Nº 5 - novembro 2012
Flávio Júnior. Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Grupo de Artes, flavaooguerreiro@hotmail.com
Luís Júnior. Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Doutor em História – PUC-SP, victorcapoeira@hotmail.com
Resumo: Este artigo é um recorte mais amplo de uma pesquisa sobre as festas populares baianas. Para este texto, contextualizamos historicamente a trajetória do Afoxé Filhos de Gandy, localizado na cidade de Salvador-Ba. Para tanto, o nosso objetivo central consiste em compreender as múltiplas identidades construídas sobre os seus participantes, bem como identificar as estéticas corporais produzidas durante o desfile. Assim, enveredamos na pesquisa etnográfica, acompanhando os ensaios do bloco e no Carnaval observando todo o trajeto do afoxé. Se por um lado, os antigos associados preservam a tradição do rito (o padé, ritual de saída), por outro, com o crescimento desordenado da instituição, o vestisse de Gandy no Carnaval representa inúmeras outras identidades, diferentes de sua gênese. No que tange a estética corporal, identificamos uma forma de dançar, no qual o corpo curvado vai além de um simples movimento para simbolizar a resistência da Cultura Afro-Baiana ligada às danças de terreiros.
Palavras-chave: Afoxé, Corpo, Carnaval, São Salvador da Bahiam, Ijexá.
Abstract: This article is an excerpt of a broader research on the popular festivals in Bahia. For this text, historically contextualize the trajectory of Children Afoxé Gandy, located in the city of Salvador, Bahia. To this end, our main objective is to understand the multiple identities built on its participants, and to identify the body aesthetic produced during the parade. So we go in ethnographic research, following the trials of the block and the Carnival of watching all the way afoxé. On the one hand, preserve the ancient tradition associated with the rite (the Padé ritual output) on the other, with the uncontrolled growth of the institution, dressed in Carnival Gandy represents numerous other identities, other than its genesis. Regarding body image, we identified a form of dance, in which the curved body goes beyond a simple movement to symbolize the strength of the Afro-Bahia dances linked to religious communities.
Keywords: Afoxé, Body, Carnival, S. Salvador da Bahia, Ijexá.
Introdução
É já conhecida a situação particularmente vulnerável dos idosos portugueses (alguns idosos, em rigor) no que diz respeito ao risco de pobreza e exclusão social. Uma larga parte do discurso político, mas também do discurso científico, de facto, tem sido dedicada à discussão sobre os melhores instrumentos de política social para contrariar essa tendência ou, pelo menos, para aliviar os seus efeitos. Nesse domínio, as opções são diversas mas inevitavelmente condicionadas no seu alcance pelas escolhas que forem assumidas a montante no que toca à forma como se mede pobreza e como se sinaliza exclusão social. Neste artigo reúnem-se algumas reflexões sobre o grau de (des)adequação de alguns instrumentos de política social desenhados para responder a situações de vulnerabilidade na população idosa a partir da sua relação com a forma como pobreza e exclusão social são entendidas e medidas nesse mesmo segmento populacional.
Keywords: Afoxé, Body, Carnival, S. Salvador da Bahia, Ijexá.
1. Introdução
“Filhos de Gandhi, badauê
Ylê ayiê, malê debalê, otum obá
Tem um mistério
Que bate no coração
Força de uma canção
Que tem o dom de encantar…”
O verso acima é parte de uma das músicas que “embalam” os corpos que se vestem de branco e se “curvam” para dançar o Ijexá[1] no Carnaval de Salvador. Trata-se do Afoxé Filhos de Gandhy, uma confraria que nasce logo após a Segunda Guerra Mundial e ficou conhecida pela sua beleza, ritmo e o forte apelo pela paz.
Diante desse “movimento” de corpos se divertindo, esse trabalho se propõe a pesquisar as relações originárias e identitárias do bloco, a partir do “impacto” da indústria do consumo e do entretenimento no Carnaval soteropolitano. Para tal, nos propomos a compreender a trajetória do grupo, apresentando os aspetos sociais da época de sua criação, bem como identificar e refletir acerca das múltiplas identidades geradas nas estéticas corporais dos foliões que se “aceitam” de Gandhy. Como todo estudo tem suas fronteiras, aqui nos limitamos somente ao Afoxé Filhos de Gandhy.
