N.º 27 - dezembro 2021
Daniel Bertaux
Centre national de la recherche scientifique, CNRS & Université de Strasbourg,
Dynamiques Européennes (emérito). Maison Interuniversitaire des Sciences de l’Homme
— Alsace (MISHA), 5 allée du Général Rouvillois, CS 50008 67083 Strasbourg Cedex, France.
E-mail: daniel.bertaux@misha.fr | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9510-6112
Resumo: Por ocasião do lançamento da edição portuguesa do livro As Narrativas de Vida (Bertaux, 2016/2020), Daniel Bertaux conversou com os/as sociólogos/as reunidos no XI Congresso Português de Sociologia. O autor falou sobre as narrativas de vida como instrumento de pesquisa em ciências sociais e as controvérsias que esta metodologia suscitou. Às críticas dos seus detratores, o sociólogo contrapõe a necessidade de recolher diversas narrativas de vida dentro de um mesmo mundo social, em número suficiente para atingir a saturação. O seu principal contributo reside, assim, no modo como utilizou esta técnica particular de recolha de dados, numa perspetiva socio-etnográfica. Neste texto, corolário dessa conversa, o autor aborda também o processo de produção da própria vida (ou “antroponomia”) que ele teorizou em finais dos anos 1970.
Palavras-chave: narrativas de vida, perspetiva socio-etnográfica, padaria artesanal, antroponomia.
Abstract: On the occasion of the launch of the Portuguese edition of the book As Narrativas de Vida (Bertaux, 2016/2020), Daniel Bertaux talked with the sociologists gathered at the XI Portuguese Congress of Sociology. The author spoke about life stories as a research tool in the social sciences and the controversies that this methodology has raised. In response to the criticism of its detractors, the sociologist argues that it is necessary to collect several life stories within the same social world in order to reach saturation. Thus, his main contribution lies in the way he used this particular technique of data collection, from a socio-ethnographic perspective. In this paper, the end result of this conversation, the author also discusses the process of the production of life itself (or “anthroponomy”) which he theorized in the late 1970s.
Keywords: life stories, socio ethnographic perspective, small bakeries, anthroponomy.
Introdução[1]
Boa tarde, caros e caras colegas portugueses e portuguesas. Saúdo-vos a todos e todas!
É, para mim, um grande privilégio ter sido convidado para falar com vocês neste final de tarde. Sinto-me particularmente feliz porque tenho uma relação muito especial com Portugal. Tenho uma grande consideração pelos sociólogos portugueses. Tive muito boas conversas com todos e todas as que conheci e trocas mais interessantes do que as numerosas conversas que tive, na minha longa vida, com sociólogos americanos, britânicos, alemães, italianos, russos, polacos; e, claro, com sociólogos franceses.
Cada um destes países tem uma tradição nacional particular, mas que é apresentada às gerações mais jovens como “a sociologia universal”. Em França, por exemplo, se um estudante ler e trabalhar alguns dos grandes textos de Durkheim e de Bourdieu que os seus professores lhe derem para ler, terá boas notas e pensará, por isso, que se tornou num bom sociólogo. Talvez nem consiga ler textos em inglês (não falemos sequer do alemão), mas vai achar que está tudo bem: de qualquer forma, foi-lhe dito que Durkheim e Bourdieu disseram tudo o que é importante saber… E tenho observado o mesmo fenómeno nos países de língua inglesa: sociólogos americanos ou britânicos questionam-se porquê fazer o esforço de aprender outras línguas, quando (por sorte) a sua língua materna é precisamente “A” língua internacional. Porquê perder tempo a aprender francês ou alemão quando toda a gente fala inglês?
Mas Portugal é diferente. Em Portugal não se pensa que se é o centro do mundo. Em Portugal, procura-se informação; tenta-se descobrir o que é que os colegas de outros países estão a fazer. Aprende-se línguas estrangeiras, inglês, francês, outras línguas latinas, até talvez o alemão para ler Max Weber na versão original… Em Portugal, se uma pessoa estiver interessada no pensamento sociológico, sabe bem que terá de estudar as formas que este pensamento tomou noutros países, e que estas formas são diversas. Em Portugal, não se desenvolve aquela “arrogância nacional” que tantas vezes encontrei, não só nos Estados Unidos, claro, mas também em cada um dos seis países europeus que mencionei.
Os sociólogos portugueses leram mais do que os outros, estão mais bem informados do que os outros; e, no entanto, são mais modestos. Em outros países do mundo, muitos intelectuais académicos pensam que uma conversa só é interessante enquanto são eles a falar. Mas não é assim em Portugal…
Queria devolver-vos um pouco da gentileza que tiveram para comigo ao convidar-me a falar neste congresso. Decidi, por isso, falar em português. É um certo esforço e peço a vossa indulgência. A minha pronúncia é muito imperfeita.
A obra As Narrativas de Vida e a sua tradução para português
Escrevi um pequeno livro de 128 páginas em francês sobre as narrativas de vida (Le récit de vie em francês), esta técnica de observação que vem da etnografia, e que quase não tinha sido utilizada em sociologia, exceto pela Escola de Chicago nos anos 20. E que tinha sido completamente excluída pelo establishment sociológico internacional, após 1945, do pequeno número de técnicas de observação consideradas legítimas em sociologia. Este pequeno livro é o resultado de uma profunda reflexão, alimentada sobretudo pela experiência das sete pesquisas sociológicas que realizei utilizando as narrativas de vida como a principal técnica para recolher dados empíricos. Acaba de ser traduzido para português por Liliana Azevedo e publicado na coleção Questões de Partida, da Editora Mundos Sociais, do Iscte. Foi António Firmino da Costa, membro do Conselho Editorial, que propôs a publicação do meu livro em português. Gostaria, por isso, de expressar aqui os meus mais calorosos agradecimentos a estes sociólogos que honram a sociologia portuguesa.
Um exemplo de investigação realizada através de narrativas de vida: o estudo das padarias artesanais em França
É através dos exemplos que melhor se comunicam as ideias teóricas e metodológicas. Vou, portanto, dar-vos um exemplo concreto da forma como, por experiência própria, concebo a utilização de narrativas de vida com uma finalidade sociológica. Mas posso, desde já, salientar vigorosamente que, na minha opinião, recolher e estudar apenas uma narrativa de vida, é de qualquer forma — por mais interessante que o seja intrinsecamente — permanecer fora do espaço sociológico. Eis então um exemplo concreto da utilização sociológica de narrativas de vida.
