Nº 11 - agosto 2016
José Pedro Arruda. Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra, Especializado na área de Sociologia da Comunicação. Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Portugal.
Resumo: O consumo televisivo começou por ser um fenómeno essencialmente público, passando depois para a esfera privada e para o espaço doméstico. Na era digital, a televisão tem vindo a transformar-se, adaptando-se a novos dispositivos e expandindo-se por outras plataformas. Um dos aspetos mais preponderantes destas transformações prende-se com a fusão dos espaços públicos e privados, que acontece sobretudo em duas dimensões: uma tecnológica, derivada dos usos e funções que os públicos atribuem aos objetos técnicos; outra intelectiva, que ocorre pelos constantes cruzamentos de informação e mundos imaginários, permitidos pelos novos media e pelas transformações nas formas de utilizar os media tradicionais.
Palavras-chave: Televisão; espaços privados; espaços públicos; era digital.
The fusion of public and private spaces in the new communication paradigm
Abstract: Television consumption began as essentially a public phenomenon, then moving to the private sphere and the domestic space. In the digital age, television consumption is changing, adapting to new devices and expanding to other platforms. One of the most prevalent aspects of these changes is related to the fusion of public and private spaces, which mainly takes place in two dimensions: a technological one, derived from the uses and functions that audiences give to technical objects; an intellectual one, occurring by the constant crossbreeds of information and imaginary worlds, allowed by the new media and the transformations in the ways of using traditional media.
Keywords: Television; public spaces; private spaces; digital age.
Este artigo tem por base a comunicação com o mesmo título que foi apresentada no “Encontro On/Off: navegando pelas culturas digitais”, organizado pela Associação Portuguesa de Sociologia e realizado no dia 26 de novembro de 2015, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Os dados que serão aqui apresentados, assim como a sua teorização, foram retirados da minha Tese de Doutoramento em Sociologia, apresentada à Universidade de Coimbra em março de 2015, intitulada “A Televisão em Ação. O processo comunicacional mediado como elemento estruturante de mundos coletivos”. Este estudo tem como fundamentos empíricos um trabalho etnográfico realizado em duas localidades portuguesas: a cidade de Guimarães e a freguesia de Vila do Porto, situada na ilha de Santa Maria, no arquipélago dos Açores. Ao longo dessa investigação foram realizadas trinta entrevistas individuais a públicos televisivos, assim como quinze entrevistas a profissionais de TV e duas a vendedores de tecnologias audiovisuais. Este trabalho empírico é o principal alicerce das propostas que serão aqui apresentadas e defendidas.
O que aqui se expõe é um olhar retrospetivo sobre o consumo televisivo, desde a sua génese até às formas contemporâneas, que se desenvolvem no paradigma da comunicação digital. O foco desta análise incide sobre o processo pelo qual a TV passa de um fenómeno eminentemente público para o espaço privado, tendo depois, progressivamente, contribuído de forma decisiva para a fusão destas duas esferas. Como reconhece Silverstone (1994, p. 132), os públicos televisivos são entidades individuais, sociais e culturais, o que os torna, de certa forma, ‘nómadas’. Ou seja, a perceção do público sobre a TV move-se entre diversos espaços e tempos, como o espaço doméstico, o espaço social compartilhado, o espaço nacional, tempo biográfico, o tempo da rotina diária ou o tempo das emissões televisivas. Em todas estas dimensões, a experiência televisiva está “presente” e “no presente”. Consequentemente, é também um desafio para quem fala sobre televisão recapitular e organizar ideias, opiniões, ilações e julgamentos sobre a mesma. As formas como a TV entra e se embrenha na vida pessoal e coletiva são tão vastas e diversificadas que seria complicado conferir-lhes autonomia, mesmo tratando-se de um só indivíduo. Quando se trata de trinta pessoas, com idades compreendidas entre os 19 e os 74 anos, com origens sociais bastante díspares e, necessariamente, com posicionamentos políticos, ideológicos e morais fundamentalmente diferentes, essa tarefa torna-se deveras intrincada. No entanto, é precisamente isso que se pretende neste artigo: conferir sentidos, devidamente ilustrados, e uma aparente ordem à caótica experiência social que se entrelaça com a TV.
Um dos benefícios de entrevistar pessoas de diferentes idades prende-se com a forma como isso espelha o caráter biográfico da relação com a TV. São, de facto, percetíveis as oscilações na importância e significado que se atribui à televisão, conforme se tenha nascido numa era em que a internet era já um fenómeno consolidado ou numa época em que nem a televisão existia. Quem vivenciou os primeiros anos da TV em Portugal (ou nos Açores, no caso das pessoas de Santa Maria), recorda facilmente o fascínio que essas primeiras emissões exerciam. Quem cresceu em lares onde a presença do televisor a cores com muitos canais à disposição era já um dado adquirido, tem naturalmente uma perspetiva mais banalizada da TV. Aqui, procura-se caracterizar diferentes fases do processo comunicacional mediado pela TV, no contexto português, que não correspondem a períodos históricos concretos, podendo coexistir no tempo. No caso das duas localidades estudadas, este sincronismo seria sempre impossível, pela chegada muito tardia da TV aos Açores.
Existe, no entanto, uma ordem temporal nesta divisão, obedecendo à própria evolução tecnológica e das formas de acesso aos conteúdos televisivos. A divisão que aqui se estabelece tem várias correspondências com o modelo trifásico descrito por Spigel (cf. 2001), repartido entre a) “teatro doméstico; b) “lar móvel”; c) “lar inteligente digitalizado”, mas atenta às especificidades dos contextos de análise. Em Portugal, a TV começou por ser um fenómeno externo ao espaço doméstico, sendo o seu consumo habitual nos cafés e estabelecimentos que desde logo adotaram o equipamento. A primeira fase consiste então no processo de domesticação da TV a partir do exterior, até aos televisores se tornarem um elemento normalizado no interior da casa e integrado nas rotinas domésticas. A segunda fase corresponde à ‘tecnologização’ dos telespectadores, em virtude do aparecimento de novos dispositivos de comunicação e da criação de um consumidor altamente especializado e que está a par das inovações, gerando a “mobilidade privatizada” de que fala Spigel. A terceira fase acontece quase simultaneamente à segunda e é sobretudo um efeito desta. Trata-se da fusão dos espaços públicos e privados numa amálgama sociotecnológica que confunde tempos e espaços.
