N.º 32 - agosto 2023
Andreia Barbas
FUNÇÕES: Concetualização, Investigação, Metodologia, Administração do Projeto, Visualização,
Redação do Rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Av. Dr. Dias da Silva, 165, 3004-512 Coimbra, Portugal
E-mail: andreiabarbas@fe.uc.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5458-2761
Resumo: O artigo explora a forma como se constrói e se representa a intimidade nas relações entre irmãs e irmãos, estabelecendo a coabitação e as práticas familiares como potenciadoras desta conexão. Com base em 68 entrevistas realizadas com recurso à foto-elicitação que reúnem 25 fratrias, das quais 9 recompostas e 16 nucleares, procurou-se compreender o que origina relações fraternais mais íntimas, mais próximas, mais familiares. Os dados mostram que a intimidade não é inata ao parentesco, mas sim criada, reproduzida e sustentada no quotidiano, através do tempo — nas trajetórias individuais e familiares — e perpassada no espaço — sobretudo, na fase da coabitação. Interpelar a intimidade nesta heterogeneidade permitiu: i) retratar diferentes níveis de intimidade e renunciar à idealização e uniformidade deste objeto; ii) tornar vísivel que estas relações não se estabelecem a partir do laço sanguíneo, e que precisam de outros elementos para serem consolidadas, reforçadas e (re)confirmadas.
Palavras-chave: fratrias, intimidade, quotidiano, relações entre irmãos.
Abstract: The article explores how intimacy is constructed and represented in siblings’ relationships, establishing cohabitation and family practices as enhancers in this connection. Based on 68 interviews and using photo-elicitation, which gathers 25 sibling groups, of which 9 half-siblings and 16 full-siblings, our aim was to understand what makes intimate, closer and “sticky” siblings’ relationships. The data shows that intimacy is not innate to kinship, but created, reproduced, and sustained in everyday life, through time — in individual and family trajectories — and generated in space — mostly in the cohabitation phase.
Looking at intimacy in this way allows i) to recognise distinct levels of intimacy and renounce the idealization and uniformity of this object; ii) demonstrate that these relationships are not built exclusively by the blood tie and that they need other elements to be consolidated, reinforced and (re)confirmed.
Keywords: siblings, intimacy, everyday life, siblings’ relationships.
Introdução
Crescemos e vivemos em confronto com a noção de família. Tanto através das experiências individuais e coletivas, como também surge representada na literatura, por intermédio da ficção, na imprensa, em imagens e vídeos publicitários, entre tantos outros formatos. As conceções sobre as relações familiares ancoram-se neste cruzamento individual, coletivo e social. O fenómeno da idealização da família circunscreveu-a a um lugar de conforto, de proximidade e de intimidade, mas todas as relações de parentesco são íntimas? O vínculo sanguíneo estabelece forçosamente proximidade? A intimidade é a mesma com os diferentes elementos da família? Procurar responder a estas questões remete-nos para explicações não dicotómicas, preterindo a categorização das boas ou más relações. Identificar os elementos que originam uma maior ou menor intimidade visibiliza a diversidade que caracteriza as relações familiares contemporâneas e abre a discussão às formas de ser, fazer e exibir as famílias.
Na década de 60 Donald Irish chamava a atenção na Social Forces para a indiferença face às relações fraternais nas investigações desenvolvidas no âmbito da vida familiar (Irish, 1964). Várias décadas depois, a mesma questão continua a ser assinalada por quem investiga sobre a vida familiar. A ausência é justificada por Buisson (2003) em dois argumentos: a invisibilidade que as irmãs e os irmãos assumiram enquanto objeto de estudo na análise sociológica; e a especificidade que lhes foi atribuída enquanto “acessórios familiares” das mães e dos pais, desconsiderando as suas próprias dinâmicas relacionais. Embora, nos últimos anos, tenha surgido internacionalmente uma atenção generalizada (Grigoryeva, 2017; Portner & Riggs, 2016; Tanskanen & Rotkirch, 2019; Zhang 2014), em Portugal, nos estudos sobre o parentesco as fratrias continuam à margem da análise sociológica e pouco se conhece sobre as suas funções ou sobre as suas relações (Portugal, 2014).
De forma a trazer as fratrias para o debate científico português, a investigação de doutoramento na área da Sociologia que dá origem a este texto explorou as relações entre irmãs e irmãos. As questões que conduziram a pesquisa enunciam-se da seguinte forma: i) Que características têm as relações fraternais? ii) Como se mostram? iii) Como se distinguem? iv) E o que as condiciona? A discussão aqui apresentada centra, sobretudo, a primeira e a última questão incidindo no conceito de intimidade. A extensão da investigação vai mais além, mas tendo em conta os objetivos do artigo e a dimensão clássica deste tipo de textos é aqui apresentada apenas uma parte dos resultados da pesquisa que se encontra na fase final. O trabalho de campo revelou que a intimidade é um dos fragmentos que compõe as relações fraternais, reproduzida e sustentada no quotidiano, mas também condicionada por variáveis que dão origem a diferentes níveis de intimidade nas relações fraternais. A partir das narrativas foi possível identificar a amplitude do conceito, pois os significados e as práticas do que é ser íntima/o não é comum a todas as pessoas. Além disso, a intimidade não é a mesma com todos os membros da fratria, da mesma forma que é variável no decorrer das trajetórias interpessoais e familiares.
O artigo explora na primeira parte o conceito de intimidade com base na discussão de Jamieson (1998, 2011), que aqui se entrelaça no contributo de Morgan (1996, 2011b) sobre as práticas familiares e na proposta de Finch (2007) sobre a exibição (tradução nossa) das relações familiares. A combinação destes quadros teóricos teve como intenção interpelar a intimidade no âmbito da operacionalização da pesquisa. Na segunda parte do texto é feito um breve roteiro metodológico e a unidade de análise é caracterizada. Por fim, discutem-se os resultados analisando as seguintes questões: i) O que constrói a intimidade nas relações fraternais? ii) O que potencia ou minimiza a intimidade nestas relações? iii) E como se manifesta a intimidade?
A discussão da intimidade
Será que todas as relações entre irmãs e irmãos são íntimas? E dentro de cada grupo a proximidade é a mesma com todos os elementos? Se o laço de parentesco é o mesmo o que diferencia estas relações? Para responder a estas questões procurou-se identificar que características tornam as relações fraternais mais próximas, mais íntimas, mais “grudentas” (Davies, 2019; Finch, 2007; Mason, 2018).