Para a minha primeira pesquisa de terreno em sociologia, decidi estudar o funcionamento da padaria artesanal em França. Em França, ainda são os pequenos padeiros-artesãos que produzem e vendem o pão diariamente. Esta é uma grande diferença em relação aos Estados Unidos, à Grã-Bretanha, à Rússia… onde o pão, depois de ter sido durante muito tempo um produto artesanal, se tornou, há várias gerações, um bem industrial produzido em fábricas muito grandes, transportado milhares de quilómetros, armazenado e vendido em supermercados. Nestes grandes países industriais, a própria ideia de “pão fresco” há muito que já não existe. Mas, em França, o pão fresco ainda é produzido e vendido localmente, nas padarias de bairro e padarias artesanais: são cerca de trinta e duas mil (32.000).
Queria então tentar compreender porquê. Mas, ao mesmo tempo, depois de ter lido com um extraordinário entusiasmo a maravilhosa obra do antropólogo Oscar Lewis (1970), Os Filhos de Sánchez, queria também recolher narrativas de vida. E decidi começar pelos padeiros-operários: ninguém falava deles, era como se eles não existissem. Queria finalmente dar-lhes uma voz.
Contactei o sindicato. Na realidade, o sindicato dos padeiros-operários passava por muitas dificuldades; eram apenas uns quantos velhos padeiros-operários que se reuniam todas as segundas-feiras à noite, numa sala emprestada pela CGT (central sindical). Ficaram contentes por um jovem universitário estar interessado neles.
Comecei, então, por entrevistar o Sr. Bailly. Não lhe pedi que me falasse da sua vida, não tinha essa ousadia. Para mim, era ser demasiado indiscreto e não era suficientemente sociológico. Apenas lhe pedi que me contasse como se tornou padeiro-operário, e ele contou-me a sua vida profissional desde o início. Tinha nascido numa aldeia no centro de França. O seu pai era trabalhador agrícola, ganhava apenas o suficiente para alimentar os cinco filhos. “Na verdade, comíamos sobretudo pão. Nunca carne. Por vezes uma galinha: nessa ocasião, era uma grande festa!” O Sr. Bailly era o filho mais velho; os seus pais estavam ansiosos que ele terminasse os seus cinco anos de escolaridade obrigatória para que se tornasse trabalhador agrícola e trouxesse algum dinheiro para casa. Todos os dias a sua mãe ia comprar pão ao padeiro da aldeia. Um dia o padeiro disse-lhe: “Sabes que mais, Marie, o teu filho mais velho vai acabar em breve a escolaridade, não vai? Eu poderia ensinar-lhe a profissão de padeiro. Dessa forma, ele nunca terá fome, terá sempre qualquer coisa para comer!” Aí está: o seu futuro percurso de vida fora determinado, quase lacrado, naquele momento. Começaria a trabalhar como aprendiz de padeiro; depois, quando tivesse aprendido a profissão, continuaria como padeiro-operário.
Nos primeiros dias, a sua mãe acordava-o à meia-noite; ele vestia-se apressadamente e ia a pé até à padaria, a meio da noite, ainda meio adormecido. O padeiro já estava levantado, o forno estava aceso e a começar a aquecer. Na padaria trabalha-se de noite, porque a preparação do pão demora longas horas e que o pão tem de estar pronto quando as pessoas saem para o trabalho. Depois de alguns dias, o padeiro disse à mãe dele: “Olha, Marie, seria melhor se o teu miúdo viesse viver connosco. Vamos tratá-lo como nosso filho; assim ele já cá estará quando forem horas de começar a trabalhar”. Na verdade, o rapaz, na altura com treze anos de idade, não tinha nenhum quarto em casa do padeiro. Dormia no sótão, debaixo de sacos de farinha amontoados para se manter quente durante a curta noite. À meia-noite, o patrão vinha acordá-lo uma primeira vez. Se ele não aparecesse lá em baixo dez minutos depois, o patrão voltava a subir, mas desta vez com uma bacia de água fria e pumba, na cara! “Pelo menos agora vais acordar!” E o trabalho começava. No entanto, no primeiro ano, apesar de trabalhar doze horas por dia, o aprendiz não aprendeu nada. Varria a padaria, acendia o forno e substituía a lenha no forno… Ao meio-dia almoçava com o patrão e a mulher, depois era-lhe permitido fazer uma pequena sesta ao mesmo tempo que o patrão. Quando o patrão acordava, faziam uma ronda pelas quintas com a carroça puxada por um cavalo. O patrão não saia da carroça; era o aprendiz que levava o pão às quintas, cada quinta ficava diariamente com a mesma quantidade de pão. Duas ou três horas depois, regressavam à aldeia. O aprendiz tinha de limpar bem o forno; quando terminava, podia ir até à cozinha, comer os restos da refeição. E depois ia para o sótão, dormir algumas horas. E à meia-noite, a bacia de água acordava-o… Era assim os sete dias da semana. Não eram seis dias, mas sete dias, incluindo o domingo. Não havia dia de folga nas padarias, porque o pão é o alimento diário por excelência; é, por isso, preciso pão todos os dias da semana…
Após três anos deste regime, o jovem aprendiz tinha-se tornado um rapaz forte de dezasseis anos que conhecia bem a profissão. Mas ele continuava a ser alimentado e alojado, sem nunca ser pago. Um dia, após ter hesitado durante muito tempo, atreveu-se a pedir ao patrão que lhe pagasse como um trabalhador que faz doze horas de trabalho, sete dias por semana. O patrão recusou imediatamente: “É absolutamente impossível! Não ganho dinheiro suficiente para isso! Se não estás contente, vai-te embora! Encontrarei facilmente alguém para te substituir!” Então o jovem aprendiz pediu emprestada uma bicicleta e foi até à vila mais próxima procurar trabalho; e encontrou de imediato numa padaria. Mas cedo percebeu que, de modo a completar a sua aprendizagem, tinha de “percorrer todas as etapas da profissão” mudando de patrão. Porque nesta profissão artesanal, os artesãos não têm tempo para ensinar os truques da profissão aos jovens; eles aprendem “vendo fazer”. E isto tem algumas desvantagens.
Dou-vos um exemplo. Mesmo antes de colocar os “pedaços de massa” no forno, o artesão dá-lhes rapidamente três cortes de lâmina de barbear na parte superior. Desta forma, durante o processo de cozedura, os gases da fermentação podem escapar através das três fendas assim abertas. Um velho trabalhador contou-me que, um dia, o seu patrão viu-o a dar os três golpes de lâmina e gritou com ele:
— Mas o que estás tu a fazer?
— Bem, eu estou a dar os golpes de lâmina.
— Sim, mas porque estás tu a segurar a lâmina com a mão esquerda?
— Bem, eu estou a fazer como você!
— Sim, mas eu sou canhoto!!!
Este é precisamente o problema. O patrão disse para o aprendiz: “Meu amigo, não tenho tempo para te explicar, só tens de fazer exatamente como eu”. Por isso, o aprendiz imitou-o…
Erving Goffman tinha-me ouvido falar acerca disto, e ele tinha adorado o exemplo. E disse-me: “You know Daniel, with this example you have it in a nutshell!” (Sabes, Daniel, com este exemplo dizes tudo em poucas palavras!).
