N.º 23 - agosto 2020
Pedro Rodrigues Costa
CECS — Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais,
Universidade do Minho. Campus de Gualtar — Edifício 15, 4710-057 Braga, Portugal.
Email: pedrocosta@ics.uminho.pt
Resumo: Atualizando o estado da arte sobre problemáticas, desafios e consequências da era digital, este artigo indicia que dar “vistas” ao ecrã em rede se tornou cada vez mais um ato perigoso. Algoritmos e estratégias de indução de comportamentos e opiniões estão ao serviço de um “mercado da atenção”. Grandes empresas do setor digital especializaram-se no domínio da atenção, no aprisionamento dos sujeitos ao ecrã. Diversas teorias e efeitos foram aplicados a algoritmos e a esquemas interativos que orientam os sujeitos não apenas em direção à informação ou ao ócio como também a impactos e consequências psicossociais que se tornam problemáticas para a saúde, social e mental. Além disso, ao listar um conjunto de consequências geradas pela era digital (e.g., ensombrecimento, nomofobia, phubbing, atazagorafobia, etc.), este artigo problematiza e compila estas e outras ameaças e impactos sublinhando a importância de se considerar o ato de “dar vistas ao ecrã em rede” um poderoso e complexo “actante”, imprevisível na individuação sociotécnica.
Palavras-chave: ecrã, captologia, impactos, algoritmos.
Abstract: Updating the state of the art on issues, challenges and consequences of the digital age, this article suggests that giving “views” to the network screen has become increasingly dangerous. Algorithms and strategies to induce behaviors and opinions are at the service of an “attention market”. Large companies in the digital sector have specialized in the field of attention, in the imprisonment of subjects to the screen. Several theories and effects have been applied to algorithms and interactive schemes that guide subjects not only towards information or leisure, but also to psychosocial impacts and consequences that become problematic for health, social and mental. In addition, by listing a set of consequences generated by the digital age (e.g., darkness, nomophobia, phubbing, atazagoraphobia, etc.), this article problematizes and compiles these and other threats and impacts underlining the importance of considering the act of “giving views on the network screen” a powerful and complex “acting”, unpredictable in sociotechnical individuation.
Keywords: screen, captology, impact, algorithms.
Introdução
Este artigo visa dois grandes objetivos: discutir teoricamente a relação entre o mercado da atenção e o aparentemente inofensivo ato de “dar vistas” ao ecrã em rede; e atualizar, enunciando e compilando, algumas ameaças, impactos e consequências sociais geradas pela dinâmica sociotécnica atual. Trata-se de uma discussão que se inscreve fundamentalmente na cadeia de “associações” (Latour, 2012) entre capitalismo informacional, visão, ecrã, redes digitais, atenção, impactos e consequências psicossociais. O ponto inovador deste trabalho é focar o simples gesto de “dar vistas ao ecrã” em articulação entre os efeitos micro e macrossociais e a subtileza dos algoritmos das plataformas digitais na afeção, simultaneamente psicológica e social. Dar conta deste aspeto parece-nos da maior relevância teórica para pensarmos hoje em várias dimensões da experiência contemporânea.
A expressão “dar vistas” é frequentemente utilizada pelos jovens portugueses, sobretudo das gerações Z e Y (Strauss & Howe, 2000), aquando da visualização de uma mensagem recebida sem que haja resposta. Dá “vistas” aquele que repara na notificação do smartphone mas que “entra” no espaço da mensagem e não responde. Significa que “deu vistas”, isto é, o sistema de mensagens registou a sua presença. Podemos afirmar que respondeu à notificação telemática do sistema, ao seu algoritmo, mas não à pessoa.
Num tempo marcado por uma forte individualização das relações sociais e da sociedade singularista (Lagrange, 2020; Martuccelli, 2006), em que laços sociais se estreitam cada vez mais por intermédio de ligações sociotécnicas, entendemos que esta reflexão deve associar à típica sociologia da socialização uma sociologia da individuação (Elias, 1993; Martins, 2019; Martuccelli, 2006; Neves & Costa, 2010). Isto é, ao invés de se pensar somente na relação entre o sujeito e o espaço das suas posições, representações sociais e tomadas de posição como o resultado de processos de socialização, a sociologia da individuação dá primazia aos indivíduos e às suas existências no conjunto da totalidade de associações para fazer uma análise macrossociológica, estabelecendo não apenas relação com classes sociais ou profissionais mas também com “intersubjetividades”, mesclas e “dobras” (Foucault, 2004; Tarde, 1978), operadas no confronto entre interioridade e exterioridade nos planos do sentir, pensar e agir.[1]
Assim, parte-se da noção de “intelectos contingentes”, ao invés da noção de “consciência coletiva”, na medida em que estes são os resultados e as traduções de entendimentos, distribuídos e generalizados em “convergência de meios” na contingência sociotécnica (Jenkins, 2009), que revelam as linhas de força da imitação, da oposição e da adaptação entre coisas humanas e não humanas (Costa, 2020). Como exemplo prático podemos mencionar qualquer ideia ou noção que se torna mediática, tanto por propagação e partilha da mesma no seio de uma convergência sociotécnica de meios, como pela força ou relação que se estabelece, originando ou permitindo o engajamento com pensamentos, sentimentos e ações naqueles que lhe estão sujeitos. Ao circularem na atual individuação sociotécnica, os intelectos contingentes enquanto forças circulantes estão condicionados por estratégias que capturam a atenção e marcados por desafios da era digital, engajando os sujeitos que vivem numa dinâmica mediada por dispositivos tecnológicos (Siqueira & Bronsztein, 2015). Nesta dinâmica, encontram-se atores que até há bem pouco tempo não eram previstos — exemplo dos algoritmos e do machine learning aplicado à transformação e ao controlo de comportamentos e emoções.
