Nº 3 - junho 2011

Graça Carapinheiro, Socióloga, Professora Catedrática do ISCTE-IUL. Endereço electrónico: graca.carapinheiro@iscte.pt

Abstract: It is discussed the opportunity of a critical sociology of the ethics within the research practice. The author defends that each science must take its place and recognize the normative ordering of its legitimate possibilities, according to the ethical requirements which must define the ethical horizons of their scientific pretensions.

Keywords: sociology of health, ethics, scientific practice.

Resumo: Discute-se no texto a oportunidade de uma sociologia crítica da ética da investigação. Prescreve-se que cada ciência deve saber ocupar o seu lugar e reconhecer o ordenamento normativo das suas possibilidades legítimas, segundo as prescrições deontológicas que devem definir os horizontes éticos das suas pretensões científicas, assim como se recomenda que cada um deve interpretar o seu papel nesse lugar, de forma a acautelar eventuais infracções aos códigos morais, ao “ethos” de cada disciplina, para saber preservar a dignidade do estatuto humano dos sujeitos envolvidos (investigadores e investigados) e para defender a dignidade da ciência.

Palavras-chave: sociologia da saúde, ética, exercício científico.

Sentimos que, mesmo depois de serem respondidas todas as questões científicas possíveis, os problemas da vida permanecem completamente intactos. Ludwig Wittgenstein

À medida que as diversas realidades da saúde e da doença se vão alargando e expandindo, também as aproximações científicas às biografias individuais de as construir e viver, e às organizações e instituições sociais a quem cabe a tutela de as vigiar, controlar e regular, se tornam cada vez mais difíceis, complexas e problemáticas.

Tal raciocínio radica num aparente entendimento tácito, que se supõe ser compreendido consensualmente e sem equívocos, de que estão bem definidos pelas ciências da saúde, designadamente pela medicina, os limites da intervenção das ciências sociais, nomeadamente da sociologia, quanto ao facto de ambas se ocuparem da explicação de dois mundos incompatíveis e irreconciliáveis, cujas lógicas e racionalidades não podem ser transpostas de um campo científico para o outro e não devem transcender a exclusividade dos seus respectivos dispositivos de funcionamento.

Sendo assim, prescreve-se que cada ciência deve saber ocupar o seu lugar e reconhecer o ordenamento normativo das suas possibilidades legítimas, segundo as prescrições deontológicas que devem definir os horizontes éticos das suas pretensões científicas, assim como se recomenda que cada um deve interpretar o seu papel nesse lugar, de forma a acautelar eventuais infracções aos códigos morais, ao “ethos” de cada disciplina, para saber preservar a dignidade do estatuto humano dos sujeitos envolvidos (investigadores e investigados) e para defender a dignidade da ciência.

Tais posições e respectivos postulados, independentemente da maior ou menor razoabilidade moral que os sustenta, não equacionam a posição de cada ciência nas hierarquias informais de poder, nem consideram as consequências que decorrem do carácter hegemónico e desregulado do seu exercício, nas múltiplas configurações que vai assumindo nos campos científico, institucional e profissional. É nesta omissão que se forjam diferentes estratégias de resistência, confrontação e repressão à intervenção de outras ciências, ocultando a existência de outros agentes de conhecimento, desvalorizando as suas agendas e prioridades de investigação e excluindo a expressão legítima dos seus enunciados éticos.

Estas considerações conduzem-nos à definição dos contornos políticos da ética e dos contornos éticos da política, quer na investigação científica em geral, quer na investigação em saúde em particular. Neste caso, a saúde e a doença são realidades multidimensionais com crescente complexidade científica, amplitude experiencial e amplificação social, que se estendem ao plano global. Na medida das controvérsias científicas que se erguem sobre como interpretar e reinterpretar os estados de saúde e de doença nas sociedades contemporâneas, também se geram novos desafios e dilemas éticos relativamente às suas implicações na vida individual e colectiva. No âmbito dos contornos acima mencionados, colocam-se inevitavelmente novas interrogações normativas e emergem novos horizontes de problemas morais, se pensarmos que a investigação em saúde requer necessariamente uma colocação ética centrada no sofrimento do sujeito humano e na saúde como direito humano inalienável.

Faz parte desta colocação a protecção dos sujeitos de investigação, garantindo o consentimento informado, a confidencialidade e a privacidade, no seu acesso e no acesso a todas as condições objectivas e subjectivas que tecem o seu quotidiano em todos os contextos onde se desenrolam a prestação de cuidados. Respeita-se a sua particular condição de vulnerabilidade e fragilidade que os torna um alvo fácil de vários processos de exploração desta condição. Cumprem-se as normas e os regulamentos institucionais quanto à presença do investigador, desde a autorização concedida, aos espaços e às formas de contacto e à determinação dos tempos de permanência.

Mas, apesar de todas as orientações éticas produzidas, os investigadores das ciências sociais confrontam-se com crescentes dificuldades no acesso às instituições de saúde, na obtenção das autorizações das suas comissões de ética, na apreciação intrusiva e ilegítima que aí se faz das suas propostas de estudo, na proposta impositiva de modelos de abordagem metodológica inadequados aos objectivos de estudo, na distorção dos propósitos da investigação, carregados de suspeição e desconfiança, pondo em causa o rigor e a qualidade do estudo, investindo no efeito de saturação psicológica dos investigadores e pondo em causa a viabilidade dos compromissos assumidos, face às instituições de pertença e às instituições de financiamento.

Até que ponto não se justificará fazer a sociologia crítica da ética da investigação, como problemática em aberto, capaz de revelar o que se oculta nas racionalidades dos actores que as praticam? Porque não considerar a ética como um campo de poderes e contrapoderes, de onde poderão emergir novas formas de negociação entre os vários “ethos” em presença? E será que não valerá a pena inovar os termos da prática científica, criando novos agentes de avaliação ética e inaugurando processos de redefinição dos modelos éticos de avaliação das suas implicações?

Nesta proposta reside, em grande medida, a ideia das paridades periciais.

Autores: Graça Carapinheiro