N.º 21 - dezembro 2019
Lígia Ferro
Instituto de Sociologia & Departamento de Sociologia,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Via Panorâmica Edgar Cardoso, s/n, 4150-564 Porto, Portugal.
Email: lferro@letras.up.pt
O Parque das Nações em Lisboa. Uma montra da metrópole à beira Tejo, publicado pela editora Mundos Sociais em 2018, é mais do que um livro sobre os processos de reconversão urbana da faixa ribeirinha oriental de Lisboa. Trata-se de um texto onde Patrícia Pereira condensou a sua investigação sobre esta zona da cidade desenvolvida entre 2008 e 2012, viajando entre escalas de análise e convocando referências teóricas clássicas e atuais, explorando finamente as conexões globais com expressão local que têm moldado o passado e o presente de Lisboa.
A importância da transformação desta área urbana, em particular marcando a emergência de novos espaços públicos e semi-públicos onde presenciamos interações em co-presença entre uma diversidade de atores sociais, a propósito de diferentes práticas e acontecimentos, já tinha sido objeto de investigação sociológica nos anos de 1990. Todavia, faltava-nos um estudo em profundidade, a partir de uma abordagem etnográfica urbana que nos permitisse ler este território à luz do espaço que ele ocupa na capital, proporcionando-nos simultaneamente uma compreensão ampla sobre o seu papel no processo de expansão metropolitana de Lisboa.
A investigação de Patrícia Pereira vem preencher esta lacuna do conhecimento científico, centrando-se na transformação urbana do Parque das Nações a partir de uma sólida matriz sociológica que maneja contributos teórico-empíricos de outras disciplinas das ciências sociais e humanas, tais como a antropologia, a geografia, o urbanismo e a história. A investigadora aplica ainda um eclético desenho metodológico, com destaque para as técnicas da observação participante e da entrevista semi-diretiva, o qual permite aceder a uma rica panóplia de dados empíricos.
Compreender uma cidade e os seus espaços implica conhecer a sua história. A autora faz um notável exercício de recolha de elementos para contextualizar historicamente a frente ribeirinha oriental de Lisboa, “pouco valorizada, ocupada por indústria pesada e poluente, outras infraestruturas pouco agradáveis à vista e à imaginação, como o matadouro, e zonas habitacionais precárias e/ou pobres e rodeada de habitação social que vai conquistando ao longo das décadas uma crescente estigmatização social” (p. 61). O livro revela que, antes do processo de reconversão urbana, este espaço da cidade se caraterizava por uma fraca dinâmica económica, onde se “organizavam sociabilidades construídas com base no interconhecimento de longa duração e na proximidade social” (p. 154) e que o referido processo de mudança urbana implicou a geração de inseguranças e medos por parte dos residentes.
A autora vai ao âmago das lógicas inerentes aos grandes projetos de transformação urbana de frentes de água, os quais surgiram a partir dos anos de 1960 nos Estados Unidos da América, tendo-se iniciado na Europa do Sul apenas a partir de 1990. A cidade de Boston surge como um dos primeiros “laboratórios urbanos” em que estas intervenções foram concretizadas. De modo perspicaz, Patrícia Pereira toma o caso de Boston como “caso-modelo de contextualização e ponto de referência internacional” (p. 9). A investigadora passou dois períodos de trabalho em Boston, em 2009 e em 2010, centrando-se no estudo da implementação do projeto seminal de intervenção na frente de água bostoniana, assim como realizando observação de atores, grupos sociais, situações e conduzindo entrevistas a utilizadores dos espaços. A análise e reflexão sobre os dados recolhidos numa perspetiva comparativa, ilumina o caso do Parque das Nações em Lisboa, permitindo-nos complexificar o nosso olhar sobre esta grande transformação do tecido urbano da capital portuguesa.
As novas frentes de águas surgem como “montras” das cidades, expressão que Patrícia Pereira adotou de modo feliz no título do seu livro, contribuindo para a ampliação do reconhecimento internacional e da capacidade competitiva entre cidades. A grande transformação da frente ribeirinha oriental de Lisboa integra-se num movimento global de competição entre cidades portuárias que procuram afirmar-se como metrópoles europeias de reconhecida vitalidade urbana. A transformação desta zona urbana alfacinha, veio trazer novos fluxos e uma nova dinâmica à cidade.