Assim, pretende-se ainda atualizar, compilar e expor algumas controvérsias, expostas sob a forma de impactos, ameaças e consequências sociais geradas na dinâmica sociotécnica em frente ao ecrã reticular, de modo a reforçar a importância do debate em torno do continuum dinâmico e transformador que é “totalmente mobilizado” (Jungër, 2018) e “socialmente acelerado” (Rosa, 2016) pelo capitalismo informacional (Castells, 2007).
Uma problemática da era digital: O crescente “mercado da atenção”
Em A Opinião e as Massas (original de 1901), Gabriel Tarde denunciava a emancipação da numeração da informação ante a qualificação da informação. Com este reparo o sociólogo dava enfâse ao facto de uma transição do modelo da “multidão” para o modelo de “públicos” corresponder a uma nuance que iria privilegiar o número de pessoas (públicos) ao invés da qualidade (e qualificação) dos públicos. A ideia era esta: com a massificação dos média, chegar a mais tornar-se-ia mais importante do que chegar com qualidade, ainda que a poucos (Tarde, 1992).
Este não foi um resultado pensado pelas ideias iluministas e românticas de Gutenberg (imprensa), dos irmãos Lumière (ecrã), de Farnsworth (televisão) ou de Tim Berners-Lee (Internet). Os seus objetivos eram pragmáticos e focados em resolução de problemas. No entanto, a quantificação superou em todos estes meios a qualificação, atravessando os média em geral (Habermas, 2000). No digital mais ainda: os algoritmos e o modo como estes se operacionalizam são objetivações numéricas (Baum, 2019). A perspetiva numérica, assente na quantidade de visualizações e de gostos e no grau de ligação entre seguidores e seguidos, foi radicalizada pelas tecnologias de informação e comunicação provocando uma nova individuação social. Quer dizer, a passagem
de uma organização de sobrevivência predominante para outra, que abrange mais pessoas, e que é mais complexa e diferenciada, a posição dos homens singulares transforma-se, de modo próprio, em relação à unidade social que eles formam em conjunto. [Essa passagem é] acompanhada (…) de outro padrão de individuação (Elias, 1993, p. 189)
De facto, os ecrãs em geral e as redes sociais digitais em particular contribuem para uma dinâmica sociotécnica geradora deste novo padrão de individuação, presenteando a contemporaneidade com os desafios do numérico: maior movimento e mobilização (Jungër, 2018); maior solicitação sociotécnica através de notificações e requisições telemáticas; e maior aceleração social, reflexo do aumento da velocidade técnica de transporte, comunicação ou produção (Rosa, 2016). A expressão “dar vistas” encaixa na perfeição para revelar o atual paradigma: dar vistas ao ecrã, conectado pela internet, é o que mais se faz atualmente na “civilização do peixe-vermelho” (expressão de Patino para mostrar o curto período de atenção dos mais jovens), uma civilização marcada pela omnipresença de sujeitos mediados por smartphones e comandados por uma economia digital produtora de técnicas de “captologia” (ciência da captura da atenção), em que convergem diversos meios sociotécnicos e da psicologia comportamental com um foco: dominar o “mercado da atenção” (Patino, 2019).
Este “mercado da atenção” é o resultado da dinâmica sociotécnica instalada em convergência entre diversos meios (Jenkins, 2009). As empresas do digital, autênticos colossos financeiros, desenvolveram vários tipos de “sedução” do olhar para que o sujeito fique permanentemente a “dar vistas ao ecrã”, roubando-lhe a atenção através de sofisticados algoritmos e de inspiradas técnicas oriundas de laboratórios comportamentais e altamente testadas em ambientes virtuais de jogo, onde se incluem técnicas presentes em jogos como por exemplo os de casino (Patino, 2019).
Se grandes feitos foram alcançados através das novas tecnologias de informação e comunicação — como o de aproximar os que estão distantes ou avultados ganhos das indústrias culturais/digitais, não deixa de ser também um facto a reprodução de um conjunto de impactos e consequências psicológicas e sociais que em nada contribuem para o bem-estar geral. Devido a esta individuação sociotécnica, e juntamente com as estratégias de domínio da “atenção”, acrescenta-se toda uma complexidade inerente à dinâmica humana em rede telemática onde variados efeitos e teorias psicológicas aplicadas nos algoritmos servem também para orientar e dominar as “vistas”, quer dizer, comportamentos, opiniões e emoções.
Se não é novidade o facto de o “objeto técnico” ser um poderoso ator na ação, na individuação e na ideação (Benjamin, 1992; Heidegger, 1997; Latour, 2012; Neves, 2006; Simondon, 1989), o facto de o ecrã se juntar à preferência humana de conhecer pela “vista” (Aristóteles, 2002) tornou-se uma mistura capaz de materializar fascínio e economia global (Lipovetsky & Serroy, 2010a).