1 . Do consumo público ao consumo doméstico
De entre os/as entrevistados/as de Guimarães, contam-se alguns/umas que recordam ainda o aparecimento da televisão em Portugal. Júlio lembra que “ela aparece em 1957, tinha eu 7 anos. E ia para os cafés, ver aquelas séries de cowboys”. Esse comportamento, comum entre as crianças da época, nem sempre era permitido pelos proprietários: “Nós, putos, era à porta! Porque não tínhamos dinheiro para nos sentarmos à mesa… e lá vinha o empregado. Se fosse simpático, deixava-nos estar à porta a ver a série, se não fosse, punha-nos na rua”. Filomena confirma esta prática, relembrando que quando ia ver séries como Bonanza para o café “tinha que tomar uma cevada, senão não me deixavam ver. E era sentada no chão, não tinha direito a cadeira”. Fora de meios urbanos, o acesso à TV era ainda mais restrito, como recorda Ana, que “ia de propósito a casa de um tio meu… ele tinha uma mercearia e não havia mais ninguém que tivesse TV”. Para as mulheres, sobretudo, havia mais limitações, pois “aquilo era mercearia e tasco… e estava tudo cheio de homens, que antigamente as mulheres não iam para o café. Por isso o meu tio chamava-nos para dentro do balcão… era a única forma de eu sair de casa um bocadinho, à noite”.
Além das habituais enchentes que se registavam nos cafés quando das primeiras emissões televisivas, havia também quem tivesse a possibilidade, rara na época, diga-se, de se deslocar a casa de um vizinho que possuísse um televisor, como era o caso de Maria, que estava já a atingir a maioridade quando a TV surgiu: “tinha 17 ou 18 anos e íamos a casa dele ver a TV à noite. Telejornais e pouco mais. E fechava à meia-noite”. Essa prática era coletiva, juntando grupos de amigos ou familiares, porque “toda a gente gostava de ver”. Este processo aconteceu de forma muito similar na ilha de Santa Maria, embora algumas décadas mais tarde. Mas o fascínio exercido pela televisão, nos seus primeiros anos, foi exatamente o mesmo. “Foi um fenómeno social! Era uma festa ver uma imagem”, recorda Lurdes, ao que Paula acrescenta: “era comer à pressa, lavar a louça, arrumar tudo, para ir ver”. O que se via, porém, era pouco, explica Madalena: “estou-me a lembrar… [risos] era a chuvinha! A gente dizia «anda cá ver a chuva no Continente»… íamos para a rua mexer na antena e nada, sempre chuva! De vez em quando via-se qualquer coisa e a gente dizia que era as Canárias”.
Em Vila do Porto, verificou-se um fenómeno curioso, que foi a difusão dos primeiros televisores antes mesmo de existir televisão. Rui explica que “[por volta de 1975, uma empresa regional] mandou vir uma data de televisores… quem os comprou foi uma elite, um subgrupo, digamos. Depois, a partir de 1980 é que se foi massificando mais. O acesso também não era barato, na época”. Laurinda lembra-se também que “tive TV em casa ainda antes de as emissões iniciarem aqui nos Açores. O meu pai, porque se estava a preparar, comprou logo um aparelho. E, pronto, nós ficávamos ali bastante tempo, horas a ver aquilo, à espera que aparecesse qualquer coisa”. Esta curiosidade que o novo dispositivo despertou, associada à escassa oferta de espaços comerciais que a ilha oferecia, motivou uma frequência regular e coletiva das casas de quem tinha um televisor. Consequentemente, este tornou-se “um objeto de prestígio social, na altura, sem dúvida”, aponta Lurdes, revelando que, quando casou [em 1982] “não tínhamos muitas coisas, mas tínhamos um televisor a cores e uma coleção de vinil… música e TV a cores não podiam faltar”.
Estas memórias ilustram o que Janet Hoskins (1998) chama de “objetos biográficos”, quando constata que, nas narrativas etnográficas, torna-se muitas vezes impossível desarticular os discursos sobre a vida das pessoas dos discursos sobre os objetos que estas valorizam. Hoskins explora a proposta de Kopytoff (1986) de que os objetos têm uma biografia tal como qualquer indivíduo. Por conseguinte, as transformações e mudanças que as coisas sofrem ao longo da sua ‘vida’, revelam muito mais que a sua mera existência; desvendam características dos meios que os envolvem e propriedades dos tempos que atravessam. Quando Paula releva, divertida, que “antigamente, o meu pai punha aqueles filtros à frente, para fazer de conta que era a cores, via-se aquela coisa horrorosa ali”, não está apenas a recordar um artefacto que caiu em desuso. Está a reviver momentos passados em família, a projetar no presente sentimentos associados ao objeto em questão, a rir-se de episódios e peripécias associados ao mesmo e, sobretudo, a transmitir expectativas e representações sociais sobre a TV num determinado aglomerado cultural.
O valor do televisor enquanto objeto biográfico pode ser questionado pelo seu caráter industrial e estandardizado, que o afasta da unicidade de uma coisa personalizada e o remete para o conceito de mercadoria. Porém, ao ser retirado do mercado e do processo de ‘mercadorização’ (cf. Kopytoff, 1986), sendo integrado no espaço doméstico, o televisor adquire uma nova identidade social, passando a ser valorizado como único pelo seu proprietário. Maria manifesta essa relação, ao dizer que “a minha televisão da sala é antiga, mas muito boa. Quero conservá-la… não é que seja muito estética, mas na minha sala fica bem. O plasma não se enquadra bem no estilo da minha sala, que é de estilo inglês”. Esta relação de maior proximidade com o objeto em causa que, apesar de ser produzido em série, tem de integrar-se no ambiente doméstico, não é exclusivo de gerações mais velhas. Nuno, de 33 anos, orgulha-se também do seu “caixote antigo” que, apesar de tudo, “já tem uns 12 anos e não dá problemas, está impecável”, pelo que nem equaciona trocá-lo.