A discussão do conceito de intimidade é particularmente marcada na Sociologia por Jamieson (1998) através da obra Intimacy, que marca a sua evolução e as características relativas à contemporaneidade. A autora faz um mapeamento sociológico através de várias obras para interpretar a intimidade e os indícios da sua transformação no final do século XX. Nesta obra, Lynn chamou a atenção para o alcance do conceito na vida privada e apontou dimensões para a sua leitura, tais como, confiança, amor, cuidado, partilha, entendimento forte associação com alguém, partilha de um conhecimento detalhado entre sujeitos, conhecimento privilegiado face a outras pessoas e empatia (Jamieson, 1998). Mais recentemente, a autora publicou na Sociological Research Online recuperando o debate em relação à definição do conceito, reforçando a perspetiva de que não existe uma definição consensual e universal na definição de intimidade, e que resulta do contexto histórico e cultural (Jamieson, 2011). Por esta razão, propôs a intimidade enquanto prática, sustentada na abordagem de Morgan (1996, 2011b). Nas palavras da autora sobre as práticas de intimidade: “Practices of intimacy refer to practices which cumulatively and in combination enable, create and sustain a sense of a close and special quality of a relationship between people” [As práticas de intimidade referem-se a práticas que, cumulativamente e em conjunto, são capazes de criar e sustentar uma sensação de proximidade e de um vínculo especial nos relacionamentos interpessoais] (Jamieson, 2011, p. 153).
Outras autoras e outros autores têm contribuído com outras dimensões: reconhecer familiaridade, associação e afetividade com o Outro (Seymour & Bagguley, 1999); a partilha segredos (Smart, 2007); e, ainda, a identificação de afinidades (Mason, 2018). Tendo em conta esta diversidade de perspetivas e no âmbito da operacionalização da pesquisa, as práticas de intimidade foram definidas pelos próprios sujeitos, de forma a alcançar a amplitude destas interpretações. Perguntou-se às pessoas se tinham uma maior proximidade com certos elementos do que com outros, e que razões encontravam para essa relação privilegiada.
A valorização das práticas familiares: relações contruídas
A recente curiosidade pelo que as famílias fazem e como se mostram tem motivado a procura dessas respostas nas investigações sobre as relações familiares e desmontado a família enquanto objeto único e indefetível (Finch, 2007; Hall & Holdsworth, 2016; James & Curtis, 2010; Morgan, 2011a). A reconceptualização das famílias, das relações e do parentesco implicou novos modos de olhar a família. O trabalho de Morgan (1996) ao mapear as práticas familiares é, aqui, particularmente interessante, pois distancia a família enquanto estrutura à qual os indivíduos se vinculam, e principia a sua compreensão através das atividades, concretizadas em determinadas momentos, com significados próprios. O autor observa as relações familiares como uma parte da vida social, representada pelas suas qualidades e pelas suas caraterísticas (Morgan, 1996). Na sua definição: “Practices are often little fragments of daily life which are part of the normal taken- for-granted existence of practitioners. Their significance derives from their location in wider systems of meaning.” [Práticas são muitas vezes pequenos fragmentos da vida quotidiana, considerados como parte da existência normal e tida como garantida pelos participantes. O seu significado depende da posição que ocupam em sistemas mais amplos de significado.] (Morgan, 1996, p. 190).
A compreensão das relações fraternais como construídas no quotidiano possibilitou observar as atividades, as interações e as rotinas que fazem parte da dinâmica dos grupos de irmãs e de irmãos. Adicionalmente, considerar a intimidade a partir das práticas ofereceu a dissociação das representações e das práticas de intimidade. Como Jamieson (1998) assinala como é importante distinguir as histórias públicas sobre a vida privada e a vida que é efetivamente vivida pelos sujeitos. A autora identifica como existe uma crescente exposição sobre como a vida privada deve ser conduzida, e que envolve estereótipos e julgamentos, impondo-se tanto numa escala micro através das identidades pessoais, como numa dimensão mais macro, em torno da produção de políticas públicas (Jamieson, 1998). Considerar os quotidianos permite extravasar as representações e analisar as experiências concretas dos sujeitos sobre as suas dinâmicas de proximidade.
A exibição das relações: “mostrar família”
A proposta de Janet Finch (2007) ao sugerir o conceito de “Display” enredado na argumentação de Morgan (1996) sobre as práticas familiares procurou valorizar que os sujeitos tanto constroem as suas relações familiares através das práticas familiares, como também as exibem entre si, e para públicos relevantes, de forma a mostrar nessa exibição que aquelas relações são relações familiares. A definição que a autora sugere encontra-se na publicação Sociology: “the process by which individuals, and groups of individuals, convey to each other and to relevant others that certain of their actions do constitute ‘doing family things’ and thereby confirm that these relationships are ‘family’ relationships.” [a exibição é o processo pelo qual indivíduos e grupos de indivíduos transmitem uns aos outros e a públicos relevantes que algumas das suas ações constituem ‘fazer coisas familiares’ e, assim, confirmam que essas relações são relações de ‘família’.] (Finch, 2007, p. 67).
O desafio lançado por Finch (2007) relativamente à operacionalização do conceito foi aceite pelas investigadoras e pelos investigadores que trabalham sobre a vida familiar, privada, dando origem a um grande eco deste conceito na comunidade científica (Almack, 2008; Dermott & Seymour, 2011; Haldar & Wærdahl, 2009; Harman & Cappellini, 2015; James & Curtis, 2010; Lahad et al., 2018; Share et al., 2018; Walsh, 2018). É possível observar que o uso do “Display” é valorizado, sobretudo, nos arranjos familiares onde existe maior diversidade e fluidez, e que se afastam das “tradicionais conceções”, uma vez que, são essas as razões que prevalecem na apresentação do conceito. No entanto, Finch (2007) alerta que o seu uso deve ser transversal, porque assumir o carácter qualitativo das relações familiares e a sua relação com as identidades individuais (Morgan, 1996, 2011b) significa que todas as famílias precisam de um elemento de exibição para as sustentar, embora com diferentes níveis de intensidade, e que seja variável no decorrer das trajetórias individuais e familiares. Os relatos mostram que não basta ser íntima ou íntimo, é também importante “exibir” essa intimidade.