Esta é a razão de ser da tradição do “Tour de France” que vem da Idade Média e que existia em todas as profissões citadinas: carpinteiro, telhador, sapateiro, queijeiro, talhante, padeiro… Era necessário “dar a volta à profissão” para aprender todas as suas facetas com uma grande variedade de artesãos, tentando sempre separar o joio do trigo. E o Sr. Bailly tinha finalmente “subido” até Paris, porque era em Paris que os salários dos padeiros eram os mais elevados em toda a França.
Esta primeira narrativa de vida entusiasmou-me. Mas eu pensava que era uma exceção: que uma vida inteiramente dedicada ao trabalho operário como a do Sr. Bailly era um caso excecional. Depois de recolher esta narrativa de vida, pedi-lhe que me pusesse em contacto com outros padeiros-operários da sua geração; e ele pôs-me em contacto com vários. Para minha grande surpresa, os seus percursos de vida eram, de certa forma, paralelos aos do Sr. Bailly. Tinham nascido noutras partes de França, uns no Norte e outros no Sul, ou no Leste, ou no Oeste. Mas todos tinham nascido em zonas rurais, em famílias pobres. Todos eles tinham sido colocados como aprendizes no padeiro local. Todos eles tinham passado por uma aprendizagem muito dura que os tinha moldado, que tinha moldado até os seus corpos: muitos disseram-me, por exemplo, que não conseguiam dormir à noite, que não tinham sono à noite. Todos eles tinham sido forçados, como o Sr. Bailly, a ir para a cidade à procura de trabalho, finalmente remunerado pelo seu verdadeiro valor de mercado.
Basicamente, estas primeiras narrativas de vida tinham revelado a presença daquilo a que Durkheim chamou um “mecanismo gerador”: padarias rurais em toda a França recrutavam e formavam aprendizes, lucravam bastante com o seu trabalho não remunerado, e depois acabavam por os mandar para as cidades. Isto funcionava como uma bomba de sucção e de descarga de jovens e suas forças de trabalho: retirando as forças juvenis do campo, formando-as ao longo de vários anos de aprendizagem, e recambiando-as para as cidades depois de formadas.
Mais tarde, por ocasião de viagens ou de férias, recolhi narrativas de vida de padeiros-operários em pequenas cidades dos Pirenéus e numa cidade no norte de França; e uma colega que me tinha ajudado a fazer essa recolha em Paris, Jacqueline Dufrêne, recolheu várias em Marselha, a segunda maior cidade de França. Todos eles tinham nascido e sido criados em aldeias onde se tinham tornado aprendizes, e todos eles tinham então ido para a cidade…
Mas, na ausência de uma amostra estatisticamente representativa, serão estas auscultações suficientes para afirmar que o padrão que eu tinha identificado refletia os percursos profissionais dos cerca de cento e vinte mil padeiros-operários do país? Por outras palavras, teria eu descoberto um outro caminho (outro caminho que não o caminho da amostra representativa) para a generalização sociológica a toda uma sociedade?
A existência de tal mecanismo gerador apareceu-me muito rapidamente, a partir da terceira narrativa de vida. E as poucas narrativas de vida recolhidas posteriormente vieram confirmar a sua existência e a forma como funcionava. Nessa altura, não tinha ouvido falar da Escola Sociológica de Chicago e dos principais conceitos de metodologia qualitativa, sublinho qualitativa, que a Escola de Chicago tinha identificado: os conceitos de “recorrência” e de “saturação”, e de “pesquisa de casos negativos”. Mas, esses conceitos, eu próprio voltei a encontrá-los. Havia muitas recorrências, já deu para perceber, entre a narrativa de vida de um e de outro padeiro. Essas recorrências tornaram possível a construção de um modelo do processo subterrâneo que gerou os percursos profissionais dos aprendizes e padeiros-operários em França. Em sociologia, uma boa definição de um processo poderia ser: um encadeamento mais ou menos sistemático de situações e de ações geradas por essas situações. Por exemplo: o aprendiz pede para ser pago, o padeiro rural recusa-se a pagar-lhe, por isso ele parte para a cidade e fica lá porque na cidade o seu trabalho como padeiro-operário é pago a um valor, se não justo, pelo menos ao valor de mercado.
Mas não basta recolher três narrativas de vida que contam a mesma história para poder afirmar que se descobriu um mecanismo social (um mecanismo gerador, por exemplo) e generalizar a uma sociedade inteira: também deve ser dada a essa sociedade uma oportunidade de o contradizer, apresentando casos que funcionam de forma diferente do que o seu modelo prevê, ou seja, casos que não confirmam, que contradizem o seu modelo, isto é, que não verificam a sua teorização, o seu esboço de teoria. Isto é o que Alfred Lindesmith chamou de “casos negativos”.
Lindesmith: a descoberta de “casos negativos” que obrigam a afinar as primeiras teorizações
No início dos anos 1940, em Chicago, Alfred Lindesmith estava a estudar o fenómeno da toxicodependência: as pessoas dependentes de heroína para ser mais exato. Ele tinha construído um primeiro esboço de teoria que, esquematicamente, relacionava a primeira injeção de heroína e o flash: a intensa sensação de bem-estar que se segue imediatamente ao flash e que dá vontade de recomeçar. Esta teoria muito simples era, aliás, a dos próprios toxicodependentes; e todos os casos de dependência que estudava através de entrevistas confirmavam-na, as recorrências eram sistemáticas.
Um médico, amigo dele, tinha-lhe contado que no hospital, alguns médicos se tornavam dependentes da morfina, que é um produto muito semelhante à heroína. Lindesmith entrevistou alguns deles, e de facto, todos tinham passado pelo mesmo processo, uma primeira injeção e o flash que dá vontade de recomeçar “pelo menos uma vez”.
— Mas então (perguntou-lhes Lindesmith), como é que os seus pacientes, aqueles a quem dá injeções de morfina para acalmar o seu sofrimento físico, não se tornam todos viciados em morfina?
— Ah, mas nós não lhes dizemos o que lhes injetamos! Certamente que não! Dizemos que lhes vamos dar uma injeção de um calmante, só isso! Eles não devem saber!
Esses pacientes representavam (numerosos) “casos negativos” para a teoria de Lindesmith: tinham recebido uma primeira injeção, o seu insuportável sofrimento físico tinha desaparecido subitamente e tinham sentido uma sensação de grande bem-estar. No entanto, não se tornavam toxicodependentes. Porquê? Porque lhes faltava o conhecimento e, portanto, a consciência do encadeamento entre injeção e sensação de bem-estar. Tendo compreendido isto, Lindesmith foi levado a modificar a sua teoria do processo de dependência: entre a primeira injeção e a sensação de bem-estar, tem de haver, além disso, uma “clara consciência da relação de causa e efeito” entre os dois. Enquanto esta consciência clara não existir, não se fica toxicodependente. Este é um bom exemplo do que significa “a procura de casos negativos”.