A evolução do ecrã como actante[2] está hoje na quinta geração depois do ecrã-cinema, do ecrã-tv, do ecrã-computador e do ecrã-tablet. Esta é a era do ecrã-smartphone (Costa, 2013; Lipovetsky & Serroy, 2010; Patino, 2019). Porém, há um antes e um depois da Internet no que à dinâmica “ecrãnica” diz respeito. Antes da “internet no ecrã”, na lógica ecrã-cinema e ecrã-tv, o consumidor ecrãnico era do tipo “espectador”, ainda pouco “emancipado” (Rancière, 2010). Com o ecrã conectado à internet (computador, tablet e smartphone), passamos para o regime do “prosumidor” (expressão retirada de Toffler),[3] um misto de consumidor e produtor de conteúdos. Se antes da internet o ecrã era influente e poderoso, com a possibilidade de conexão reticular e de acumulação e assimilação das técnicas e dos regimes ecrãnicos anteriores o “ecrã global” tornou-se exponencialmente poderoso (Lipovetsky & Serroy, 2010). Entre outras características, continuou a verticalidade, ambicionando e concretizando, doravante, a horizontalidade. Além disso, o desenvolvimento técnico tornou-o tátil, mais pequeno e mais central: o tamanho no objeto técnico aumentou à medida que todas as restantes componentes técnicas diminuíram (Bauman, 2006; Costa, 2013).
Com o par ecrã-internet deu-se um crescimento exponencial da relação interativa e reticular. O jogo com a máquina passa a ser substituído por uma espécie de jogo desta feita com um igual, um par. O “jogo de espelhos”, antes com o papel ou a máquina, passou agora a ser mais uma espécie de “jogo de espelhos” com um igual a mim (Lippmann, 1922; Pena, 2010).
Este par ecrã-internet completa a ligação triádica entre ecrã, sujeito e outro. Coligações nascem. Se diante de uma díade cada um dos elementos “para sua vida precisa de ambos, para sua morte [precisa] somente de um” (Simmel apud Coser 1970, p.186), com a tríade dá-se “um equilíbrio entre forças positivas e negativas, especialmente entre conflito e cooperação. Nos jogos a três começa, começa propriamente a sociologia” (Higgins & Ribeiro, 2018, pp. 22-23). A tríade permite um senso de controlo que transcende a decisão individual.
Neste particular, a teoria de Simmel entrelaça-se com a teoria matemática dos grafos. Ao introduzir diferenças nas relações, de modo direto e indireto, a tríade permite o aparecimento de múltiplas possibilidades: relações recíprocas, relações indiretas, com intermediação, com representação, com bloqueio, com mediação e com coordenação.
A partir da figura 1, suponhamos que A é o “dar vistas”, que B são as reações dos sujeitos e C é a ciência da captologia. Se estivermos em regime de “relações recíprocas” (1), os três estão num plano idêntico. Contudo, a captologia gera “relações indiretas” (2), na medida em que está antes da reação dos sujeitos. Situa-se precisamente no meio de A (dar vistas) e B (reações). Assim, orienta as ideias, opiniões e comportamentos para interesses egoístas através da “intermediação” (3), para interesses de “representação” (4), para interesses de “bloqueio” (5), para interesses de “mediação” (6) e para interesses de “coordenação” e orientação dos sujeitos (7).
Figura 1 Tipos de tríades a partir de Simmel
Fonte: Higgins & Ribeiro (2018, pp. 22-26).
Em suma, aplicado à dinâmica em redes digitais, o que temos são esquemas relacionais em torno de dinâmicas triádicas que se dinamizam constantemente, em função de diferentes níveis de engajamento entre as variáveis A, B e C. O que não significa que seja diferente das redes sociais não digitais. Simplesmente, os meios sociotécnicos permitem formas diferentes de estabelecer e de reproduzir os cortes, as mediações, as relações recíprocas, os bloqueios, as representações, as intermediações ou as coordenações. O que nas redes sociais não digitais se faz muitas vezes com palavras, nas redes sociais digitais faz-se tudo isto com imagens ou vídeos, numa conexão que permite ligação imediata entre os que se encontram, espacialmente, afastados. Ou seja, o que é verdadeiramente diferente na dinâmica triádica da atual individuação sociotécnica é o modo de expor a contingência — na ideação, na reação e, globalmente, na individuação (Higgins & Ribeiro, 2018) — e, parafraseando Gabriel Tarde (1978, p. 6), o facto da “placa fotográfica[4] da tecnologia se tornar “quase” consciente do que nela se imprime. Ou seja, se o machine learning permite apreender os gostos e as emoções do sujeito como se de um outro cérebro se tratasse, então pode voltar a condicioná-lo, prender-lhe a atenção, por imitação ou analogia.
Ainda que nem tudo se resuma ao aspeto da economia, a grande individuação e provavelmente a maior problemática da atual era digital é, portanto, a já citada “economia da atenção”, subespecialização da “economia digital”. Longe do projeto inicial de Tim Berners-Lee, a visão utópica, iluminista e romântica presente na ideia inicial de internet tornou-se o lugar das grandes empresas, especialistas em “captologia” capazes de produzir “computadores carismáticos” e voltados para “a arte de captar a atenção do utilizador, quer este queira ou não” (Patino, 2019, p. 47), aprisionando de vários modos a atenção do sujeito e criando “arenas” de combate e de competição (aceleradas e mobilizadas) onde prolifera uma “violência coletiva nascida das paixões individuais e o poder económico nascido da acumulação. Os nossos vícios não são mais do que o resultado estabelecido entre ambos, bem como da superestrutura económica que os faz alimentarem-se um do outro” (Patino, 2019, p. 38). Isolado, desprovido de instrumentos que lhe permitam ficar de fora, incapaz de sentir “JOMO” (do inglês “Joy of missing out”, em português “alegria por se estar desconectado”) e incapaz de resistir às estratégias de sedução inspiradas pela psicologia social, o sujeito vive dependente de ecrãs (Han, 2018).