Assim, o estudo foi realizado investigando-se o campo empírico, os becos, ruas, vielas de Salvador e a sede social da agremiação Filhos de Gandhy, no período carnavalesco dos anos de 2009, 2010 e 2011. Para isso contou-se com uma apreciação de cunho descritivo–exploratória, seguindo as pistas de Chizzotti (2001), que diz que o pesquisador não é “um relator passivo” de sujeitos pesquisados, e sim profissionais que “[…]elaboram conhecimentos e produzem práticas adequadas para intervir nos problemas que identificam…” (p.85). Assim nossa pesquisa procurou ter um olhar crítico, antropológico e etnográfico sobre a realidade pesquisada a fim de poder construir, no ambiente de investigação, uma aproximação tácita e imparcial com as “potências” vivas da festa.
Por isso o fato de se desenvolver uma plataforma alicerçada na base da abordagem etnográfica, ramo da Antropologia Social, que estuda o sujeito ou uma população de forma direta, inserindo-se o pesquisador em sua realidade. Dessa forma procuramos fazer um trabalho antropológico “corpo a corpo”, ao mesmo tempo anônimo e complexo. Uma dosagem entre o leve e o severo, para poder decifrar as singularidades dos sujeitos e analisar o alcance e a estrutura da experiência humana (Geertz, 2001).
Para tanto, no período anterior à festa, buscamos os embasamentos teóricos para o estudo e traçamos um caminho a ser seguido. Chegados os dias da folia, fomos às ruas na posse de máquina fotográfica e gravador desfilando no bloco Filhos de Gandhy, tanto dentro como fora do mesmo, a fim de ter condições de avançar nas investigações do tema escolhido para a realização deste.
O engajamento etnográfico no bloco, como um folião comum, permitiu-nos melhor compreensão para poder amadurecer as questões e argumentos que foram debatidos ao longo deste ensaio. O fato de realizar uma pesquisa imerso em seu contexto facilitou por demais a compreensão da mesma.
Em face do foco da análise abordada aqui, busca-se estabelecer traços com a cultura, quando tivemos a “[…] possibilidade de analisar, por exemplo, a dimensão da dominação no cotidiano e perceber como a cultura reflete e medeia as contradições de uma sociedade…” Oliven (2002, p.10).
Outro fator facilitador foi o fato de termos crescido frequentando o Carnaval de Salvador. Inspirados em Damatta (1997) percorremos no “modo de navegação social do brasileiro”, tão bem descrito pelo antropólogo. Essa estratégia muito nos ajudou, pois saber ler determinados símbolos e interpretar alguns comportamentos são formas de conviver em um campo tão peculiar. Isso foi notório, em nosso caso, nos desfiles pelas avenidas dos circuitos oficiais da festa, nos becos e ruelas, no empurra-empurra em baixo do sol quente, no bate papo informal e em entrevistas[2] com os outros atores sociais do festejo e, até mesmo, na hora da dança e da paquera.
Entendemos que este estudo contribui de forma expressiva para a área da Educação Física, pois a mesma traça um vasto debate em torno do corpo e do lazer. No entanto, no tocante às festas (espaço de fruição) pouco se discute.
Neste sentido, esta produção pode servir de fonte inspiradora para as novas pesquisas, cuja temática versa sobre a relação da tríade lazer, corpo e festa. Aqui deixamos vestígios, para tais investigações, seja nos corpos vestidos de branco que “brincam” no Carnaval, em suas formas de expressões, representações e multiplicidades, seja no espaço de fruição que serve para afirmar determinadas identidades.
Deste modo, nossas indagações podem servir de aporte para entender como os corpos participam do Carnaval baiano, uma das maiores expressões da cultura nacional, ao mesmo tempo que pode colaborar para que a Educação Física reflita e produza mais estudos abordando a temática: “Festas Populares”.
2. Caminhando na história ao ritmo do toque do agogô e do atabaque.
O agogô[3] e o ataque[4] como instrumentos musicais do Candomblé cadenciam e inebriam os corpos a partir do seu som que ritma o Ijexá. Os seus toques possuem singularidades que levam as pessoas que dançam ao delírio e êxtase talvez pela sua forte ligação com os rituais religiosos.
A história contada aqui faz parte dos toques do atabaque e do agogô, pois, acima de tudo, não estamos tocando somente na história dos Filhos de Gandhy e, sim, na saga de todo um povo.
Em 1949, em plena crise pós-guerra[5], um grupo de estivadores se reuniu visando uma forma alternativa de participar da festa carnavalesca da cidade de Salvador, capital da Bahia. Compraram alguns lençóis brancos para vestir seus corpos e foram às ruas, com alguns instrumentos, para dançar o Ijexá.