Todas as pessoas entrevistadas tinham pelo menos um televisor em casa, mesmo aquelas que consideraram dar-lhe pouco uso. Há uma evidente normalização da presença da TV nas casas particulares, independentemente das marcas e modelos dos televisores. Além da sua mera existência, a localização preferencial é também uma constante: há sempre um televisor na sala-de-estar. Daniela, bibliotecária de 33 anos que vive sozinha, tem um televisor na sala mas opta por mantê-lo desligado, porque “a TV tornou-se parte do nosso dia-a-dia. Chega a um ponto em que, se as pessoas não ligam a TV, parece que têm a casa vazia. E esse conceito começou-me a assustar um bocado”. Esta sensação de vazio pela ausência de um televisor a debitar som e imagem foi repetida em diversas outras entrevistas, sendo a TV regularmente apontada como “uma companhia”, sobretudo quando se está sozinho em casa. Ou seja, independentemente do conteúdo exibido e do formato do dispositivo, é a presença material da TV que se tornou um elemento quase familiar e ‘natural’ no espaço doméstico.
A centralidade da TV no lar também não passou despercebida a Daniela: “dantes, as pessoas sentavam-se à volta da lareira; agora, sentam-se à volta da televisão. Era a cozinha o centro das famílias, agora é a sala e é por causa da TV. A sala nem existia, era para receber visitas”. No entanto, a presença da TV tanto pode funcionar como um aglutinador das famílias como um intruso no seio do núcleo familiar, que atua como elemento disruptivo da comunicação entre as pessoas. Neste ponto, as opiniões dividem-se sobremaneira, sendo que a maioria dos/as entrevistados/as considerou que a TV pode efetivamente desempenhar ambos os papeis. Talvez por isso seja também muito frequente ouvir-se estratégias de regulação ou negociação do consumo televisivo em casa. Ana e João são um casal e, em entrevistas separadas, ambos revelaram que a negociação ficou facilitada quando optaram por ter dois televisores, um na sala e outro no quarto. Porém, isso também “separa um bocado a convivência familiar… e a TV, às vezes, pode criar… pequenas desavenças, situações caricatas entre o próprio casal”, confessa João.
Silverstone, Hirsch e Morley (1992) desenvolvem o conceito de “economia moral” para descrever o processo pelo qual o espaço doméstico é concebido como parte de um sistema de relações económicas e sociais dentro do sistema mais abrangente e formal da economia e da sociedade existentes na esfera pública. De facto, a TV é remetida, habitualmente, para o espaço mais público da casa, que é a sala-de-estar, onde se recebem as visitas. Mesmo pessoas que criticam a TV pelo seu impacto negativo nas relações interpessoais admitem que costumam ligar o televisor quando têm convidados, mas essa presença é geralmente regulada. Joana, de 27 anos, assume que “quando é um jantar, gosto que a TV esteja desligada ou muito lá ao fundo… num canal de música ou assim. Tem mais piada estarmos a conversar do que propriamente ali cismados a olhar. Não gosto disso”. Da mesma forma, o próprio período de visualização pessoal e familiar é sujeito a normas que resultam das preferências individuais de consumo, como revela Alice, 60 anos, ao declarar assertivamente “quando estou a ver, não me interrompam! Não gosto nada”.
Tanto o tempo como o espaço de visualização está assim sujeito à regulação de cada núcleo doméstico. “Nos quartos acho que é muito mau ter TV. Já na sala, é bom, desde que não seja exagerado o número de horas que as pessoas passam em frente à TV e que se consiga ter o contacto pessoal”, considera António que, aos 49 anos, prefere despender o seu tempo livre num contacto mais direto com os filhos. Estes costumam ser também um fator importante na estruturação familiar do consumo televisivo, sobretudo para quem vive com crianças. Paulo, que tem uma filha de 9 anos, assume que não tem o hábito de ver TV em família, porque ela “quando está a ver TV, geralmente é ‘bonecada’. E eu, para não estar a ver ‘bonecada’, muitas vezes vou ver TV para o quarto”. Jorge, que tem dois filhos com menos de 5 anos, prefere “que os miúdos estejam no quarto com os Legos, ou a pintar as paredes, do que ficar colados em frente à TV”, mas acabou por ter de dividir o espaço doméstico, pela necessidade de “manter os miúdos entretidos”, pelo que “a TV da sala é liberal. Quem chegar primeiro, apodera-se, um bocado, da TV. Lá dentro, no quarto, a TV é dos miúdos”.
Em suma, pode dizer-se que a domesticação da TV começa pela apropriação de objetos biográficos, os televisores, que progressivamente vão penetrando os espaços mais públicos e posteriormente mais íntimos do lar, de forma estruturada e regulada pelos seus proprietários. No entanto, este processo é circular, uma vez que a TV é também estruturante das rotinas e das práticas domésticas. Vasco, de 40 anos, que vive com os seus pais, afirma que “um noticiário por dia, pelo menos, tenho de ver. Lá em casa a regra é: eles vêm o noticiário das 19h [nacional] e depois o das 20h [RTP-Açores]”. Hugo, por sua vez, revela que tem o seguinte hábito: “chego ao quarto e não ligo a luz, ligo a TV, que dá aquela luz de presença. Mas, se estiver na secretária, nem sequer estou a olhar para a TV”. Já Rita, que vive sozinha, diz ter uma utilização escassa do televisor, mas quando vai passar os fins de semana com os seus pais “é um bocadinho diferente, porque os meus pais veem sempre o telejornal… e as notícias, à hora de almoço. Acabo por acompanhar isso”.
2 . Do consumo doméstico ao consumo digital
Tornou-se um lugar-comum dizer que o consumo televisivo tem sofrido grandes transformações em função do aparecimento de novas tecnologias da comunicação, em particular da internet. Essa evidência não pode ser negada, mas mais importante do que proferir uma sentença é procurar compreender em que medida essas mudanças atuam na vida social e em contextos reais. Gustavo Cardoso et al. (2009), ao procurarem definir as “dietas mediáticas dos portugueses”, abrem a porta para este tipo de estudo, mas esquecem a importância do contexto de análise. Por outro lado, a forma como traçam uma correspondência linear entre grupos sociais (por critérios de sexo, idade, profissão e escolaridade) e perfis de consumo pode projetar uma imagem demasiado estática dos consumidores de media, reproduzindo certos estereótipos que já existem no senso comum. Porém, este estudo chama a atenção para alguns aspetos relevantes da comunicação social contemporânea, como o cruzamento de diferentes meios pelos públicos e o multitasking.