O “combate pela atenção” é dinamizado pela tríade “ecrã-algoritmos, sujeito e outro” sendo ganho pelos algoritmos desenvolvidos para “captologia”, quitados com poderosas e aceleradoras ferramentas de machine learning (Rosa, 2016). Entre as principais aplicações de machine learning estão as técnicas de recomendação online de produtos ou conteúdos, anúncios em tempo real, resultados personalizados apresentados no feed da rede social, recomendações de séries e filmes, otimização de pesquisas, deteção de fraudes e invasões, reconhecimento de voz e semântica e reconhecimento de objetos e textos. A “máquina de Turing”, no seu sentido metafórico mais abrangente, contém o germe da “economia da atenção” usada pelo capitalismo informacional e pelos seus diversos actantes sociotécnicos. Eis uma grande inquietação: “a aceleração substituiu o hábito pela atenção, e a satisfação pela dependência. E os algoritmos são as máquinas-ferramentas desta economia” (Patino, 2019, p. 15).
Impactos gerados pela captologia
O segredo do pai do machine learning (Alan Turing), na descodificação do “Enigma” (máquina usada pelos alemães na segunda Guerra Mundial), era o de prever ataques através da análise de dados históricos sem confirmar ao inimigo a sua existência: ao invés de prever consistentemente, ia evitando propositadamente acertar todo o tipo de ataques alemães para que estes não descobrissem a sua presença (Copeland, 2004). De certo modo, há qualquer coisa de dissimulado na dinâmica sociotécnica atual, ainda que os algoritmos sejam mais previsíveis do que a máquina de Turing durante o período de Guerra. Pensemos no YouTube: para Ribeiro, Ottoni, West, Almeida e Reis (2020), este tem sido um veículo de radicalização política no espectro da extrema-direita. Numa análise a mais de 330 mil vídeos publicados em 349 canais e pelo tratamento matemático de mais de 72 milhões de comentários, foi observada uma dinâmica de machine learning em que o YouTube excuta algoritmos que criam de modo automático modelos de representação de conhecimento com base num conjunto de dados históricos do utilizador, permitindo-lhe a “aprendizagem” sobre as preferências. Neste caso, tratam-se de preferências políticas de direita, em que o algoritmo força a sugestão de um grau de moderação até um grau extremo (Ribeiro, Ottoni, West, Almeida & Reis, 2020).
Uma dinâmica semelhante teria sido também observada no caso das eleições brasileiras de 2018. A atividade dos algoritmos e as estratégias dos actantes — sejam eles humanos ou robôs — revelaram uma forte presença dos temas da campanha do então candidato Jair Bolsonaro e a predominância do discurso conservador que marcou a sua trajetória até a presidência do Brasil (Reis, Zanetti & Frizzera, 2019).
Um outro caso foi observado numa análise a 65 influenciadores políticos em 81 canais do YouTube, em que foi identificada uma “Rede de Influência Alternativa” (AIN). Esta AIN terá usado as mesmas técnicas usadas por marcas anunciantes e outros influenciadores digitais para aumentar o número de seguidores (Lewis, 2019). Contudo, o que Lewis descreve é ainda mais difícil de erradicar: uma tentativa coordenada de expor os espectadores a ideologias de direita, não necessariamente através do uso de teorias conspiratórias ou falsificações, mas antes através do tipo de construção de marca em que o YouTube e outras ferramentas sociais se destacam (Johnson, 2018).
Tudo isto evidencia uma realidade obscura. No célebre Persuasive Technology Lab, em Palo Alto, o professor B. J. Fogg[5] continua a desenvolver a sua tese: criar “computadores carismáticos”, ensinando alunos, entre os quais o próprio fundador do Instagram, a “descobrir como os computadores podem mudar o que as pessoas pensam e fazem e como esses mesmos podem produzir tais alterações de forma autónoma” (Patino, 2019, p. 46). Ou seja, para desenvolver todo um mercado da atenção não é sobre tecnologia que se discorre, mas antes sobre psicologia. O que Fogg procura é uma dinâmica psicológica existente na interface humano-máquina, ou seja, influenciar o comportamento a três níveis: motivação (para ficar onde se pretende), habilidade (para usar o que se pretende) e gatilho (para acionar, comparar e sentir medo sobre o que se pretende) (Patino, 2019, p. 47).
Por isso se entende que não é apenas no YouTube que se tem dado uma condução do sujeito em direção a uma posição mais radical e polarizadora. No Facebook,[6] no Twitter ou no Instagram, entre outras redes socias, o problema é semelhante: os likes ou os emojis forçam os algoritmos a expor o “mais visto”, o “mais comentado” ou o mais “partilhado”. Assim, o algoritmo, acelerado e mobilizado pelo sujeito que subscreve um “gosto”, uma “partilha” ou um “comentário”, torna-se um poderoso actante sobre os outros atores sociais na medida em que aparece, quer dizer, “dá vistas”. Ora, aquilo que “dá vistas” tende a “dar nas vistas” e por isso tende a ser mais seguido, comentado, partilhado. É este o segredo das estratégias “caça-clique” que estão por detrás de “Fake News”, “teorias da conspiração” e outras informações do reino do fantástico, servindo sobretudo para capturar a atenção (Johnson, 2018).
Ao aspeto da supremacia da quantificação imposta pelo algoritmo ao expor os números maiores, corresponde um outro facto: a proliferação da ausência de medo da avaliação social devido ao facto de haver menor exposição direta e com isso uma sensação de impunidade generalizada. Isto orienta os discursos para a humilhação ou o achincalhamento, entre outras violências (Dias, 2020).
