Nº 9 - maio 2015

Adriana Albuquerque, Licenciada em sociologia pelo ISCTE-IUL), Instituto Universitário de Lisboa, mestranda em Educação e Sociedade também do ISCTE-IUL e bolseira de iniciação à investigação científica do ISCTE-IUL, CIES-IUL

Resumo: O objetivo deste texto é refletir acerca das condições de exercício da sociologia em contextos profissionais variados, nomeadamente no que diz respeito às (re)configurações dos laços culturais e práticos com a disciplina. Com base nos trabalhos de Costa (1988) e de Mills (1959), propõe-se a introdução do conceito de sensibilidade sociológica na discussão acerca da profissionalização da sociologia.

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Palavras-chave: Sociólogos; sensibilidade sociológica; contextos profissionais; culturas profissionais.

Abstract: The main goal here is to reflect about the conditions of exercise of sociology in various professional contexts, particularly in what comes to the (re)configuration of the cultural and practical bonds to the discipline while not working in the academy. Drawing from both Costa (1988) and Mills (1959), I argue for introducing the concept of sociological sensibility in the ongoing debate about the professionalization of sociology.

Keywords: Sociologists; sociological sensibility; professional contexts; professional cultures.

A profissionalização da sociologia em Portugal: voltar à teoria para pensar a prática

O debate acerca da profissionalização da sociologia em Portugal é, se considerarmos a juventude da produção de conhecimento sociológico no nosso país, quase paralelo à criação dos primeiros cursos superiores de sociologia, depois do golpe de Estado de 1974, e com o impulso dado pelo período revolucionário que se seguiu à produção de ciência social crítica e à proliferação de gabinetes de estudo sistemático da realidade portuguesa[1]. Uma análise dos programas e das atas dos congressos e encontros da Associação Portuguesa de Sociologia (APS) desde o primeiro congresso em 1988 até ao último, realizado em Abril de 2014, permite-nos perceber que a discussão se foi fazendo progressivamente em torno de experiências de profissionalização cada vez mais concretas, e abrindo-se simultaneamente a sociólogos provenientes de outros campos que não o universitário. Essa mutação na forma como a sociologia-profissão é pensada pela sociologia-ciência deu-se muito concretamente com o ciclo de conferências de 2003 “Sociologia, ciência e profissão”, a partir do qual aumentaram significativamente o número de comunicações feitas nos congressos de sociologia seguintes acerca de experiências de intervenção social pela mão de sociólogos – atualmente, a APS conta com uma secção permanente sobre “Experiências Profissionais”, com um número alargado de comunicações apresentadas nos últimos congressos. O lançamento da revista Sociologia Online, em 2010, veio reforçar a demanda por uma reflexão sistemática, porém não estritamente académica, sobre a profissionalização da ciência social, e não apenas sobre o futuro da mesma mas sobre o presente: o que é necessário fazer agora, com a entrada massiva de formados em sociologia para o mercado de trabalho, para garantir uma intervenção na realidade que seja simultaneamente sociológica, socialmente relevante, e orientada por princípios deontológicos fortes?

O encontro de 21 de Março de 2014 subordinado ao tema “Desafios à empregabilidade dos sociólogos” foi mais um contributo para este debate, porém foi um momento particularmente importante e inovador, já que alunos finalistas da licenciatura em Sociologia do ISCTE-IUL foram desafiados a refletirem de forma sistematicamente orientada acerca de si mesmos enquanto futuros sociólogos, no âmbito de um fórum sociológico. A esmagadora maioria das comunicações apresentadas[2] foram feitas com base em trabalhos orientados pelos professores da unidade curricular de 2º ano Laboratório de Ética e Profissão em Sociologia. O resultado traduziu-se em várias horas de debate sério acerca do estado atual da profissionalização dos sociólogos em diversos contextos profissionais, os desafios que a conjuntura socioeconómica atual coloca aos sociólogos, a importância do associativismo profissional nesta equação, e uma miríade de reflexões teóricas relevantes para o avanço na conceptualização da sociologia-profissão, que permitirá, na nossa opinião, eventualmente, elevar o debate de um nível puramente empírico-descritivo a uma procura de modelos teórico-metodológicos de pensar a sociologia em ação.

Este artigo pretende ser um contributo para a discussão acerca das diferentes formas de profissionalização da sociologia em diversos contextos profissionais, e para a desocultação das dimensões que assumem um papel de maior relevo na trajetória profissional dos sociólogos. Para tal, foram entrevistados quatro sociólogos provenientes de contextos profissionais profundamente diferenciados entre si, como se pode ver no Quadro 1[3].

