N.º 26 - agosto 2021

Anastassia Tsoukala
Tradução do original em inglês[Tsoukala, A. (2021). Either unfreedom or death?
A genealogy of the “freedom or survival” discourse. SOCIOLOGIA ON LINE, (26), 82-93.] de Guilherme Mira Godinho.

Resumo: Este artigo explora a genealogia daquilo que pode seguramente ser interpretado como a contínua retração das conquistas democráticas do pós-guerra nas democracias liberais ocidentais. Focando-se no século XXI, o texto analisa como os conceitos de ameaça, liberdade e democracia foram redefinidos na sequência dos ataques do 11 de setembro, de modo a legitimar regras restritivas da liberdade. Procura também, por outro lado, demonstrar como este reenquadramento radical da democracia liberal foi aprofundado durante a gestão da crise pandémica, enquanto parte de uma chantagem política em constante evolução contra cidadãos confrontados com o dilema “liberdade ou sobrevivência”.

Palavras-chave: liberdade, direitos e liberdades civis, contraterrorismo, crise pandémica.

Introdução[1] 

Nas democracias liberais ocidentais, a supressão de direitos é justificada em nome da manutenção da paz pública. Faz parte de um mecanismo que procura impedir ou restaurar brechas numa ordem consensualmente aceite como quadro de vida social pelos cidadãos de diferentes países. Quando a supressão é instrumentalizada de modo a enfraquecer os opositores políticos do momento a sua fundamentação afasta-se do ideal democrático mas o movimento permanece indiscutível. Formalmente, o controlo repressivo do conflito social e político é legitimado em nome de políticas de ordem pública. Aquilo em que se baseiam esses procedimentos — a necessidade de proteção da ordem política e económica na qual assenta o regime — nunca é assumido.

Este equilíbrio implícito, prevalecente no pós-guerra, foi pela primeira vez perturbado à escala global na sequência dos ataques de 2001 levados a cabo pela Al Qaeda. Esses ataques suscitaram um substancial reenquadramento da anterior relação entre cidadão e poder executivo, com a supressão de direitos e liberdades civis, abrindo, por essa via, caminho à institucionalização de uma nova forma de governação que, por seu turno, se foi consolidando à medida que foram ocorrendo os sucessivos ataques do terrorismo islâmico em muitos outros centros metropolitanos ocidentais. Cerca de vinte anos depois dos primeiros ataques da Al Qaeda, este reenquadramento gradual da estrutura da democracia liberal ganhou novo impulso com a crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19. Trata-se novamente de uma crise à escala global, cuja gestão fragilizou seriamente uma multiplicidade de direitos e liberdades civis antes tidos como garantidos em toda a Europa.

Orientado por uma abordagem reflexiva, este artigo explora a genealogia daquilo que pode seguramente ser interpretado como a contínua retração das conquistas democráticas do pós-guerra nas democracias liberais ocidentais, procurando, em paralelo, revelar as (des)continuidades tanto no seu processo de legitimação quanto na natureza dos direitos e liberdades civis fragilizados. Para o efeito, analisa, em primeiro lugar, o modo como certas noções-chave foram redefinidas desde 2001, para, num segundo momento, demonstrar como este reenquadramento radical da democracia liberal foi instituído enquanto parte de uma chantagem política em constante evolução contra cidadãos confrontados com o dilema “liberdade ou sobrevivência”.

Redefinindo a ameaça depois dos ataques de 2001

Ataques inéditos nos EUA (Estados Unidos da América) e, mais tarde, em vários centros metropolitanos europeus, desencadearam uma série de estratégias de comunicação da ameaça. Este trabalho de definição da ameaça tornou-se hegemónico nos meios de comunicação social europeus, no que concerne ao enquadramento da natureza do perigo, do perfil dos atacantes e dos valores ameaçados. Os discursos públicos elaborados por políticos, forças de segurança, serviços de informação, líderes de opinião e jornalistas apontavam para a validação dos fundamentos do passado político das democracias liberais ocidentais, sejam eles reais ou imaginários, de modo a traçar as fronteiras de uma nova ordem das coisas (Johnson, 2002; Steinert, 2003; Tsoukala, 2004, 2006, 2008a; Lazar & Lazar, 2004; Graham et al., 2004; Hodges & Nilep, 2007).

