N.º 16 - julho 2018

Carlos de Jesus
Doutorando em Ecologia Humana, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa.
Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal.
Email: carlos.jesus@campus.fcsh.unl.pt

Resumo: O presente artigo debruça-se sobre a problemática do desperdício alimentar. Numa altura em que a insegurança alimentar no mundo voltou a crescer, não só por consequência dos conflitos e das mudanças climáticas, mas também pelas alterações nas dietas alimentares, cerca de um terço dos alimentos do mundo são desperdiçados, daí resultando elevados custos nos planos ambiental, económico e social. Neste sentido, a redução dos resíduos alimentares constituirá um passo essencial para alimentar uma população em crescimento. Neste artigo são apresentadas práticas da sociedade civil, desenvolvidas nos distintos níveis da hierarquia de recuperação de alimentos, privilegiando a prevenção e a doação de alimentos numa perspetiva social, económica e ambiental.

Palavras-chave: desperdício alimentar, economia circular, hierarquia de recuperação de alimentos, sociedade civil.

Abstract: This article addresses the issue of food waste. At a time when food insecurity in the world has once again grown, not only due to conflicts and climate change, but also due to profound changes in eating habits, about one third of the food produced is wasted around the world resulting in high environmental, economic and social costs. Therefore, the reduction of food waste will be an essential step in feeding a growing population. In this regard, civil society practices developed at the different levels of the food recovery hierarchy will be addressed. Mobilizing a social, economic and environmental perspective, this paper focuses on prevention and food donation.

Keywords: food waste, circular economy, food recovery hierarchy, civil society.

Introdução

Vivemos uma era de incerteza e crescente interdependência, interconetividade e complexidade, que tornaram os sistemas social, ambiental e económico extremamente vulneráveis à escala global, gerando riscos sistémicos, com consequências imprevisíveis (Bauman, 1999). O aumento da população, o fenómeno da globalização e a compressão espaço-tempo (Harvey, 1992), que levou ao encurtamento das distâncias, redefiniram todo o espaço social e económico.

As economias desenvolvidas assentam hoje em sociedades de (hiper)consumo, onde o aumento da produção originou a multiplicação dos bens de consumo e a expansão dos mercados pela criação de novas necessidades e desejos.

Baudrillard (2008), Bauman (2004) e Lipovetsky (2009), afirmam que a sociedade “pós-moderna” é uma sociedade de consumo onde o “ter” se torna mais importante que o “ser”. Quem não consome fica fora do espaço social, tendo tal dado origem a uma nova forma de exclusão social e onde, segundo Bauman (2004), a solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor.

Se a qualidade de vida é definida pelo consumo, segundo Bauman (2005), seriam necessários três planetas Terra iguais ao que vivemos para garantir qualidade de vida para todos. Isso porque, atualmente, “quanto melhor a qualidade de vida, maior a pegada ecológica deixada por uma cidade no planeta que compartilhamos” (Bauman, 2005, p. 38), ou seja, a questão ecológica, na lógica consumista, não tem espaço para discussões.

Lipovetsky (1988) salienta o enfraquecimento da sociedade e dos costumes na era do (hiper)consumo de massa, onde “todos estamos destinados a consumir”. Estas transformações sociais atravessam transversalmente todas as áreas da sociedade, incluindo a alimentação, aqui entendida como um fenómeno complexo, pluriforme e multidimensional. Acresce que a alimentação é, conforme sublinha Ortiz (1994) quando analisa a modernidade, a globalização e mundialização da cultura, uma instância cultural que preserva costumes, um pilar da identidade cultural dos povos que traduziria a sua estabilidade como grupo social.

No entanto, com a globalização da economia, a industrialização alimentar, e a desterritorialização do alimento (e dos serviços) à escala global, pudemos assistir, segundo Ortiz (1994), desde finais do século XX a um certo desenraizamento da alimentação, consequência da diversificação de produtos e da passagem da cozinha tradicional para a industrial. A indústria alimentar moderna foi modificando a forma e o modo como produzimos e como consumimos. Novas lógicas alimentares substituíram os sistemas tradicionais de abastecimento alimentar, transformaram a nossa identidade alimentar e os nossos estilos de vida.

Presentemente, com a tecnologia de produção de alimentos em larga escala, os alimentos podem ser produzidos fora da estação do ano e dos locais tradicionais, tornando-se acessíveis em locais distantes dos da sua produção e rompendo com uma tradição alimentar que se orientava pela proximidade. Novos hábitos e costumes alimentares emergiram e passaram a ser marcados pelos produtos artificiais e deslocalizados em detrimento do consumo dos produtos regionais e com forte tradição cultural (Ortiz, 1994). Além disso, estes novos hábitos têm-nos afastado da dieta mediterrânica, classificada, em 2010, Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).[1]

É assim que o processo de globalização (alimentar) que, se por um lado amplia a diversidade alimentar, por outro também a reduz, uma vez que há uma tendência das novas gerações para um mesmo leque de opções alimentares próprias da globalização (McDonald’s, Pizza Hut, kebab, sushi, e etc).

Estas alterações poderão também em parte resultar da emergência de novos modos de vida, caracterizados pela escassez de tempo para a preparação e consumo de alimentos, pela flexibilização de horários e pela crescente individualização dos rituais alimentares, que impuseram aos indivíduos a necessidade de reequacionarem a sua vida diária segundo condições como o tempo, recursos financeiros, locais de alimentação disponíveis, local e periodicidade das compras, e etc.