Para Fairclough (2001, p. 91), o discurso é “um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação”. O que nos remete para os “atos da fala” de Austin (1962), ou seja, coisas feitas de palavra que funcionam como atos de dizer algo, de dar enfase a algo ou de influenciar outrem. Ora, as redes sociais digitais convidam a trocas discursivas, constituindo-se em lugares em que o discurso, aliado à tal menor exposição direta e a uma certa impunidade generalizada, passeia de mãos dadas com a crítica e até com o ódio (Schirmer & Dalmolin, 2017).
O facto de o “mercado da atenção” estar fortemente presente nas estratégias dos dispositivos sociotécnicos em contínua “estimulação”, deixando o sujeito constantemente à procura de “recompensas imediatas” ou de “gratificações instantâneas”, leva a perturbações no “desenvolvimento do autocontrolo”. Ao não aprendermos o “adiamento da recompensa”, recrudesce a “tolerância à frustração” e aumenta a tendência para a “insatisfação constante” ou até para o ódio na medida em que estamos perante “vidas que parecem melhores do que as nossas”. Há a sensação de que é necessário responder aos estímulos pois “sentimos que estamos atrás e que precisamos de fazer algo para mudar, a toda a hora” (Costa & Sacadura, 2017, s.p.). Em suma, estamos sobretudo diante de um impacto no desenvolvimento da “inteligência emocional” (Goleman, 2003).
A este respeito, dá-se um princípio de ansiedade generalizada, provavelmente a maior das fragilidades no seio da era dos ecrãs (Giansanti & Grigioni, 2018; Lagrange, 2020). A necessidade de estar, ver e exibir os diferentes momentos da existência deu lugar a uma sensação global de ecranogenia. Ao invés de uma fotogenia, que caracterizava o ideal de sujeito do retrato fotográfico, hoje a ansiedade é movida por um “retrato ecrãnico”, que funciona simultaneamente como marketing pessoal, publicidade da felicidade ou montra de motivações e opiniões (Costa, 2013).
No entender de Han (2018), este retrato ecrãnico veio sobretudo criar o idêntico “expulsando o outro”, quer dizer, através de produções que chegam às massas por intermédio de filmes, vídeos, jogos, ideias, narrativas, comentários ou publicações nas redes sociais digitais, eliminaram-se distâncias e aproximaram-se pessoas com os mesmos gostos e tendências. As novas tecnologias de informação e comunicação acabam por anular o diferente, aquele que gosta de coisas diferentes, que consome coisas diferentes, que vive experiências diferentes. Esta “expulsão do outro” acaba por destruir tanto o “outro” como o “eu”, encetando um processo de “autodestruição” (Han, 2018, p. 9). Alimentado por tecnologias comuns a todos, os sujeitos vivem, respiram e consomem o “idêntico” sendo “alimentados de consumo como gado com qualquer coisa que acaba por se tornar sempre a mesma coisa”. Trata-se de uma espécie de processo “excessivamente idêntico” — Binge Watching — de consumo ilimitado de vídeos, filmes e outros conteúdos capaz de gerar uma “perceção generalizada”, portanto “idêntica” (Han, 2018, p. 10). À ansiedade gerada pelo “retrato ecrãnico” soma-se a ansiedade da expulsão daquele que é diferente (Lagrange, 2020).
Se os desafios impostos pela era digital problematizam os dilemas do mercado da atenção na sua dinâmica com os algoritmos, a instalação social da captologia, da supremacia da quantificação, da geração do idêntico e da expulsão do diferente, destrói referências e aumenta dependências digitais (Patino, 2019).
Os impactos da captologia colocam-nos, assim, diante de inúmeros fenómenos: homofilia digital, clusterização, efeito bolha, disseminação de notícias falsas e, sobretudo, propagação do efeito de pós-verdade na informação. Contudo, antes de chegarmos a esses impactos, há todo um conjunto de técnicas e efeitos psicossociais subtis que funcionam como gatilhos por detrás dessas mesmas dinâmicas. Assim, apresentamos de seguida um conjunto de efeitos psicossociológicos, teorias aplicadas nos algoritmos e algumas consequências psicossociais geradas pelos usos de dispositivos digitais em rede de modo a demonstrar impactos a montante dos problemas anunciados. Ao mesmo tempo, damos conta do modo como estratégias da psicologia comportamental são usadas em sistemas digitais para envolver, gerar interações, influenciar e criar intimidades e afetividades, diminuindo muitas vezes o estado de alerta nos sujeitos (Siqueira & Bronsztein, 2015).
O efeito slot machine
Em Harvard, em 1931, o behavorista Frederic Skinner testou em ratos a diferença entre dinâmicas de causa-efeito previsível e dinâmicas de causa-efeito aleatório. Com a primeira forma, obteve um comportamento estável na medida em que a relação causa-efeito previsível dispensava a acumulação desenfreada de gratificações (provisões). Com a segunda, a dinâmica causa-efeito aleatória gerou mais respostas, crescentemente violentas e automáticas. Ou seja, a gratificação do rato já não seria a de carregar-no-botão-para-obter-alimento, mas antes a sua servidão ao mecanismo de recompensas aleatórias e diversas (Baum, 2019). Deste experimento nasceu o efeito slot machine, célebre nos jogos de casino. Ora, é precisamente este o sistema que está por detrás dos feed ou timelines das redes sociais digitais: um convite a recompensas aleatórias contidas no simples gesto de atualização com o scroll-down (Patino, 2019, p. 27).