Argumenta-se, então, que as práticas de intimidade emergem das práticas familiares, mas também são exibidas entre os seus membros e para públicos considerados relevantes, centrando representações, ações e exibições.
Metodologia
Este texto apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutoramento, realizada em Portugal, entre 2018 e 2022. As questões que dão origem a esta investigação dirigiram-na para uma abordagem qualitativa. Usou-se a entrevista semi-diretiva com recurso à foto-elicitação como técnicas de recolha de dados. A fotografia não foi isolada na análise, pois teve como função ativar um lado mais sensorial no momento da situação de entrevista (Harper, 2002; Mason & Davies, 2009). Os resultados apresentam a análise das narrativas produzidas no momento da entrevista que, envolveu, os seguintes temas: trajetória individual e familiar do sujeito; fotografia representativa para aquele sujeito das suas relações fraternais; relação com cada elemento da fratria; proximidade e conflito; pessoas importantes dentro e fora do núcleo familiar com impacto nas relações fraternais; diferenças e semelhanças das relações fraternais face a outras relações familiares ou não familiares; e, por fim, os significados de ser irmã ou irmão. A postura metodológica no decorrer da investigação e que orientou o tratamento da informação recolhida caracterizou-se pela abertura à indução. Nos termos de Sílvia Portugal (2014, p. 73): “Nem a teoria é uma coleção de dados agregados, nem os dados são uma materialização dos princípios teóricos conhecidos. A teoria fornece padrões de inteligibilidade dos dados, os dados desafiam a sistematização e a construção de explicações”.
A seleção das fratrias escolhidas foi estabelecida em três critérios. O primeiro, relacionado com o ano de nascimento das mães das pessoas entrevistadas, definido no intervalo de 1950-1969[1]. O segundo, referente à heterogeneidade das fratrias, pessoas com idade igual ou superior a 18 anos, o tipo de família de origem (nuclear ou recomposta), a dimensão (díades, tríades ou alargadas), a composição sexual (femininas, mistas e masculinas), a região de naturalidade (Norte, Centro, Lisboa, Alentejo e Algarve), a zona (rural ou urbana) e a escolaridade dos sujeitos. O terceiro, em relação à disponibilidade de todos os elementos da fratria participarem na pesquisa, pelo pressuposto assumido em escutar a totalidade da fratria, de forma a obter a sua visão panorâmica (Ribbens McCarthy et al., 2003).
A unidade de análise é reflexo desta multiplicidade e 68 pessoas fizeram parte da investigação. Correspondem a 25 fratrias, das quais 16 nucleares e 9 recompostas[2]. Relativamente à composição sexual das fratrias, as nucleares totalizam onze mistas, três femininas e duas masculinas, e as recompostas identificam três fratrias femininas e seis mistas. O grupo das fratrias nucleares em termos de dimensão distribuiu-se da seguinte forma: nove fratrias compostas por dois elementos (díades); quatro fratrias compostas por três elementos (tríades); e três fratrias compostas por quatro ou mais elementos (alargadas). Já o grupo das fratrias recompostas corresponde a: quatro fratrias de dois elementos (díades); três fratrias de três elementos (tríades); e duas fratrias de quatro ou mais elementos (alargadas).
Sobre as características sociodemográficas dos sujeitos, a unidade de análise reflete a diversidade estabelecida na sua definição: a idade varia entre os 18 e os 49 aos; a escolaridade vai desde o 6.º ano até ao doutoramento; relativamente ao estado civil existem pessoas casadas, em união de facto e solteiras; e, por fim, há quem tenha filhas e filhos e quem não tenha.
As entrevistas foram realizadas individualmente e não houve qualquer confronto ou referência à informação que foi prestada nas conversas anteriores. Todas as pessoas assinaram um documento que informava os objetivos de pesquisa e aplicação dos dados. As informações que pudessem revelar características pessoais foram anonimizadas e os nomes aqui apresentados são fictícios. Cada pessoa escolheu o local de entrevista e a média de duração das entrevistas foi de uma hora.
Após a transcrição integral das 68 entrevistas e a sua análise no software MAXQDA destacaram-se 16 fragmentos que compõem as relações fraternais, sendo a intimidade um desses temas. A montagem dos resultados não foi feita através de cada grupo de irmãs e/ou irmãos, mas sim dos elementos que constroem, distinguem, mostram e condicionam estas relações. A forma encontrada para compor esta análise foi através da indexação de temas. Não significa que todos os fragmentos existam integralmente em cada fratria, são pontos de entrada para a interpretação destas relações.
Resultados
Como se constrói a intimidade? O que promove que se estabeleçam relações íntimas com alguém? Ou, pelo contrário, o que a constrange e condiciona? Se existem relações privilegiadas no grupo de irmãs e de irmãos, e outras não, o que lhe dá origem? Embora, conceptualmente o amor e a intimidade estejam ligados, o entendimento do que é ser íntimo ou próximo de alguém foi algumas vezes desagregado do amor pelos sujeitos. Isto é, as pessoas não revelaram amar mais um irmão, ou uma irmã, mas assumiram sentir-se mais próximas e próximos de alguns membros da fratria (no caso das fratrias tríades e alargadas). Se é possível identificar uma maior proximidade, intimidade e afinidade em algumas das relações, significa que a construção da intimidade é condicionada pela presença ou ausência de determinadas questões.
Aborda-se nesta secção três questões que se entendem relevantes na discussão da intimidade nas relações fraternais: O que constrói a intimidade? O que a potencia ou minimiza a intimidade? E, por fim, como se manifesta essa intimidade? As respostas a estas perguntas sustentam-se na análise das narrativas das entrevistadas e dos entrevistados. Por se entender que os dados de caracterização das fratrias são importantes, no final de cada excerto, encontra-se apresentada a fratria pela seguinte ordem: FN (fratria nuclear) ou FR (fratria recomposta); número de elementos que compõem a fratria; composição sexual da fratria (mista, feminina ou masculina); e a ordem de nascimento do elemento que surge nesse excerto.
O que constrói a intimidade?
A sincronia do tempo e do espaço
O tempo e espaço surgiram como elementos determinantes na construção da intimidade. Ao contrário do vínculo atribuído pelo parentesco, e que ocorre de forma imediata (com o nascimento de uma irmã ou de um irmão), a intimidade é firmada no decorrer do tempo, no espaço.