De volta ao estudo sobre a padaria artesanal
Voltando agora à minha teorização do recrutamento por parte dos padeiros das aldeias de aprendizes que mais tarde se tornariam os padeiros das cidades francesas. Se eu tivesse conseguido encontrar padeiros-operários de origem urbana, nascidos e criados em Paris ou noutra grande cidade, estes “casos negativos” ter-me-iam obrigado a enriquecer a minha teorização para os ter em conta. Por isso, perguntei ao Sr. Bailly e aos seus camaradas do sindicato se conheciam algum. A questão surpreendeu-os; mas, após reflexão, disseram que não conheciam nenhum. Pedi-lhes que os procurassem para que eu os pudesse entrevistar; mas não obtive qualquer resultado.
Compreendi porquê quando contactei uma escola de profissões artesanais em Paris. Havia cerca de vinte jovens aprendizes padeiros em formação alternada: tinham 15 ou 16 anos de idade, uma semana em cada duas trabalhavam numa pequena padaria parisiense e na outra semana prosseguiam com a sua escolaridade normal nesta escola. Juntei-os e fizemos uma ronda: quase todos tinham nascido em bairros populares de Paris ou nos subúrbios próximos, em famílias pobres; vários tinham sido criados apenas pela mãe. Quando perguntei quantos deles estariam a pensar enveredar pela profissão de padeiro depois do serviço militar, todos exclamaram: “Ah não! Nem pensar!”.
Perguntei-lhes porque era tão unânime a sua resposta. Para eles, era absolutamente óbvio: queriam trabalhar mais tarde numa fábrica, ou como motorista de entregas, ou em qualquer outro emprego assalariado de base; mas em circunstância alguma como padeiro! Porque aí tem de se trabalhar à noite, incluindo sextas-feiras e sábados! E essas noites são preciosas; porque são as noites em que “se vai à discoteca”, em que se vai dançar e se encontram raparigas. Se, em vez disso, tiverem de trabalhar numa padaria, então não vale a pena… Eu tinha descoberto a razão pela qual, por mais que procurasse nas duas mil e quinhentas padarias de Paris, um padeiro-operário nascido em Paris ou num dos seus subúrbios: não encontraria nenhum. Não há “casos negativos”!
Em suma, penso que este exemplo mostra como, pelo menos em certas condições, se podem fazer generalizações plausíveis sem ter uma amostra estatisticamente representativa. Por outras palavras, os sociólogos quantitativos não teriam o monopólio da generalização empírica.
As narrativas de vida abrem a porta de par em par à imaginação sociológica
Quero mesmo convidar-vos, queridos colegas portugueses, a experimentarem usar narrativas de vida na vossa próxima pesquisa sociológica. Com este método farão, certamente, descobertas admiráveis. Então, para transformar essas descobertas em teorizações sociológicas, caber-vos-á dar rédea solta à vossa mente para, em primeiro lugar, imaginar livremente como as coisas acontecem nas profundezas da “fábrica” societal e quais as sequências previsíveis de situações e ações de curto, médio e longo prazo. Em segundo lugar, terão de adotar um certo rigor (o oposto da imaginação, pelo menos na aparência) para descartar teorizações muito arriscadas e reter aquelas que parecem confirmar não apenas as narrativas de vida, mas também os outros dados empíricos de que dispõem (incluindo as estatísticas sociais à disposição).[2]
Funcionou muito bem na minha pesquisa sobre a padaria artesanal em França. É verdade que, em retrospetiva, penso que tive muita sorte: porque o sector de produção que tinha escolhido para estudar não era apenas um “mundo social” coerente (no sentido de Howard S. Becker), mas era um mundo socioeconómico que lutava pela sua sobrevivência face à pressão invisível, mas muito forte, da padaria industrial; um mundo social que se explorava a si próprio (com jornadas de trabalho de doze horas…) para não desaparecer. Um mundo em que aprendizes, trabalhadores, padeiros-artesãos e suas esposas estavam todos muito concentrados em três coisas essenciais: trabalho, trabalho, trabalho. Por outras palavras, um mundo em que os comportamentos a curto e médio prazo, e mesmo os projetos a longo prazo, eram muito fortemente condicionados pelas relações sócio-estruturais e pela lógica da concorrência. Um mundo antiquado, quase sem tempo livre nem liberdade. Um mundo que era muito constrangedor para as suas múltiplas categorias de atores, e como tal, difícil de viver, mas também, por essa mesma razão, mais fácil de compreender sociologicamente.
Devido à enorme riqueza dos materiais que trazem nas suas redes de malha larga, as narrativas de vida levar-vos-ão a descobertas inesperadas e até espetaculares. Mas estejam também preparados para enfrentar desafios de várias ordens, incluindo colegas que se recusam a reconhecer — ou mesmo simplesmente a aprender sobre — a validade metodológica das narrativas de vida.
O difícil reaparecimento de um espaço legítimo para as narrativas de vida
Em França, foi apenas nos anos 1980 que a hegemonia quase universal da survey research sobre a metodologia sociológica começou a recuar. Foi como quando um gigantesco glaciar começa a derreter e algumas tímidas ervas e flores começam a crescer nos raros espaços de terra assim libertados… Os textos de Barney Glaser, Anselm Strauss e Howard S. Becker começaram a circular em inglês em círculos muito pequenos, assim como o espírito que os animava: o espírito dos estudos de caso (mas não tratavam de narrativas de vida). A era glacial da hegemonia cientista em sociologia parecia estar finalmente a chegar ao fim. Estava contente: finalmente, talvez não tivessem sido em vão as numerosas intervenções orais e escritas que tinha feito ao longo dos últimos vinte anos para tentar abrir, com fórceps, um pequeno espaço em que finalmente seria legítimo implementar — pelo menos numa base experimental — métodos não-quantitativos.