O efeito Zeigarnik
Este é o efeito resultante de um conjunto de ações ligadas, que devem encadear-se sem pausas, gerando simultaneamente incompletude através da dosagem subtil de satisfações e frustrações. No caso dos ecrãs, está muito presente no modo Binge Watching — consumo bulímico de séries e filmes em que esquemas visuais e narrativos alimentam os vínculos entre consumidor e produto, só libertando o sujeito no final da execução das tarefas propostas. O efeito Zeigarnik demonstra ainda que temos maior facilidade em recordar a tarefa que estávamos a realizar quando esta é interrompida do que quando esta foi completamente executada, como acontece por exemplo no jogo do Tetris (Zagalo, 2012). Os maiores exemplos deste efeito nas plataformas digitais estão inscritos nas narrativas das séries televisivas, que os diversos canais especializados alimentam — Netflix, HBO, etc. A dosagem subtil entre satisfação e frustração é o segredo do sucesso das séries (Patino, 2019, p. 29).
Teoria da plenitude
Para complementar o efeito Zeigarnik, e de modo a transformar o hábito de ver uma série em vício de a consumir desenfreadamente, aparece a teoria da plenitude. À frustração associada à visualização incompleta da série corresponde um encadeamento de vídeos que faz com que essa dependência não seja interrompida por outras solicitações — é o caso do sistema de “reprodução automática”, presente no Netflix, no HBO ou mesmo no YouTube, quando o utilizador pede uma playlist de uma banda, por exemplo. A teoria da plenitude satisfaz o desejo de evitar outras vontades ou movimentos. Esta está associada à teoria da tomada a cargo, ambiente que proporciona o alívio da tomada de decisão (Patino, 2019, p. 29). Neste aspeto, os algoritmos decidem pelo sujeito tomando conta da sua ação e atenção.
Teoria da experiência ideal
Desenvolvida pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, trata-se de uma ferramenta da psicologia comportamental utilizada por jogos simples, como por exemplo o jogo Candy Crush (Fave, Massimini & Bassi, 2011). Estes jogos capturam automaticamente o sujeito com encenações desportivas, colocando o sujeito num estado mental de despreocupação e assim gerando uma sensação de “lugar sem riscos”. O ecrã toma o lugar de “protetor” enquanto gera algum prazer momentâneo (Patino, 2019, p. 30).
Os adormecidos sentinelas
Neste caso, trata-se de um impacto psicobiológico com importantes implicações na saúde, física, emocional e relacional. Esta patologia revela-se quando os sujeitos evitam dormir profundamente por terem receio de perder uma notificação do telemóvel (Patino, 2019, p. 20). O transtorno do sono acrescenta alterações significativas ao humor devido à redução do tempo de sono e descanso, o que por sua vez também se associa à dificuldade de atenção e concentração (Eisenstein & Estefanon, 2011).
FOMO
Acrónimo resultante da expressão inglesa “fear of missing out”, esta patologia consiste no medo de estar a passar ao lado de outra coisa que não se está a ver, como por exemplo quando o sujeito se encontra sem Internet (Przybylski, Murayama, DeHaan & Gladwell, 2013).
Nomofobia
Acrónimo resultante da expressão inglesa “no mobile phobia” e que significa o pânico de se estar sem telemóvel ou então de se afastar do telemóvel ainda que por instantes (Patino, 2019, p. 20).
Phubbing
Acrónimo resultante da contração dos termos em inglês phone (telefone) e snubbing (desprezar), que consiste na verificação ostensiva do telemóvel enquanto alguém está a interagir frente-a-frente. Este efeito tem empobrecido as interações sociais (Patino, 2019, p. 20).
Medo do consumo solitário
O medo do consumo solitário, detetado no momento de fruição de vídeos em plataformas de streaming de vídeo, como por exemplo o YouTube ou o VeVo, revela o receio da perda de atualidade relativamente aos conteúdos consumidos (filmes, vídeos, canais de youtubers, etc.) Este medo está instalado sobretudo nas gerações Y e Z devido ao temor juvenil de se estar a consumir um conteúdo digital que possa não estar a ser consumido pelos restantes pares. Trata-se de uma nova forma de testar e confrontar a formação da identidade na sua relação entre iguais (Costa & Capoano, 2020).
A síndrome de ansiedade
Provavelmente um dos mais perigosos e imprevisíveis efeitos, gerando atos por vezes irrefletidos (como tirar fotografias em locais perigosos), corresponde a uma necessidade permanente de exibir os diferentes momentos da existência, através de fotografias, vídeos ou descrições (Giansanti & Grigioni, 2018; Lagrange, 2020).
Esquizofrenia de perfil
Pelo facto de proliferarem, no universo digital, diferentes redes sociais com diferentes objetivos, formatos e funcionalidades, os indivíduos inscrevem-se e participam em várias plataformas. Pelo facto desta simultaneidade e das suas diferentes especificidades, dá-se uma dificuldade de distinguir a identidade da própria personalidade (Patino, 2019, p. 22).
Atazagorafobia
Um outro tipo de medo: o de ser esquecido pelos pares. Ao exibir em tempo real os resultados numéricos de cada uma das ações nas redes sociais digitais, dá-se uma nova individuação sociotécnica que resulta na consulta compulsiva na esperança de um like, uma partilha, um comentário ou uma menção (Anderson, 2013). Até que o conteúdo partilhado atinja o seu esquecimento na rede, o sujeito atazagorafóbico não descansa de verificar a sua “ecranogenia” através dos resultados numéricos das suas partilhas.
Ensombrecimento
Procura obsessiva por sinais de vida de uma personagem (e.g.: nas redes sociais), ainda que essa seja artificial — por exemplo, as páginas de personalidades famosas que são geridas por equipas de marketing. A obsessão por encontrar ligações ou informação sobre essa personalidade cresce à medida que a insatisfação aumenta, gerando este efeito. Não deixa de ser um estado pré-depressivo: procura de um outro idealizado à medida que o próprio se distancia de si mesmo (Patino, 2019, pp. 22-23).
