Nº 4 - setembro 2011
Rosário Mauritti, Socióloga e investigadora do CIES-IUL; co-coordenadora da Secção Temática de Classes, Desigualdades e Políticas Públicas da Associação Portuguesa de Sociologia; rosario.mauritti@iscte.pt
Abstract: According to the national statistics of income and living conditions housing and services associated are the most important items in the consumption basket of individuals and families. By itself, these data emphasize the importance of the house: unique physical space, full of meanings, where people accumulate stories of lives lived, materializing their identity and their choices of lifestyles. This paper analyses social experiences of living alone, highlighting the house, or rather, the “domestic space” and the practices that individuals build on a daily basis for their maintenance and recreation, as a space of lifestyles, that embodied communication networks – simultaneously referenced in the past, present and future – and consolidates the individuals’ relationship with their situation and their context of social participation.
Keywords: .lifestyles; construction of choice; daily routines; reflexivity.
Resumo: No inquérito do INE às condições de vida e rendimentos das famílias, a habitação e as despesas associadas às condições de habitabilidade impõem-se como uma das fatias com maior expressão na composição do cabaz de consumos dos indivíduos e das famílias. Só por si, este é um indicador que dá relevo à importância da casa: espaço físico singular, pleno de significações, onde se incorporam as histórias de vidas vividas e materializam sobre diversas e imbricadas dimensões as orientações e as ‘escolhas possíveis’ de estilos de vida. Neste texto, focalizado na análise de experiências sociais do viver só, salienta-se a casa, ou antes, o espaço doméstico e as práticas que se constroem no quotidiano para a sua manutenção/apropriação, como espaço de mediação de estilos de vida, que corporaliza redes de comunicação – referenciadas, simultaneamente, no passado, presente e futuro – e consubstancia as relações dos sujeitos com a sua situação e com os seus contextos mais restritos ou mais alargados de participação social.
Palavras-chave: estilos de vida, construção das escolhas; rotinas quotidianas; reflexividade.
Neste trabalho equaciona-se o binómio «consumos e desigualdades» tomando por referência experiências de viver só de 36 sujeitos, residentes na região de Lisboa[1].
De acordo com dados disponíveis, em Lisboa cerca de 1/5 dos alojamentos são ocupados por uma só pessoa. O fenómeno está ainda distante do que se observa em outras sociedades do Norte e Centro da Europa – ver, entre muitos outros, Heath e Cleaver (2003); Ogg (2003); Lewis (2005); Nyström (2003) e Gonçalves (2007) – mas apresenta-se numa tendência de crescimento e também de diferenciação interna nos protagonismos sociais que nele se encerram: associados ao envelhecimento, à rotura de laços conjugais e familiares, à diversificação dos modos de viver a intimidade, às alterações nos processos que pautam a saída de casa da família de origem no início da idade adulta, etc., Guerreiro (2003) e Mauritti (2009 e 2011).
Na multiplicidade de experiências aqui presentes, neste texto evidenciam-se os protagonismos de novos estilos de vida de actores sociais, que enquadram o seu viver só num conjunto de orientações e de escolhas que adoptaram reflexivamente, não apenas para satisfazer necessidades materiais, mas igualmente para dar forma e consistência ao projecto reflexivo de construção do self, Giddens (1997) e Velho (2004).
Um dos primeiros questionamentos que conduz a análise consiste, precisamente, na problematização da «escolha». Mesmo que, por vezes, numa «falsa consciência» da narrativa, os sujeitos sejam unânimes numa projecção da sua experiência como opção, frequentemente, seja numa fase inicial seja de forma intermitente no tempo e no espaço, morar sozinho não só não foi/não é uma situação desejada, como constitui uma experiência experimentada com forte angústia e sofrimento.
Como formula Gilberto Velho (1994, 2002, 2004), a noção de que os indivíduos escolhem ou podem escolher tem subjacente o princípio de que essas escolhas são sempre escolhas contextualizadas numa “negociação da realidade” que, embora de fronteiras difusas e não lineares, se joga entre a “identidade do sujeito” e os universos simbólicos e culturais de normas e padrões de conduta que circunscrevem as suas práticas sociais.
Nas sociedades ocidentais contemporâneas, esta relação, na escala das acções singulares, protagonizadas por “indivíduos múltiplos” ou “actores plurais” “multideterminados” e “multissocializados”, objectivamente, tem subjacente que na gestão das escolhas possíveis, cada sujeito selecciona apenas aquilo que pode. Simultaneamente, em função das respectivas condições materiais de existência; dos contextos socioinstitucionais e situacionais específicos de interacção social; e dos seus sistemas de valores e representações, dentro dos quais cabem ainda as projecções e expectativas, os “projectos” ou os “planos de acções” que cada um constrói e reconstruíu face ao que pensa ou perspectiva vir a concretizar no presente e no futuro (Lahire, 2003:200-205; 258).