Houve, contudo, uma tentativa de inverter a tendência e salvar o postulado cientista, ou seja, o postulado segundo o qual, como repetia Bourdieu, “a sociologia é uma ciência como as outras ciências”. Em 1968, ele e Passeron tinham mesmo escrito esta frase definitiva: “Talvez seja a maldição das ciências do homem ter de lidar com um objeto que fala” (Bourdieu et al., 1968, p. 64). O edifício teórico que tinham pacientemente construído ao longo dos anos e através de inquéritos por questionário (cada inquérito conduzia a um livro, por vezes anos mais tarde: Les Héritiers, La Reproduction, La Distinction, L’Amour de l’Art, La Noblesse d’Etat…) com as suas colaboradoras e colaboradores assentava inteiramente neste postulado cientista e, mais precisamente, na sua versão estruturalista mais pura (esquematicamente: “Não pensamos, somos pensados pelas ideologias que nos atravessam; não agimos, somos agidos pelas relações sócio-estruturais que definem o nosso lugar…”). Mas nos anos 80, este orgulhoso postulado cientista começou a perder a sua soberba. O próprio Passeron estava a afastar-se dele…
Bourdieu considerou que era demais: a sociologia corria o risco de cair uma vez mais no espaço dos estudos literários. Pelo contrário, tinha de ser mantida no espaço da ciência a todo o custo! Ele tinha dado carta-branca a um dos seus melhores discípulos, Michael Pollak, para preparar um número da sua revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales sobre o tema controverso das histórias de vida. Ele próprio, mobilizado por muitas outras tarefas, não tinha acompanhado o assunto. Quando os manuscritos destinados a serem publicados nesta edição estavam finalmente prontos (eu tinha sido contactado e tinha feito uma proposta para um artigo, mas não obtivera resposta…) Bourdieu demorou algum tempo a lê-los. Descobriu então que, em vez de destruir e acabar com a legitimidade metodológica e científica das histórias de vida, estes artigos apresentavam muito mais matizes. Furioso — e pressionado pelo tempo — escreveu apressadamente um texto curto e polémico de nove parágrafos violentos que intitulou “A ilusão biográfica” [“L’illusion biographique”] (Bourdieu, 1986). Embora este texto seja um dos argumentos mais fracos que Bourdieu alguma vez escreveu, o “efeito assinatura” (o facto de ter uma assinatura famosa) significa que este artigo já terá sido citado quase 2.500 vezes até ao momento (de acordo com o GoogleScholar).
A carga de Bourdieu
O ataque frontal começa logo na primeira frase: “A história de vida é uma dessas noções do senso comum [na opinião de Bourdieu, ”senso comum” é apenas uma coleção de estereótipos que as pessoas repetem sem pensar; é o grau zero da verdade científica] que entrou em contrabando no universo científico; inicialmente, sem muito alarido, entre etnólogos, depois, mais recentemente, com estardalhaço, entre sociólogos” (Bourdieu, 1986, p. 69, itálico acrescentado).
A intenção assassina não podia ser mais clara: normalmente, depois desta primeira carga de cavalaria a todo o galope, não deveria restar nada no campo de batalha a não ser os destroços espalhados dos pseudo-sociólogos que tentaram introduzir em contrabando a história da vida no universo da sociologia científica. Ninguém, depois disso, se atreveria alguma vez a tentar novamente!
Durante muito tempo, interroguei-me porque é que Bourdieu, que conhecia perfeitamente bem a arte etnográfica do trabalho de terreno e que a praticou na Cabília — com e graças a Abdelmalek Sayad — bem como na sua região natal de Béarn, rejeitou com tanta fúria as narrativas de vida, uma técnica decorrente dessa mesma tradição etnográfica que ele tinha em grande estima. Obviamente senti-me visado, embora o meu nome não tenha sido mencionado (porque isso ter-me-ia dado visibilidade…); mas eu era claramente o alvo. Ora eu era apenas um modesto investigador do CNRS [Centre national de la recherche scientifique], sem responsabilidades de ensino em França e, portanto, sem estudantes. Não estava à procura da fama; e não estava a ameaçar a sua fama já estratosférica. Então, porquê tanto ódio?
Porém, com a distância que o tempo permite, tudo se tornou mais claro. Por trás de uma discussão aparentemente metodológica sobre o valor heurístico das narrativas de vida, escondia-se efetivamente uma questão de considerável importância, da qual, com os seus dez anos de reflexão adiantada em relação a mim, ele estava muito mais consciente do que eu: deve-se — ou não — reconhecer uma certa capacidade de ação autónoma aos indivíduos?
Responder afirmativamente seria minar os próprios alicerces de todo o edifício estruturalista… Mas se levarmos a sério o que alguém que improvisa a sua narrativa de vida diz, se pensarmos que, ele ou ela, aproveita a oportunidade única que lhe foi dada para falar a verdade, então descobriremos que ele ou ela investiu de facto muita esperança e energia num número reduzido de projetos que lhe eram caros e que davam significado tanto à sua vida quotidiana como ao seu horizonte futuro. E acima de tudo, que ele/ela implementou cursos de ação autónoma ao longo do tempo[3] para realizar esses projetos, os SEUS projetos, em contextos que foram sendo descobertos à medida que avançava. Como diz, tão simples e tão bem, o pequeno poema de António Machado: “Caminante, no hay camino, Se hace camino al andar”.
Esta capacidade de se projetar num futuro próximo e de agir em conformidade (seja para realizar um projeto, seja, pelo contrário, para evitar um “acidente” previsível) é uma das principais características que nos distingue, nós, seres humanos, dos objetos passivos capturados por campos de força com os quais as ciências físicas lidam. “O Homem é definido pelo seu projeto”, escreveu Sartre… Bourdieu não o ignorava, obviamente; mas reconhecê-lo publicamente teria significado o abandono do projeto cientista. Isso estava fora de questão! Daí esta ação de retaguarda, conduzida com grande vigor, talvez enquanto se procurava uma vacina contra esta nova praga: as narrativas de vida.
Mas a “praga” ia ganhando terreno de forma incessante. E, efetivamente, apenas sete anos mais tarde — apenas sete anos mais tarde! — um sociólogo francês atreveu-se a publicar um livro de 947 páginas constituído principalmente por transcrições literais de 52 histórias de vida! Esta obra escandalosa intitula-se La Misère du monde (A miséria do mundo). O material recolhido e publicado — 52 entrevistas biográficas — é, aliás, muito interessante. Mas quem é o autor? Que sociólogo francês ousou transgredir a proibição que Bourdieu tinha formulado tão vigorosamente sete anos antes, em 1986? Tratou-se, na verdade, de uma equipa de 22 sociólogos que recolheram narrativas de vida de mulheres e homens que viviam — em França — uma ou outra forma de precariedade das suas condições de vida. Uma tarefa enorme.