Em síntese, trataram-se de processos que contribuíram para padronizar a alimentação e todo o sector agroalimentar e que transformaram todo o espaço social e as próprias relações sociais, pelo que, as mudanças na alimentação devem ser entendidas no contexto sociocultural da urbanidade nos seus determinantes objetivos e subjetivos.

Na verdade, nunca na história a população das sociedades desenvolvidas teve tanto que comer e esteve tão livre da fome como agora, tal como nunca antes havia alcançado uma esperança de vida tão alta, não sendo, no entanto, sinónimo de melhor alimentação, pois a ingestão incorreta de nutrientes, com o consumo exagerado de sal, açúcar e carne e com a pouca ingestão de frutas e vegetais, tem conduzido a doenças como a diabetes, a hipertensão e a obesidade, esta já considerada pela Organização Mundial de Saúde como a epidemia do século XXI (WHO, 2000).

Atualmente, de acordo com Fischler (1995), no espírito dos comensais contemporâneos, a questão crucial é cada vez mais saber o que comer e em que proporção.

Uma abundância e diversidade de alimentos que fizeram emergir novos contextos de consumo, mas que, em sentido negativo, seja pela agressividade e competitividade da indústria alimentar, seja pelo consumo excessivo, têm gerado em toda a cadeia alimentar um enorme desperdício de alimentos (alimentos ainda próprios para consumo eliminados por ação ou omissão humana), com simultâneo desperdício de recursos ambientais e económicos.

Nos países mais desenvolvidos, onde o alimento é usado como símbolo de prosperidade (IMechE, 2013), a propensão para o desperdício alimentar é grande e esta situação torna-se insustentável (e imoral), já que as necessidades para alimentar uma população mundial em crescimento precisam de ser satisfeitas com recursos preciosos, como solo, energia e água (e mão de obra), que se tornam cada vez mais escassos e que são usados e por vezes esgotados ao serviço da produção desses alimentos.

A população global atual é de 7,6 mil milhões de habitantes e deve subir para 9,8 mil milhões em 2050, maioritariamente a viver em áreas urbanas, com a maior parte desse crescimento a ocorrer em África e na Ásia, estimando a Organização da ONU para a alimentação e a agricultura (FAO), que o mundo necessite de 70% a mais de alimentos até 2050 relativamente à atualidade. Contudo, estamos perante um modelo alimentar que tem-se mostrado altamente insustentável, por contribuir fortemente para o esgotamento dos recursos naturais do planeta e para a degradação ambiental, o que vem tornando cada vez mais urgente a necessidade de um desenvolvimento mais responsável, mais sustentável e mais justo, que integre, como enfatiza o Papa Francisco, uma “ecologia integral”, ou seja, a necessidade de se ter uma visão integrada e não fragmentada do ser humano, da sociedade e da natureza (Francisco, 2015).

Muito do recente aumento da insegurança alimentar pode ser atribuído, para além do esperado crescimento demográfico, às consequências das alterações do clima que irão ter efeito no rendimento de colheitas e plantações. As alterações climáticas são identificadas como uma das maiores ameaças ambientais e como o maior fator na falta de alimentos, seja pela escassez de solos, resultado da diminuição da precipitação e o aumento da temperatura, ou pela ameaça de secas. Motivos estes mais que suficientes para nos despertar para a necessidade de combatermos e reduzirmos o desperdício de alimentos.

A disparidade entre o desperdício de alimentos por um lado, e a carência alimentar, por outro, chama a atenção para as implicações sociais e éticas dos excedentes alimentares.

A perceção dos elevados impactos ambientais e as questões éticas decorrentes do desigual acesso aos bens e serviços no contexto da sociedade de consumo têm conduzido ao questionamento do atual modelo de consumo, em especial, o dos países mais industrializados e à discussão de modelos alternativos de consumo sustentável. (Baudrillard, 2008)

Nesta reflexão serão apresentadas iniciativas e práticas da indústria alimentar e da sociedade civil, desenvolvidas nos distintos níveis da hierarquia de recuperação de alimentos, privilegiando numa perspetiva social, económica e ambiental, as duas camadas mais elevadas, a prevenção e a doação de alimentos.

O desperdício alimentar. Um problema social, económico e ambiental

Partilhando as orientações e preocupações da Organização das Nações Unidas, expressas em 2015 nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, e cujas metas principais passam por até 2030 “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável” (ONU, 2015, ODS2) e para a necessidade de “Garantir padrões de produção e de consumo sustentáveis” (ONU, 2015, ODS12), mais do que ir procurar novos solos para aumentar a produção de alimentos, mais racional e mais sustentável, será reduzir o desperdício de alimentos.

Apesar de haver produção de comida suficiente no mundo para alimentar toda a população, os níveis globais da fome aumentaram durante as últimas décadas. De acordo com o relatório “Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo” (FAO, IFAD, UNICEF, WFP, & WHO, 2017), cerca de 815 milhões de pessoas, 11% da população mundial, sofreram de fome em 2016. O número corresponde a mais 38 milhões em relação a 2015. Na União Europeia (UE), em 2015, cerca de um quarto da população corria o risco de cair na pobreza ou de sofrer exclusão social e 42,5 milhões de pessoas não tinham meios para ter uma refeição de qualidade dois dias seguidos (Eurostat, 2017).