Risério (1953) comenta a “homenagem negromestiça” baiana feita a Gandhi: “[…] num afoxé criado por pessoas ligadas ao Candomblé e ao sindicato dos trabalhadores das docas. Havia assim um enraizamento em solo negromestiço e uma atitude contrária ao colonialismo europeu.” (p.564)
Novamente, Risério (1953) lembra que o nome do bloco foi uma homenagem ao Mahatma poucos meses depois do seu assassino, porém escreveram Gandhi com y para evitar problemas autorais. Acrescenta ainda o historiador que, no dia do primeiro desfile do bloco: “[…] o porto de Salvador abrigava navios ingleses” (p.564). Não se pode esquecer que Mahatma foi símbolo de resistência à colonização inglesa na Índia e, por diversas vezes, fez acirradas críticas à presença dominadora de europeus no continente africano.
O aspeto que motiva a homenagem ao indiano tem uma relação direta com o símbolo de liberdade que este representou na sua trajetória de vida. Chamar-se Filho de Gandhi(y) significava carregar o legado daquele que tanto lutou em prol dos menos favorecidos. Portanto, a criação do grupo seria uma forma estética[6] encontrada pelas pessoas para reivindicar a visibilidade e participação de seus corpos nos momentos de festa.
Corpos supostamente “colonizados” mas que careciam de visibilidade e conquista do espaço público, pois tal ambiente no passado foi negado aos “batuques” e “folguedos negros”, a ponto destes grupos serem proibidos de se apresentar em vias urbanas. Na ocasião do primeiro desfile do bloco, inclusive a Polícia local acompanhou o desfile, de longe, para conter qualquer tipo de manifestação, diga-se mais “calorosa”, por parte dos componentes do bloco.
Em sua gênese, o grupo não tinha tanta pompa como atualmente. A distribuição do perfume de alfazema e colares surgiu depois; era tudo muito simples. A respeito dos colares, Valdemar José de Souza, conhecido como Tio Souza, membro da Diretoria Executiva, conselheiro, relações públicas do bloco e sósia de Gandhi, conta-nos que foi uma coisa “trazida de fora” para o bloco. No início, o colar era dado numa forma de se alcançar uma graça, uma espécie de promessa, narra Souza que: “[…] antigamente, quando o Gandhy estava desfilando pelas vias da cidade, seja no Carnaval ou em qualquer outro momento, alguém se aproximava de um associado daquele, seja diretor ou não, e, emocionada, a pessoa, pedia, implorava que lhe desse um colar, e aí o associado ou o diretor tirava o colar do pescoço”.
Souza nos diz que o colar era dado na palma da mão do pedinte que, em seguida, guardava o “apetrecho” no bolso, porém, com o passar do tempo, as pessoas passaram a pedir para colocar o colar no pescoço, como nos conta Souza: “[…] mas a pessoa tava já com uma espécie de promessa, de alguma coisa que estava já em sua mente sendo trabalhada e ela dizia: mas o Senhor então agora coloca em mim?” A troca pelo beijo, segundo Souza, aconteceu de: “[…] uns anos para cá, surgiram esses associados de blocos de trio, que eles criaram essa simbologia de pegar o colar, colocar na pessoa e solicitar um beijo ou namorar…”. Denuncia Souza a “hibridização” das culturas, feita aqui nesse exemplo à base de uma troca. Para tentar esclarecer tal processo, Hall apud Bhabha (2003) explica que hibridismo significa um:
Momento ambíguo e ansioso de… transição, que acompanha nervosamente qualquer modo de transformação social, sem a promessa de um fechamento celebrativo ou transcendência das condições complexas e até conflituosas que acompanham o processo… [ele] insiste em exibir… as dissonâncias a serem atravessadas apesar das relações de proximidade, as disjunções de poder ou posição a serem contestadas, os valores éticos e estéticos a serem “traduzidos”, mas que não transcenderão incólumes o processo de transferência. (p.75).
Assim, a festa cada ano vai ganhando novos elementos que transcendem questões de ordem étnica, econômica e social. Tais “ressignificações” se dão nas diversas facetas da cultura, que não é algo inerte, e, sim dinâmico, não só em Salvador mas também em todo o mundo.