Para além dos impactos mencionados existem outros, alguns dos quais enquadrados pela lei portuguesa do cibercrime (Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro). Constituem riscos no seio da dinâmica sociotécnica reticular, sobretudo quando unem discursos de ódio, agressões verbais, efeitos depressivos e problemas socio-relacionais.
O assédio virtual, ou em inglês cyberbullying, consiste na prática de comportamentos deliberados, repetidos e hostis praticados por um indivíduo ou grupo com a intenção de prejudicar o outro. Este está no limite entre violação do código civil e crime digital (Cruz, 2011; Pinheiro, 2009). Cerca de um em cada cinco jovens com idades compreendidas entre os 13 e os 24 anos diz ter faltado à escola devido ao cyberbullying e à violência em redes sociais. Quase 75% dos casos de cyberbullying aconteceram no Facebook, no Instagram, no Snapchat e no Twitter (Unicef, 2019).
A estas práticas está também associado o crescimento de práticas de ciber-chantagem, tendo como objeto de chantagem os vídeos ou fotografias do que dantes era íntimo: nudes, vídeos pornográficos, mensagens escritas comprometedoras, entre outras dinâmicas, têm contribuído para os fenómenos de ciber-chantagem e afins tendo por base práticas obscuras de sexting, sexcasting, sextorsion e grooming (Reyes, 2017). De acordo com Ribeiro (2019), cerca de 52,2% dos 525 inquiridos no estudo “Abuso Sexual Baseado em Imagens”, sugere que já enviou nudes (imagens fotográficas e/ou vídeos de cariz sexual) pela Internet ou telemóvel, sem ter a clara “perceção do risco que estava a correr”. Desses 52,2%, cerca de 8,8% da amostra assume que foi “alvo de ameaças” ou chantagens. Dos entrevistados que enviaram nudes, 5% assumiram sofrer vitimização de violência sexual ‘online’”. Ou seja, foram vítimas de partilha a terceiros não consentida. Além disso, os três maiores impactos do sexting (envio de textos e imagens sexualmente sugestivos com conteúdo sexual explícito), foram a humilhação (17,4%), vergonha (15,2%) e o desespero (13,04%).
A juntar a estes importa ainda mencionar fenómenos mundiais como a “Baleia Azul” ou o desafio “Momo”, jogos com o objetivo de desafiar jovens para comportamentos auto-lesivos e suicidários. De acordo com Leal e Rato (2019) — jornalistas que se fizeram passar por adolescentes que queriam jogar o Momo — na rede WhatsApp existem grupos de jogadores, a partir dos 11 anos de idade, com diferentes níveis de poder, tendo cada grupo um “curador” que dá instruções para que cada jogador suba de nível. A automutilação fotografada é o cartão de entrada para o jogo. O nível máximo é atingido com o suicídio. Foi o caso de Molly, jovem britânica de 14 anos que em novembro de 2017 acabou com a própria vida. Chegou a casa da escola, fez os trabalhos de casa, preparou a mochila para o dia a seguir e deixou uma carta que dizia: “Desculpem. A culpa é minha”. Acabou por suicidar-se. Este caso tornou-se célebre porque o seu pai, Ian Russell, acusou o Instagram de ser em parte responsável pelo ato da jovem. Descreveu um grupo onde a sua filha estaria inserida que deveria ter sido eliminado pelos responsáveis do Instagram devido a conteúdos chocantes de incentivo a comportamentos auto-lesivos (Barreto, Irineu & Lima, 2017; Matsuki, 2019; Waterson, 2019).
Considerações finais
O “mercado da atenção” presente no ambiente digital contempla uma “economia da atenção” (Patino, 2019). Ambas as dinâmicas se inserem naquilo a que Castells (2007) designou como sendo a quarta etapa do capitalismo: “capitalismo informacional”. Todavia, o facto de a informação ficar ao serviço de grupos com objetivos de transformar o olhar dos atores em mercadoria arrastou consigo inúmeros deslumbramentos ecrãnicos, tal como aqueles que aqui listamos.
Esta questão, muitas vezes aparentemente micro e confinada a certas redes, faz-nos retornar às inquietações de Horkheimer e Adorno (2001): vivem os atores as suas vidas ou vivem uma vida ditada pela indústria cultural? O “simples” ato de dar vistas no ecrã em rede, acelerado e mobilizado doravante por poderosos algoritmos comportamentalistas, ultrapassa a dimensão micro das redes homofílicas ou em cluster. O alastramento dos impactos segue em várias direções.
A interferência do ecrã tem sido decisivo na ação dos sujeitos. Tal como advoga a teoria do ator-rede, os objetos também agem (Latour, 2012, p. 97), tal como os humanos, formando um contínuo híbrido, mesclado. Trata-se de uma nova individuação. O “rato do professor Skinner” também age diferentemente consoante a previsibilidade ou a aleatoriedade das respostas do mecanismo de recompensa. Por sua vez, o mecanismo age sobre as suas predisposições. Ao behaviorismo de Skinner corresponde, no caso do humano, um maior relativismo imposto pela dinâmica sociotécnica, assente na expansão da complexidade (Capra, 1997; Latour, 2012; Morin, 1977). Ora, do mesmo modo que os vários dispositivos sociotécnicos em geral, as plataformas digitais agem sobre os sujeitos humanos e vice-versa. E isto é válido tanto para a ação mecânica como para a humanista, tanto moral quanto ética. A noção de ator-rede implica forte consideração na dimensão política da vida, impactando e fomentando redes de ação e pensamento (Latour, 2012).