Paradoxalmente, e de acordo com o relatório da FAO de 2013 “A Pegada do Desperdício Alimentar”, cerca de um terço dos alimentos produzidos para o consumo humano é perdido ou desperdiçado, o equivalente a 30% por cento das terras agrícolas do mundo, a um volume de água equivalente ao caudal anual do rio Volga (250 quilómetros cúbicos de água) e a uma pegada de carbono global de cerca de 8% das emissões de gases antropogénicos com efeito de estufa (metano, óxido nitroso e dióxido de carbono), provocada principalmente pelo uso excessivo de pesticidas e fertilizantes químicos na agricultura convencional e pela criação de gado intensiva. Só a pecuária emite 18% dos gases com efeito de estufa, mais do que o setor dos transportes, principalmente devido ao metano formado durante o processo de fermentação entérica do efetivo animal e a gestão dos efluentes animais (FAO, 2013).

Um forte contributo que todos podemos dar, no sentido da redução das emissões de CO2, passam por ações como, comprar diretamente ao produtor, um modo de diminuir os intermediários e por optar por circuitos curtos de comercialização, evitando assim as longas deslocações a que hoje os alimentos são sujeitos.

A investigação de Mena, Adenso-Diaz e Yurt (2011) indica que entre 25% e 50% de toda a produção se perde ao longo da cadeia de aprovisionamento e consumo. Uma outra abordagem é feita por Lundqvist, Fraiture e Molden (2008) utilizando as calorias como unidade de referência. Segundo estes autores, menos de metade das calorias produzidas globalmente pelos agricultores chegam às nossas mesas, pelo que importará analisar (e intervir) em todas as etapas na medida do necessário para reduzir esse desperdício.

Na UE estima-se que são produzidas anualmente cerca de 88 milhões de toneladas de desperdícios alimentares (180 kg por pessoa), com custos associados estimados em 143 mil milhões de EUR. A produção e a eliminação destes resíduos geram 170 toneladas de emissões de CO2 e utilizam 26 milhões de toneladas de recursos (Stenmarck, Jensen, Quested & Moate, 2016), uma grande parte constituída por alimentos ainda adequados para consumo humano.

Em Portugal, o estudo do PERDA, em 2012, estimou que ao longo de toda cadeia, se desperdice cerca de um milhão de toneladas de alimentos por ano, o que representa “17% da produção alimentar anual, 97 kg por habitante/ano, dos quais 31% provêm dos consumidores” (Baptista, Campos, Pires & Vaz, 2012, p. 34).

De acordo com a ONU/FAO, as perdas alimentares constituem um resultado natural de ineficiências dos sistemas produtivo e industrial e ocorrem sobretudo nos países em desenvolvimento nas fases de produção, apanha e processamento por falta de infraestruturas adequadas de armazenamento, escassez de equipamentos de frio, falta de tecnologia e reduzidos investimentos nos sistemas de produção agrícola. Já o desperdício de alimentos, que acontece primordialmente nos países industrializados, são as perdas evitáveis, ocorridas a nível da distribuição e do consumo final e que estarão relacionadas com as preferências e hábitos dos consumidores e com o excesso de normas e regras, devido a preocupações sanitárias ou estéticas (Gustavsson, Cederberg, Sonesson, van Otterdijk & Meybeck, 2011).

Na realidade, constata-se hoje que o crescimento da produção de alimentos associado à melhor qualidade de vida e bem-estar dos indivíduos está a provocar perdas e desperdício de alimentos ao longo de todas as etapas da cadeia de abastecimento alimentar (produção, transformação, retalho e consumo), não obstante, ser desconhecida a verdadeira dimensão do problema.

A inexistência de uma definição comum para desperdício alimentar, nomeadamente os limites entre o excedente de alimentos e os resíduos alimentares, desperdícios de alimentos evitáveis/inevitáveis, alimentos comestíveis/não comestíveis, que variam de região para região, bem como a falta de uma metodologia única para o medir, têm sido apontados como um grande obstáculo para a obtenção de dados completos, fiáveis e harmonizados sobre a real situação do desperdício alimentar (Papargyropoulou, Lozano, Steinberger, Wright & Ujang, 2014), o que nos conduz a um problema social complexo, de difícil solução, um “wicked problem” para Rittel e Webber, pois estamos perante problemas mal formulados, com informação pouco clara e envolvendo sempre muitos intervenientes com valores conflituantes e onde as soluções propostas muitas vezes criam novos problemas (Rittel & Webber, 1973).

São várias as causas apontadas para as perdas e desperdício de alimentos. (1) Modelos de produção intensivos; (2) Fatores externos à produção agrícola, como a meteorologia ou as pragas; (3) Alongamento das cadeias de abastecimento, que distancia cada vez mais o produtor do consumidor e que obriga, além de uma boa coordenação e comunicação, a existência de infraestruturas adequadas para a conservação dos alimentos; (4) Comportamentos e práticas bastante diversas do consumidor final (falta de sensibilização e conhecimento dos alimentos e falta de planeamento nas compras), “porventura o ator mais flexível da cadeia de aprovisionamento” (Baptista, Campos, Pires & Vaz, 2012, p. 39), são motivos que nos levam a acreditar tratar-se de um problema que atravessa a toda a cadeia alimentar. “A perda e desperdício de comida são consequência do modo como os sistemas de alimentos funcionam atualmente, tanto em nível técnico, como cultural e económico” (HLPE, 2014).