3. “Olha o Gandhy aê ô, olha o Gandhy aê ô…”
Atualmente, a indumentária do Gandhy possui um longo vestido branco, uma faixa azul amarrada na cintura, um turbante também branco com uma pedra azul, um chinelo característico, meia branca, uma bolsa, além dos acessórios citados anteriormente (os colares e frasco de alfazemas). As cores azul e branco representam Oxaguiã, Oxalá jovem, e Oxalufã, Oxalá velho (o sol nascente e o sol poente; o sol como fonte de vida). Essas são as formas estéticas que o grupo apresenta no Carnaval, portanto são traços identitários do Gandhy oriundos de uma construção histórica.
Para Hal (2003), essa identidade se constrói na diferença cultural e, sobretudo, a partir dessas construções históricas e das demandas sociais vigentes. Para isso, o autor evidencia:
Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre híbrida. Mas é justamente por resultar de formações históricas específicas, de histórias e repertórios culturais de enunciação muito específicos, que ela pode constituir um “posicionamento”, ao qual nós podemos chamar provisoriamente de identidade. Isso não é qualquer coisa. Portanto, cada uma dessas histórias de identidade está escrita nas posições que assumimos e com as quais nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de posições de identidade com todas as suas especificidades. (p.432 e 433)
Diante das diferenças entre culturas, percebe-se um “jogo” entre o moderno e a tradição que é revigorado nas falas dos sujeitos que se posicionam a partir da antítese entre o novo e o antigo. É justamente para não deixar que alguns traços dessa tradição sejam engolidos pela modernidade que se conservam algumas práticas.
Um forte exemplo disso está no ritual que o bloco realiza antes de sua saída, o Ipadé[7]. Esse é uma amostra de traços antigos da tradição do desfile pois, entre a Praça da Sé e o Pelourinho (centro da cidade), desde a criação grupo, é realizada tal cerimônia quando se pede proteção para a passagem pelas ruas.
Portanto, durante todo o desfile é pedida a paz e não a violência, e ainda é feita a exposição de uma cabra (simbolizando a vida) e um camelo (a resistência) sob a invocação/saudação ajaiô[8]!
Percebemos, em campo, que a saída do Gandhy, em grande parte, é feita pelas pessoas ligadas ao tradicional, ou seja, aos integrantes que conservam uma ‘tradição’ do rito. As pessoas da terra são a maioria no ritual de saída, enquanto, por outro lado, as câmeras dos turistas registam este momento singelo e importante. O bloco vai “enchendo” de gente ao longo do percurso, pois as pessoas que não têm uma afinidade com a causa religiosa, os que saem para fazer parte do espetáculo, não se importam com a saída do afoxé; esses ficam nos camarotes ou em outros pontos da festa.
Esse aspeto coloca em pauta a relação com as práticas do candomblé e a extensão das mesmas no Carnaval. Em vista disso, têm-se as cordas que, no passado, serviam justamente para delimitar o ritual religioso que saía dos terreiros para as ruas. Contudo, deixando de ser um sinal de respeito, essas cordas delimitam, hoje, o espaço público por onde percorrem os blocos, passando a ter, com o tempo, um papel mercadológico. A respeito dessa manifestação religiosa nas ruas Serra comenta que “[…] a poderosa imaginação ritual dos afro-brasileiros conquistou espaços públicos que lhes eram vedados…” (2009 p.19)
Tendo em vista que o bloco, hoje em dia, leva às ruas mais de 10.000 componentes, as situações emergentes na modernidade extrapolam as necessidades históricas anteriormente determinadas, pois grande parte destes componentes não tem ligação nenhuma com a gênese do afoxé. Por isso, presentemente o Gandhy é motivo de algumas críticas quanto à sua resistência cultural, pois ele, por ser um bloco de matriz afro-baiana, cede alguns espaços, como por exemplo, a venda indiscriminada de fantasias, embora exista uma preocupação na manutenção dos valores históricos. É percetível a presença de novos elementos de outras culturas, como a incorporação de pessoas que “nada têm a ver” com a relação religiosa e ideológica do bloco sobre a qual falamos antes.
A respeito deste comércio de fantasias, o cantor Ricardo Chaves nos contou que, por causa disso, os blocos de Salvador acabaram perdendo um pouco de sua identidade. Segundo Chaves, qualquer pessoa pode sair em um bloco afro, o que acaba descaracterizando a festa e isto:
[…] muda o Carnaval e o descaracteriza. É o que acontece com o Carnaval de Salvador hoje: É uma festa, no meu entender, descaracterizada do que ela foi e do que fez as pessoas virem para cá. A grande curiosidade do Carnaval (de Salvador) era verem esses movimentos todos, fossem ele um Bloco Elitista, um Bloco Afro, mas eles eram blocos, hoje não, são: “Bolos de gente” que passam sem afinidade nem com o artista que tá tocando lá em cima nem com nada, vem simplesmente num balcão, compram um pedaço de pano, vai e perdeu essa brincadeira que tinha, eu gostaria de ver eu nem sei se é possível no mundo de hoje esse lado…
Se, por um lado, o entrevistado defende a questão da “identidade” do povo com a entidade carnavalesca, por outro, denuncia a existência de um par dialético formado entre o que é popular e o elitismo. São as “fricções” emergentes da modernidade a que nos referimos anteriormente e, por conta delas, a festa acaba ganhando novas facetas a cada ano que passa.