No que diz respeito à estrutura do presente texto, é fundamental ter em conta o trabalho de Costa (1988; 2004), revisitado no primeiro ponto, no âmbito das diferentes configurações que as práticas e os sistemas valorativos associados à sociologia enquanto disciplina podem assumir no confronto com ambientes profissionais “leigos”. De seguida, propõe-se um olhar bourdiano para analisar as relações entre cultura, prática e contexto profissional, onde o contexto profissional atua de forma similar ao habitus na teoria da prática social de Bourdieu (1997) enquanto estrutura – sistema de relações sociais – simultaneamente estruturada – pelas práticas e culturas profissionais – e estruturante – das mesmas. Finalmente, analisam-se as duas principais dimensões através das quais os contextos profissionais atuam: i) a formação contínua e as competências contextuais; ii) a multidisciplinaridade e as representações dos sociólogos no trabalho. Por fim, reflete-se acerca dos resultados gerais da pesquisa e propõe-se a introdução de dois novos conceitos na discussão acerca da profissionalização da sociologia: sensibilidade sociológica – diferente da reflexividade sociológica de Costa (1988) e da imaginação sociológica de Mills (1982 [1959]) –, e perfil sociológico latente.

Quadro 1. Caracterização socioprofissional dos entrevistados

 

Culturas profissionais e perfis sociológicos

Costa (2004) conceptualiza quatro formas diferentes de os sociólogos pensarem e praticarem a sua relação com a sociologia em termos profissionais, que se materializam em quatro perfis profissionais teóricos diferentes: o perfil integrador, o rotinizado, o desistente e o academicista. Os dois primeiros, apesar de fundamentalmente diferentes na profundidade com que integram as várias competências sociológicas, designam uma forma de autorrepresentação do profissional que não é totalmente desligada da sua formação sociológica de base – mesmo que, na prática, o perfil “rotinizado” apenas faça uso de competências técnicas e metodológicas acionadas de forma rotineira. Os dois segundos, pelo contrário, descrevem duas posturas opostas: a do profissional que não se identifica enquanto sociólogo e cujos saberes e competências de base são renegados (pelo menos no trabalho), e o do académico que considera impossível a aplicação prática da sociologia-ciência.

Na realidade, estes perfis não são mutuamente exclusivos. O caso de Raúl, um dos quatro sociólogos entrevistados, é emblemático pela forma curiosamente ambígua como se autorrepresenta enquanto profissional. Para Raúl a sua atividade enquanto coordenador de projetos de avaliação de programas do QREN é uma possibilidade de exercer sociologia, mas tem as suas limitações: mobiliza, sem sombra de dúvida, as competências técnicas e metodológicas que a formação inicial lhe forneceu para a construção de instrumentos de recolha de dados e para a análise sistemática da informação recolhida; no entanto, diz que no tipo de funções que tem raramente há espaço para formulações teóricas muito detalhadas ou reflexivas, e que as competências que adquiriu em formações posteriores à sociologia – aquilo que Costa (2004) designa por competências complementares – bem como o know-how que foi adquirindo ao longo de quinze anos de carreira – as competências contextuais –, lhe são, atualmente, mais diretamente aplicáveis no quotidiano profissional do que a sua formação de base em sociologia. Esta análise preliminar da experiência de profissionalização de um dos entrevistados permite-nos partir para uma série de questões relevantes, e às quais tentaremos dar resposta. Para já, podemos admitir que os pesos relativos dos vários tipos de competências – de base, contextuais e complementares – na prática profissional irão contribuir para uma maior ou menor associação do profissional com a sociologia.

Interessa também desconstruir os discursos acerca do que é, essencialmente, a sociologia para estes profissionais. Para compreender a relação entre o dizer e o ser, entre as representações e as práticas profissionais, o conceito de cultura profissional parece ser particularmente relevante, uma vez que diz respeito aos “(…) conjuntos de valores, normas e representações de que [os sociólogos] são portadores, sobre a sociologia enquanto disciplina científica e enquanto atividade profissional.” (Costa, 1988, pp. 107). Mais uma vez o caso de Raúl ajuda-nos a desromantizar a ideia de causalidade entre os significados que atribuímos às nossas experiências e aquilo que fazemos com eles. Na verdade, um profissional está altamente condicionado pelo contexto profissional em que se insere, e mesmo nos casos em que ocupa posições de topo tem funções que lhe são outorgadas, sendo as razões pelas quais está naquela organização; se estes papéis profissionais podem ser negociados – e sob que circunstâncias – com as entidades empregadoras é outra interrogação a que nos propomos dar resposta. No caso de Raúl existe claramente uma linha que separa a sua identificação cultural com a sociologia da sua identificação profissional, a qual é fundamentalmente condicionada pelas suas competências complementares na área da gestão de recursos humanos e políticas públicas (Costa, 2004, pp. 45).