Se, até então, se considerava que a ameaça colocada por várias organizações e grupos armados a muitos governos europeus se encontrava essencialmente ligada às transformações dos diversos campos políticos domésticos e se integrava num repertório mais ou menos previsível de ações, a ameaça do século XXI foi apresentada no debate público como o resultado de modos de ação inéditos, com os quais “o Ocidente” não estava familiarizado; modos de acção que a tornavam incontrolável, por ser imprevisível, ilimitada, persistente, global e local (Tsoukala, 2008a). A representação desta ameaça particularmente temível nos média foi complementada pela imagem, tida como evidente, de uma osmose entre luta armada e crime, na medida em que se acreditava que os atacantes estariam também envolvidos em redes de crime organizado.

As especificidades desta ameaça foram ainda vincadas pela adoção de estratégias de comunicação muito diversas para definir a identidade dos atacantes. De modo esquemático o padrão anteriormente prevalecente na construção social do outro-ameaçador assentava num processo de rutura que tendia a marginalizar da sociedade o perpetrador dos atos alegadamente ameaçadores (Girard, 1972). Ao estigmatizar o outro, este padrão legitimava a implementação incondicional de uma série de medidas coercivas, algumas delas extremas, permitindo ao mesmo tempo uma ampla e consensual confirmação de valores coletivos a serem protegidos (Cohen, 1972; Hall et al., 1978; Goode & Ben-Yehuda, 1994; Critcher, 2003). A exclusão política e social do outro, frequentemente alcançada ao apresentar a sua imagem enquanto agente irracional e animalesco (Tsoukala, 2008b), assentava numa lógica binária que servia os quesitos do discurso público hegemónico devido à sua capacidade de simplificar assuntos complexos. A identificação das causas multifacetadas que poderiam ajudar a compreender os atos violentos cometidos pelo outro era, assim, silenciada, tal como quaisquer questões relativas à eventual responsabilidade coletiva da sociedade dominante eram, na prática, suprimidas ou impedidas de serem formuladas. Atendendo a que a conceção dessas estratégias de comunicação emparelha sempre nas circunstâncias evolutivas do campo político no qual essas estratégias se integram (Tsoukala, 2011), não surpreende que a gestão discursiva da ameaça criada pelos ataques do século XXI se tenha conformado aos interesses geopolíticos contemporâneos. Formas extremas de exclusão social e política anteriores, assentes na irracionalidade e na monstruosidade do outro, foram então descartadas, de modo a evitar ou, pelo menos, reduzir a hostilidade da comunidade islâmica mundial, mas também para defender modelos multiculturais domésticos. O processo de rutura deixou de ser estruturado em termos de exclusão horizontal, passando a sê-lo em termos de classificação vertical. Os atacantes foram sempre encarados segundo uma lógica binária, mas deixaram agora de ser vistos como algo radicalmente diferente do resto da humanidade. Presumia-se apenas que eram moral e culturalmente inferiores. A evidência da sua inferioridade moral repousava numa mundivisão maniqueísta em que o bem está do lado dos países ocidentais sob ameaça e o mal do lado dos agressores. A imagem da sua inferioridade cultural alargou o supracitado raciocínio maniqueísta, na medida em que reforçou a criação de um espaço exterior, separado das sociedades contemporâneas, em cujo seio a violência se encontra, aparentemente, controlada, de modo a desqualificar os atacantes e os seus líderes. Este espaço exterior foi constantemente rotulado como “bárbaro” em contraste com o espaço “civilizado” das sociedades ocidentais (Tsoukala, 2008a).

Esses atacantes moral e culturalmente inferiores foram apresentados como inimigos da liberdade e da democracia, dado que procuravam abertamente destruir o modo de vida democrático das sociedades ocidentais. A potência desta imagem resultou do seu alcance global implícito. Apesar de os ataques terem como alvo um determinado modo de vida, ligado a uma ideologia político-económica particular, predominante nas democracias liberais capitalistas ocidentais (Lazar & Lazar, 2004, p. 228), a identificação deste modo de vida com liberdade sugeria que os atacantes contestavam um valor apolítico universal e não uma definição ideologicamente construída do mesmo. Este desvio semântico, que permitiu traçar uma clara linha de separação entre os países ocidentais amantes da liberdade e os atacantes que supostamente odeiam a liberdade, apoiou-se num silêncio duplo. Por um lado, a liberdade nunca foi entendida no sentido kantiano convencional, isto é, enquanto liberdade de agir segundo critérios racionais. Os ataques foram apresentados como atos violentos a flutuar num vácuo geopolítico/económico, privando-os de qualquer fundamentação política racional. Por outro lado, dado que se pressupunha que a liberdade era um exclusivo dos países ameaçados, os atacantes nunca foram vistos como lutadores pela liberdade de outras pessoas. Na ausência de qualquer enquadramento geopolítico/económico, era impossível relacionar esses ataques com a defesa de interesses ou necessidades de outras pessoas. Sendo apresentados de forma combinada, o silenciamento desses temas relacionados com a liberdade reforçou a imagem de atacantes retrógrados, antidemocráticos e antiliberais, permitindo, assim, a sua categorização como radicalmente exteriores ao valor amplamente partilhado da liberdade e aos seus corolários democráticos.