O caso seguinte foi escolhido para iluminar uma das possíveis interpretações relativas à distinção da intimidade numa fratria de três elementos, uma vez que, a irmã mais nova partilha apenas a mãe em comum. Rute identifica que, pela coabitação, e pela partilha de experiências ao longo da vida, a sua irmã mais velha, Benedita, a “sabe de cor”, ao contrário da sua irmã mais nova, e com a qual não partilhou tanto tempo a experiência de viver em conjunto.
A Benedita sabe-me de cor. A minha família… os outros [familiares] não sabem. Os outros… sabem quem eu sou, mas há todo um limite de informação que os pais não têm de saber. E que… não faz parte. E os irmãos sabem. Os irmãos são amigos. São os guardadores de segredos. Tudo o que eu vivi, ou parte… quase tudo o que eu vivi ela [irmã mais velha] viveu também. Então é daquelas… é tipo ter memórias a dois. Uma pessoa que olhas para trás e que viveu tudo o que eu vivi. E lembra-se, tem outra perspetiva. E é uma pessoa que… ainda bem que ela viu, porque há coisas que se vão perdendo com a idade, de memória, e depois falamos sobre isso e é verdade. Há coisas que eu até desconstruí, na minha cabeça, e depois ela ajuda-me a construir de volta: “Mas não te lembras que era assim?” E é giríssimo quando passamos a cassete toda para trás, e nos lembramos de momentos que, neste momento, só eu e a Benedita é que sabemos. Não há mais ninguém no mundo, que não seja a Benedita, que se lembra daquilo que eu me lembro. E isso é giro! (Rute: FR · 3 · FEM · 2.º)
Outro exemplo é o de Salomé que tem uma irmã mais nova — por recomposição por parte da mãe — e que refere o entendimento comum que há entre irmãs.
É por tudo, ela [irmã] sabe tudo o que eu passei, ela sabe as minhas vivências desde o falecimento do meu pai, que ela sabe que é uma coisa que custa muito, e que nunca ultrapassei. E ela sabe disso. E ela sabe tudo. Ela sabe tudo o que aconteceu com a situação do meu marido, apesar de ela ser pequena, ela recorda-se perfeitamente. E se for alguma coisa ao contrário, eu também sei as coisas, pronto. Sei o que é que ela passou, sei situações que ela viveu que os meus pais não sabem. Que nós ocultámos. Não teriam de ser… não teriam de ser ditas. Algumas, entretanto, já se souberam, em situações de família que alguém… pronto. Depois, a partir daí, que tivemos de dizer, mas que guardámos durante muitos anos, muitos anos para nós. Hum… isso não se partilha com ninguém, não, não. Isso é mesmo… é mesmo uma coisa só… só nossa. É mesmo uma coisita só nossa. É… pronto. É aquela afinidade… é aquela questão de a gente estar ali sozinhas [a Salomé e mãe] e viver ali sozinhas e, de repente vir lá uma pirralha não sei de onde [expressão usada para dar conta do nascimento da meia-irmã], e a partir daí, pronto, a gente acaba por… e é isso tem a ver… tem tudo a ver com… tem tudo a ver com carinho e com afeto. Do facto de sabermos a história uma da outra, e do facto de sabermos que temos de ser assim para… para melhorarmos a nossa qualidade de vida e a dos nossos pais. (Salomé: FR · 2 · FEM · 1.º)
O que potencia ou minimiza a intimidade?
A partir das narrativas, é possível identificar que a intimidade não é uma qualidade intrínseca às relações fraternais, pois pode ser potenciada ou minimizada por outras questões. Que questões são essas? Os dados mostram como as memórias, a “linguagem”, a partilha de redes e os gostos comuns são elementos agregadores, tal como a amizade. Da mesma forma que, a ausência destes elementos foi apontada para justificar uma menor intimidade.
A memória, as referências e a linguagem partilhada — ou a sua ausência
A linhagem evoca as memórias e a história familiar comum. Rita é a irmã mais velha de uma fratria nuclear díade e mostra como a sua história de vida é partilhada com o irmão, tal como os valores e a educação dada pela mãe e pelo pai. A entrevistada identifica como estes atributos comuns são significativos na construção da identidade familiar.
Porque os nossos pais são muito importantes, não é? São quem nos põe no mundo. São quem nós devemos tudo. Devemos os sacrifícios que eles fazem, a educação que eles nos passaram, os valores, e aquela pessoa [irmão] é um bocadinho o que vem dos nossos pais, não é? Ou seja, se nós nos juntarmos temos sempre connosco os nossos pais, a família. Ou seja, eventualmente um dia quando eles partirem [mãe e pai], nós os dois [irmãos] conseguimos olhar para trás e sabemos, nós os dois, ou seja, juntos, como se fosse um puzzle, encaixamos e vamos buscar a mãe, o pai, o avô, a avó. (Rita: FN · 2 · MIST · 1.º)
Isabel pertence a uma fratria recomposta de cinco elementos, mas nunca coabitou com um dos elementos da fratria. Quando foi questionada sobre a pessoa da qual se sentia menos íntima identificou um dos elementos da fratria. A justificação atribuída a esse afastamento tem a ver com a falta de pontos comuns e que levam a um distanciamento.
Imagina, a [meia-irmã] vem para cá passar um fim de semana. E nós [família alargada] estamos todos. Eu não… eu acho que ela está sempre em constante provocação. Acho que ela está sempre tipo a testar-nos. E a ver até onde é que nós vamos. E se puder provocar um bocadinho provoca. O meu pai foi passar um fim de semana com o [irmão mais novo] a [identificação da cidade fora de Portugal] e ela… estavam a jogar todos às cartas e ela tem um mau perder desgraçado. Estava ela, o marido, o meu pai e o [irmão mais novo]. E, ela, a certa altura começou a perder, ou não estava a ter razão nalguma coisa, e começou a chamar nomes ao marido, e levantou-se da mesa e disse que não jogava mais. Portanto, perante uma atitude destas, tipo, eu fico a olhar e penso: eu nunca seria capaz de fazer isto. Nem com o meu marido, nem com um irmão, nem à frente do meu pai, muito menos, tipo nem com amigos meus. Percebes? Eu não me identifico com ela em nada. Acho que não tem a ver com o não vivermos juntas, tem a ver simplesmente com a maneira de ela ser. Eu não me identifico… eu acho que ela é uma pessoa super interesseira, um bocado egoísta, só faz aquilo que ela quer, é só quando lhe interessa. (Isabel: FR · 5 · MIST · 3.º)
A partilha de redes e interesses comuns — ou a sua ausência
A partilha de interesses comuns entre as irmãs e os irmãos foi mais um elemento apontado pelos sujeitos. São vários os exemplos dados, tais como, viagens, atividades desportivas, interesses musicais, atividades extracurriculares entre outros exemplos. Gostar das mesmas coisas promove uma maior interação entre os membros da fratria. Carlos pertence a uma fratria nuclear díade e refere que sempre partilhou o grupo de amigos com o irmão mais novo, assim como as atividades nos tempos de lazer, e que ainda hoje em dia são comuns.