Parece, portanto, exequível integrar todas estas dimensões da prática e da cultura profissional dos sociólogos em dois modelos distintos de pensar a sociologia: o modelo cultural de dissociação – caracterizado fundamentalmente pela oposição entre sociologia-ciência e sociologia-profissão, possivelmente mais próximo dos profissionais que se encaixam num perfil de desistência da sociologia – e o modelo cultural de associação – próprio dos sociólogos que consideram que a sua formação de base lhes fornece competências aplicáveis aos seus papéis profissionais, e nos quais a sociologia enquanto corpo de conhecimentos, métodos e teorias científicos não se opõe à prática profissional, antes a melhora e torna mais consistente (Costa, 1988).

 

Enquadramento profissional: uma estrutura estruturada estruturante

Tal como acontece com o habitus de Bourdieu, que medeia a relação entre as possibilidades de ação e os condicionamentos estruturais (1997), também o enquadramento profissional – ou seja, as condições objetivas e o contexto de trabalho do sociólogo, que compreendem todas as relações hierárquicas de poder, o seu posicionamento (e o da sociologia) na estrutura da organização e o seu nível de autonomia profissional – parece mediar as culturas e as práticas profissionais dos sociólogos.

Figura 1. O contexto profissional enquanto mediador da dialética entre cultura e práticas profissionais do sociólogo

 

Significa que existe uma relação de influência mútua entre a cultura, o enquadramento e as práticas profissionais: é o enquadramento profissional que, por um lado, estrutura a margem de manobra do sociólogo para adequar aquilo que pensa ser o seu papel enquanto profissional àquilo que de facto é o seu papel; mas a cultura profissional não permanece inalterada após vários anos de experiências profissionais diametralmente distintas umas das outras – aquilo que o sociólogo vai percebendo, ao longo dos anos, que é a sua capacidade de modificação do contexto em que trabalha vai inevitavelmente moldar a sua autorrepresentação enquanto sociólogo no emprego. Esta não era, inicialmente, uma hipótese de trabalho, mas tornou-se claro depois das entrevistas realizadas, que todos os sociólogos, com exceção de Marta (cujo caso particular será analisado mais à frente) veem a sua trajetória profissional como um processo de conciliação entre a sua ideia do papel que podiam, queriam e achavam que deviam desempenhar enquanto sociólogos e os trabalhos que eram chamados a fazer.

Para Beatriz, que desde cedo no percurso académico direcionou o seu interesse para a área da sociologia da comunicação, o primeiro contacto com uma empresa de publicidade deu-se durante um estágio profissional, no qual embateu de frente com o mundo do marketing: percebeu muito cedo que aquilo que lhe interessava fazer na área era “uma análise distanciada, profunda do que era o trabalho de um publicitário. Ora isso não era suposto, pelo menos para quem começa uma carreira”. Apesar disto iniciou uma carreira na área, depois de uma pós-graduação em Marketing e Comércio Internacional, na qual se manteve durante uma década com o cargo de marketing researcher. No entanto, os choques com os métodos de trabalho e o tipo de relações laborais que se estabeleciam na empresa foram sempre uma constante; aquilo que Beatriz chama a “sensibilidade sociológica”, que a faz pensar os fenómenos de forma lata e transversal e que é, segundo ela, o maior contributo que um sociólogo pode dar numa organização, faziam-na insistir com os seus superiores para a modificação de várias formas de intervir junto dos recursos humanos e de avaliar o seu contentamento com a empresa. Algumas das suas sugestões foram ouvidas, tanto que “nunca antes tinham sido aplicadas entrevistas aos trabalhadores, muito menos com a preocupação de manter a identidade das pessoas anónimas”; outras chocaram mais profundamente com o contexto organizacional, e apesar de o seu cargo na empresa ser de relativa autonomia profissional, mantiveram-se problemas ao nível da proteção dos dados e da objetividade das perguntas colocadas nos inquéritos de avaliação.