A legitimação de regras de emergência contraterrorista

Se nos focarmos nas políticas de contraterrorismo introduzidas nos países da UE (União Europeia) na era pós-11 de setembro, verifica-se que convergem em dois pontos. Por um lado, tendem a consolidar a cooperação internacional entre forças de segurança, tribunais e serviços de informação. Por outro lado, dependem fortemente de leis e regras de emergência que restringem direitos e liberdades civis em nome da eficácia do contraterrorismo. Objeto de uma espécie de encapsulamento, a legislação aplicável proporciona a possibilidade de criação de novos delitos; a extensão dos poderes das agências de segurança; a instituição de procedimentos derrogatórios da formulação de acusações e julgamento de uma série de delitos; penas mais duras e formas mais severas de detenção. Com frequência, o reforço do arsenal jurídico é acompanhado pela declaração de um estado de emergência e pela subsequente introdução de medidas de emergência apresentadas inicialmente como temporárias, mas que, perante determinadas circunstâncias, se transformam em elementos permanentes de diversos sistemas jurídicos nacionais (Vauchez, 2019), criando, desse modo, um estado de emergência permanente de facto que estabelece a insegurança da lei em nome da segurança do Estado, revelando as contradições e lacunas das democracias liberais ocidentais.

Longe de ser um fenómeno recente, a restrição de liberdades como resposta à luta armada constituiu um recurso constante das políticas de contraterrorismo do pós-guerra em toda a Europa, dado que a réplica-padrão à violência política dos governos confrontados com organizações e grupos armados internos contemplou a adoção de leis derrogatórias e, pontualmente, a declaração do estado de emergência para sustentar a suspensão de certos direitos e liberdades civis (Groenewold, 1992; Della Porta, 1993; Donohue, 2001; Cettina, 2001). A introdução de regras de emergência caminhou, a par e passo, com a sua legitimação através de estratégias de comunicação específicas, de forma a garantir que os governos, que acreditavam que os fins justificam os meios e que, em consequência, não seriam condenados pelas suas posições autoritárias, não perdessem a vantagem moral sobre as organizações e grupos armados. Contudo, os estudos discursivos de segurança (Waever, 1995; Buzan et al., 1998) indicam que, quando bem-sucedidos, tais discursos políticos foram incorporados na implementação de novas formas de governação, como parte intrínseca de um processo mais amplo de transformação da segurança num tema político central (Huysmans, 2004). Ao procurar fundar essas formas de governação, a legitimação das políticas de contraterrorismo apoiou-se em larga medida no argumento de que os direitos e as liberdades civis impediam a implementação de políticas de contraterrorismo eficazes, tendo, portanto, de ser restringidos de modo a proteger a segurança dos indivíduos.

Não obstante esta tese ter sido objeto de constantes e fortes críticas no campo académico internacional bem antes do “11 de setembro” (Della Porta, 1993; Chalk, 1995; Donohue, 2001), os pontos centrais da argumentação do século XXI não diferem de maneira significativa dos que informavam os registos discursivos anteriores. As regras de emergência atuais foram legitimadas através de discursos públicos que procuraram reclassificar e redefinir a liberdade enquanto valor político de modo a reconfigurar a relação entre o poder executivo e os cidadãos nas democracias liberais ocidentais.

De 2001 em diante, a introdução de leis restritivas da liberdade alicerçou-se no argumento de que a democracia, devido à sua natureza intrinsecamente aberta, é vulnerável a sérias ameaças de segurança, especialmente quando essas são causadas por organizações e grupos armados. Considerava-se, por conseguinte, que a proteção da liberdade dos cidadãos se encontrava em conflito com a proteção da sua segurança na medida em que aquela obstruía a implementação de políticas de contraterrorismo eficazes.