Acho que é o estar tantos anos juntos. E o facto de estarmos sempre juntos. É que há irmãos que se dão bem… de certeza que têm uma boa relação de irmãos, mas há muita separação: eu tenho os meus amigos, tu tens os teus; estamos juntos em casa, mas fora de casa não estamos juntos ou estamos juntos ocasionalmente fora de casa.
Comigo e com ele [irmão] não acontece isso. Estamos quase sempre [juntos], é sempre partilhado. O grupo com quem jogamos à bola é o mesmo — agora não que estou aqui —, mas pronto. Sextas-feiras à noite é sempre… estamos lá sempre. Acho que é por causa disso. Não há um… eu estou com ele em todos os contextos. Eu conheço o contexto em casa, eu conheço o contexto com os amigos, então… acho que é isso. Não… não há nada de errado com irmãos que não façam isso, nós calhou ser assim. Acho que não há uma maneira mais certa ou errada de fazer as coisas. Neste caso, é assim. (Carlos: FN · 2 · MASC · 1.º)
De modo inverso, a ausência de interesses semelhantes reduz as interações entre os elementos da fratria. Tiago é o irmão mais velho de uma fratria nuclear de dois elementos e afirma não ter atividades comuns com o irmão.
Só [atividades] nossas, não. Só nossas, não. Não. Porque nunca fomos pessoas, lá está. Nunca… nunca… nunca tivemos essa necessidade de… de fazer essas atividades, só nós. Não. Eu da minha parte falo. Nunca senti que… como somos pessoas diferentes… temos gostos diferentes… maneiras de pensar diferentes… maneiras de fazer coisas diferentes, obviamente… ele terá gostos diferentes. E eu tenho outros gostos. E os meus gostos não são os gostos dele. E então como não são os gostos não… não nos juntamos para fazer atividades. Ou não vamos jantar, não. Não há essa… se calhar, um dia mais tarde quando as coisas estiverem mais calmas. Quando a vida for diferente, talvez isso aconteça. Talvez isso aconteça. Talvez isso aconteça. (Tiago: FN · 2 · MASC · 1.º)
A amizade — ou a sua ausência
Os valores circunscritos ao amor, carinho e amizade emergem nas representações das relações fraternais. Contudo, a análise das narrativas revela que a amizade não é criada da mesma forma que o laço de sangue. Não só a amizade é uma escolha, ao contrário do parentesco, como o vínculo sanguíneo é atribuído de forma imediata, por oposição à amizade que se vai construindo entre os membros da fratria. Rute pertence a uma fratria recomposta feminina de três elementos e a sua relação com uma das irmãs tem características que reconhece identificar nas suas relações de amizade. Como identifica a entrevistada é uma adição ao que já existe.
Mas eu acho que o que tem piada na relação de irmãos é a amizade que se cria. Eu acho que os irmãos — foi como eu disse há bocado — os irmãos são irmãos por sangue, mas são amigos por escolha. E quando tu consegues ver um amigo num irmão é brutal. (Rute: FR · 3 · FEM · 2.º)
Moisés compõe uma fratria recomposta de cinco elementos e é o irmão mais novo dessa fratria. Ao falar sobre as suas relações com os membros da fratria contou que, atualmente, não tem uma relação de amizade com um dos elementos da fratria. Significa isto, que ao contrário do parentesco ao qual não se pode renunciar, a amizade por ser quebrada.
Epá, por exemplo, caraterístico meu e a [meia-irmã] … característica minha e da [mesma meia-irmã]? Sabes que eu me separei muito da [meia-irmã]. Com estas porcarias eu… eu afastei-me muito porque não queria… não queria conflitos, não queria porcarias. Ela, às vezes, julgava-me em coisas e eu não tinha paciência. E eu sempre… eu imagino a [meia-irmã] como uma pessoa… tenho uma imagem má, estás a perceber? Tenho um mau sentimento quando estou ao pé dela, não gosto. Eu gosto muito dela, ela gosta de mim, ela quer que a nossa relação fique de muitos amigos, muito maninhos, muito juntos, mas eu não consigo. Porque ela… já temos um passado que ela me chateou. Ela fez-me passar as passas do Algarve, a minha infância, percebes? Lixava-me a vida. Era mazinha, mesmo. E agora não há volta a dar, acho eu. E a caraterística é que… eu acho que vou dizer os conflitos. Com a minha irmã, um conflito muito grande, uma separação muito grande que eu não tinha, por exemplo… a minha mãe é muito diferente de mim, mas é minha mãe, percebes? A minha irmã posso… posso manter a distância. (Moisés: FR · 4 · MIST · 4.º)
Como se manifesta a intimidade?
Nas antecipações e nos silêncios
A expressão usada de se conhecer alguém de cor surge, normalmente, associada a pessoas com as quais se tem muita intimidade, e daí ser possível antecipar as suas reações e saber interpretar os silêncios. Foi possível observar que quem coabita, por partilhar uma vida comum, tem um maior conhecimento do Outro. As irmãs e os irmãos que sempre viveram juntas e juntos identificaram ser capazes de conhecer e antecipar as reações dos outros membros da fratria. Carlos pertence a uma fratria nuclear díade e refere saber os limites dos temas que pode abordar com o irmão, para que não haja desacordo. Face à questão “Costumo perguntar sobre temas que têm maior desacordo, ou conflitos… pensando na relação nos dias de hoje… o que é que vos faz discordar? Que temas são esses?”, respondeu:
[suspiro] não são muitos [silêncio]. Politicamente, talvez não concordemos muito um com o outro. Tendências diferentes, acho eu, não é grave. Também não falamos disso, por isso… [risos]. Eu, às vezes, eu sabendo que ele — e, se calhar, ele pensa a mesma coisa de mim — sabendo que ele, sabendo o feitio dele… às vezes, prefiro não dizer nada e ficar calado sobre certos assuntos. Do que estar a expor e… do que estar a expor e ficarmos chateados. (Carlos: FN · 2 · MASC · 1.º)
Camila pertence a uma fratria recomposta tríade e sempre viveu com a irmã mais velha. Por essa razão, afirma dizer saber o que a irmã sente, sem ser preciso qualquer diálogo.