Em relação a isso, questionado por nós a respeito da aceitação pelos Filhos de Gandhy dos não afro-descendentes em seu desfile, Souza aponta que a rutura do bloco com o remoto se deu de uma forma global a partir da “democratização” do país, e essa liberdade, segundo ele, é mediada por trocas, como a questão das pessoas virem de fora do Brasil para desfilar num bloco que ofereça “liberdade” e “segurança”, o que acaba gerando divisas culturais entre povos.
A abertura dos Filhos de Gandhy, em termos de associados, por um lado gera um ganho, pois forma um lindo tapete branco na avenida, mas, em contrapartida, mudam-se os significados do seu surgimento. O bloco passa, então, por um processo de “tradução cultural”, e isso não é feito de uma hora para outra; os elementos vão se “transformando” aos poucos nos seus significados e formas. A cultura, como um todo, inevitavelmente é submetida a estas “ressignificações”.
4. Corpos curvados e não curvados que dançam
Antes de tudo, se faz necessário explicar o que queremos dizer com o termo “corpo curvado”. Não se trata da simples curvatura acentuada da coluna vertebral em hipercifose. O corpo do Gandhy se curva ao dançar o Ijexá, e naquele momento, vários sentidos podem estar se manifestando: adoração, êxtase, sensualidade, ou uma forma estética de participar da festa.
Dessa maneira, na forma do dançar, percebe-se “claramente” a turma (ou grupo), dentro e fora do bloco, que tem ligação ou não com o “axé[9]”, no qual os corpos vestidos de branco se diferenciam ao expressar-se corporalmente, pois, por mais que os foliões que não têm ligação com o Candomblé se esforcem para balançar igual aos a que têm, raramente enganam um olhar mais apurado. Não basta se vestir de branco; é preciso mais, é preciso algo “mágico”, místico, que passeie entre religiosidade e história de vida, e isso não se vende em balcão nenhum.
[…] Eu vi aqueles negros, cidadãos, bastante curvados, dançando nas vias da cidade genuinamente o Ijexá, e eu ficava impressionado olhando aquela cena porque eu achava tudo muito diferente, aqueles homens todos de branco, com um traje também exclusivo, que ainda é até hoje, e o que mais me chamava atenção era exatamente a dança e os cânticos que é o Ijexá…
É imensurável imaginar a quantidade de pessoas que são atraídas pela “magia” do embalo do Ijexá, seja qual for a sua origem étnica. No testemunho de Souza, percebe-se que o afoxé atrai as pessoas não só pelo “status” de desfilar num bloco que produz um visual tão bonito nas ruas e que tem muitos admiradores, mas também pelo significado “original” que é essa coisa ligada à religião e à cultura local.
O toque do atabaque e do agogô dão ritmo ao Ijexá, e o “corpo curvado” se manifesta no jeito de dançar do “povo de santo”. São as representações simbólicas e culturais da dança de terreiro como extensão do espaço público. O bloco forma uma estética na qual o corpo em curva faz alusão aos orixás dançando e se manifestando. O que foi retaliado no passado se torna uma expressão de liberdade, de alegorias para a indústria da festa e do entretenimento e, sobretudo, de autoafirmação.
No entanto, nem todos fazem parte dessa “viagem” antológica. Parte das pessoas vestidas de “Gandhy” mostram outras identidades, aquelas invocadas pelo lado romântico da história da entidade, pela beleza do “espetáculo” e da indumentária, e percebemos isso no grande número de associados fora da corda do bloco. Vestir-se de branco é, às vezes, só motivo de “fetiche”; ser fotografado naquele momento é só uma questão de “consumir” um dos atrativos mais antigos da festa.