Ao nível doméstico as causas comportamentais estão na origem do desperdício. Hábitos de comprar e consumir para além das necessidades, má preparação e deficiente conservação dos alimentos, baixa cultura alimentar (não saber reaproveitar os excedentes), até à incompreensão dos rótulos, são todos fatores que contribuem para o desperdício alimentar.[2]

Outro fator salientado no estudo do PERDA (Baptista, Campos, Pires & Vaz, 2012) é que à medida que o rendimento das famílias aumenta, o peso da despesa alimentar na despesa total de consumo diminui. O facto dos gastos com a alimentação pesarem pouco, relativamente a outros no consumo das famílias (habitação e transportes), não constituirá estímulo suficiente para uma atitude mais empenhada no combate ao desperdício de alimentos. Em Portugal o peso da alimentação passou de 21,5% do total das despesas familiares em 1994/95, para apenas 14,7 % em 2015/16 (INE, 2017).

No entanto, e segundo os resultados das entrevistas elaboradas no âmbito do estudo do PERDA (Baptista, Campos, Pires & Vaz, 2012), a associação moral entre desperdício e miséria foi a mais relevante. Efetivamente, para além das preocupações ambiental e económica, é a dimensão ética do problema que mais tem levado a reflexão (e a reprovação) do desperdício de alimentos, numa altura em que o problema da pobreza e da falta de acesso a alimentos seguros se tem feito sentir na sociedade (Baptista, Campos, Pires & Vaz, 2012, p. 50).

Devemos realçar que o acesso aos alimentos e a qualidade da alimentação são questões-chave do desenvolvimento humano, um conceito que aponta ao progresso social, relacionando entre si três dimensões: desenvolvimento socioeconómico, valores em mudança e democracia (UNDP, 1999).

Evans (2012) ilustra algumas das formas pelas quais numa sociedade consumista (e descartável), a passagem de “alimento” para “desperdício” surge como consequência dos modos como as práticas domésticas são organizadas social e materialmente e presta especial atenção às rotinas do aprovisionamento de alimentos no domicílio e às contingências da vida diária, às relações sociais e como se manifestam, e ao contexto sóciotemporal das práticas alimentares.

Em Portugal o estudo do PERDA (Baptista, Campos, Pires & Vaz, 2012) identificou algumas das causas das perdas e desperdício de alimentos que ocorrem ao longo de toda a cadeia de abastecimento alimentar (Figura 1).

Podemos assim afirmar que o desperdício alimentar é um problema complexo e transversal à sociedade e que ocorre ao longo de toda a cadeia de abastecimento alimentar, pelo que se torna central sensibilizar e dar mais conhecimento a todos os intervenientes para as questões da sustentabilidade do planeta. Precisamos, por isso, de encontrar soluções e ações focadas na solidariedade, no planeamento integrado, no trabalho em grupo, com uma comunicação aberta, inclusiva e com respeito pelas ideias de todos, o que faz aumentar a consciência social coletiva e o sentido de pertença à comunidade. Uma ideia amplamente defendida pelos movimentos de transição.[3]

Uma inquietação com o desperdício de alimentos tem aumentado no seio de uma sociedade racional e reflexiva, motivo pelo qual passou a constar da agenda política e institucional. Sublinhe-se que a ONU, desde a 1ª Conferência Mundial de Alimentação realizada em Roma, em 1974, considera a redução do desperdício de alimentos como uma medida primordial na luta contra a pobreza e contra a fome, motivo pelo qual foi incluída nos Objetivos do Desenvolvimento do Milénio (2000) e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, onde se apela a uma produção e consumo sustentáveis (UNRIC, 2015).

Também a Comissão Europeia, no sentido de sensibilizar os seus cidadãos para o problema, propôs o ano 2014 como “Ano de Combate ao Desperdício Alimentar”, e onde, entre outras medidas, recomenda uma mudança de paradigma, a transição de uma economia linear para uma economia circular, onde o desperdício é minimizado.

Em Portugal, o ano 2016 foi eleito o “Ano Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar”, tendo o Governo português criado para o efeito a Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar (CNCDA) um órgão que tem como prioridade elaborar a Estratégia Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar (ENCDA) e um Plano de Ação de Combate ao Desperdício Alimentar (PACDA), a fim de prevenir, reduzir e monitorizar o desperdício alimentar (CNCDA, 2017).

Com o mesmo propósito diversas individualidades e movimentos da sociedade civil têm-se mobilizado no sentido da consciencialização dos cidadãos para a necessidade de novos comportamentos alimentares, mais amigos do ambiente. É o caso de Tristam Stuart, ativista e fundador, em 2009, da organização ambiental Feedback e do projeto “Alimentar os 5.000” (um banquete público gratuito inteiramente preparado com alimentos rejeitados) evento que é replicado todos os anos por várias cidades, tal como é responsável pela campanha Pig Idea, onde Stuart incentiva ao uso de resíduos alimentares como meio para alimentar os porcos.[4]

Outra personalidade que tem contribuído para o despertar da consciência ambiental é Jonathan Bloom. Com a sua obra American Wasteland: How America Throws Away Nearly Half of Its Food (and What We Can Do About It), 2010, o autor procura demonstrar como, através de atitudes conscientes no nosso quotidiano, podemos reduzir o desperdício de alimentos.