É que eu conheço tão bem a minha irmã que acontece alguma coisa e eu sei exatamente como é que ela se está a sentir. Por exemplo, gozam imenso connosco porque… na minha família, se eu vir a [irmã] a chorar, vou começar a chorar. E se a minha mãe nos vir a chorar, vamos chorar todas ao mesmo tempo [risos]. E isto já aconteceu N vezes, e olham logo para nós a dizer: “Pronto, já está tudo a chorar!” Exatamente por isso, porque… a minha irmã começa a chorar e eu sei o que ela está a sentir. E ser irmão é muito isso… é… de uma forma automática, tu conheces a pessoa tão bem que sentes o que ela sente e compreendes e já me estou a emocionar toda [lágrimas]. Isto está a ficar gravado, ainda por cima [risos]. (Camila: FR · 3 · FEM · 2.º)
Aurora é a irmã mais velha de uma fratria nuclear díade. Ao falar sobre a sua relação com o irmão refere como não é preciso verbalizar determinadas questões, porque o irmão “sabe e compreende”.
O que eu sinto é uma sensação de segurança. Que aquela pessoa [irmão] nunca me vai falhar, e que me compreende, e há coisas que eu nem preciso, sequer, de lhe dizer… sobre mim, porque eu sei que ele sabe. Pronto, eu sinto que com outras pessoas eu tenho de justificar muito mais as minhas ações e aquilo que eu estou a sentir. E a forma porque é que eu… fiz aquilo. E ele sabe. E já tivemos situações em que eu estava a explicar-lhe alguma coisa muito profunda sobre mim, e eu percebi que ele percebeu. E não era preciso explicar mais, porque ele percebeu. E, se calhar, ele é igual. E esse tipo de identidade, eu não… acho que não senti com mais ninguém, pronto. (Aurora: FN · 2 · MIST · 1.º)
Nos segredos
Recentemente os segredos têm sido foco de análise para quem investiga as relações íntimas, familiares. O artigo publicado na Sociology por Smart (2011) mostra o interesse em compreender o significado sociológico dos segredos, não pelo seu conteúdo, mas sim, pela compreensão multidimensional que é possível ter através da sua leitura. A autora começa por referir que as pessoas reconhecem haver segredos nas famílias, mas dada a natureza da informação pode ser difícil explorar o tema em termos analíticos (Smart, 2011). No caso deste trabalho, não se procurou analisar que segredos as irmãs e os irmãos partilham (ou escondem), mas sim como estas informações ocultas fazem parte destas relações e que servem para mostrar em quem se confia, quem é íntimo. Torna-se, assim, mais um elemento de união, de intimidade entre os membros da fratria. Rodrigo e Camilo que pertencem a duas fratrias díades reconhecem como a partilha de segredos é distintiva face a outras relações.
O que é que é só nosso? Aquela cumplicidade, aqueles nossos segredos que nós temos. Aqueles pequenos segredos que nós temos, que nós nunca vamos contar aos nossos pais. O facto de um ou outro fumar um cigarro. Eu agora já não fumo, portanto, ela, se calhar, agora, também já não fuma, mas, na altura, da Universidade fumávamos. O facto de: “toma lá dois contos — na altura, ainda era contos —, mas toma lá 10 euros para comprares um maço de tabaco” etc. E aqueles pequenos segredos que nós temos de irmãos. E a forma como nós encaramos também o futuro dos nossos pais. Porque nós também falamos nisso em backoffice, não é? Também falamos nisso só os dois. E pensamos muitas vezes nos problemas que eles possam vir a ter e daí advir, mas são… são pequenos segredos. São pequenos segredos que nós não conseguimos contar a ninguém. E nem aos nossos cônjuges. São pequenos segredos que nós temos. E que nós guardamos só para nós. (Rodrigo: FN · 2 · MIST · 2.º)
Se calhar, o desabafar um com o outro. Há certas coisas que nós não desabafamos com os pais, que desabafamos com os irmãos. Há certos segredos que ficam entre irmãos. Há certos segredos que ficam entre irmãos, não chegam aos pais. Há muita coisa. Há muita que nós… o apoio. Há muito apoio que nós aí fora… nós, em casa, o apoio dos pais é uma coisa, e o apoio do irmão é outra. O irmão convive com a gente no dia a dia, aí fora de casa e coiso. E os pais é totalmente diferente. Os pais é aquela coisa do: “Vê lá, não faças isto. Não fujas para aqui, não fujas para ali.” E os irmãos é totalmente diferente: “Vê lá… achas que devo fazer?” “Não sei, pensa tu. Se fizeres, eu ajudo-te. Se não quiseres.” É totalmente diferente. Por isso, é que eu digo, que muitos dos segredos ficam guardados entre irmãos. (Camilo: FR · 2 · MIST · 2.º)
No entanto, é importante destacar que nem todos os segredos são partilhados de igual forma dentro do grupo de irmãs e irmãos. O exemplo de Clara, que faz parte de uma fratria nuclear, composta por quatro irmãs dá conta desta questão.
Não quer dizer que eu tenha o mesmo tipo de conversa com as três [irmãs], não é? Mas pelo menos com uma [irmã] tenho. Com a [irmã mais velha], tenho. E não há segredos. Nós podemos desabafar em termos de… em termos familiares, em termos financeiros. Em termos de filhos. Em termos do que a mãe faz e que à gente não nos agrada. Da vida da mãe… [risos], não é? Da vida da outra. Da outra irmã… da vida da amiga… não precisamos de dizer: “Não vás contar nada.” Porque já sabemos à partida que não vai contar nada. Conseguimos ver o tipo de conversa que é… que não é para a gente ir dizer à outra [irmã]. Porque é uma partilha entre duas [irmãs]. (Clara: FN · 4 · FEM · 3.º)
Na doença e nos problemas
Os episódios menos positivos de vida também foram referidos pelas irmãs e pelos irmãos. Em momentos mais difíceis surgem alguns nomes em destaque no apoio ou na resolução dos problemas. Alguns membros das fratrias identificaram que recorriam às irmãs ou irmãos por serem figuras mais próximas, mais íntimas e com quem se está à-vontade para partilhar. Tiago mostra como o irmão se pode sempre socorrer nele.