Para realçar a importância de compreender o contexto em que se estuda, coloque-se o exemplo do consumo de jornais diários. Conclui o referido estudo que “os não-leitores são sobretudo os mais jovens (15-24 anos) e os mais velhos (mais de 55 anos), que se caracterizam por não comprarem jornais regularmente” (Cardoso et al., 2009, p.161). Nas duas localidades onde foi realizado este trabalho empírico, esta premissa seria totalmente desajustada. Jovens ou menos jovens, os habitantes de Guimarães têm, naturalmente, muito mais predisposição para ler jornais em papel do que os de Vila do Porto. Os motivos são claros: em Santa Maria não há jornais do dia; geralmente chegam com dois dias de atraso e, sobretudo na “era digital”, não faria muito sentido ver as notícias com tamanha dilação. Precisamente por isso, ao contrário do que acontece em Guimarães, não se encontram jornais à disposição dos clientes em cafés e outros estabelecimentos públicos, pelo que o hábito de leitura da imprensa escrita nunca foi muito estimulado na ilha e não faz parte das suas práticas sociais.
O mesmo estudo reforça a convicção de que são os mais jovens que preferencialmente fazem cruzamentos de diferentes media, privilegiando a internet, embora reconheça que “a presença da televisão não está a ser, necessariamente, mais reduzida na vida dos jovens, porém, é muitas vezes relegada para plano de fundo” (ibid., p. 193). A perceção de que são os jovens que mais utilizam a internet e as novas tecnologias de comunicação está bem patente entre os públicos, sendo essa a opinião global dos/as entrevistados/as. Contudo, mesmo algumas das pessoas que reconhecem este pressuposto desafiam essa regra. Carla, uma das mais novas da amostra, com 19 anos, não tem dúvidas de que preferia viver sem internet do que sem TV, porque “não consigo viver sem TV em casa. Já é habitual chegar a casa e ligá-la”. Eliana, de 26 anos, também optaria por abdicar da internet, já que tem acesso a ela no emprego, onde passa a maior parte do dia. Por seu lado, Rui, de 55 anos, “escolheria obviamente ficar sem TV, até porque posso ver televisão na internet”.
O parâmetro da idade pode efetivamente ter relevância estatística, mas diz-nos muito pouco sobre os motivos que levam alguém a escolher um dos meios em detrimento de outro, caso fosse obrigado a tomar essa opção. As respostas a essa questão foram surpreendentemente niveladas, mesmo entre os públicos mais jovens, embora tenha havido uma ligeira maioria de pessoas a optar por manter a internet. No entanto, o motivo mais frequentemente apontado para essa escolha foi o facto de através da internet ser possível ter acesso a conteúdos televisivos. Apenas um entrevistado, Gustavo, operário têxtil de 27 anos, considerou que “podia viver sem as duas”, justificando isso por passar pouco tempo em casa. Naturalmente, as pessoas mais velhas que nunca tiveram acesso à internet nem sabem “trabalhar com aquilo”, como Maria, Alice ou Filomena, dão primazia à TV. Há aqui uma óbvia questão geracional, mas que não tem tanto a ver com a idade per se, antes com a experiência e contacto com o meio em questão.
As pessoas mais velhas que têm um contacto regular com computadores, nomeadamente por razões profissionais, acabam por não ter um uso da internet muito diferente dos mais jovens: consultam sites de notícias, partilham vídeos do youtube com os amigos e vão regularmente ao e-mail e mesmo ao Facebook. Na opinião de Rodrigo, de 38 anos, “as massas continuam a ter a internet em formato de TV. Porque não foram educadas para passar ao passo seguinte. Ou seja, elas veem a internet, mas filtram-na como se fosse a TV. E são coisas diferentes”. Significa isto que, apesar de a utilização da web ser um fenómeno cada vez mais comum e abrangente, Rodrigo acha que o uso que lhe é dado está ainda aquém das potencialidades do meio, crendo que a maioria das pessoas usa a internet como uma fonte de entretenimento e não para procurar informações eventualmente mais úteis, a que não se consegue aceder via televisão. Por outro lado, o potencial recreativo da internet também é limitado pelo facto de as pessoas usarem meios informáticos no seu serviço. Madalena revela que “no meu trabalho, tenho um programa em que estou todo no dia na internet. Chego a casa, já não tenho paciência”.
Sendo certo que, cada vez mais, os utilizadores de TV e internet cruzam os dois meios, e que eles próprios se misturam – a TV digital está em expansão, os novos televisores Smart TV permitem o acesso à internet e proliferam sites de partilha e descarga de conteúdos televisivos – ainda assim há diferenças gerais na forma como os percecionam. Há quem considere a TV uma plataforma mais interessante para o entretenimento mas não tanto como fonte de informação e há quem ache exatamente o oposto. No entanto, há uma ideia claramente dominante de que a informação televisiva, embora limitada, é mais fiável do que a que se encontra online. Ana pensa assim porque “uma notícia na TV está muito mais exposta do que num jornal ou na internet. E o jornalista dá a cara”. Júlio e Jorge, sendo de gerações diferentes, ambos procuram cruzar fontes informativas, mas destacam a vantagem dos diretos televisivos sobre a informação escrita e a posteriori da internet. Teresa, de 19 anos, confia mais na TV porque “aquilo que está na internet é mais fácil de ser modificado por outra pessoa”, embora ache a imprensa escrita ainda mais fiável.
A este nível, apesar das especificidades de cada meio, uma opinião também várias vezes veiculada nas entrevistas é a de que “depende do órgão informativo que dá. Não do meio, mas do órgão em si. E também dos jornalistas”, como refere Luís. Mas, sobretudo ao nível do entretenimento, há algumas especificidades morfológicas da TV que lhe conferem uma substancial vantagem: o monitor grande e a sua localização estratégica em frente ao sofá. Como indica António, que aos 49 anos também preferiria ter apenas a internet em casa, uma das vantagens da TV será a qualidade da imagem, sobretudo para conteúdos como filmes e séries, até porque “estão a começar a aparecer canais HD e a qualidade é muito melhor. Imagem, som, tudo”. De facto, é a ficção televisiva que melhor representa a fusão entre os dois meios: quem utiliza a internet tendencialmente usa-a também para fazer download de séries e filmes, ou vê-los em streaming e, posteriormente, tendo essa possibilidade, prefere visualizá-los num monitor de TV, “pela qualidade da imagem e mesmo o tamanho do ecrã. É mais cómodo… se estivermos no computador, provavelmente teremos de estar numa cadeira. Nunca será tão cómodo”, explica Teresa.