Em Portugal, temos o Movimento 2020, que tem por objetivo combater o desperdício de alimentos, envolvendo nesse desafio, cidadãos, instituições públicas e privadas, a indústria e o retalho. Para tal e para além da sensibilização para o problema, apela a uma dieta alimentar responsável e sustentável, nomeadamente com o incremento de um maior consumo de leguminosas e vegetais e com a redução de produtos de origem animal, comportamento que contribuirá para a diminuição da pegada ambiental (Movimento 2020, s/d).

A aplicação da hierarquia de resíduos ao desperdício alimentar. A prevenção e a doação

Estamos a consumir mais recursos do que o que planeta consegue produzir, o que nos obriga a gerir o excedente e o desperdício de forma sustentável. Além disso, torna-se indispensável delinear e implementar medidas que permitam colocar a sociedade no caminho do desperdício zero. O volume de resíduos que produzimos é também uma consequência do nosso modo de vida insustentável, pelo que, teremos que readaptar o atual modelo de produção e consumo, a fim de minimizar as pressões exercidas a nível dos recursos, não renováveis, da Terra.

Nesse sentido, e segundo os princípios da economia circular, temos que romper com a lógica do atual modelo “linear” de produção de bens — extrair, produzir, descartar —, um modelo económico que, não obstante ter-se tratado de um modelo bem-sucedido, uma vez que providenciou produtos em larga escala a um custo cada vez mais baixo, foi feito à custa da exploração desmedida dos recursos naturais, gerando no final um volume sem precedentes de resíduos inutilizados (Circular Economy Portugal, s/d). Daí a necessidade de transição para um modelo “circular”, onde a ideia é no final do processo reciclar os produtos, ou parte deles, e recolocá-los no mercado, isto é, “fechar o ciclo” de vida dos produtos, através de mais reutilização, recuperação e reciclagem, com grandes vantagens tanto para o ambiente, através da diminuição do recurso às matérias-primas, como para a economia. Com esse propósito novas medidas e estratégias têm surgido destinadas a reduzir a deposição em aterro e incrementar a valorização (prevenção, reutilização e reciclagem) dos principais fluxos de resíduos (urbanos, de embalagem ou alimentares).

O novo Pacote sobre Economia Circular, adotado pela Comissão Europeia, em 2015, incluiu propostas legislativas revistas em matéria de resíduos, onde a questão da luta contra o desperdício alimentar foi integrada e que passa pela aplicação, com as devidas adaptações, tendo em conta as particularidades dos alimentos, da hierarquia dos resíduos ao desperdício alimentar. Uma hierarquia que atribui prioridade às medidas de tratamento de resíduos, indo da mais à menos desejável, com base na sustentabilidade ambiental — prevenção, preparação para a reutilização, reciclagem, outros tipos de valorização, eliminação.[5]

Um contributo valioso chega-nos da EPA (Agência de Proteção do Ambiente dos EUA), que criou uma Hierarquia de Recuperação de Alimentos (HRA) com seis níveis, uma hierarquia que partilha os princípios da economia circular — manter o valor acrescentado dos produtos pelo maior tempo possível e eliminar o desperdício — e que atribui prioridade às medidas de tratamento de excedentes e resíduos alimentares (EPA, s/d). As três camadas superiores dizem respeito a medidas que podem ser adotadas antes de os alimentos se tornarem resíduos alimentares, sendo, por isso, sempre de privilegiar (Figura 2).

 

Nesse sentido e seguindo a ordem de preferência indicada, diversos Estados-Membros adaptaram a hierarquia dos resíduos aos alimentos.

O 1º nível da Hierarquia de Recuperação de Alimentos é a prevenção e a redução de resíduos, desde a produção ao consumidor final. Para tal, deverão ser adotados novos modos de produzir e de processar alimentos, bem como alterar comportamentos e hábitos alimentares. O 2º nível é o reaproveitamento dos resíduos alimentares para consumo humano: os alimentos em excesso e em condições para serem consumidos, devem ser doados a pessoas/instituições de solidariedade social. O 3º nível da Hierarquia de Recuperação de Alimentos inclui as opções de reaproveitamento dos resíduos para consumo animal: alimentos não adequados para o consumo humano mas que ainda podem ser transformados em produtos para alimentação de animais. O 4º nível é a reciclagem industrial, através de opções que visam aliviar algumas das questões ambientais e económicas associadas com o desperdício de alimentos, aumentando simultaneamente o recurso a fontes de energia alternativas. Quarenta por cento do total daquilo que depositamos no lixo corresponde a bioresíduos (resíduos biodegradáveis de jardins e parques, alimentares e de cozinha das habitações ou dos restaurantes) que podem ser valorizados para produção de energia (biogás, biodiesel). O 5º nível é a compostagem, (doméstica ou comunitária) processo que transforma matéria orgânica em húmus (adubo orgânico) a fim de melhorar os solos, fazer crescer a geração posterior de culturas e melhorar a qualidade da água. Por último, o 6º nível corresponde a resíduos que não podem ser valorizados de forma alguma, não restando outra opção que não seja a sua incineração ou depósito em aterros sanitários.

 Prevenção do desperdício alimentar

A primeira solução no combate ao desperdício alimentar passa pela prevenção e pela redução, que deverá ser feita por todos nós e ao longo de toda a cadeia alimentar, desde o produtor ao consumidor, e que passará pela otimização da utilização dos recursos, pela criação de um verdadeiro compromisso colaborativo entre todos os intervenientes e por ações em todas as etapas da cadeia de abastecimento, seja na produção, com melhores culturas e regimes de colheita e de manuseamento, na transformação, com adequadas condições de armazenagem e refrigeração, ou no retalho, com boas infraestruturas de acondicionamento e de conservação dos alimentos (com especial atenção para os produtos perecíveis), seja ao nível do consumidor, onde deve ser privilegiada uma cultura de proximidade e a opção por produtos da época.