Esta experiência demonstra bem as dificuldades de ajustamento da cultura profissional, que no caso de Beatriz era de profunda associação com a sociologia, com os condicionamentos contextuais do seu trabalho – o mundo da publicidade nunca lhe permitiu uma identificação profissional total com a sua formação de base, algo que ela tentou contornar, mas que eventualmente viu obstruída pela própria “natureza do trabalho”. Com Paula acontece algo de semelhante, apesar de a sua trajetória profissional ser bastante diferente: depois de um ano a trabalhar num centro de investigação com profissionais de outras ciências sociais, onde aplicava diretamente todas as ferramentas que obteve na licenciatura, agora vê-se numa central sindical a trabalhar sozinha, sob supervisão, e diz que “não há grande espaço formal para as teorias – só há porque eu o crio, sempre que posso vou à procura, porque isto também é uma mania dos sociólogos, não é? Querer contextualizar sempre tudo”. Para ela, a sua cultura profissional de associação não foi grandemente modificada pela sua inserção profissional, já que o tipo de trabalho que é chamada a fazer – dar resposta a questões ligadas ao emprego e aos conflitos laborais através da aplicação de métodos e técnicas sociológicos – torna o tipo de competências-base que Paula tem em requisitos fundamentais para a consecução das suas funções: ela foi contratada por ser socióloga e por ter currículo científico, e não apesar de o ser.

Também Marta foi escolhida, no fim da licenciatura, para integrar um projeto autárquico na câmara municipal de Alcanena devido à sua formação de base em sociologia; no entanto, rapidamente percebeu que um sociólogo numa autarquia não pode ter pretensões de mudar o mundo, mas pode canalizar os seus conhecimentos e competências de análise para fundamentar projetos de desenvolvimento a nível local: a sua cultura profissional – em que a sociologia era a chave para “tornar a sociedade melhor” – foi modificada pelo contexto organizacional, onde adaptou as suas competências sociológicas a um raio de ação comunitário e não geral.

Raúl, ao contrário de Beatriz – que, tal como Marta, afirma ter quando era estudante uma “visão romântica da sociologia (…) naquela altura estávamos muito confiantes de que estávamos ali todos a torcer por um mundo melhor” –, sempre teve uma atitude de maior pragmatismo em relação ao papel que, enquanto sociólogo, poderia vir a desempenhar profissionalmente. Desde o estágio, que fez quando acabou o curso, até hoje, esteve envolvido durante grande parte da sua carreira em trabalhos na função pública; atualmente ocupa cargos de coordenação de projetos em dois institutos, tendo elevada autonomia profissional: para si, a função que desempenha profissionalmente tem mais a ver com gestão de recursos humanos e aplicação de políticas públicas do que com sociologia; não obstante, continua a identificar-se culturalmente como sociólogo, nomeadamente no que diz respeito à forma integrada como mobiliza as técnicas de recolha de dados e a sua interpretação. Para Raúl, a sociologia aplica-se em combinação, e não em oposição, com saberes de outras áreas. Esta cultura profissional, combinada com o facto de ter elevada capacidade de imposição na estrutura hierárquica da organização em que trabalha, diminui a distância entre a forma como se autorrepresenta enquanto sociólogo e a forma como atua no seu trabalho.

Em suma, todos os sociólogos entrevistados partilham uma cultura profissional que admite a possibilidade de aplicação científica da sociologia fora da academia; concretamente, na sua prática profissional, o nível de “holismo sociológico” varia de contexto para contexto profissional. No caso de Beatriz – que atualmente é trabalhadora independente na área da filosofia prática para crianças –, e de Paula – que desde que trabalha no sindicato desenvolve sozinha todas as fases dos projetos em que está envolvida – verifica-se que uma maior descentralização da hierarquia laboral contribuiu para uma maior autonomia e, consequentemente, para uma maior adequação das competências sociológicas e da “sensibilidade sociológica” às funções desempenhadas. Isto é, para uma maior identificação profissional com a sociologia. Tal não se verifica com Raúl porque, desde o início, a sua cultura profissional não chocou particularmente com as estruturas organizacionais em que esteve inserido. Tão pouco se aplica a Marta, porque rapidamente adaptou as suas expectativas relativamente ao papel que as suas competências desempenhariam no dia-a-dia profissional.

A formação contínua e as competências contextuais na formação da cultura profissional do sociólogo

Quando confrontados com a pergunta “Sente-se sociólogo?”, cujo objetivo era forçar no entrevistado uma reflexão acerca do que significa ter uma licenciatura em sociologia não trabalhando na academia, todos os entrevistados disseram – abstraindo as nuances de uns para outros – que sim. Ou seja, admitem que as competências de base que ganharam durante a licenciatura não só estruturam, mais ou menos, a forma como praticam a sua profissão, como foram decisivas para as escolhas profissionais e formativas ao longo da sua trajetória de vida.