Contudo, o planeamento da vida organizado de modo reflexivo ou a própria possibilidade de construção de um “projecto” (Velho, 2004), e correspondente capacidade de auto-realização e emancipação, não está igualmente acessível a todos. De facto, a possibilidade efectiva de escolha sustenta ou mesmo reforça a polarização das diferenças nos protagonismos sociais contrastantes, selectivos e, ainda, fortemente diferenciados e diferenciadores, de práticas sociais que têm lugar num espaço social estruturado e heterogéneo, Bourdieu (1979).
A casa – ou seja o espaço doméstico – é aqui o ponto de partida do olhar que se constrói na tentativa de análise de experiências sociais, socialmente significativas, que estes sujeitos enfatizam para justificar reflexivamente as suas trajectórias numa orientação para o viver só. Através desta abordagem, o alojamento emerge, ele próprio, como um espaço pleno de significação, uma fonte primordial de informação, permitindo estabelecer laços materiais entre as narrativas que o próprio constrói sobre as experiências diferenciadas que concretiza nos diversos domínios da vida social.
No confronto com os “estilos particulares de experiências de vida” que os sujeitos constroem naquele espaço, há todo um conjunto de comportamentos, rituais e simbologias, muitas vezes ocultos aos olhares exteriores, que passam a poder ser considerados, não só como objectos legítimos da análise sociológica, mas também como sinais de orientação nas rotinas quotidianas.
Entrar na casa dos sujeitos pode ser assumido pelos próprios como uma forma de invasão da sua intimidade. Ela constitui, para muitos dos entrevistados, uma espécie de materialização da sua «verdadeira» identidade.
Tudo na casa tem significados, tudo fala e comunica para lá das palavras ditas, permitindo aprofundar os elementos denominados de expressão “imediata”, Velho (2004: 19-20):
– O lugar onde a mesma se localiza: a cidade, o bairro, a rua, a tipologia da habitação, a posse ou o aluguer;
– As formas de relacionamento com esse espaço: nos usos que se dão e na forma como o sujeito se reconstrói a partir dele;
– As pessoas com quem se partilha (e não partilha): seja de forma contínua ou em momentos ocasionais;
– A simbologia projectada nos objectos que se expõem: corporalizando/reactualizando uma experiência vivida, que ultrapassa no tempo e no espaço aquelas paredes, conferindo de caminho uma consistência adicional a laços de intimidade e/ou, por vezes, a projectos ainda em suspenso.
De alguma forma, entrar dentro de casa é apreender outras experiências que o próprio pode não estar disponível para partilhar – não, necessariamente, porque não queira, mas porque remetem para situações quotidianas comezinhas, e como tal “insignificantes” e anódinas, sem estatuto próprio para serem chamadas, nomeadamente, num encontro construído por convite, tendo em vista a recolha de dados para apoio à elaboração de um trabalho de pesquisa científica.
Por exemplo, um traço frequente, que só desta forma se impôs à observação, tem a ver com a tenacidade das rotinas que porventura num espaço exterior – mais neutro e sobretudo menos controlado pelo sujeito – talvez tivesse passado imperceptível. Especialmente na medida em que, frequentemente, aquelas são relativas a situações e práticas triviais – envolvendo desde a disposição dos objectos no interior do alojamento, à organização dos bens alimentares numa geometria precisa dentro do frigorífico, até ao agendamento rigoroso dos procedimentos de limpeza e manutenção ou ao minucioso planeamento dos comportamentos e apropriações que terceiros fazem daquele espaço quando participam em eventos promovidos pelo próprio. Vejam-se a propósito os discursos de duas entrevistadas:
Sou assim um bocadinho obcecada com a limpeza e com a arrumação, e com as horas também: ter de jantar àquela hora, sair para passear com a cadela, ver a televisão… é tudo feito sempre dentro de uma certa organização… e não posso interromper, não posso alterar, pois incomoda-me se não for assim… Eu sei que sou exagerada, mas também se eu entro numa de deixar andar, também tenho um bocadinho de medo de mim. Tenho um bocado medo de deixar andar demais. [Conceição, 55 anos, solteira (sem laços colaterais), sozinha há sete anos desde que a mãe morreu, secundário, assistente de direcção].
Eu tenho alguma dificuldade em que as pessoas mudem as coisas de lugar. Mas para isso o que faço é, quando projecto a minha casa e quando compro as minhas coisas, penso sempre na hipótese de virem pessoas cá. (…) Eu não estou sempre a pensar nos outros… mas, se calhar tem um bocado a ver com a imagem que quero dar de mim e da minha casa às outras pessoas. (…) Portanto, quase que tenho percursos para eles, virem aqui ou vão para ali. [Lea, 37 anos, separada, sozinha há cerca de 10 anos, mestre, acumula a actividade de bibliotecária documentalista com a formação em arquivo numa escola profissional].
Estas observações dão relevo ao papel estruturador das rotinas num sentido de “segurança ontológica” e na possibilidade de construção do “projecto reflexivo do self”, Giddens (1996: 123), no reverso da qual está também implícita a rejeição da contingência e do inesperado, presente sob diversas formas e numa ambivalência latente, no universo de casos estudados. Como se perante a falta de outras balizas que se constroem nos compromissos e negociações, nos confrontos e interacções, consigo mesmo e com os outros, estes sujeitos “libertados”, na multiplicidade de escolhas/decisões que são compelidos a assumir no seu quotidiano, sentissem a necessidade adicional de fixar padrões de conduta, Giddens (1997: 76-77).