No sentido da redução do desperdício de alimentos, a Grande Distribuição tem dado o seu contributo através de ações de venda a preço reduzido de produtos alimentares “feios” ou a perder validade. Em Portugal, a Missão Continente, a cadeia Jerónimo Martins e o Grupo Auchan são exemplos de uma política de responsabilidade social no combate ao desperdício alimentar. Do mesmo modo, temos o supermercado online GoodAfter que vende produtos perto ou fora da data preferencial de consumo.

Destaca-se igualmente em Portugal a Cooperativa Fruta Feia, inserida atualmente no projeto europeu FLAW4LIFE,[6] uma organização que previne o desperdício alimentar nos campos e que combate o gasto desnecessário dos recursos utilizados na sua produção (água, terras cultiváveis, energia). Um mercado alternativo que, ao reincorporar na cadeia de consumo, frutas e hortícolas que iriam terminar no lixo apenas por não cumprirem os padrões estéticos exigidos na distribuição (formato, cor e calibre), gera valor para os agricultores e consumidores. Um caso de manifesta racionalidade económica que só vem beneficiar a economia local, com maior dimensão social e com maior respeito pelo ser humano e pelo planeta.

Presentemente, e segundo dados da organização, 157 produtores nacionais têm oportunidade de escoarem produtos que foram rejeitados pelos distribuidores. Por seu lado, 4284 consumidores, que não julgam a qualidade pela aparência, compram semanalmente, nos 9 postos de entrega existentes no país, uma cesta com produtos da sua região, a um preço mais baixo (Cooperativa Fruta Feia, 2017).

A preocupação com o desperdício alimentar tem crescido na Europa e no mundo. Na Grã-Bretanha, para combater o desperdício alimentar, abriram supermercados que vendem artigos em fim de vida a preços simbólicos. Na Holanda, o governo comprometeu-se a reduzir em 20% o desperdício de alimentos. Na Dinamarca, a ONG WeFood promoveu um crowdfunding que possibilitou a abertura de um supermercado de excedentes alimentares que vende a metade do preço, alimentos fora do prazo de validade ou cujas embalagens estejam danificadas, apresentando-se como uma alternativa de baixo custo para as famílias com rendimentos reduzidos (The Uniplanet, 2016).

Em Portugal, o setor da restauração é incentivado a reduzir as quantidades servidas nos restaurantes (a dose certa) e a “embrulhar” o que não foi consumido, ou seja, a convidar cada cliente para que leve para casa o que ficou na travessa. Ganhará o cliente e ganha o ambiente, pois são menos resíduos alimentares que vão engrossar o lixo (não obstante ainda ser uma atitude muito estigmatizante para muitos, seja por motivos individuais ou culturais).

Ultimamente, também as novas tecnologias têm dado o seu contributo na prevenção do desperdício alimentar no mundo. Várias aplicações permitem aos restaurantes divulgar online as refeições que não foram vendidas às horas de almoço/jantar e que podem ser adquiridas posteriormente a preços reduzidos (To Good to Go, em vários países; ResQ Club, na Finlândia; Gebni nos Estados Unidos). Ao nível do consumidor, foi criada no Reino Unido a aplicação OLIO — The Food Sharing Revolution, um aplicativo gratuito que conecta pessoas com os vizinhos e com lojas locais, de modo a que alimentos excedentes no lar e na comunidade possam ser compartilhados e não desperdiçados.

No que diz respeito ao cidadão e ao consumidor, o seu contributo passará por novos comportamentos alimentares e práticas de consumo, individuais e coletivas, mais conscientes e mais responsáveis e pela adoção de estilos de vida socialmente mais justos, ambientalmente mais sustentáveis e economicamente mais viáveis.

Doação de alimentos para redistribuição

Quando existem excedentes de alimentos, o melhor destino é a sua redistribuição para consumo humano. A doação de alimentos visa uma melhor distribuição dos recursos disponíveis e excedentários, reduz o desperdício alimentar e contribui para que o maior número possível de pessoas tenha acesso a uma alimentação suficiente, saudável e segura.

De acordo com a Legislação Alimentar Geral da União Europeia,[7] a redistribuição consiste num processo em que os excedentes alimentares que, de outro modo, poderiam ser desperdiçados, são recuperados e fornecidos gratuitamente aos cidadãos, em especial aos mais necessitados, desde que sejam cumpridas e ao longo de todas as etapas (recolha, transporte, acondicionamento, refrigeração e distribuição) as regras da rastreabilidade alimentar[8] e as normas de higiene e segurança alimentar.[9]

Iniciativas e práticas sociais com o intuito de minimizar o desperdício de alimentos têm crescido em diversas sociedades. Em França, foi deliberada a obrigatoriedade de as grandes superfícies com área superior a 400 m2 doarem os alimentos que estiverem perto do prazo final de validade, sob pena de sofrerem sanções. Em Itália, um projeto de lei contra o desperdício alimentar foi aprovado pelo Governo, que prevê sensibilização e incentivos a os proprietários de restaurantes e supermercados para oferecerem a comida que possuem em excesso.