Apesar de parecer que havia inicialmente uma preocupação com a criação de habitação para diferentes classes sociais, o estudo apresentado evidencia claramente o papel central do Estado na promoção da gentrificação na área do Parque das Nações, principalmente porque percebemos que foi feito um investimento em favor dos interesses privados, resultando num “elevado grau de homogeneidade socioeconómica do ponto de vista residencial” (p. 188).
O acelerado processo de desocupação desta área urbana foi bem-sucedido, principalmente devido à realização da EXPO 98 e à pressão que a organização do evento colocou quer em indivíduos, quer em institutos (incluindo institutos e empresas), levando a uma certa flexibilidade de procedimentos. Estes processos afetaram profundamente a vida dos residentes com menos recursos socioeconómicos e, em particular, aqueles a quem se associa um estigma social patente na exclusão a que são votados, como a população cigana, aqui apontada como a que mais sofreu com este processo.
Embora exista uma homogeneidade social no que diz respeito à composição dos residentes do Parque das Nações, a investigadora revela com acuidade que os seus espaços públicos são usados por uma diversidade de atores e atravessados por um conjunto de manifestações de lazer e sociabilidade que a mesma tipifica de “convencionais” (atividades desportivas, de consumo, de lazer diurno ou noturno, etc.), “emergentes” (dance mobs, “tardes de ócio sénior”, sessões fotográficas, etc.) e “transgressoras ou contestadas” (pesca, festejos desportivos “eufóricos”, venda ambulante) (pp. 190-191). No âmbito destas manifestações, pode verificar-se a produção do espaço por parte de indivíduos com origens socioeconómicas muito diferentes. Assim, se existe uma homogeneidade residencial no Parque das Nações, ela é acompanhada por uma heterogeneidade social visível nos espaços públicos, o que torna fascinante a reflexão sobre as dinâmicas de sociabilidade que perpassam esta área urbana de Lisboa.
Para além da compreensão do processo subjacente à transformação metropolitana de Lisboa e do papel desempenhado pela mudança da zona ribeirinha oriental, a leitura deste livro torna-se obrigatória para entender a complexidade das novas dinâmicas de turistificação e a intensificação dos processos de gentrificação na cidade de Lisboa. A grande aceleração destes processos, com impacto nos setores do comércio, serviços, habitação, cultura e lazer, implica uma reflexão sobre a história da cidade e sobre o protagonismo do Estado nas suas recentes reconfigurações urbanas.
Revelando um grande rigor intelectual e científico, Patrícia Pereira oferece-nos também o precioso testemunho do seu processo de pesquisa “norteado por questões que foram reformuladas ao longo do tempo” (p. 187), o qual se revela útil para quem pretenda realizar investigação sobre reabilitação urbana de frentes de água e mudanças à escala metropolitana.
Na introdução, a autora dá-nos as boas-vindas a bordo e conduz-nos na viagem da sua pesquisa nunca sacrificando o detalhe, com uma leveza narrativa que nos faz chegar inesperadamente ao fim do texto. A estratégia narrativa vai envolvendo o leitor na reflexão, conduzindo-o pelas principais referências teóricas neste domínio de estudos, passando pela contextualização histórica, geográfica e social da frente ribeirinha oriental de Lisboa, assim como introduzindo o leitor às propostas do plano e urbanização do Parque das Nações, para, finalmente, o levar a conhecer os espaços públicos e as sociabilidades de hoje nesta zona urbana da capital. Patrícia Pereira vai trazendo lentamente o leitor até ao Parque das Nações dos dias de hoje, elaborando uma complexa reflexão sobre discursos e práticas de uma grande variedade de atores e grupos que cruzam espaços e tempos.
Trata-se de um livro a ler, capaz de interessar a sociólogos, antropólogos, urbanistas, geógrafos, historiadores, entre outros investigadores a atuar no campo dos estudos urbanos, assim como poderá suscitar o interesse de um público mais alargado que pretenda conhecer as recentes transformações urbanas da cidade de Lisboa.
Data de submissão: 24/11/2019 | Data de aceitação: 09/12/2019
Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Autores: Lígia Ferro