Beatriz diz claramente que “acho que é a minha formação e a minha sensibilidade de socióloga que me levou à filosofia para crianças. Foi o facto de eu perceber que a educação do século XXI é uma coisa que necessita de competências que a escola não dá (…) A minha visão da filosofia para crianças é uma visão ampla (…) uma visão da importância daquele tipo de abordagem para uma sociedade mais geral. É a forma como a educação tem que evoluir para que a sociedade assimile essas pessoas como indivíduos de forma inteira, íntegra. Não é uma forma ideológica mais no sentido filosófico e académico, de maneira nenhuma.”. O trabalho que realiza atualmente consiste em sessões de cerca de duas horas por dia, onde trabalha diretamente com crianças desde os quatro anos e as põe a refletir criticamente acerca de questões com que se deparam todos os dias: sem as inúmeras formações que fez desde que deixou o marketing na área da filosofia para crianças, o seu trabalho seria impossível. No entanto, para Beatriz, a sociologia – nomeadamente os paradigmas relativos às relações de poder e desigualdades sociais – foi a chave para compreender as necessidades educativas das crianças nas sociedades contemporâneas, coisa que na sua ótica não é suficiente fazer discutindo a nível académico, mas que pode e deve ser aplicado nas escolas. A sociologia mostra-lhe também a necessidade de contextualizar a sua intervenção num quadro macro – tendo em conta que a sua intervenção tem consequências no presente e no futuro.

Raúl beneficia, atualmente, mais diretamente das competências contextuais que ganhou através da experiência profissional do que da sua formação em sociologia; no entanto, foi a sociologia do trabalho que, desde logo, o interessou na área das políticas públicas e de emprego, e que lhe permitiu, posteriormente, desenvolver trabalhos e envolver-se em formações complementares que lhe fornecessem ferramentas práticas para que a sua visão sociológica dos fenómenos pudesse ser operacionalizada junto das entidades com que trabalhou. Para Marta, as competências que adquiriu em contexto profissionais também foram fundamentais para enquadrar as competências técnicas de base que adquiriu durante a licenciatura em sociologia: “A formação enquanto eu a tive não nos preparava, não nos dava uma luz daquilo que era a saída profissional, daquilo que seria o nosso exercício profissional no futuro, portanto, eu é que tive que o procurar e que o construir e me adaptar às necessidades das funções que iria desenvolver”.

Paula está, atualmente, a tirar um mestrado em Gestão de Empresas, depois de ter feito, há alguns anos atrás, um curso de formação para formadores: “tem tudo a ver com a sociologia. Até agora todas as minhas formações têm como objetivo maximizar as possibilidades de empregabilidade futuras”. Paula trabalha diretamente com dados relativos ao emprego e à inserção profissional, e tem uma visão informada e realista acerca da possibilidade de aplicação integrada das suas competências no mercado; por enquanto admite ter tido sorte, apesar de as condições de remuneração atuais serem muito abaixo daquilo que considera adequado para um técnico superior, e o tipo de contracto que tem não lhe dar garantias de futuro muito consistentes, razões pelas quais considera imperativo ir atualizando os saberes e competências que já tem, bem como adquirir novos em âmbitos diferentes dos da sua formação de base.

“Eu, sociólogo”: multidisciplinariedade e representações acerca do sociólogo

Os sistemas de representações acerca das diversas áreas disciplinares que predominam nos contextos profissionais onde o sociólogo se insere são um dos fatores que mais condiciona a capacidade de negociação e de imposição das competências sociológicas – e a possibilidade de adequação da identificação cultural do sociólogo à identificação profissional propriamente dita.

Tanto Raúl como Beatriz notam a estranheza com que o sociólogo é muitas vezes olhado por outros profissionais. “Desde sempre ouvi os meus colegas e patrões dizerem que nota-se logo que eu sou socióloga, faço muitas perguntas e digo coisas estranhas! (…) … é verdade que é uma chatice, muitas vezes andamos a pregar quando os outros todos ainda estão noutro registo (…)”. Beatriz está atualmente mais envolvida nos debates da filosofia do que nos da sociologia, mas nem assim deixa de se sentir, por vezes, como um peixe fora de água no meio de filósofos – que acha demasiado imersos na teoria – e de artistas – nos quais a barreira é precisamente o oposto, ou seja, o empirismo e a falta de visão de conjunto, que para ela é paradigmática da sociologia. No entanto, estas diferenças são tomadas por Beatriz como potencialidades e convites à interdisciplinaridade; ao contrário da sua experiência no marketing, onde o modelo de cultura profissional predominante não abria espaço à reflexividade e implicava uma atuação rigorosamente sincronizada de todos os elementos, nas aulas de filosofia para crianças, onde todos os profissionais – disputas disciplinares à parte – estão motivados para uma finalidade comum, mesmo que os meios de atuação sejam diferentes.

