N.º 31 - abril 2023

Mara Clemente
FUNÇÕES: Concetualização, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do projeto,
Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Iscte — Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos de Sociologia.
Av. das Forças Armadas, 1649-026, Lisboa, Portugal
E-mail: mara.clemente@iscte-iul.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5038-7328

Resumo: Desde o final do século XIX, ativistas e organizações feministas internacionais têm desempenhado um papel de primeiro plano na luta contra o tráfico de mulheres. O artigo centra a sua atenção na experiência das organizações de mulheres e feministas portuguesas que foram envolvidas nos esforços institucionais antitráfico mais recentes. Ele analisa a contribuição que estas organizações deram para a construção da(s) ideia(s) de tráfico e para o desenvolvimento das atuais políticas e práticas antitráfico. Documentos e entrevistas com diferentes organizações no campo do combate ao tráfico permitem identificar alguns dos elementos principais que influenciam decisivamente estas organizações em Portugal, nomeadamente nas profundas divisões em torno da prostituição e na competição pelos recursos financeiros.

Palavras-chave: organizações de mulheres e feministas, feminismo, tráfico de pessoas, prostituição.

Abstract: Since the end of the 19th century, international activists and feminist organizations have played a leading role in counter-trafficking. The article focuses on Portuguese women’s and feminist organizations involved in more recent institutional counter-trafficking efforts. It analyzes the contribution these organizations have made to the construction of the idea(s) of trafficking and the development of current counter-trafficking policies and practices. Documents and interviews with different organizations in the counter-trafficking field enable us to identify some of the main elements that decisively influence these organizations in Portugal, especially the deep divisions around prostitution and the competition for financial resources.

Keywords: women’s and feminist organizations, feminism, human trafficking, prostitution.

Introdução

O combate ao “tráfico de pessoas” constitui atualmente um inquestionável objetivo transnacional que envolve uma grande variedade de atores. Estes últimos incluem ativistas e organizações feministas que, a partir do final do século XIX, mobilizaram-se na luta contra o tráfico (Limoncelli, 2010). Em tempos mais recentes, desde o final do século XX, as várias organizações feministas também acabaram em luta em torno de diferentes definições do problema do tráfico e das melhores políticas de intervenção. Tudo isso aconteceu enquanto a luta contra o tráfico se configurava como uma sofisticada “máquina antipolítica” (Clemente, 2022d), que permanece frequentemente longe de intervir nas questões — a começar pelas que envolvem as políticas de prostituição — que expõem homens, mulheres e pessoas trans migrantes ao abuso e à exploração laboral (Doezema, 2010; Silva et al., 2013). Sublinhe-se que as políticas e práticas antitráfico têm produzido numerosos danos, às vezes descritos como “colaterais” (Dottridge, 2018), nas vidas das pessoas rotuladas ou não como “vítimas”: as acrescidas limitações à mobilidade laboral no mercado do sexo e em outros mercados do trabalho formal e informal são alguns deles.

Tais danos, somados ao papel que as organizações de mulheres e feministas têm desempenhado na luta contra o tráfico, tornam relevante a análise da experiência destas organizações nos diferentes contextos locais nacionais. No artigo, apresento, em particular, os resultados de um estudo das oportunidades e dos limites que as organizações de mulheres e feministas portuguesas tiveram na construção da ideia atual de tráfico e nas suas reivindicações políticas e na implementação de práticas de intervenção nos últimos vinte anos. Prestei atenção especial também às relações entre essas organizações e outros atores no campo português do combate ao tráfico, isto é, organizações governamentais e não governamentais, forças policiais, bem como as pessoas traficadas.[1] No artigo, mobilizo o que Anthony Marcus e Edward Snajdr (2013) chamariam estudos “anti-antitráfico” para examinar os dados recolhidos durante um trabalho de investigação sobre o tráfico em Portugal no qual estou envolvida desde 2014 através de diferentes projetos.[2]

O artigo mostra que, em Portugal, as profundas divisões em torno da prostituição e a luta pelo acesso ao financiamento têm fortemente influenciado a ideia de tráfico, as reivindicações políticas e as práticas de intervenção das organizações de mulheres e feministas no campo institucional da luta contra o tráfico. O conceito de tráfico e as políticas e práticas de antitráfico raramente são baseados no diálogo com as pessoas traficadas. Entretanto, a histórica dependência estatal das organizações de mulheres e feministas parece tê-las tornado mais sensíveis à definição institucional de tráfico (e à sua mudança), às políticas securitárias e ao papel de subcontratante de determinados serviços de “prevenção” e “proteção” das “vitimas de tráfico”.

O tráfico e os discursos sobre o tráfico

O Protocolo das Nações Unidas de 2000 Relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças (também conhecido como Protocolo sobre Tráfico ou Protocolo de Palermo), no artigo 3.º, fornece uma longa definição internacional de “tráfico de pessoas”, que pode ser geralmente entendido como o movimento forçado ou coagido de pessoas dentro e entre as fronteiras de um Estado-nação para fins de exploração. No entanto, o tráfico é um conceito altamente fluido (Doezema, 2010; Piscitelli & Lowenkron, 2015). Nos diferentes contextos, a ideia de tráfico expressa valores concorrentes, objetivos políticos conflituantes e contextuais, além das relações de poder que existem entre os vários atores do combate ao tráfico (Clemente, 2019; Molland, 2019).

