em Portugal, mas também ser um forte legitimador simbólico dessa dualização: dificilmente aceitável se resultante de fatores de nascimento, mais fácil de justificar quando adscrita ao maior ou menor sucesso no sistema educativo[16].
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[1] De igual forma, o papel da escola nos processos de individualização tem sido mais associado, pelos autores dos estudos educacionais, à erosão da consciência de classe e das culturas operárias (Willis, 1977; Apple, 1985), existindo alguma escassez de estudos que analisem a sua relação com o processo mais amplo de subjetivação e de enfoque nas identidades. Como criticam Resende e Dionísio (2005: 663-664), “a ‘forma escolar moderna’, que muitas vezes se associa à escola como instituição, é apresentada como mais próxima das narrativas disciplinadoras e uniformizadoras do que das narrativas ligadas à liberdade e à mobilidade (não só social, mas também geográfica) experimentadas gradual e extensivamente pelos indivíduos modernos”.
[2] Em termos internacionais, esta tendência encontra óbvios paralelismos entre as teorias que têm apontado para a “brasilificação” do mundo, no sentido de uma polarização entre trabalhadores altamente especializados e outros precários e descartáveis (Castells, 1996; Beck, 2000). Em todo o caso, este processo parece mais acentuado no caso português, em comparação com outras sociedades europeias, seja pelo caráter periférico da nossa economia, seja pelo hiato de qualificações intermédias.
[3] Esta categorização é baseada na tipologia ACM (ex. Machado e Costa, 1998; Costa et al., 2000), considerando que a unificação de todos os trabalhadores dependentes sem qualificação superior numa mesma classe (Wright, 1997; Estanque e Mendes, 1999) pode significar algum empobrecimento analítico, dada a dimensão e diversidade interna deste grupo, sobretudo em sociedades como a portuguesa. Tal como nota, Esping-Anderson et al. (1993) existem diferenças entre um proletariado industrial e outro “pós-industrial” (empregados executantes), relativamente ao perfil do trabalhador, tipo de trabalho, possibilidades de mobilidade e vínculos laborais. Apesar disso, apresentamos também algumas variações quanto à tipologia ACM. Por um lado, a classe dos “trabalhadores independentes” foi diluída na nossa formulação, devido à sua reduzida expressão na Europa atual (a maioria estava ligada à agricultura e ao artesanato), às suas condições e posições heterogéneas, bem como à sua tradicionalmente fraca consciência de classe. Por outro, respeitando tendências mais recentes a nível europeu, diferenciamos os empregados executantes e operários, já com alguma especialização, autonomia e estabilidade, de um contingente de trabalhadores indiferenciados e temporários, dedicados a atividades como a venda ambulante, a limpeza doméstica e das ruas ou a jorna agrícola, entre outras, a que Darhendorf (2003) designa de “subproletariado”.
[4] Os indivíduos com altas qualificações podem, por exemplo, recusar a possibilidade de trabalhar como operário, empregado executante ou mesmo empresário, permanecendo em casa dos pais e lutando por uma incorporação (mesmo que mais lenta, mais instável e menos abonada em termos económicos, num primeiro momento) enquanto profissional técnico e de enquadramento, devido ao prestígio associado a estas funções, ao investimento realizado anteriormente no sistema educativo, ao maior estímulo intelectual conferido por estas profissões e pelas maiores expectativas de mobilidade ascendente a longo prazo. É o caso, por exemplo, dos “estagiários” e de muitos dos “falsos recibos verdes”.
[5] É o caso das “estratégias de usurpação” (Parkin, 1979) através da “profissionalização” de diversas atividades antes consideradas de execução. Veja-se como, atualmente, a variedade de cursos do ensino superior se expandiu, a ritmo acelerado, desde os anos 80, em alguns casos dedicados a novas profissões, mas noutros casos dedicados a uma profissionalização no âmbito de uma atividade que anteriormente apenas requeria uma formação intermédia. Isto significou que algumas atividades antes desempenhadas por operários ou empregados executantes passaram a ser desempenhadas por técnicos altamente qualificados, geralmente com ganhos materiais e simbólicos para os próprios.