Raúl mantém, como cartão de apresentação fora do local de trabalho, a identidade de sociólogo. “Torna-se mais fácil, quando me perguntam o que eu faço, dizer que sou sociólogo em vez de estar a explicar o que um coordenador adjunto do QREN faz”. Mas quando trabalha com profissionais de outras áreas, nomeadamente juristas e economistas, nota uma diferença profunda na linguagem disciplinar que estrutura o modo de pensamento de uns e de outros acerca dos mesmos fenómenos. “É incrível como, mudando o olhar, muda radicalmente a perceção e a resposta que se dá aos problemas que temos de resolver em conjunto”. Muitas vezes, as pessoas com quem trabalha não sabem que a sua licenciatura é em sociologia; segundo Raúl isso não é importante, mas sim o tipo de competências que entram mais diretamente no seu quotidiano profissional – as competências técnicas contextuais que foi adquirindo.

Marta e Paula têm experiências de multidisciplinaridade bastante diferentes das anteriores. Para Marta, a distância entre a cultura dos profissionais com quem trabalhou – nomeadamente assistentes sociais e engenheiros – e a sua base de formação sociológica nunca foi problemática: via-se a cedência mútua, a troca de ideias práticas e o respeito pela especificidade paradigmática como uma mais-valia na construção de projetos de intervenção social. Paula, quando foi investigadora, trabalhou com outros cientistas sociais num projeto de cariz académico em que, por um lado, a diferença de paradigmas e perspetivas não era tão radical quanto seria se trabalhasse com profissionais de outros campos disciplinares, e por outro, a motivação para a interdisciplinaridade era grande, já que o fenómeno em estudo – a imigração em Portugal – beneficiaria de uma multitude de perspetivas em análise, tornando-o mais completo. A negociação foi, portanto, facilitada desde o início, por motivos simultaneamente técnicos e de proximidade paradigmática.

 

Reflexões finais: considerar a sensibilidade sociológica na definição dos perfis profissionais

Percebe-se que a cultura profissional não é algo que permaneça imobilizada e indiferente às externalidades, mas antes uma identidade contextual sensível à trajectória profissional e académica dos sociólogos, bem como à hétero-identificação que ocorre em todos os papéis profissionais que desempenham, e nos quais a sua formação de base é mais ou menos reconhecida, e mais ou menos valorizada. No entanto, parece indicado concluir esta reflexão acerca da sociologia-profissão atentando numa dimensão particular de atuação, pelo facto de estar presente de forma mais ou menos manifesta em quase todas as entrevistas realizadas: a sensibilidade sociológica, referida ao longo do artigo. Beatriz cunhou o termo, ao dizer o seguinte:

“Acho que é a minha formação e a minha sensibilidade de socióloga que me levou à filosofia para crianças. Foi o facto de eu perceber que a educação do século XXI é uma coisa que necessita de competências que a escola não dá (…) a minha visão é uma visão ampla, uma visão da importância daquele tipo de abordagem para uma sociedade mais geral. É a forma como a educação tem que evoluir para que a sociedade assimile essas pessoas como indivíduos de forma inteira, íntegra. Não é uma forma ideológica mais no sentido filosófico e académico, de maneira nenhuma.”

Para compreender a diferença entre sensibilidade, autorreflexividade e imaginação sociológica, parece inevitável a necessidade de revisitar Mills (1982 [1959]) e as principais características que associou à imaginação sociológica, sumariadas nestes quatro pontos: 1) ver o geral no particular; 2) situar historicamente os indivíduos e os fenómenos sociais; 3) detetar os grandes processos sociais que estruturam as sociedades contemporâneas; 4) usar de forma criativa e sistemática os instrumentos técnico-metodológicos próprios das ciências sociais, de forma a efetivar os três pontos anteriores. Podemos verificar que os entrevistados referem a sociologia enquanto traço cultural marcante na sua profissionalização, não se referindo, porém, ao ponto 4), pelo simples facto de o contexto profissional em que atuam não estruturar o seu papel profissional de forma a permitir uma atuação plenamente sociológica, no sentido em que não aplicam as tais técnicas e metodologias sociológicas, muito menos de forma sistemática. Aliás, associam esse tipo de prática plena da sociologia enquanto ciência apenas aos contextos de investigação académica. No entanto, Mills (1982) aproxima-se da definição que procuramos ao conceptualizar a imaginação sociológica como algo que vai além da produção académica, mas que se tornou “o principal denominador da nossa [sociedades de capitalismo avançado] vida cultural, e a sua característica marcante” (Ibid, pp.21), ou seja, como algo que estrutura a nossa forma de estar na vida, não apenas perante a profissão que desempenhamos mas perante nós próprios e o mundo à nossa volta.