Já em Portugal diversas e diferentes organizações têm-se destacado no reaproveitamento dos excedentes alimentares. O movimento Re-Food, por exemplo, trabalha diariamente para eliminar o desperdício de alimentos e a fome em cada bairro. Todas as noites várias equipas de voluntários saem para a rua a fim de resgatar alimentos excedentários de cafés e restaurantes, redistribuindo-os de imediato a pessoas carentes de alimentos. Presentemente 44 núcleos espalhados pelo país, apoiados em 6300 voluntários, resgatam 84 000 refeições por mês, cerca de 1 milhão por ano, que chegam a 5700 beneficiários (Re-Food, 2018).Como resultado do seu trabalho, o Re-Food, para além de combater o desperdício alimentar, fortalece os laços sociais da comunidade, reforça o seu capital social, ao mesmo tempo que possibilita aos parceiros aderentes o exercício ativo da sua responsabilidade social.

O Movimento Zero Desperdício, da associação Dariacordar, que integra o projeto FORCE, no âmbito do Horizonte 2020,[10] tem por objetivo promover o aproveitamento de todos os bens alimentares sobrantes, distribuindo-os por instituições, em condições controladas de higiene e segurança alimentar, evitando assim o desperdício. Trata-se de um projeto, elaborado em estreita ligação com as juntas de freguesia, e que permite em simultâneo sinalizar outras necessidades dessas pessoas. De acordo com os dados da organização, conta atualmente com 209 entidades doadoras e 71 entidades recetoras, sendo mais de 7 mil os beneficiários diretos da iniciativa, tendo sido já recuperadas, cerca de 4 milhões de refeições, evitando com isso nove mil toneladas de CO2 (Dariacordar, 2018).

Já o Banco Alimentar é uma instituição norteada pelos valores da solidariedade e da generosidade das empresas de distribuição, dos mercados abastecedores e dos cidadãos, congregando e coordenando as iniciativas de várias organizações locais. Luta primariamente contra a fome, agindo contra o desperdício de produtos alimentares ao encaminhar as doações desses produtos para distribuição gratuita às pessoas mais carenciadas. Em 2016, e de acordo com a instituição, os 21 Bancos Alimentares contra a Fome distribuíram 25,6 mil toneladas de alimentos a 2.600 Instituições de Solidariedade Social, que os entregam a 420 mil pessoas com carências alimentares comprovadas, sob a forma de cabazes ou de refeições confeccionadas (Banco Alimentar, 2017).

Considerações finais

Falar em desenvolvimento sustentável é falar no paradigma do mundo atual. A palavra desenvolvimento, que antes era sinónimo de progresso e crescimento, hoje passa a ter outro enfoque, o da sustentabilidade. O desafio é enorme, mas os recursos coletivos que temos na nossa posse também o são.

As sociedades atuais assentes em grandes metrópoles têm de ser capazes de se organizar aceitando as várias culturas e diferentes maneiras de estar, vivendo sob formas de vida que garantam que os recursos naturais sejam preservados para as novas gerações. É esta a ideia base da Agenda 2030 das Nações Unidas.

O crescimento exponencial do poder técnico do ser humano tem originado a destruição de mecanismos de equilíbrio da natureza provocando uma crise ambiental. O pensamento técnico-científico e as transformações por ele provocadas assentam em valores e normas, cuja transformação implica uma reformulação do pensamento reflexivo sobre esses valores no sentido de os reorientar no sentido da proteção da natureza.

Longo caminho há a percorrer pois o debate sobre as duas formas de entender as relações humanidade/natureza persiste em aberto na sociedade: “a ideia de natureza que existe para suprir as necessidades da humanidade versus a ideia de humanidade entendida como apenas uma de entre outras espécies a partilhar e a constituir a natureza” (Lima, 2006).

Refira-se que um dos obstáculos à mudança, em temas ambientais e ecológicos, é a fraca pressão social ou consciência cívica para articular o ambientalismo com o consumo, pois os valores ambientais detidos pelas pessoas não são considerados valores centrais que sugiram comportamentos de consumo (Paiva & Proença, 2011). Ora, num mundo com escassez de recursos naturais e com crescentes preocupações ambientais, deitar fora alimentos saudáveis e em condições comestíveis, além de ser imoral e injusto, tem impactos ao nível social, sanitário, económico (o custo relacionado com o valor dos produtos em si, mas também os custos incorridos com a produção, o transporte e o armazenamento dos produtos desperdiçados, bem com o respetivo tratamento) e ambiental. Daí o desperdício de alimentos ter-se tornado uma questão cada vez mais preocupante ao nível local e global.

Com o previsível crescimento da população, a necessidade de maior produção gera maior pressão sobre recursos naturais escassos, deixando ainda mais nítido um problema social contemporâneo, um sério problema de sustentabilidade, porque, para além do gasto inútil de mão de obra e de recursos económicos e ambientais causados por esse desperdício alimentar (recursos necessários para as próximas gerações), a grande questão que nos deve inquietar e não nos pode deixar ficar indiferentes, é a dimensão moral do problema. Porque desperdiçamos alimentos, num mundo onde um sexto da população mundial passa fome?

Em síntese, o desperdício alimentar é um problema mundial que se tornou numa prioridade pública e política, nos últimos anos, sendo provável que a sua importância continue a aumentar, especialmente tendo em conta a necessidade de alimentar uma população mundial em crescimento. Os alimentos são um bem precioso e a sua produção implica uma utilização muito intensiva dos recursos, pelo que, para uma sociedade economicamente sustentável, precisamos de novas formas de pensar (e produzir), de comunidades locais mais solidárias e inclusivas, de uma cultura humana mais saudável e de soluções sociais colaborativas e empreendoristas.