Ante os impactos expostos, percebemos que os vários fenómenos das novas individuações sociotécnicas não foram devidamente acompanhados por mecanismos éticos e educacionais para confrontar as possibilidades de ação e reação em ambientes digitais. Dar “vistas” ao ecrã tornou-se perigoso devido a uma captologia orientada para interesses privados sem ter em conta aspetos psicossociológicos. Algoritmos, estratégias de indução de comportamentos e opiniões e um conjunto de novas possibilidades estão ao serviço de resultados empresariais. Neste sentido, antes, durante e depois da incorporação sociotécnica, a ética necessita de novos confrontos e revisitações. O aprofundamento da ética digital é urgente, tanto na perspetiva dos “prosumidores” como na perspetiva das empresas do digital e, sobretudo, dos estados-nação (Maggiolini, 2014). A responsabilidade social necessita de encontrar maior força.
Após quase 25 anos da proclamação da Declaração de independência do Ciberespaço, quase nenhuma parte da sua “independência” está garantida (Patino, 2019). O sonho da noosfera, essa rede pensante, livre e de informação sólida, é hoje uma utopia distante na medida em que ao sonho de uma inteligência coletiva, livre e pura corresponde uma contingência coletiva marcada por intelectos contingentes sujeitos à captologia que destacam cada vez mais, ao invés de erradicar, a velha tese marxista de que as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias das classes dominantes. Com uma grande nuance face ao marxismo: o movimento não está a ser o da busca por uma consciência coletiva de classe, mas antes a busca por uma contingência coletiva fundada num sentimento grupal também ele contingente, quer dizer, dinâmico e simultaneamente precário devido à oscilação reticular perene. O movimento humano é, pois, capturado pelos colossos empresariais digitais que buscam, a todo o custo, dominar o mercado da atenção conduzindo o humano para a teia da economia. Dentro dessa teia, que Fogg descrevia como sendo o local onde se consegue influenciar a motivação (para ficar), a habilidade (para usar) e o gatilho (para acionar, comparar e sentir medo) (Patino, 2019, p. 47), os sujeitos sofrem de impactos e consequências psicossociais difíceis de superar (adormecidos sentinelas, FOMO, nomofobia, phubbing, medo do consumo solitário, síndrome de ansiedade, esquizofrenia de perfil, atazagorafobia ou ensombrecimento) e regados por novas formas de violência (cyberbulliyng, ciber-chantagem ou comportamentos auto-lesivos e suicidários). Toda esta captologia, uma individuação da economia capaz de gerar o sujeito idêntico, sublinha Han (2018): quanto mais iguais se tornam as pessoas, quer ao nível dos gostos que lhes são igualmente sugeridos como ao nível dos impactos e das consequências psicossociais, mais aumenta a produção na medida em que o neoliberalismo pretende pessoas com gostos, problemas e hábitos semelhantes. A contingência coletiva, resultante de pequenos encontros e colisões e que se tornam relevantes após adesão a correntes-contingentes de imitação (Tarde, 1992), fica, no ecrã reticular, refém da produção do idêntico e da expulsão do diferente ou então da geração de novos clusters enquanto alvos de algoritmos empresariais.
Perante isto, e ante uma desmesurada ambição de emancipação individual gerada por esta individuação sociotécnica, só uma resposta ética e responsável poderá diminuir os seus efeitos (Lagrange, 2020). O contemporâneo não deve significar nem redundar numa aceleração contínua motivada pela dinâmica triádica ecrã-captologia-sujeito, sob pena de o sujeito ficar alienado da sua capacidade de decisão de nada produzir (Han, 2018). Esta decisão de nada produzir, quer dizer, de evitar a captologia que nos faz “dar vistas ao ecrã reticular” de modo a limitar condicionamentos ao pensar, sentir e agir “programado”, poderá ser uma futura linha de emancipação.
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Data de submissão: 06/03/2020 | Data de aceitação: 31/07/2020
[1] Esta abordagem está também de acordo com a proposta de Goffman (1986) em particular e do interacionismo simbólico em geral, na medida em que sugere a importância da análise às interações face a face estabelecidas entre os atores no quotidiano.
[2] Um “actante”, de acordo com a teoria do ator-rede, contribui para o movimento e para a rede de ligações, promove “tradução” na medida em que implica a dobra nos conteúdos e nas forças que lhe chegam e funciona como uma “associação” que, independentemente das suas maiores ou menores forças ou fraquezas de modo imediato no ator, contém forças de influência (Harman, 2019).
[3] A versão original do conceito de “prosumidor” não remete para o ecrã, mas antes para um novo tipo de consumidor, nascido a partir de 1980 com o florescimento da era da informação, que tende a ser mais exigente e com maior capacidade de forçar os mercados ao fundir a sua experiência de consumo com a sua experiência de produção/utilização (Toffler, 1999).
[4] Para Tarde, a imitação é “uma ação à distância de um espírito sobre um outro, e de uma ação que consiste numa reprodução quase fotográfica de um cliché cerebral pela placa sensível de um outro cérebro. Entendo por imitação toda a gravação fotográfica inter-espiritual, por assim dizer, quer seja querida ou não, passiva ou ativa” (Tarde, 1978, p. 6).
[5] Pode considerar-se B.J. Fogg como o grande fundador da “captologia”, na medida em que toda a estratégia de influenciar comportamentos implica, em primeiro lugar, tomar a atenção dos sujeitos.
[6] Nesta rede social também se menciona a interferência, e uma interferência que bloqueia conteúdos tanto de “direita” como de “esquerda”. Ver, a este respeito, “Facebook admite que interfere nos temas populares” (2016, 14 de maio).
Autores: Pedro Rodrigues Costa