Mas quem foi então o iniciador e inspirador, quem foi então o líder desta grande equipa? Ah pois, foi o próprio Bourdieu… Em 1986, opunha-se à introdução das histórias de vida no território sagrado do universo erudito, tal um chefe da guarda fronteiriça. Em 1993, apareceu de repente como aquele que tinha organizado o contrabando das narrativas de vida e, já agora, em grande escala…
Num longo ensaio intitulado “Compreender” que fecha La Misère du monde (Bourdieu, 1993), Bourdieu desenvolve o seu novo ponto de vista. Dá lugar a uma pequena parte de autocrítica (uma novidade para ele): sim, finalmente, é preciso ouvir o que as pessoas dizem acerca da história que viveram, é interessante apesar de tudo. Mas sob a aparência de um início de abertura, Bourdieu não desiste do essencial. Continua convencido de que os comportamentos de um agente situado num determinado “campo”, apesar da sua aparência de autonomia, são de facto previsíveis assim que se conhece a sua posição (relacional, objetiva) nesse “campo”. E embora aceite que os agentes de um “campo” tenham as suas próprias estratégias e as implementem, este conceito de “campo” (sem dúvida o melhor de todos os conceitos propostos por Bourdieu) tem a imensa vantagem de restaurar a sua previsibilidade. Assim, o carácter científico da sociologia está salvo: doravante, armado com o novo conceito de “campo”, ganhou o direito de permanecer dentro do espaço das ciências…
A publicação de La Misère du monde (Bourdieu, 1993) constitui certamente um ponto de viragem na história intelectual de Bourdieu e da sua equipa. Não é, contudo, uma viragem de 180 graus; é antes uma inflexão de trajetória, que será completada pelo livro Méditations pascaliennes (Bourdieu, 1997). La Misère du monde (Bourdieu, 1993) mostra que Bourdieu — e os membros da sua equipa — acabaram por descobrir duas das virtudes das narrativas da vida; mas há pelo menos outras cinco que continuaram a ignorar.
Sete virtudes das narrativas de vida
Uma narrativa de vida, desde que o seu autor se sinta livre e autorizado a “dizer tudo” — mesmo que obviamente não diga tudo… — dá efetivamente acesso à sua interioridade, à sua Weltanschauung [visão do mundo], à sua forma de perceber e avaliar o mundo exterior, bem como o lugar que ele/ela ocupa neste mundo; ao que se orgulha de ter realizado, ao que teria desejado ser e realizar… Resumindo numa só palavra, a narrativa de vida dá acesso à sua subjetividade.
Os antropólogos sempre souberam disso; e alguns sociólogos também, a começar por William I. Thomas e os seus colegas da Escola de Chicago. O que descobrira finalmente, após muitos outros, no final dos anos 1980, o autor de Comprendre (o título é um piscar de olhos a Max Weber e ao seu famoso Verstehen…) não era nada de novo. Na área germânica dos Kulturwissenschaften [estudos culturais], por exemplo, há muito que historiadores e sociólogos tinham sabido mobilizar esta virtude das narrativas de vida: dar acesso a uma subjetividade individual. E que tinham compreendido que numa dada sociedade (e mesmo em cada um dos meios sociais que a compõem) a subjetividade de cada membro “reflete” à sua maneira, como se fosse um pequeno espelho personalizado, a história coletiva e as dinâmicas sócio-estruturais dessa sociedade, desse meio social.
A outra virtude da narrativa de vida que Bourdieu descobriu e da qual foi capaz de tirar proveito — já que a obra La misère du monde (Bourdieu, 1993), se vendeu muito bem — é, chamemos-lhe assim, a sua notável expressividade. Foi, aliás, esta expressividade que me atraiu para a sociologia: quando ainda era um jovem engenheiro com uma carreira promissora, fiquei tão fascinado pela leitura da obra de Oscar Lewis (1970), Os Filhos de Sánchez, que projetei mudar de profissão e fazer como Oscar Lewis: recolher testemunhos fortes que, de certa forma, falariam por si só[4].
Assim, eis que um eminente sociólogo reconhecia, finalmente, duas virtudes das narrativas de vida. Era um bom começo, mas a minha experiência como investigador a tempo inteiro tinha-me ensinado que havia outras, além destas duas. Acumulei ou partilhei ao longo da minha carreira, e sempre em equipa, muitas experiências de recolha e análise de narrativas de vida; aliás, nunca apenas uma de cada vez, mas sempre várias narrativas de vida de uma “amostra” de pessoas que viveram no mesmo mundo social, ou uma mesma situação, que viveram trajetórias sociais semelhantes ou que pelo menos partilharam a mesma experiência forte e prolongada… Quando, por ocasião de uma conferência, tentei muito mais tarde fazer um balanço das principais “propriedades” das narrativas de vida, encontrei sete (Bertaux, 2014). Limitar-me-ei a dizer aqui algumas palavras a este respeito.
Já encontrámos a Expressividade e a Subjetividade. Parece-me que devemos acrescentar a Singularidade (cada indivíduo é único, singular, mas ao mesmo tempo carrega consigo a universalidade da condição humana…) e outras quatro “propriedades” que denominei Atividade, Conectividade, Contextualidade e Historicidade. Vejam o texto “Sept propriétés des récits de vie” (Bertaux, 2014), para compreender exatamente a que se refere cada um destes termos.
Na realidade, o que me interessava, enquanto refletia sobre as “virtudes” das narrativas de vida, era elencar os tipos de fenómenos sócio–históricos que as narrativas de vida — e talvez só elas — nos permitem observar, ver. Assim, teria provavelmente sido preferível falar de capacidades em vez de propriedades.
Para que compreendam, vou pegar no exemplo dos telescópios astronómicos. As suas propriedades, no sentido estrito, são expressas em termos técnicos (poder de ampliação, poder de resolução, largura de espectro, etc.) que só os engenheiros e os astrónomos compreendem. O que interessa aos não-especialistas — ou seja, à maioria de nós — é a capacidade deste ou daquele telescópio nos dar a ver este ou aquele fenómeno do Universo. Na mesma noite em que Galileu desenvolveu o seu famoso telescópio — pouco importa o seu poder ampliação — e que o apontou para os astros no céu, descobriu as fases da Lua e os anéis de Saturno… Hoje em dia, os telescópios mais avançados podem capturar a radiação de fontes de luz muito antigas, uma radiação que remonta quase à origem do próprio cosmos.[5]
Relativamente às narrativas de vida, o que me interessava, portanto, era explicar as suas capacidades, em vez de elencar as suas propriedades. Por exemplo, uma das suas propriedades no sentido estrito é o seu carácter narrativo, a sua narratividade. Quando os sociólogos norte-americanos descobriram esta propriedade — que para os praticantes das narrativas de vida era uma trivialidade — deram-lhe muita importância. Falaram de narratives páginas a fio e de narrative turn, de narrativity e de narrative consistency, e até foi criada uma revista, The Narrative Study of Lives. Mas será que pensaram em identificar com precisão o tipo de fenómenos sócio-históricos que as narratives permitem estudar? Não, porque confundiram as características intrínsecas (ou “propriedades” no sentido literal) deste ou daquele método com as suas capacidades. No caso das narrativas de vida, formas narrativas por excelência sem dúvida alguma, o que interessa aos investigadores em sociologia é que elas, e só elas, têm a capacidade de dar acesso a descrições dos cursos de ação ao longo do tempo desta ou daquela pessoa. Talvez também permitam, aliás, o acesso aos cursos de ação empreendidos por pequenos grupos de pessoas organizadas e determinadas a alcançar um certo objetivo…
Dou este exemplo para que compreendam bem a diferença entre propriedades (aqui a narratividade) e capacidades das narrativas de vida enquanto método sociológico. O que é interessante para a investigação sociológica não são as propriedades; são as capacidades.