Para algumas pessoas, o consumo atual de internet em Portugal ainda pode ser considerado, globalmente, primário ou básico, como sugeriu Rodrigo e também Daniela, que acha que “nós temos bons índices de utilização de internet, mas as pessoas não estão preparadas. Ou seja, as pessoas têm acesso à internet, mas não sabem utilizá-la para retirar informação”. No entanto, no que respeita à TV e às tecnologias de visualização, o que se percebe das entrevistas realizadas é que os consumidores são cada vez mais exigentes e conhecedores das inovações técnicas e dos novos gadgets. Isso foi confirmado por ambos os vendedores de materiais televisivos entrevistados. Um deles não tem dúvidas de que “o público evoluiu” na procura de novas características técnicas nos dispositivos: “já não se importa com a nitidez, porque com os sinais de TV por cabo, os sinais melhoraram bastante. Agora, dá muita importância ao realismo e à veracidade da imagem, não quer aquela imagem tão polida que um televisor CRT dava”. Os seus clientes, avalia, na procura de um novo televisor, procuram sobretudo “uma boa imagem, mas isso já está ultrapassado, depois dando grande ênfase à conetividade”.
Nas entrevistas aos públicos, a conetividade, ou seja, a capacidade de ligar o televisor a outros equipamentos foi indicada como um critério importante por algumas pessoas. Hugo, por exemplo, diz mesmo que “idealmente, gostava de ter um projetor e não propriamente uma TV… mas que funcionasse como televisor”. Porém, o parâmetro quase unanimemente descrito como fundamental foi mesmo a qualidade da imagem e também do som, seguida do tamanho do ecrã que, devendo ser preferencialmente grande, tem sobretudo de enquadrar-se com a sala. Ou seja, afirmar que as novas gerações valorizam sobretudo a TV como “plano de fundo” é demasiado redutor e até falacioso. As pessoas, de várias idades, continuam a gostar de desfrutar do prazer de assistir a um programa televisivo no conforto do lar, de preferência com um sistema audiovisual que lhes permita a sensação de estar num cinema privado. Isso acontece mormente com os programas de ficção.
Outro aspeto em que a TV apresenta vantagens para o público face aos novos media é o seu caráter mais familiar. É curioso que, ao falar exclusivamente de TV, as pessoas tendem a ser bastante críticas do seu papel desestabilizador no seio das famílias. Porém, na comparação com a internet, a sua presença passa a ser entendida como um foco de união familiar. Daniela considera que “a internet individualiza mais o consumo do tempo em família. Se o pai estiver no computador, o filho estiver no computador no quarto dele, e a mãe estiver na cozinha, a ver TV, ninguém se vai ouvir, não vale a pena”. Por oposição, “a TV é algo que ainda consegues ver em grupo, em família. É um passar de tempo coletivo. As pessoas vão falar, vão rir. No meio de um programa vão dizer «olha, nem sabes o que me aconteceu hoje»!”. Além disso, há outras vantagens que derivam de limitações inerentes à própria TV, como a menor capacidade de escolha de conteúdos. Como explica Nuno: “quando tens filhos, tens que ter a preocupação de, num computador, selares certos canais, limitares certas coisas. Na TV, não. Se está a passar na TV, só se tiver a bolinha vermelha é que mudas de canal, já está identificado o problema”.
Ainda assim, é possível apontar-se, entre os públicos, uma perceção mais ou menos homogénea de que a internet vai acabar por substituir a TV, tanto como principal fonte de informação como de entretenimento. Porém, o que se verifica, na verdade, é uma tendência para a fusão dos dois meios. Acontece é que, muitas vezes, as pessoas não classificam a visualização de conteúdos televisivos num monitor de computador, por exemplo, como “ver televisão”. Sofia, que diz ligar pouco à TV, reconhece que “o tempo que passo no computador, a ver filmes ou séries, se eu transferisse isso para a TV, passava muito tempo a ver TV. Muito tempo mesmo!”. Portanto, a questão fulcral que é importante destacar prende-se com o entendimento social do que é ver televisão. De facto, não só nas entrevistas como em todo o trabalho de investigação etnográfica realizado, o que ficou bem patente é que as pessoas continuam a consumir diariamente bastantes conteúdos televisivos, embora as formas de consumo tenham vindo a diversificar-se.
Claro que há ainda muita gente que prefere a relação ‘tradicional’ com o seu televisor doméstico, no espaço familiar, e não são apenas as pessoas mais velhas. Pelo que fui percebendo ao longo do trabalho empírico, mais que a idade, é o tipo de ambiente doméstico em que se vive que define as práticas associadas à TV. Quem vive sozinho pode usar a TV como companhia, muitas vezes como pano de fundo para outras atividades, mas terá propensão a usar mais a internet, pela possibilidade de entrar em contacto outras pessoas e pelo próprio caráter, digamos, mais interativo do meio. Por seu turno, quem vive em família, com amigos ou recebe regularmente visitas tende a colocar o televisor no centro da atividade social do lar. Isto não constitui, obviamente, uma regra universal, mas revela uma tendência, porque as condições existenciais e as necessidades contextuais de alguém que, num dado momento, se encontra nesta situação, favorecem isso mesmo. Não é percetível qualquer característica essencialista que determine esse tipo de opção.
Da mesma forma, não se vislumbra, no contacto direto com as pessoas, nenhum atributo mental, etário ou socioeconómico que, por si só, determine o tipo de consumo que alguém vai realizar. Em Vila do Porto, convivi regularmente com um indivíduo com mais de 60 anos que passava os dias agarrado ao ipad que lhe haviam oferecido um mês antes, pelo Natal, partilhando amiúde vídeos ou imagens que achava relevantes ou simplesmente divertidos. São situações existenciais, muitas vezes fortuitas ou inesperadas, que levam alguém a utilizar ou não um certo tipo de tecnologia. O “espetador digital” e o tipo de consumo que o caracteriza são o resultado de uma série de transformações macroestruturais que não dependem de si, mas também de opções de vida conscientemente tomadas e do mero acaso. Há uma tendência evidente para os consumidores de media cruzarem diferentes meios e expandirem a visualização de TV para outras plataformas. Mas isso acontece porque as condições materiais assim o favorecem, porque as tecnologias existem e são cada vez mais parte da vida social.