Costa (1988) fala-nos da capacidade inerentemente sociológica de olhar a produção e a aplicação de conhecimento científico-social através do conceito de autorreflexividade sociológica, que define em relação à “sociologia enquanto prática social e sistema de representações, palco de conflitos de interesses e jogos de poder, sobre a prática da sociologia enquanto atividade científica e profissional socialmente condicionada, socialmente produzida e sempre com problemáticas consequências sociais” (Ibid, pp.114). De facto, a crítica permanente às implicações da sua atuação nos contextos profissionais e na realidade sobre a qual trabalham é um fator de grande importância para a maioria dos entrevistados, mas isso não esgota a associação cultural que sentem com a sociologia enquanto formação, ciência e profissão. Dito isto, pensamos ser a explicação autocentrada de Beatriz a mais indicada como ponto de referência para discutir o conceito de sensibilidade sociológica.

Denotamos dois eixos fundamentais que estruturam a sua perceção da sociologia enquanto traço identitário. Por um lado, a sociologia é um instrumento de compreensão informada e reflexiva do presente, que faz uso daquilo que conhecemos do passado recente de forma a melhor se projetar para o futuro. Aqui encaixam-se os três primeiros pontos estruturantes da imaginação sociológica de Mills (1982 [1959]). No entanto, é também um conhecimento em ação, na medida em que o seu valor é medido de acordo com a sua capacidade de se tornar num instrumento de ação positiva sobre a realidade. A sensibilidade sociológica não desliga a produção de conhecimento com a sua aplicação potencial ou efetiva, divisão muito comummente aceite aprioristicamente no meio académico: esta postura de vigilância epistemológica permanente corresponde à autorreflexividade sociológica de Costa (1988), dando porém maior ênfase à urgência da aplicação prática da sociologia na realidade.

Com isto, chegamos finalmente ao ponto de rotura que constitui, essencialmente, a forma de olhar a sociologia do ponto de vista de quem não a pratica no seu vetor puramente científico. Trata-se, muito simplesmente, de considerarem que aquilo que constitui o definidor principal da sociologia é, para eles, um traço identitário supraprofissional e supra-académico, transversal a toda a sua experiência e que se traduz inevitavelmente na forma como praticam o seu trabalho e são vistos no seu meio profissional. Assim, é possível ser-se sociólogo sem se fazer sociologia, tal como é possível aplicarem-se de forma rotineira os principais instrumentos técnicos e metodológicos próprios da disciplina sem se fazer uso da autorreflexividade e da vigilância epistemológica, fundamentais para uma intervenção orientada por princípios científicos e não apenas instrumentalistas. Os dois sociólogos caracterizados por terem um perfil sociológico rotinizado (Raúl e Marta) são precisamente aqueles para os quais a sociologia enquanto traço identitário é menos valorizada. Pelo contrário, Beatriz e Marta reiteram inúmeras vezes a importância da sociologia enquanto arma de compreensão e crítica permanente, tanto de si próprias quanto dos seus papéis profissionais, apesar de não fazerem tanto uso das técnicas e instrumentos metodológicos. A sensibilidade sociológica é, portanto, a capacidade para olhar os fenómenos sociais de forma integrada e sistemática, procurando sempre a complexidade das relações sociais e a curiosidade de fazer perguntas incómodas.

A introdução deste conceito vem, inevitavelmente, complicar o esquema de perfis e de culturas profissionais de Costa (1988). Retomando a discussão iniciada no início deste texto, colocam-se as seguintes questões: em que perfil(is) sociológico(s) faz sentido integrar a sensibilidade sociológica? E como classificar o tipo de laço cultural estabelecido com a sociologia por estes sociólogos? Começando pela última questão, por ser a de resposta mais simples, parece injusto e erróneo atribuir uma cultura profissional de dissociação a sociólogos cujo marco deixado pela formação em sociologia é inegável. O que se propõe é a autonomização da sensibilidade sociológica num perfil profissional distinto dos quatro avançados por Costa (2004), mas que partilha várias características comuns a uns e outros. Chamar-se-á a este conjunto de sociólogos que partilham uma ligação transversal à sociologia enquanto traço identitário de vigilância permanente o perfil sociológico latente – precisamente porque a sua profunda associação à sociologia nem sempre é manifesta, mas estrutura inequivocamente as suas práticas profissionais.