Com a liberdade e a segurança percebidos como dois valores equivalentes, embora conflituantes, tornou-se óbvio que os legisladores seguiriam o padrão jurídico que determina que sempre que a lei protege dois ou mais valores opostos, um deles deve ser sacrificado ou redefinido para que se subordine ao outro. Discursos públicos, tanto ao nível nacional como ao nível da UE, foram então estruturados em redor da ideia da necessidade de um equilíbrio (Tsoukala, 2004), de um reajustamento entre dois valores em conflito, liberdade e segurança. Ao apresentar este reajustamento como uma necessidade absolutamente racional, os defensores desta tese turvaram o facto de que a sua aceitação implicaria uma distorção fundamental da noção de democracia, a qual é indissociável dos direitos e liberdades civis (Waldron, 2003). Ao contrário do que considera este argumento central do discurso público dominante, a democracia é a configuração dentro da qual a segurança pode ser construída e não um conjunto de valores teoricamente equivalente à segurança que pode ser sacrificado se esse sacrifício for considerado necessário pelo poder executivo. Ao desconsiderar o facto de que os direitos e as liberdades civis são uma parte substancial desta configuração, o poder executivo procurou, ao invés, concebê-los como elementos por ela tutelados, como valores, entre outros, a proteger durante o ato corriqueiro de governar. Este reposicionamento implicou a sua transmutação, pois quebrou a sua substância concetual fixa para os transformar em recipientes de conceitos fluidos e flexíveis. Ao serem, então, transformados num mero instrumento político, os direitos e liberdades civis tornaram-se ajustáveis às exigências da governação quotidiana. Daí em diante, os mesmos passaram a poder ser seletivamente implementados, variadamente interpretados ou até temporariamente suspensos sem que isso implicasse qualquer crise política grave. Desse modo, lei e segurança deixaram de ser um meio de garantir o exercício das liberdades civis, sendo então transformadas em fins por si só e, consequentemente, em restrições internas dessas liberdades. Quanto à justiça, ela deixou de ser o elemento nuclear do Estado de Direito para se tornar um valor social relativo, politicamente orientado, ao serviço do poder executivo (Tsoukala, 2006).

O significado então conferido à nova ordem das coisas atendia a um duplo objetivo político. Em primeiro lugar, sugeria que as medidas em questão não deveriam ser atribuídas a intenções antidemocráticas. Argumentava-se, pelo contrário, que elas fortaleciam a democracia; que foram uma resposta democrática necessária a novos problemas de segurança, cujo surgimento exigiu a redefinição das prioridades políticas através do estabelecimento de um novo equilíbrio entre valores e interesses coletivos em conflito. Em segundo lugar, a ideia de procurar um equilíbrio entre dois valores sociais alegadamente opostos era muito reconfortante. Embora se observasse uma referência implícita à noção de justiça, ela era encarada como o resultado de uma consideração minuciosa e racional dos interesses em jogo, que garantiam, por definição, uma gestão de crise perfeitamente equilibrada sem necessidade de recurso a medidas antidemocráticas, desproporcionais e alarmantes. As medidas restritivas de liberdade foram, pois, apresentadas como aspetos positivos de sociedades democráticas progressistas e não como características negativas de um processo democrático regressivo. Em consonância, os discursos públicos focaram-se exclusivamente na resolução do conflito de valores, deixando de lado a questão do conflito em si.

Para alcançar este objetivo, a apresentação inversa de medidas restritivas da liberdade assentou numa definição igualmente inversa de liberdade, que deixou de ser definida em termos positivos, como a liberdade de pensar e agir de forma cumpridora da lei, para ser entendida em termos negativos, como libertação de uma ameaça. Atos cometidos por organizações e grupos armados não foram entendidos como uma ameaça à liberdade das pessoas de pensar e agir em termos democráticos, mas como uma ameaça da qual as pessoas tinham de se libertar para que pudessem permanecer vivas — no estrito sentido biológico do termo, e não como cidadãos que vivem em democracia. O discurso público sobre a liberdade tornou-se um discurso sobre medo e insegurança diante de uma suposta destruição iminente e da proteção de uma liberdade definida de forma a justificar todas as futuras medidas de contraterrorismo, independentemente do teor antiliberal das mesmas. Por outras palavras, longe de ser identificada com direitos e liberdades civis, a liberdade legitimou a sua própria restrição. As pessoas deveriam aceitar a restrição da sua liberdade ontológica em nome da proteção da sua liberdade em relação ao medo. Esta transformação do medo num tema político central permitiu, por sua vez, a legitimação de uma nova forma de governação baseada na gestão do medo e da insegurança, assente tanto em sofisticadas tecnologias de vigilância como na introdução permanente de elementos iliberais no sistema jurídico de muitas democracias liberais ocidentais (Bigo, 2002; Huysmans, 2004, 2006; Bigo & Tsoukala, 2008).