O que designei por Expressividade é, de facto, uma propriedade das narrativas de vida. Mas é a única propriedade (no sentido estrito) que consta na minha lista de sete “propriedades”; as outras seis são, na realidade, capacidades das narrativas de vida; e são, na sua maioria, capacidades exclusivas. Para além da narrativa de vida, que outro método empírico de sociologia dá ao sociólogo a capacidade de conhecer a história singular de um indivíduo? Ser capaz de reintegrar a história deste indivíduo na história coletiva do seu meio social, da sua classe social, da sua sociedade? Compreender a partir de dentro, por assim dizer, o que o/a levou a seguir obstinadamente cursos de ação, e a agir da forma como agiu em momentos cruciais? Conhecer as suas redes de relações em diferentes momentos da sua vida, relações que provavelmente o/a ajudaram a encontrar o primeiro emprego, ou mesmo o seu parceiro ou parceira; a mudar de emprego, a aproveitar as oportunidades no momento em que surgiam? Compreender em que contextos locais ele/ela agiu? Estas capacidades são precisamente o que propus chamar — respetivamente — Singularidade, Historicidade, Atividade, Conectividade e Contextualidade. Por fim, é de acrescentar a capacidade, analisada mais acima, de restaurar pelo menos parcialmente a Subjetividade de uma pessoa, a montante dos seus cursos de ação, da sua “Atividade”.
Assim, por detrás de um título — “Sept propriétés…” (Bertaux, 2014), que retrospetivamente parece de certa forma enganador — trata-se de uma lista que, na verdade, inclui apenas uma propriedade real, a Expressividade; e seis capacidades designadas de acordo com o tipo de fenómeno social-histórico que a narrativa de vida nos permite observar.
Conclusão
Edgar Morin, certamente uma das mentes mais criativas do nosso tempo — em breve celebrará o seu centésimo aniversário — ensinou-nos a não confundir conhecimento com simplicidade. O mundo da física é muito mais simples do que o mundo dos seres vivos, o mundo biológico (o planeta azul); e este último, apesar da sua complexidade é, em si, muito menos complexo do que o mundo sócio-histórico da humanidade. As múltiplas dinâmicas — contraditórias ou não — que estão em ação nas profundezas do nosso mundo sócio-histórico são muito mais complexas do que as que animaram a vida biológica no planeta azul durante milhões de anos de evolução; e estas, por sua vez, são de uma ordem de grandeza maior, em complexidade, do que o mundo físico inanimado.
É por isso que os esforços para descobrir “leis sociais” (incluindo “leis económicas”) que poderiam ser expressas com fórmulas matemáticas, tal como sucede com as leis que governam o mundo físico, parecem um tanto ingénuas para qualquer pessoa com alguma cultura científica.
O que é necessário para avançar no conhecimento é trabalhar no desenvolvimento de métodos de observação do mundo sócio-histórico que permitam aceder às dinâmicas que o produzem e o transformam permanentemente. Deste ponto de vista, as narrativas de vida têm o seu lugar na panóplia de métodos de uma sociologia que está consciente da dimensão histórica do seu objeto, “a sociedade”.
Vou parar por aqui com esta breve apresentação de um método que ainda é pouco conhecido, mas que penso ter um futuro brilhante pela frente em virtude da riqueza dos dados que permite recolher e analisar. Mas antes de terminar, gostaria de expressar a minha gratidão a um intelectual português que, muito antes de todos os meus colegas franceses, conseguiu perceber o valor de uma ideia nova que eu tinha desenvolvido fora dos caminhos trilhados até então.
Esta ideia revolucionária é que cada sociedade, desde a mais primitiva até à mais desenvolvida, não pode funcionar com base num único processo de produção, o processo de produção — e distribuição — das coisas necessárias à vida (aquilo a que hoje chamamos a economia). De facto, em qualquer sociedade, este primeiro processo está associado a um segundo processo, que é de certa forma o seu oposto: o processo de produção da própria vida. Quando tive de lhe encontrar um nome, chamei-lhe antroponomia, uma vez que se trata — como Marx o escreveu aliás — “da produção dos próprios homens (e mulheres), da produção da vida”. De que se trata? De um grande número de tarefas diárias, tais como cozinhar (e tudo o que lhe está associado), dar à luz e criar uma criança, cuidar dela, ensiná-la a falar, educá-la… Estas são tarefas geralmente reservadas às mulheres em virtude das relações sociais de género; e esta é provavelmente a principal razão pela qual é tão difícil para tantos intelectuais, que são também (e principalmente) homens, compreender do que se trata.
Obviamente não tenho tempo para desenvolver esta ideia aqui.[6] Mas se a levarmos a sério e refletirmos sobre ela, faremos uma descoberta importante: há mais de um século que a produção antroponómica não se limita ao trabalho doméstico, há muito tempo que vai além do contexto familiar e que foi incorporada por instituições tão sofisticadas como — por exemplo — hospitais ou universidades (mas também, claro, maternidades, clínicas e o conjunto de profissionais de saúde liberais, assim como todos os tipos de escolas). De facto, os milhões de horas de trabalho efetuadas pelos seus empregados não produzem qualquer objeto material, qualquer mercadoria. São os “corpos” (no sentido de Michel Foucault, que incluiu no termo “corpo” o espírito que nele habita) e as suas energias vivas que neles são produzidas. Produzidos de facto, e não apenas “reproduzidos” (um termo demasiado redutor: como se criar uma criança fosse apenas um processo de re-produção, enquanto que o termo “produção” estaria reservado a fábricas hoje em dia quase automatizadas…).
Basta analisar o Produto Interno Bruto dos países mais desenvolvidos, ramo por ramo (de produção), sector por sector (de produção), para constatar que a produção “das próprias pessoas, da vida” (produção antroponómica), mobiliza atualmente uma proporção, que todos os anos aumenta, da população ativa sob a forma enganosa de “serviços às pessoas”, enquanto se verifica o contrário em relação à produção industrial ou agrícola (cf. Bertaux, 2015).
Apresentei esta ideia pela primeira vez nos anos 1970. Em França, a sua difusão esbarrou contra o ceticismo dos intelectuais masculinos (“A sua ideia de produção das pessoas é uma metáfora”, disse-me Alain Touraine fugazmente. Ele pretendia dizer “É apenas uma metáfora”).