Vejamos quais são as características deste perfil, para além das referidas anteriormente relativas à imaginação sociológica de Mills (1982) e à autorreflexividade de Costa (2004):

1) A “convocação de um repertório amplo de instrumentos de base científica, selecionados e mobilizados de maneira criteriosamente e criativamente ajustada aos problemas, contextos e objetivos em causa (…)” é uma das características, partilhada pelo perfil sociológico integrador (Costa, 2004, pp.51). A divergência encontra-se fundamentalmente na capacidade objetiva de concretização de uma análise-atuação de base científica, isto é., não comprometida pelos interesses de quem define o problema a priori. Tudo depende da margem de manobra do sociólogo para conseguir desconstruir o problema social apresentado pela entidade empregadora e transformá-lo num problema sociológico – nesse caso, estaríamos perante um perfil integrador e não latente.

2) O reconhecimento da importância do domínio de técnicas de recolha e análise de dados de vários tipos para uma atuação informada sobre a realidade, e para a deteção de regularidades sociais. Neste aspeto, o contraste com o perfil sociológico rotinizado consiste na relativização da sua importância em comparação com a vigilância epistemológica, bem como na impossibilidade objetiva de incorporar essa análise no trabalho que se faz, dependendo do contexto profissional.

3) A negação da sociologia enquanto stock de conhecimento morto e estático pode ser confundida com aquilo a que Costa (2004) chamou um perfil sociológico desistente, que consiste numa “referência ‘em negativo’, algo a que se renuncia, ou que se rejeita, pelo menos no emprego, por não se encontrar maneira de se transpor eficazmente os instrumentos e os produtos cognitivos da sociologia para a ação profissional” (Ibid, pp.52). Trata-se, no entanto, de atitudes diferentes perante a sociologia, já que o perfil sociológico latente admite situações em que o contexto profissional não permite realizar um usufruto pleno da sociologia enquanto conjunto integrado de teorias, paradigmas, métodos e técnicas, não diminuindo por isso a importância da sociologia na forma como se trabalha.

Finalmente, termina-se com um apelo, para que a partir de iniciativas como as promovidas recentemente pelos docentes da Unidade Curricular Laboratório de Ética em Sociologia, a que se se associou a APS, se reitere a importância do incentivo aos alunos de sociologia e aos sociólogos fora da academia à participação ativa na formação de um campo sociológico que se quer sólido e conectado. Este texto foi um esboço daquilo que se pretende seja o início de uma discussão aprofundada e de estudos replicados, que venham a contribuir para a complexificação do estudo da sociologia enquanto profissão.

 

Referências bibliográficas

Bourdieu, Pierre (1997), Razões Práticas: sobre a teoria da ação, Oeiras, Celta Editora.

Costa, António Firmino da (1988), “Cultura profissional dos sociólogos”, Sociologia, Problemas e Práticas, 5, pp. 107-124.

Costa, António Firmino da (2004), “Será a sociologia profissionalizável?”, em Carlos Manuel Gonçalves et al. (orgs.), Sociologia no Ensino Superior: Conteúdos, Práticas Pedagógicas e Investigação, Porto, Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pp. 35-59.

Mills, Charles Wright (1982 [1959]), A Imaginação Sociológica, Rio de Janeiro, Zahar Editores.

 [1] Este artigo foi redigido com base numa comunicação apresentada no Seminário de LEPS: Desafios à Empregabilidade dos Sociólogos, que teve lugar no ISCTE-IUL, no dia 21 de Março de 2014.[2] Todas, com exceção das duas primeiras comunicações, apresentadas pelos docentes de LEPS − professor António Firmino da Costa, professora Rosário Mauritti e professora Luísa Veloso − e, que consistiram numa reflexão sobre o papel dos jovens sociólogos na sociedade portuguesa atual e na apresentação do panorama estatístico da inserção profissional efetiva dos cientistas sociais na atualidade, com especial atenção para os sociólogos.[3] Os sociólogos entrevistados – referenciados com nomes fictícios para preservação do anonimato – foram selecionados de forma não-aleatória, tratando-se portanto de uma amostra de conveniência e intencional. Os critérios para a sua seleção foram os seguintes: terem pelo menos uma formação de base em Sociologia, e estarem empregados num contexto profissional que fosse: a) relativamente qualificado; b) fora da academia e da investigação científica. A dimensão da amostra foi determinada a priori tendo em conta o tempo e os recursos disponíveis na altura da pesquisa.

Autores: Adriana Albuquerque