3 . A fusão dos espaços públicos e privados
A noção de “espaço público” remete-nos quase instintivamente para o pensamento de Habermas e para os faustosos salões e seletos cafés onde membros da elite burguesa europeia dos séculos XVIII e XIX discutiam a inclusão universal e a igualdade de oportunidades, longe dos olhares do povo iletrado. Serve a ironia para frisar que a esfera pública, entendida como um espaço de discussão amplo e aberto dos assuntos de interesse geral, nunca deixou verdadeiramente de ser privada, pois era restrita a certos grupos privilegiados, e assim se manteve ao longo do século XX. Em Santa Maria, ainda antes do nascimento da RTP-Açores, o Café Mascote foi o primeiro espaço público a dispor de televisor, o primeiro da ilha em termos absolutos. Também aqui o conceito “público” implicava umas aspas. António recorda que “o Mascote tinha uma clientela muito seleta… não era muito aberto, com algumas questões ligadas à política, à contestação antes do 25 de Abril. Eu diria que era uma tertúlia, mais ou menos… mas bastante elitista, sem dúvida… até intelectual”, o que acabava por afastar os curiosos.
Com a democratização da sociedade portuguesa, bem como o próprio evoluir das mentalidades, este tipo de café onde a clientela era, de certa forma, selecionada, começou a desaparecer. O Mascote reabriu em 2013, após mais de duas décadas fechado, com nova gerência e um ambiente mais descontraído. Os espaços para tertúlias e discussão de questões públicas perderam exclusividade e passaram a ser menos restritos. Quem pretende recriar este tipo de ambiente tem sempre a possibilidade de fazê-lo, como Júlio, vimaranense de 64 anos, com um passado na política, que aos fins de semana reúne com alguns amigos numa loja da qual é proprietário, para discutir “a semana política, o que foi dito na TV e nos jornais durante a semana”. Curiosamente, o processo parece ter-se invertido: quando as tertúlias ocorriam em locais públicos, eram frequentadas por grupos semiprivados; agora que o acesso aos locais públicos deixou de ser restrito, podendo-se falar abertamente de questões políticas, quem o faz procura espaços privados.
Servem estas histórias para introduzir um fenómeno que parece em desenvolvimento na vida social portuguesa: a intromissão de questões privadas no espaço público e a invasão do espaço privado pelas questões públicas. O argumento que aqui se explora é que este processo se desenrola em duas dimensões, uma tecnológica e outra essencialmente intelectiva. Ao nível tecnológico, é útil relembrar o conceito de “mobilidade privatizada” de Lynn Spigel, aludindo às transformações conceptuais no espaço doméstico suburbano dos Estados Unidos da América nos anos 1960, que levaram os lares a incorporarem ideias de viagem, aventura e liberdade, negociadas com os valores da propriedade, estabilidade familiar e comunidade local (Spigel, 2001, p. 72). A TV assumiu um papel de destaque nestas mudanças, sendo o centro das casas, que serviam para projetar publicamente uma certa noção de mundividência dos seus habitantes. Devido aos avanços tecnológicos que entretanto ocorreram, podemos alargar este conceito a outras funções da TV e a novos tipos de utilização.
Vasco falou com entusiasmo do canal que ele próprio criou e que “toda a gente pode ver”. Esta possibilidade é oferecida por um dos recentes servidores de TV por cabo, que permite aos utilizadores compor uma grelha de programação, nomear o seu canal e colocá-lo em circulação pública, para os restantes clientes. Vasco foi o único dos entrevistados que disse usar este serviço, mas serve como exemplo de novas formas de projetar publicamente gostos e conceitos privados. A internet e as redes sociais ajudam a completar este cenário de grande troca de fluxos entre o espaço doméstico e o espaço público. As novas tecnologias remetem-nos cada vez mais para o que Spigel chama de “lar inteligente”, que recria um ambiente digital capaz de transcender as barreiras dentro/ fora e casa/trabalho. Paul Virilio (1991) considera mesmo que os espaços domésticos têm vindo a tornar-se no “último veículo”, permitindo um ‘voo’ digital instantâneo para qualquer lugar, a partir da zona de conforto, segurança e estabilidade que é o lar.
O que estes autores não previram foi o rumo que o progresso tecnológico tomou, da miniaturização e individualização das tecnologias de comunicação. Na verdade, já não é só a casa que se transformou num veículo para o mundo exterior; os novos gadgets de uso pessoal permitem um duplo movimento: do lar para locais públicos e daí para qualquer outro lugar. Estes dispositivos, de certa forma, transportam para o espaço público funções e utilidades que tradicionalmente se confinavam ao espaço doméstico, pela partilha privada de imagens, fotografias, vídeos ou notícias em locais públicos, mas sem exibição pública. Foi frequente verificar, durante o trabalho empírico, que o espaço público passou a estar repleto de pequenos mundos privados, em que alguém se abstrai do espaço envolvente pela imersão nos lugares trazidos pelo iphone ou pelo computador portátil. Esta perceção foi também partilhada nas entrevistas. António, por exemplo, lamenta que estejamos “a fechar a sociedade sobre a própria pessoa. Ou seja, cada vez há menos contacto pessoal entre as pessoas. Pode haver miúdos e mesmo pessoas adultas que estão a falar pela internet quando estão desviadas, se calhar, por meio metro”.
A dimensão intelectiva da fusão do público e do privado é mais subtil e mais difícil de discernir. Apesar de poder ser entendida como uma consequência das inovações tecnológicas, pela possibilidade de se transportar materialmente para locais públicos conteúdos privados ou mesmo íntimos, este fenómeno pode também verificar-se nas formas mais ‘tradicionais’ de exibição pública de TV. Dois dos entrevistados deste estudo trabalham a tempo inteiro em estabelecimentos públicos de restauração e lazer, ambos em contacto direto com os clientes. Nuno é um dos atuais coproprietários do Café Mascote, em Vila do Porto, tendo já uma vasta experiência profissional nesse tipo de serviço e semelhantes. Luís, por seu turno, trabalha desde a adolescência no café/ restaurante da família, nas imediações de Guimarães. Ambos consideraram que a existência da TV em estabelecimentos deste tipo é de extrema importância, principalmente quando há futebol.