Foi de Portugal que veio o primeiro sinal positivo. Efetivamente foi em Portugal que o meu primeiro livro, Destinos pessoais e estrutura de classe (Bertaux, 1977/1978), (Destins Personnels et Structure de Classe, 1977), cujo sub-título era “Pour une Critique de l’Anthroponomie Politique”, foi traduzido e publicado; em 1978, um ano apenas após a sua publicação em francês.
Ora, o intelectual português que tomou a iniciativa de o traduzir e de o publicar em Lisboa não era sociólogo; era um escritor. Um escritor que precisava de dinheiro, possivelmente, mas que já era conhecido em Portugal e que poderia ter escolhido traduzir um romancista francês famoso em vez da obra do jovem e desconhecido sociólogo que eu era na altura.
É de acreditar que ele estava muito interessado no livro. Eu não o conhecia, o seu nome não me dizia nada, a minha editora francesa não me disse quem ele era. Dez anos mais tarde, um colega português disse-me: Daniel, percebeste quem é que traduziu o teu livro para português? Foi José Saramago! E ele disse-me quem era Saramago, que era um grande escritor. Fiquei… petrificado.
Onde quer que esteja hoje, caro José Saramago, agradeço-lhe do fundo do coração por se ter empenhado nesta tradução. Uma tradução que provavelmente estará melhor do que o original… Este livro é sobre a produção da vida. Finalmente, haverá algo, do ponto de vista coletivo, que seja mais importante do que isso?
Referências
Bertaux, D. (1976). Histoires de vie — ou récits de pratiques? Méthodologie de l’approche biographique en sociologie. Rapport de recherche, C.O.R.D.E.S.
Bertaux, D. (1978). Destinos pessoais e estrutura de classe (J. Saramago, Trad.). Editora Moraes. (Obra originalmente publicada em 1977)
Bertaux, D. (2014). Sept propriétés des récits de vie. In S. Ertul, J.-P. Melchior, & C. Lalive d’Épinay (Dirs.), Subjectivation et redéfinition identitaire. Parcours sociaux et affirmation du sujet (pp. 29-52) Presses Universitaires de Rennes.
Bertaux, D. (2015). Le care comme partie émergée de la production de la vie. Revue des Sciences Sociales, 52, 118-128. https://doi.org/10.4000/revss.3257
Bertaux, D. (2020). As Narrativas de Vida (L. Azevedo, Trad.). Mundos Sociais. (Obra originalmente publicada em 2016, 4ª ed.)
Blasquez, A. (1976). Gaston Lucas, serrurier. Chronique de l’anti-héros. Editions Plon.
Bourdieu, P. (1986). L’illusion biographique. Actes de la recherche en sciences sociales, 62-63, 69-72.
Bourdieu, P. (Dir.) (1993). La Misère du monde. Editions du Seuil.
Bourdieu, P. (1997). Méditations Pascaliennes. Le Seuil.
Bourdieu, P., Chamboredon, J. C., Passeron, J. C. (1968). Le métier de sociologue. Ecole pratique des hautes études / Sorbonne édition.
Lewis, O. (1970). Os Filhos de Sánchez. Editora Moraes.
Shiva, V. (2013, 3 de setembro). As mulheres e a construção do novo mundo [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=XcKx-uE4xrw&t=4s
Data de submissão: 05/07/2021| Data de aceitação: 31/12/2021
Notas
Por decisão pessoal, a tradução segue o novo acordo ortográfico.
[1]Tradução de Liliana Azevedo | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8172-9279
[2]Sobre este ponto é importante estar familiarizado com os esforços de Charles S. Pierce para pensar, para além da construção de teorizações dedutivas ou indutivas, sobre a ideia de abdução e a(s) forma(s) da sua aplicação.
[3]Este conceito pós-estruturalista fundamental só me apareceu muito mais tarde através do trabalho de Catherine Delcroix.
[4]Eu era certamente ingénuo, mas não era o único. Muito mais tarde descobri que Sartre e Simone de Beauvoir também tinham ficado fascinados pela leitura deste livro, que é composto principalmente por transcrições de entrevistas com as quatro crianças, dois rapazes e duas raparigas, de um pequeno camponês mexicano que emigrou, como milhões de outros, para a periferia da Cidade do México. Cada um dos quatro jovens conta a sua vida aventureira (o mais velho tentou emigrar para os Estados Unidos) com tanta eloquência e verve que o leitor lê o texto como se fosse um (excelente) romance. Simone de Beauvoir tinha concluído que os escritores e a literatura não seriam doravante necessários, uma vez que quatro jovens sem instrução, quatro jovens entre muitos outros, contavam histórias emocionantes espontaneamente. A partir de agora, pensou ela, os escritores não teriam de puxar pela cabeça para imaginar personagens fictícios, as suas relações e diálogos, teriam simplesmente de ligar aquele novo instrumento mágico, o gravador, e registariam e transcreveriam e depois imprimiriam o resultado. O resultado seriam dezenas, centenas, milhares de livros tão bons de ler como Os Filhos de Sánchez (Lewis, 1970). Sartre estava quase tão entusiasmado como ela; apenas acrescentou que talvez um escritor adquirisse mais tempo para refletir, ou até mesmo um horizonte um pouco mais amplo…
A verdade é que as quatro narrativas de vida dos jovens não são transcrições verbatim, mas resultam de um processo de reescrita. Foram reescritas respeitando certamente o que cada orador queria dizer, mas muito mais fluídas a ler do que transcrições reproduzindo com exatidão as palavras de cada um. Posso dizer isto por experiência, mas o leitor poderá convencer-se disso comparando, no livro de Adelaïde Blasquez (1976) Gaston Lucas, serrurier. Chronique de l’anti-héros publicado na famosa coleção Terre Humaine, as transcrições textuais e a sua reescrita antes da publicação: uma reescrita absolutamente honesta, mas indispensável, simplesmente porque as regras que regem a forma escrita de uma língua não são de todo as mesmas que as que regem a(s) sua(s) forma(s) oral(ais).
[5]Como disse, de forma muito visual, o astrónomo do Quebec Hubert Reeves: À medida que conseguimos captar uma radiação cada vez mais arcaica, emitida há vários milhares de milhões de anos, voltamos atrás no tempo e aproximamo-nos do momento do nascimento do Universo. E, inevitavelmente, chegará o dia em que finalmente teremos um vislumbre (pausa…) a Mão de Deus…
[6]Liliana Azevedo enviou-me um link para uma breve intervenção de uma intelectual indiana versátil, Vandana Shiva, que desenvolve a mesma ideia com notável concisão (Cf. Shiva, 2013).
Autores: Daniel Bertaux