Do contraterrorismo à crise pandémica

Representar a liberdade como um valor oposto à sobrevivência despolitiza a realidade, na medida em que ignora tanto os interesses geopolíticos subjacentes aos ataques islâmicos (Collectif, 2020) como as medidas racistas que de forma persistente desqualificam e marginalizam comunidades muçulmanas em muitos países europeus, aumentando assim a sua vulnerabilidade à radicalização islâmica (Bonelli & Bigo, 2008; Guibet Lafaye, 2017). A pesquisa académica demonstrou ainda que esta representação da liberdade é arbitrária, na medida em que não é possível identificar nenhuma relação causal credível entre a eficácia da proteção securitária e a restrição dos direitos e liberdades civis. Não obstante, o discurso do contraterrorismo que opõe liberdade a sobrevivência é hoje dominante, como uma verdade axiomática, colocando assim as pessoas numa posição de obediência voluntária ou resistência essencialmente infrutífera.

Quando a ameaça COVID-19 surgiu a uma escala global, esta perceção há muito consolidada da relação entre cidadão e poder executivo serviu como um ponto de referência sólido para integrar novas políticas restritivas da liberdade que, uma vez mais, assentavam na ideia de que a nossa vida dependia do sacrifício da nossa liberdade. A introdução de um conjunto de regras de emergência muito abrangentes foi tão intensa que a Freedom House dos EUA (Repucci & Slipowitz, 2020, p. 1) considerou que “desde o início do surto de coronavírus, as condições da democracia e dos direitos humanos pioraram em 80 países”, enquanto a Comissão das Liberdades Cívicas do Parlamento Europeu (Parlamento Europeu, 2020, p. 1) alertou que “as medidas de emergência representam um ‘risco de abuso de poder’ e (…) que qualquer medida que afete a democracia, o Estado de Direito e os direitos fundamentais deve ser sempre necessária, proporcional e limitada no tempo”.

A gestão destas duas crises apresenta muitas semelhanças. Em ambos os casos, a ameaça é vista como excecionalmente preocupante por ser desconhecida e difícil de controlar, tornando-a imprevisível, ilimitada, persistente, instável, global e local. Em ambos os casos, não existe relação causal credível, ou até racional, entre as medidas restritivas da liberdade e a defesa eficaz da nossa segurança ou proteção. Por exemplo, não existe qualquer prova de que a introdução de disposições penais derrogatórias tenha tido impacto na segurança dos cidadãos. Tão-pouco existe qualquer justificação plausível para o facto de, em muitos países europeus, as medidas de saúde pública terem contemplado o encerramento de livrarias e restaurantes, apesar de estes respeitarem os protocolos sanitários, enquanto um número elevado de trabalhadores continuava rotineiramente a utilizar sistemas de transporte público sobrelotados. Por fim, em ambos os casos, a gestão da crise dependeu em grande escala de políticas repressivas, usadas como um instrumento de gestão do medo mais do que de manutenção da ordem pública, permitindo desse modo o fortalecimento crescente do poder executivo.

Não obstante, a gestão destas duas crises diverge em muitos aspetos. Antes de mais, enquanto em ambos os casos o desdobramento da supressão de direitos atende a várias necessidades e interesses políticos em jogo, a relutância em adotar estratégias alternativas encontra-se associada a diferentes temporalidades no que diz respeito à manifestação do fenómeno ameaçador. No contraterrorismo, o lugar hegemónico ocupado pela supressão revela uma relutância já antiga para abordar as causas da violência política (inter)nacional. Na gestão da pandemia da COVID-19, a importância da função conferida à supressão de direitos deriva da dificuldade em lidar com as principais causas de um fenómeno já existente. Embora seja incontestável que o controlo eficaz da pandemia exige o reforço dos sistemas públicos de saúde e de educação, o aperfeiçoamento dos transportes públicos e a desaceleração dos ritmos de produção dos principais setores da economia, como a indústria pesada e a pequena indústria, os planos governamentais de índole neoliberal procuram evitar quaisquer reformas relevantes.