Mesmo reconhecendo o imenso poder do futebol na captação de clientela, Luís e a sua família optaram por não transmitir jogos no seu estabelecimento. Isso porque “quando está a dar futebol, normalmente está mais gente, está mais barulho. E é para haver uma opção tipo «vamos àquele restaurante, porque lá não há futebol e podemos estar mais sossegados». Não gostamos de ter o pessoal a discutir”. Este comentário introduz também a dimensão mais intelectiva da fusão público-privado. Apesar de serem espaços públicos, os cafés e, sobretudo, os restaurantes, procuram preservar alguma privacidade para os seus clientes. E, para isso, tendem a aceder aos pedidos das pessoas sobre os conteúdos exibidos. Isso serve para, de certa maneira, deixar os clientes mais confortáveis e fazê-los sentir como se estivessem no seu espaço doméstico. Como explica Nuno, “nós tentamos criar aqui um ambiente em que as pessoas se sintam, quase, em casa… com a educação devida, mas com o à-vontade necessário para que se sintam em casa”.
No entanto, a relação dos clientes com a TV varia também consoante a hora do dia e mesmo do tipo de ambiente que se procura. Luís considera que “ao meio-dia, as pessoas querem sempre um bocado de som na TV, para ouvir o noticiário. À noite, pode estar a TV ligada, mas já não estão muito interessados. Não te pedem para pôr mais alto”. Justifica esta mudança com o grau de privacidade que as pessoas esperam consoante o horário: “o jantar também é mais para casais, convívio de amigos e assim”. Nuno, por seu turno, procura sempre que possível adaptar os conteúdos exibidos ao tipo de clientela que tem: “esporadicamente, podemos pôr um filme a passar à tarde, se a casa está calma, se tens um cliente ou dois. Mas muito raramente isso acontece”. Como tal, opta por conteúdos de “consumo rápido”, pois “ver TV é em casa. Nos cafés, é para te atualizares. Está a passar notícias, viste ali duas ou três notícias, levantas-te e segues”. O tipo de estabelecimento também exige diferentes conteúdos. Nuno considera, sem dúvidas, que a TV é muito mais importante nos horários em que o seu café funciona como snack-bar do que como pub, já que o espaço acumula as duas funções: “à noite, quando a gente passa a pub, temos ali ou um canal de música a passar só imagens, ou documentários em imagens, ou desporto variado, mas sem som. Em que uma pessoa passa, vê uma imagem, ou vê uma manobra, mas não fica colada à TV”.
Mas são também os próprios conteúdos televisivos que baralham os espaços públicos e privados da experiência social. Questionado sobre os conteúdos que mais cativam os seus clientes, Luís afirmou que “agora, a nível de economia e política, as pessoas já não querem muito saber. Houve uma altura em que quiseram saber, agora não. Agora, é mais tipo acidentes, desaparecidos, catástrofes… essas coisas”. De facto, foi possível verificar, na observação empírica, que geralmente a TV concentra as atenções das pessoas quando passa imagens ‘de choque’, de catástrofes ou acidentes, notícias trágicas ou escândalos envolvendo personalidades famosas. Não significa que isto seja “o que o público quer ver”, mas geralmente é o que chama a atenção das pessoas em espaços públicos, pois permite comentários, piadas, lamentos ou consternação partilháveis com todos os presentes, mesmo que desconhecidos. Nos meses em que decorreu o trabalho empírico que sustenta este artigo, registaram-se os maiores ‘burburinhos’ nos locais de exibição com as notícias sobre os jovens que morreram na praia do Meco, o avião desaparecido na Malásia, as mortes de Eusébio e Mário Coluna e escândalos envolvendo Justin Bieber ou a “polémica” Miley Cyrus.
Dificilmente estes assuntos poderão ser considerados de “interesse público”, mas a verdade é que tendem a captar a atenção de diferentes públicos, mesmo que momentaneamente. Histórias de vida privadas, problemas e tragédias pessoais e eventos particulares de gente famosa tendem a invadir o espaço público de socialização, relegando muitas vezes para segundo plano os assuntos de interesse geral. Nem sempre é fácil escapar a estas realidades e aos temas que marcam a atualidade e a discussão pública, mesmo quem não tem interesse nos mesmos. Laurinda confessa que “irrita-me profundamente ir a restaurantes, ou a cafés e estar a TV ligada. Odeio! Acho mesmo um abuso ter aquela presença ali. E depois há muita gente que tem a tendência de estar a olhar para a TV. Ou seja, acaba por se abstrair do convívio”. Com ou sem os novos dispositivos de uso pessoal, em casa ou nos cafés, a TV tem o poder de misturar o que é público e o que é privado. Mas as inovações tecnológicas, os interesses comerciais de quem detém os estabelecimentos e as próprias escolhas temáticas das estações potenciam ainda mais essa fusão.
Da mesma maneira que assuntos de foro privado invadem progressivamente a esfera pública, os temas públicos penetram-se na vida privada das pessoas, muitas vezes de forma indesejada. Além da intromissão da TV em convívios de grupo, que acontece tanto pela presença física como pela definição dos temas em discussão, também a nível individual e psicológico é notória essa interpenetração. Ao longo do trabalho de campo realizado, várias pessoas fizeram referência, formal e informalmente, ao facto de terem abdicado de ver noticiários televisivos, pelas sensações desagradáveis que isso lhes proporcionava. De facto, muita gente revelou ter entrado em depressão ou adotado uma postura mais pessimista face à vida, pela exposição permanente a notícias sobre a crise económica e social e outras informações negativas. Este foi um dos efeitos mais mencionados da diluição de fronteiras entre os espaços públicos e privados. Mas a TV apresenta também outros tipos de impacto, diretos ou indiretos, na vida dos espetadores, que influenciam a forma como estes entendem a vida pública e que condicionam em grande medida a estruturação das rotinas diárias e do espaço doméstico.