[6] Entre a população ativa nascida antes de 1970, apenas 9.9% tem um diploma do ensino superior, mas 14.5% pertence à classe PTE e 2.9% à classe EDL. Entre a população ativa mais jovem, 28.2% é licenciada, estando 27.9% integrados na classe PTE e 2.7% na classe EDL.
[7] É difícil de estimar o peso da mobilidade ao longo da vida, para as novas gerações, pois depende também da evolução económica, social e política. Em geral, é sabido que existe uma tendência de mobilidade ascendente ao longo da vida, embora esta esteja em retração, precisamente devido ao crescente peso da escolarização (Van Leeywen e Mass, 2010).
[8] Esta proporção será até mais elevada, se nos limitarmos à análise dos diplomas do ensino secundário obtidos no sistema educativo português, pois sabemos que uma parte dos trabalhos desqualificados é desempenhada por trabalhadores imigrantes, cuja formação escolar é frequentemente desvalorizada na sociedade de acolhimento.
[9] A correlação entre classe social de origem e nível educativo alcançado é de 0.446, em Portugal, contra 0.348, em termos europeus.
[10] Ainda assim, a percentagem dos filhos de trabalhadores desqualificados que obtém um diploma do ensino superior subiu de 2.8% para 12.8%, no espaço de uma geração, contra uma evolução de 13.2% para 22.2% na Europa.
[11] Entre os trabalhadores desqualificados, na Europa, a taxa de abandono escolar precoce reduziu-se de 30.3% (nascidos antes de 1970) para 15.5% (nascidos entre entre 1970 e 1984), enquanto no operariado essa redução foi de 13.1% para 3.5%.
[12] É claro que a melhoria das condições económicas, tanto do Estado como das famílias, a partir dos anos 80, constitui um poderoso fator de manutenção dos jovens no sistema escolar. Em todo o caso, a análise mostra claramente que a via técnica do ensino secundário serviu apenas uma minoria de jovens das classes desfavorecidas, tendo gerado um claro “deficit” de qualificações, não apenas relativamente aos outros países europeus, mas também à própria transformação da estrutura de classes socioprofissionais, operada a partir dos anos 60 (ver ponto 3).
[13] Visto que os jovens são mais escolarizados e votam menos, a escolarização acaba por ter uma correlação negativa com a participação eleitoral, não se estabelecendo, neste último caso, um nexo de causalidade, mas de coincidência. Um aspeto relevante e a explorar em futuros estudos é que, entre os jovens, a formação universitária induz efetivamente uma maior participação nos processos eleitorais, mas a escolaridade secundária não, sendo os diplomados deste grau intermédio aqueles que mais se abstêm.
[14] Um psicólogo poderá inverter esta relação de causalidade, considerando que indivíduos mais autónomos, ambiciosos, experimentalistas e/ou materialistas obtêm, geralmente, percursos de escolaridade mais longos e bem-sucedidos. Em todo o caso, isso significa que a escola privilegia esses valores, em detrimento de outros. Além disso, as crianças passam hoje muitos anos no sistema educativo, desde uma idade cada vez mais precoce, pelo que seria pouco razoável considerar que o caráter já estaria formado à entrada na instituição e não seria influenciado por esta.
[15] Referenciamos e comparamos os dados do ESS como outros estudos que prosseguem a comparações diacrónicas dos estudos, geralmente prosseguindo cohortes ao longo do tempo (Erikson e Goldthorpe, 1993; Merllié e Prévot, 1997; Breen e Jonsson, 2005; Van Leeywen e Mass, 2010), o que é uma metodologia mais exigente (os dados deste tipo relativos à sociedade portuguesa são praticamente inexistentes), com mais potencialidades heurísticas, mas que se confronta com outros desafios e limitações.
[16] Diga-se, a este propósito, que as sociedades meritocráticas não são necessariamente mais coesas, igualitárias, inclusivas ou democráticas, sobretudo quando um único fator (a escolarização) tende a prevalecer sobre os outros. Esta é um elemento central da referida tensão existente entre democracia e capitalismo, ainda que seja evidente tanto no setor público como privado, bem como também, em moldes distintos, nos países comunistas.
Autores: Pedro Abrantes