Em segundo lugar, enquanto em ambos os casos a gestão política da respetiva ameaça visa, entre outras coisas, enfraquecer a posição dos indivíduos-sujeitos detentores de direitos, as restrições subsequentes à sua existência política são implementadas de forma gradual. Inicialmente, perante a ameaça islâmica, pediu-se aos indivíduos que aceitassem passivamente a limitação dos seus direitos, sem que isso fosse acompanhado de qualquer transferência de ónus de responsabilidade das autoridades públicas para os cidadãos. Hoje, diante da ameaça pandémica, pede-se às pessoas que contribuam ativamente para uma maior restrição dos seus direitos, assumindo o ónus da responsabilidade pela sua neutralização, considerando-se a si mesmas altamente responsáveis pelo controlo (in)eficaz da pandemia, tendo, na eventualidade de se conduzirem de modo negligente e indisciplinado, de arcar com a culpa de pôr em perigo as vidas de outras pessoas.

Em terceiro lugar, os direitos e liberdades civis suprimidos diferem substancialmente de um caso para o outro. A implementação de leis e medidas de contraterrorismo afetou de forma significativa um conjunto de direitos legais (regras e garantias em procedimentos penais, privacidade restringida devido à expansão da vigilância, etc.). Os indivíduos foram privados de muitos dos filtros protetores desenhados para definir a sua associação constitucional com o aparelho repressivo. A implementação de medidas relacionadas com a pandemia afeta direitos que dizem respeito às pessoas enquanto sujeitos políticos (liberdade de reunião restringida/banida) ou à sua condição ontológica (liberdade de movimento restringida/banida, vida social restringida, etc.). Os indivíduos vão sendo despojados das suas necessidades imateriais, sejam elas políticas ou psicológicas, para serem identificados enquanto meras criaturas vivas, definidas apenas por necessidades materiais que existem para servir as necessidades materiais do seu sistema político e económico.

Conclusão

Este quadro geral do impacto de dois grandes eventos na democracia procurou captar a lógica do que é comum às políticas de contraterrorismo e às políticas relacionadas com a pandemia, de modo a desvendar os conceitos nucleares e mecanismos correlacionados que determinaram um processo em curso, organizado para a produção de um consenso em torno da legitimação de medidas restritivas de liberdade, que tornou possível uma regressão das conquistas democráticas do pós-guerra em muitas democracias liberais ocidentais. Ao serem postas diante do dilema arbitrário (embora apresentado como racional e necessário) “liberdade ou sobrevivência”, as pessoas foram incentivadas a abdicar de inúmeras formas e expressões de liberdade. A gestão das respetivas ameaças acabou então por alargar as fissuras da democracia liberal. A transformação gradual, sentida a nível mundial, de fissuras em fendas, com o subsequente deslizamento da democracia liberal do pós-guerra para modelos de governação autoritários, é, por definição, independente de quaisquer jogos de poder no campo político (inter)nacional, permitindo-nos assim supor que isso não resulta tanto da luta pelo poder encetada pelas elites políticas de orientação antiliberal quanto de uma vulnerabilidade política intrínseca à democracia liberal. Se, como argumentei noutro trabalho (2009), os direitos e liberdades civis foram valorizados pelas elites políticas durante as primeiras décadas do pós-guerra como uma ferramenta central de propaganda na luta ideológica da Guerra Fria, instrumentalidade rapidamente extinta após 1989, seria expectável que, de então em diante, os governos procurassem modificar, para seu próprio benefício, o anterior equilíbrio de poder em democracia.

A desconstrução dos esquemas discursivos que, ao longo do tempo, geraram o atual estado das coisas iliberal requer uma tomada de consciência e, como tal, é uma etapa necessária para contrariar a transformação em curso do campo político. No entanto, a compressão do espaço da proteção dos direitos e liberdades civis não pode ser contrariada, e muito menos revertida, se não estivermos à altura do desafio de identificar essas fissuras iniciais. A questão não passa tanto por analisar o porquê de as elites políticas terem recorrido a fissuras pré-existentes para expandir o seu poder à custa de direitos e liberdades civis quanto por perceber em que consistiam essas fissuras e porque permaneceram incólumes durante o processo de democratização pós-guerra das democracias liberais ocidentais. Esta questão diz respeito a todos nós, tanto enquanto académicos como enquanto indivíduos políticos.

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Data de submissão: 31/07/2021 | Data de aceitação: 02/08/2021

Notas

[1] O texto foi traduzido segundo o novo acordo ortográfico.

Autores: Anastassia Tsoukala