Urge refletir sobre os nossos comportamentos e sobre a maneira como nos relacionamos com o ambiente, o que, para um desenvolvimento sustentável, equilibrado e mais justo, vai exigir uma maior racionalização de todo o modelo de produção e de consumo e uma maior responsabilidade social de todos nós.

Nesse sentido a hierarquia de recuperação de alimentos, ao considerar três das dimensões de sustentabilidade (ambiental, económica e social), oferece uma abordagem holística e sustentável para abordar a questão dos resíduos alimentares, apontando a prevenção e a doação de alimentos, como ações essenciais para reduzir o desperdício alimentar, atenuar a pobreza (alimentar) e combater a exclusão social, sendo por isso opções a privilegiar.

Num tempo em que crescem as preocupações com os efeitos das alterações climáticas é de todo aconselhável encontrar caminhos alternativos e transformar as comunidades em modelos sustentáveis, menos dependentes de recursos externos, como o petróleo, mais ligadas à natureza e mais resilientes a crises externas, tanto económicas, como ambientais (agricultura familiar, comércio justo, movimento slow food, e etc). Temos o exemplo das hortas comunitárias, onde um grupo de pessoas ao cultivarem um pedaço de terra alcançam a sua soberania alimentar encontrando ali novas formas de organização e gestão da vida social ou da permacultura. Iniciativas de transição comunitárias que estão a tomar medidas para abordar os grandes desafios da sustentabilidade, no sentido da mudança social (Hopkins, 2008).

O sucesso da resposta ao desperdício alimentar dependerá de uma abordagem holística, multi e interdisciplinar (sociologia, economia, geografia, ecologia, antropologia e novas tecnologias) e intersectorial (produção primária e agroindústria, distribuição, restauração, consumidores finais), com participação da sociedade civil e que integre preocupações de âmbito educacional, ambiental e de combate à pobreza, pelo que só uma abordagem integrada nos levará a compreender o fenómeno do desperdício alimentar, sem dúvida, um dos mais prementes desafios da sociedade atual, ao qual urge dar resposta.

Só com um cidadão mais informado (e inconformado), com mais consciência de si e do contexto que o rodeia (as desigualdades e as injustiças, o desperdício de alimentos) e disponível para intervir na vida pública (seja a solidarizar-se com pessoas ou causas, seja a pressionar política e economicamente governos e empresas, na melhor gestão dos recursos), poderemos ambicionar a uma sociedade sustentável, mais democrática, mais justa e menos desigual. Daí a extrema importância que o conhecimento e a educação (educação para a cidadania e educação ambiental) podem desempenhar na construção de uma consciência coletiva crítica e reflexiva, no sentido de uma cidadania efetiva e participativa, “que responda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras darem resposta às suas próprias necessidades” (CMMAD, 1988).

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Data de submissão: 12/02/2018 | Data de aceitação: 04/05/2018

[1] Movimento fundado sobre os princípios da permacultura e popularizado nos anos de 2005 e 2006 pelo ambientalista Rob Hopkins, com a criação da Cidade de Transição em Totnes em Inglaterra (Hopkins, 2008).

[2] Esta organização enaltece um estilo de vida transmitido de geração em geração, que abrange técnicas e práticas produtivas, nomeadamente de agricultura e pescas, formas de preparação, confeção e consumo dos alimentos, festividades, tradições orais e expressões. Em Portugal, os 10 princípios da dieta mediterrânea são: frugalidade e cozinha simples que tem na sua base preparados que protegem os nutrientes, como as sopas e cozidos; elevado consumo de produtos vegetais em detrimento do consumo de alimentos de origem animal; consumo de produtos vegetais produzidos localmente, frescos e da época; consumo de azeite como principal fonte de gordura; consumo moderado de laticínios; utilização de ervas aromáticas para temperar em detrimento do sal; consumo frequente de pescado e baixo de carnes vermelhas; consumo baixo a moderado de vinho e apenas nas refeições principais; água como principal bebida ao longo do dia; convivialidade à volta da mesa (DGS, 2014).

[3] A errada compreensão da data “consumir de preferência antes de” e “consumir de preferência antes do fim de” pode ser interpretada como o prazo de validade e levar a que se deitem fora alimentos comestíveis e seguros.

[4] Champions 12.3. Disponível em https://champions123.org/tristram-stuart/

[5] Artigo 4º da Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32008L0098

[6] Projeto FLAW4LIFE — Spreading ugly fruit against food waste. Disponível em http://flaw4life.com/

[7] Regulamento (CE) n.° 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho. Legislação Alimentar. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/ PT/TXT/?uri=celex%3A32002R0178

[8]  A rastreabilidade é a capacidade de conhecer o histórico, a utilização ou a localização de um género alimentício ou de uma atividade, através de meios de identificação registados. Na prática, traduz-se na possibilidade de situar e identificar o produto em cada uma das suas etapas.

[9] Regulamento (CE) n.º 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à higiene dos géneros alimentícios. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A02004R0852-20090420

[10] The FORCE project. Cities Cooperating FOR Circular Economy. Food Waste Prevention and Biowaste. Disponível em http://www.ce-force.eu/

Por decisão pessoal o autor do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Autores: Carlos de Jesus