E é mais… nós, aqui, caracterizamo-nos mais pelos problemas. Ou seja, quando sei quando há um problema… é mais por ele, não é mais por mim. É a mim a quem ele recorre. Pode não reconhecer isso, mas tem sido assim. Tem sido assim. Que eu não acho mal, eu acho bem. E estou cá para ajudar. Atenção! Sou irmão dele, eu estou cá para o ajudar e quero… e quero ajudá-lo. Mas é mais essa… esse… mais nos problemas que nós nos encontramos do que propriamente nas coisas boas. Que, infelizmente, obviamente vendo a vida assim um bocadinho… em retrospetiva… tem havido mais coisas más do que coisas boas. E as coisas boas, neste momento, acho que não se conseguem sobrepor às coisas más, mas pronto, há de haver um dia que isso há de passar. (Tiago: FN · 2 · MASC · 1.º)
Nas cicatrizes que contam histórias
Outro elemento que surgiu ao longo das conversas foram os episódios destas relações marcados por cicatrizes dos próprios ou das irmãs ou irmãos. De forma a ilustrar estes episódios os relatos de Joana e Rodrigo dão conta destes casos.
Por exemplo, houve uma vez que o meu irmão nunca mais se esqueceu… Ele foi atrás de mim para me dar porrada tipo… Eu disse que não ia brincar com ele e ele foi atrás de mim… E a minha porta ainda hoje nem tem o vidro, porque ele foi a correr e eu fechei-lhe a porta com tanta força… Ele espetou a mão no vidro. Ainda tenho lá tipo o buraco. Nunca mais pusemos o vidro e pronto… há coisas assim. (Joana: FN · 2 · MIST · 2.º)
Lembro-me de uma [história], isso é uma coisa que vai ficar para a vida. Que é uma cicatriz que ela tem na perna, não sei se é na perna esquerda, se é na perna direita, que andávamos os dois a brincar com uma tijoleira em casa, e que eu atirei a tijoleira para ela, mas na brincadeira, e lhe acertei na perna e ela fez uma ferida enorme. Que precisou… não foi suturada, mas tem lá uma marca muito grande. E essa marca acaba por ficar. E nós andávamos a saltar de tijoleira para tijoleira, mas eu acabei por, na altura, saltar, e ela não conseguiu saltar, e acabámos por… e ela ficou com aquela marca, e eu acabei por levar… uns tabefes do meu pai, mas ela… ainda hoje nos rimos dessa situação, porque uma cicatriz que ela leva para a vida, mas é uma cicatriz que nós ambos nos lembramos que nós estávamos a brincar. E foi, sobretudo, na brincadeira, ou seja, não foi… não fui eu que quis molestá-la ou lhe quisesse bater e que lhe tivesse feito aquilo por querer, mas é uma cicatriz que ela tem e como recordação de uma brincadeira estúpida que nós estávamos a ter. (Rodrigo: FN · 2 · MIST · 2.º)
Nos títulos: as madrinhas e os padrinhos
Os títulos de madrinhas e de padrinhos também foram significativos nesta mostra de proximidade e de intimidade. A representação de que as madrinhas e os padrinhos podem (ter de) assumir as funções parentais na ausência das mães e dos pais justifica os motivos apresentados pelos sujeitos na escolha do título, ou seja, delegam em quem têm mais confiança para cumprir esse papel. Se por um lado, este título é escolhido pela proximidade que existe na relação, o próprio título também reforça o que já existe, surgindo como mais um elemento de aproximação, de temas comuns de vida(s) partilhada(s). Helena e Graça destacam como este papel é exemplarmente assumido por elementos da fratria e, por essa razão, as suas escolhas.
E, só para teres uma ideia, os meus irmãos são os padrinhos da [filha mais velha] e vão ser os padrinhos da [filha mais nova]. Eu acho que não faz sentido ser mais ninguém. O meu marido não tem irmãos. E os meus irmãos são… são… são… são os segundos pais da [filha mais velha]. E, eu, qualquer coisa… eu tenho uma consulta, preciso que alguém fique com ela, que a vá buscar à creche, ou no caso da mais velha, que a vá buscar à escola e que a ajude a fazer os trabalhos de casa. Que prepare a sopinha… são os meus irmãos. Fazem isso. Os meus irmãos são aquelas pessoas que eu sei que posso contar e que confio plenamente. Vou à vontade e deixo as minhas filhas que são mais que tudo para mim, sem dúvida. São as pessoas que se eu não puder apoiar, por alguma razão, não é… sei que eles vão fazer isso por mim. E eu sei que vão fazê-lo bem e que fazem com… com mesmo muito amor, muita dedicação. (Helena: FN · 3 · MIST · 1.º)
Entretanto, a [irmã] é madrinha do meu filho, que eu disse sempre que ela seria madrinha do meu primeiro filho, do [nome próprio do filho]. Eu sou madrinha da [sobrinha]. Acompanhei a gravidez dela toda, assim mesmo muito de perto. Hum… do ponto que… quando ela nasceu, eu fui a segunda pessoa a pegar na pequenita, e a enfermeira tinha… o meu cunhado queria o colo da pequenita e eu disse: “Deixa-me pegar só um bocadinho, só um bocadinho.” E eu peguei, e ela parou imediatamente de chorar, porque eu conversei… falei para ela. Portanto, todos os dias falava para a barriga dela. Todos os dias que via. Quando não via, falava ao telefone e dizia: “Olha, desculpa lá, põe lá, agora um bocadinho o telefone junto da barriga, para ela ouvir a minha voz.” E ela mexia-se muito quando eu conversava com ela. E, e realmente, reconhecê-la. E temos assim uma paixão. E ela é minha sobrinha, e certamente, se não fosse assim, também a adoraria, mas é uma relação assim muito próxima. E a minha irmã diz que ela é assim muito parecida comigo, porque é assim muito vaidosa, porque é muito “mimocas”, e porque não sei o quê [risos]. (Graça: FN · 2 · FEM ·1.º)
Nas contradições: entre as expetativas e a realidade
O desfasamento entre as representações e as interações é mais um elemento que deve ser considerado quando se apontam as dimensões analíticas do conceito de intimidade. O que se espera destas relações, nem sempre corresponde ao que de facto se vive nas interações. Marta integra uma fratria recomposta de quatro elementos, e retrata um dos episódios que dá conta do desconforto que sente.