Assim, percebemos, através de nossas observações, que há o fator religioso e ideológico como forma preponderante na existência e gênese da confraria, porém tem muito “Gandhy” que nem desfila no bloco. Esse só quer a fantasia. Para ele, ela é mais um “produto” oferecido pela “indústria” que se criou em torno da festa. Querem desfilar não com o bloco, mas na avenida em busca de beijar, beijar e beijar.
Dessa maneira, os corpos vestidos de branco podem estar somente se divertindo e “consumindo” a cultura local, ou estar naquele espaço-momento vivendo múltiplas identidades: espiritual, musical, corporal, étnica…
Essa mercantilização das festas populares é denunciada por Ferreira (2006), porém a autora diz que as mesmas podem transcender o papel de “instrumento privilegiado” da compreensão dos fenômenos de comunicação e de “mercadoria” da indústria do turismo. Elas podem ser um local de “construção” da cidadania e de fortalecimento de laços sociais e identitários.
Assim sendo, os elementos ligados à causa religiosa percebem a festa como um espaço de manifestação da cultura e, assim, desfilam, cantam em iorubá, vestem-se com as cores dos Orixás, sabem o significado de tais símbolos. Vestir-se de Gandhy é uma maneira de simbolizar a resistência da cultura negra.
5. Conclusões
O “emaranhado social” é tão grande, que seria necessário um estudo mais profundo para poder explicar a potência que é o bloco Filhos de Gandhy. A grande diversidade de atores sociais que compõem o grupo, bem como a “circularidade entre culturas”, fazem com que o mesmo esteja sempre em mutação. Enquanto se luta pela memória de alguns ritos e costumes, aparecem novos signos e práticas que diferenciam, mas não mudam a festa, refazem-na, numa dinâmica efervescente, na qual se perde/ganha e se diverte. Uns se realizam no consumo (deliram); outros são castigados pelas diferenças sociais (e também deliram).
O “corpo” curvado se apresenta vestido com a indumentária azul e branca dançando e criando diversos sentidos, sejam eles de ordem afetiva, social, espiritual ou estética. Ao levar seus corpos para as ruas a fim de brincar o carnaval, as pessoas estão fazendo mais que um ato de entretenimento; elas estão praticando uma ação de (re)-humanização, na qual, ao mesmo tempo, se (re)-produz cultura e se tramam consigo mesmas. Por isso, as festas populares, como o Carnaval, podem transcender o papel de “instrumento privilegiado” da compreensão dos fenômenos de comunicação e de “mercadoria” da indústria do turismo, elas podem ser um local de “construção” da cidadania e fortalecimento de laços sociais e identitários (Ferreira, 2006).
Assim, as identidades e significados do grupo, assim como a cultura de seus corpos, não se perdem, embora se transformem e, portanto, estejam em contínua (re)-construção, fato inevitável perante a dinâmica da vida. De um lado, está a luta do antigo para que não se esvazie a memória; do outro, surge o moderno trazendo novas conjunturas. O certo é que a estética produzida pelo bloco na rua, sem dúvida, é algo ímpar. Um verdadeiro “espetáculo” carregado de cultura, saberes e beleza.
6. Referências Bibliográficas
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[1*]Artigo apresentado conforme o original.
[1] Ritmo musical de origem Africana.
[2]Em nosso caso usamos as do tipo semiestruturadas.
[3]Conhecido também como gã é um instrumento musical de percussão formado por um ou dois sinos. O mesmo tem origem na música yorubá da África Ocidental.
[4]Atabaque (ou Tabaque) é também um instrumento musical de percussão. Constitui-se de um tambor cilíndrico ou ligeiramente cônico, com uma das bocas coberta de couro.
[5]O Brasil vivia sob um governo populista que fazia de tudo para agradar à grande massa através da chamada democracia liberal, que despertava nas pessoas um nacionalismo exacerbado visando ampliação do poder do Estado.
[6]A estética é uma “cultura de sentimentos”, assim como de “simbolismos”, uma “lógica comunicacional”; que assegura a conjunção de elementos até então separados. (Espinheira, 2010).
[7]Conhecido também como Ipadê, na linguagem do candomblé significa encontro, reunião e trata-se de uma homenagem ao orixá Oxalá.
[8]Em Iorubá se refere a “adja” (que quer dizer cachorro), a maior oferenda que pode ser dada ao orixá Ogum, senhor dos caminhos, ou seja, quando se oferece um cachorro a Ogum se pede paz nas estradas.
[9]Não nos referimos aqui ao gênero musical e, sim, ao termo de origem yorubá, que nos remete à religião, “energia”, “força da natureza”…
Autores: Flávio Júnior e Luís Júnior