No geral, os/as entrevistados/as reconheceram à televisão a capacidade de moldar não apenas as mentalidades, mas também modos de vida e práticas sociais. O impacto da TV na sociedade contemporânea foi globalmente apontado como deveras relevante, mesmo face à difusão das novas tecnologias de comunicação. No entanto, foram sobretudo apontados contributos negativos da TV para a vida social. Teresa refere que a televisão “é uma distração constante, se a ligarmos. É absorvente… é uma sensação de que estamos a fazer alguma coisa mas, na realidade, não estamos”. A sua grande capacidade de entretenimento faz com que as pessoas estejam menos tempo umas com as outras e saiam menos de casa. Joana, psicóloga, pensa que “a gente acabou por ficar mais dependente das máquinas, dos jogos, das tecnologias, e esquecemo-nos um bocadinho da parte social”. Porém, reconhece que isso acontece também devido à internet e não apenas à TV, tal como António, que nota mudanças sociais a nível local: “Santa Maria era uma ilha em que se vivia muito nos clubes… ultimamente, o que eu vejo é que as pessoas estão muito em casa”.
O tipo de comunicação associado à TV favorece esta perceção de uma maior passividade no consumo. Laurinda diz que conhece “pessoas totalmente viciadas e completamente amorfas, porque a TV só debita, não há interação”. Ricardo reforça que “não há um diálogo entre a pessoa e a televisão, a pessoa está é a receber aquela informação toda e vai absorvendo aquilo tudo”. O tipo de conteúdo que se absorve é também significativo para o tipo de efeitos que daí podem advir. Filomena, que chegou a exercer funções de enfermagem em hospitais psiquiátricos, referiu que “vi muita gente a ficar com atitudes depressivas, com os telejornais e com os programas que viam… documentários e notícias. Vi muita gente internada, com as imagens que viam na TV”. Maria salienta também aquilo que considera ser um excesso de realismo nas imagens de violência, nomeadamente nos noticiários que retratam cenários de guerra: “no fundo, depois de muito ver isso, as pessoas começam a não se interessar… já não sabem o que é o sofrimento! Porque já estão tão habituadas a ver aquilo, a ver o que é mau… que depois, pronto, morrer é uma coisa banal”.
Nos discursos sobre os efeitos da TV, frequentemente surgiram referências às crianças ou às gerações mais jovens, como se fossem estas as principais vítimas desses efeitos. Para Maria, o principal problema das imagens violentas nas notícias é que estas passam à hora do jantar, quando as crianças estão reunidas com a família em frente ao televisor. Também Ricardo, apesar dos seus 26 anos, considerou que algumas novelas e reality-shows podem ter efeitos perversos nos mais jovens, traçando uma correspondência direta entre o comportamento sexual exibido nesses programas e o aumento de gravidezes na adolescência em Santa Maria, a par da crescente indisciplina nas escolas. Teresa, de 19 anos, mencionou que, de facto, já se sentiu manipulada pela TV no que respeita “ao corpo da mulher e às relações interpessoais, dos casais, por exemplo”, lamentando que muitos programas de televisão procurem dizer às pessoas como se devem comportar na sua vida íntima.
Conclusão
Em resumo, poderemos dizer que a televisão, aliada às transformações tecnológicas e às novas tecnologias de informação e comunicação, permite uma maior participação no fluxo comunicacional aos utilizadores, que redistribuem e transformam conteúdos com um dinamismo que era impossível antes da era digital. Isto faz com que os mundos privados cada vez mais colonizem os espaços públicos, através das redes sociais da internet, nos fóruns promovidos pelas próprias estações televisivas, convidando o público a participar ativamente na produção de conteúdos e na emissão de opiniões, ou até mesmo pela possibilidade de criação de canais próprios oferecida pelas novas plataformas de serviços. Paralelamente, os espaços públicos de socialização, tradicionalmente cafés, bares e restaurantes, encontram-se cada vez mais recortados por microesferas privadas, o que é impulsionado pela difusão das tecnologias de uso pessoal, como tablets, telemóveis, computadores portáteis ou ipads.
A nível intelectivo, estas transformações tecnológicas produzem diversos efeitos subtis e cumulativos, que conduzem a uma fusão do público e do privado nos próprios mundos imaginários das pessoas. Uma das causas e dos efeitos dessa fusão é a permanente alternância entre assuntos de interesse geral e de caráter particular, no fluxo comunicacional. Isto acontece tanto na forma clássica de ‘ver televisão’ como, e sobretudo, nas formas digitais, que permitem que o espaço público se torne um amplo fórum de opiniões ‘leigas’, permeado por assuntos de caráter pessoal e privado. Concomitantemente, os temas públicos invadem de forma ostensiva a vida privada, com fortes repercussões existenciais e emocionais. A realidade mediada pela televisão e pelos meios digitais torna-se tão omnipresente que penetra marcadamente nas opções de vida dos públicos. Isso contribui também para o aparecimento de novas formas de ativismo e de participação na vida pública, muitas delas partindo das redes sociais e/ ou usando as mesmas para se difundirem. Desta forma, os públicos conseguem redistribuir, alterar ou subverter uma parte dos conteúdos audiovisuais, ao mesmo tempo que os expandem por novas plataformas.
Ao adotarmos um olhar retrospetivo sobre a televisão e as suas diversas fases, percebemos que esta foi-se transformando social e tecnologicamente, colonizando progressivamente os mundos público, doméstico e digital. A TV, como outros meios de comunicação social, desempenhou um papel central na democratização do acesso à informação e à participação dos públicos no processo comunicacional. Porém, paralelamente, a TV impõe temas públicos no domínio privado, porque realmente ela chega a todo o lado, principalmente na era digital, devido à multiplicação das plataformas por onde a TV se expande. Ao mesmo tempo, ela puxa o privado para o domínio público, muitas vezes pelas próprias estratégias das estações televisivas, que usam histórias pessoais para ilustrarem acontecimentos públicos, permitem a participação dos telespetadores nos programas e procuram valorizar o feedback que as redes sociais digitais vão dando aos seus conteúdos. Em suma, cada vez mais é verificável que o pessoal se torna político e que aquilo que é público não pode ser dissociado das opções existenciais que acontecem no domínio privado.
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Data de receção: 14/12/2015 | Data de aprovação: 18/10/2016
Autores: José Pedro Arruda