Nestas construções a realidade apenas se torna problemática quando surge algum acontecimento que não encaixa nos seus esquemas de referência. No planeamento do quotidiano, procuram pois delimitar os espaços de concretizações possíveis, inclusive antecipando também as acções e interacções que os outros podem concretizar no confronto com esse planeado.
A casa, ou antes, o espaço doméstico e todas as práticas que se constroem no quotidiano para a sua manutenção/apropriação delimitam, nesta medida, a organização interpessoal do tempo e do espaço. O “medo” ou a incapacidade manifestada numa alteração do planeado sublinha ainda a natureza compulsiva dessas actividades ritualizadas, medo que Conceição justifica no receio de perda de controlo de si própria (Giddens, 1996: 49). Adicionalmente, sobretudo o segundo trecho (Lea), concretiza a casa enquanto espaço construído de forma orientada, não apenas para satisfazer necessidades materiais, mas igualmente para dar forma e consistência ao projecto reflexivo de construção do self.
É assim curioso observar como, de forma concomitante, no discurso porventura mais trabalhado no sentido da apresentação de si e da sua experiência, os mesmos sujeitos assinalam, como um dos grandes trunfos e vantagens inerentes ao morar sozinho: a “liberdade”, o “não ter que dar satisfações a terceiros” ou o poder “gerir o tempo de forma mais aleatória e sem constrangimentos”.
Noutras situações, o desejo manifesto de emancipação sustenta, também, os argumentos com base nos quais consubstanciam o morar sozinho como uma escolha. Esta concretiza, assim, a “necessidade” de “ter um espaço pessoal” de recolhimento, onde os constrangimentos que atravessam as relações quotidianas ficam como que suspensos.
Não obstante, em todas as situações de entrevista-observação, sem excepção, ao entrarmos no alojamento, termo-nos deparado com a presença de um “ambiente comunicante”. Concretizado, não apenas, na simbologia dos objectos, dos livros, dos retratos expostos, mas, igualmente, na presença constante de um movimento e/ou música de fundo – um som ambiente, o screen saver do PC activo, a televisão ligada sem som, as luzes da casa acesas, etc., ou, por vezes, vários destes meios em simultâneo.
Estes elos comunicantes demarcam claramente o morar sozinho face a outras orientações que, por vezes, também poderão ser experimentadas por estes sujeitos, de procura activa de isolamento e de suspensão controlada dos laços. Ocasionalmente, mais do que o lazer ou o entretenimento puro e simples, esses elementos possibilitam a recriação, no interior do alojamento, de aspectos de conforto e de intimidade:
A televisão funciona muitas vezes como «lareira» se estou a fazer alguma coisa. E muitas vezes está ligada sem som, se estou em casa estou a ouvir música e a televisão está ligada sem som… [Carlos 42 anos, separado, com um filho de 6 anos, sozinho há 4 anos, mestre, professor universitário e higienista oral].
Nesta abordagem o alojamento surge, ele próprio, como um espaço que consubstancia as relações do sujeito com o mundo, de concretização de projectos e sustento de motivações.
Na casa descobrimos pequenos hobbies (as flores, a pintura, a escrita, os blogs…); deparamo-nos com a presença relativamente frequente de animais de estimação; observamos a ausência ou a presença dos livros, as preferências de leitura, os estilos de música ou mesmo a corporização de laços de afectividade – nomeadamente nas, ocasionalmente, inúmeras fotografias expostas nos móveis e nas paredes, Caetano (2007); Rose (2003).
Num ou outro caso, a restrição do conforto ao mais elementar e a quase total instrumentalização do espaço doméstico para as actividades do trabalho indicam-nos ainda a importância que aquele representa no quotidiano dos sujeitos, oferecendo-nos uma ponte para abordar orientações que configuram comportamentos compulsivos de workaholic.
Em função do investimento posto na decoração e dos usos que o próprio dá ao espaço doméstico, conseguimos definir hierarquias e pequenas balizas, ainda que relativamente maleáveis, que o sujeito constrói para delimitar o seu quotidiano, e observamos em espelho a forma como se relaciona consigo mesmo, com os seus contextos e com os outros.
Neste cruzamento do discurso e da observação, num reencontro com as percepções sempre parciais das experiências vividas, conseguimos, em suma, aprofundar uma heterogeneidade de elementos que cobrem as diversas temáticas em destaque no binómio proposto no fórum consumos e desigualdades: sobre intimidade e relações pessoais; espaços e temporalidades do quotidiano; orientações para o trabalho; o futuro e a gestão da ambivalência.
Referências
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[1] Para uma visão alargada da pesquisa que enquadra as análises aqui desenvolvidas, cf. Mauritti, 2011.
Autores: Rosário Mauritti