Tanto que isto faz-me… eu como sou, que eu sou uma pessoa muito dada, e carinhosa e isso assim… faz-me impressão. E penso estes anos todos… e eu vou ser sincera, eu, às vezes, quando estamos todos em família, eu, às vezes, irrito-me e até… e até digo à minha mãe: “Epá, não me chames quando estão todos.” Porque há certas situações que acontecem. E eu com o avançar dos anos ganhei maturidade, e acho que depois, lá está, outra vez, depois de eu ser mãe, acho que há certas situações que se criam que não há necessidade. Caramba! É a mesma coisa que eu agora penso: eu tenho os meus filhos, eu separo-me, e eu vou fazê-los passar por isto? Não há necessidade. E há certas coisas que ainda hoje acontecem, que me transcendem. E eu penso: Caramba! Como é que com o passar dos anos as pessoas não mudam? E eu… se calhar, eles queixam-se do mesmo, não sei. Daí [pensar em] terapia familiar. (Marta: FR · 4 · MIST · 3.º)
Marta acrescenta ainda, em resposta à questão “E que momentos são esses?”:
Ah, sei lá! Certas coisas… coisas assim mesmo básicas. E eu penso: para que é que estão a arranjar confusão? Por exemplo, houve muito… olha, uma coisa que eu me lembro. Muito, muito, muito… a Pureza, mais a Pureza… e também o Simão. Mas tipo chegavam e tinha de haver o momento, eu até brincava antes, o “Momento Cerqueira”. Que era: iam todos para um sítio, ninguém podia lá entrar e estavam ali a falar horas infinitas e eu era tipo posta de parte. Estás a ver? Ou falarem por código. É um bocado estranho a nossa relação, é pena, mas pronto. As pessoas são como são. E, depois, a certa altura… lá está, depois de eu ter criado a minha família, houve certas coisas que eu deixei de ligar tanto, pronto. Com a idade acho eu. (Marta: FR · 4 · MIST · 3.º)
Outro exemplo desta descoincidência é o caso de Mel que integra uma fratria recomposta e mostra como a sua representação de intimidade da relação com o seu irmão não corresponde depois às práticas e às interações do que é ser próxima ou conhecer alguém. Transmite Mel em resposta à questão “Há alguma coisa que eu não tenha perguntado e que seja importante sobre o tema? Sobre as relações?”:
Nós moralmente somos muito próximos. Moralmente… acho que não é esta a expressão que eu quero dizer. Portanto, nós pensamos um no outro como irmãos. Ou seja, eu achei que lhe devia dizer, que me ia casar, por exemplo, de forma diferente do que disse a outras pessoas, não é? Portanto, eu represento-o como sendo mais próximo de mim, mas efetivamente não é. Percebes? Mas como eu sei que é meu irmão, e há este peso da fraternidade na família, não é? Eu sinto-me… por exemplo, agora para as prendas de Natal. Tu compras sempre para os mais próximos uma prenda um bocadinho melhor. E eu efetivamente compro uma melhor para o meu irmão. Como compro para os meus pais, mas depois sou capaz de dar com mais… até… adequação a prenda ao meu primo, que é muito mais baratucha, mas é de encontro aos interesses dele, do que a que dou ao meu irmão. Eu não posso dizer que não o conheço, mas não é… pronto, não há essa proximidade. Não sei se, às vezes, mas isso também é um bocadinho de perfil dele, lá está, não é só por a nossa relação ser assim distante. (Mel: FR · 2 · MIST ·2.º)
Considerações finais
O texto começa por discutir o conceito de intimidade, ativando os quadros teóricos que deram origem à operacionalização do conceito no âmbito da pesquisa. Como sugere Jamieson (2011) olhar para a intimidade a partir das práticas, permite alcançar amplitude nas diferentes formas de representar e fazer as relações de intimidade. Este texto sugere, ainda, que a intimidade não é só representada e feita, também é mostrada entre os sujeitos e para públicos relevantes. A combinação dos contributos teóricos selecionados para a discussão do conceito tornou possível captar a intimidade através da sua multiplicidade.
A partir do contexto das fratrias, procurou-se identificar como a intimidade é construída e que elementos lhe dão origem. O tempo e o espaço revelaram-se cruciais, sendo o ponto de partida para que estabelecer os relacionamentos de proximidade. Depois, os outros elementos que identificados potenciam ou minimizam as conexões com os sujeitos, aqui, identificados, por presença ou por ausência. A forma como se mostra a intimidade é igualmente importante, porque não basta ser íntimo, é importante mostrar essa intimidade nas relações interpessoais.
As relações aqui em análise são as mesmas do ponto de vista do vínculo de parentesco, no entanto, o trabalho de campo retratou diferentes níveis de intimidade. Esta investigação tem como objetivo retratar a multiplicidade nas formas de ser, fazer e exibir as relações fraternais. A partir das práticas de intimidade é possível identificar a diversidade das dinâmicas fraternais e renunciar à sua idealização. Especificamente, sobre o conceito de intimidade, deve-se ter em conta que a sua definição é subjetiva e individual, envolvendo diferentes interpretações sobre a mesma relação interpessoal, uma vez que, é variável conforme a pessoa que coproduz a narrativa.
Financiamento
Este trabalho tem o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT/MEC) com verbas do Orçamento do Estado, do Fundo Social Europeu, disponibilizadas ao abrigo do PORTUGAL 2020, através do Programa Operacional Regional do Centro (Centro 2020) no âmbito da Bolsa de Doutoramento SFRH/BD/130622/2017.
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Data de submissão: 24/06/2021 | Data de aceitação: 25/01/2023
Notas
Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.
[1]Este período foi escolhido pelas mães dos sujeitos entrevistados terem nascido e crescido no período do Estado Novo e educado as filhas e os filhos após o fim deste regime.
[2]A seleção deixou de fora irmãos adotivos e irmãos com deficiência, por se considerar que têm especificidades que merecem ser observadas de modo particular, tal como a literatura dá conta.
Autores: Andreia Barbas