Na literatura, destaca-se o protagonismo e os limites dos discursos de ativistas e organizações feministas sobre o tráfico (Bernstein, 2018; Clemente, 2022b; Daich & Varela, 2020; Doezema, 2010; Kempadoo, 2005; Limoncelli, 2010; Ward & Wylie, 2017). Ativistas e organizações feministas radicais, tradicionalmente preocupadas com as dimensões políticas e globais da violência dos homens contra as mulheres, têm descrito toda a migração para o trabalho sexual como “tráfico” e têm enquadrado a prostituição como uma expressão da violência patriarcal masculina contra as mulheres (Outshoorn, 2005; Sullivan 2003). Considerando a demanda de prostituição a principal causa do tráfico, o feminismo radical tem visto a abolição da prostituição como solução. No entanto, ativistas e organizações feministas pró-direitos das trabalhadoras do sexo têm enquadrado a prostituição principalmente como uma forma de trabalho (Outshoorn 2005; Sullivan 2003). De acordo com estas, a migração para o trabalho sexual é tráfico apenas quando mulheres, homens e pessoas trans são forçados a se prostituir contra a sua vontade. Ativistas e organizações feministas pró-direitos também pedem a descriminalização ou legalização da prostituição e a atribuição de direitos civis, laborais e humanos às trabalhadoras do sexo como meio de abordar os abusos no mercado do sexo e de combater o tráfico.[3] Esses discursos contrastantes contribuíram para a definição ambígua de tráfico incorporada no instrumento que tanto influenciou as políticas de combate ao tráfico em várias jurisdições, o Protocolo sobre Tráfico, que não assume uma posição clara sobre a relação entre prostituição e tráfico.

Desde a época da negociação deste Protocolo, tem sido questionada a distinção, embora implícita, entre prostituição “voluntária” e “forçada” prevista neste instrumento. Uma distinção que surgiu sob a pressão de ativistas e organizações feministas pró-direitos das trabalhadoras do sexo, com o objetivo de limitar os danos causados pelo lobby feminista abolicionista (Doezema, 1998, 2010). Mas esta distinção rapidamente substituiu o modelo abolicionista de prostituição, tornando-se uma nova forma de ignorar os direitos e controlar as prostitutas “voluntárias” (Doezema, 2010; Sullivan, 2003). As críticas que põem em causa a dicotomia “voluntária/forçada” incluem a produção de distinções racistas, classistas, neocolonialistas e inerentemente falsas entre trabalhadoras sexuais culpadas/“voluntárias” e inocentes/“forçadas” (Doezema, 1998; Murray, 1998). Uma distinção que tem produzido, por um lado, prostitutas ocidentais livres para escolher a sua profissão, mas “culpadas” de transgredir as normas sexuais e, por outro lado, inocentes, passivas e ingénuas vítimas do sul periférico, forçadas à prostituição em virtude da sua pobreza e idade (Doezema, 1998; Kempadoo, 1998). Tomadas no seu conjunto, estas representações das “vítimas de tráfico” têm servido como justificativa para os impulsos intervencionistas de várias organizações de mulheres e feministas ocidentais, mais do que para o interesse das “outras” mulheres vitimadas (Doezema, 2010).

Com o tempo, o Protocolo contra o Tráfico tem causado inúmeros problemas às trabalhadoras (e aos trabalhadores) do sexo migrantes (Dottridge, 2018). Entre esses problemas, encontram-se controlos de migração discriminatórios, aumento dos custos de assistência à migração de terceiros e um correspondente aumento da servidão por dívida. O Protocolo contra o Tráfico e as leis e políticas antitráfico que tem impulsionado a nível nacional, além de justificarem o controlo cada vez maior do Estado sobre a vida dos trabalhadores migrantes, têm oferecido poucas chances de as “vítimas de tráfico” serem tratadas de forma diferenciada da dos criminosos envolvidos em práticas imorais e, portanto, forçadas a enfrentar a prisão e a deportação para os seus países de origem (Piscitelli, 2013; Varela, 2017).

Muitos desses resultados controversos estão inevitavelmente ligados ao facto de o tráfico ter sido enquadrado, antes de mais, como um crime que ameaça a segurança do Estado e os interesses nacionais (Aradau, 2008). Os instrumentos e as políticas internacionais de combate ao tráfico têm-se concentrado, também em Portugal, na perseguição do crime de tráfico, subordinando a esta os direitos das suas vítimas e retratando operações de rusgas em espaços de prostituição e resgate de potenciais vítimas de tráfico como esforços heroicos para salvá-las (Clemente, 2022d; Plambech 2014; Shih 2016). A atenção dada aos direitos dos migrantes “traficados” e aos danos causados a eles, tanto por “traficantes” como por diferentes Estados, por meio desta abordagem, tem sido frequentemente mínima (Dottridge, 2018). Em certos contextos, o objetivo de reforçar a atenção e os recursos dedicados ao tráfico tornou as organizações feministas cúmplices de enquadrar o tráfico principalmente como uma questão de justiça criminal, sem uma preocupação substancial com a dimensão política, isto é, com o papel desempenhado pelas atuais políticas de migração e trabalho (Bernstein, 2018; Clemente, 2022d; Daich & Varela, 2020; Kempadoo, 2005; Ward & Wylie, 2017).

Elizabeth Bernstein (2018) descreve esses esforços como “feminismo carcerário”, enfatizando a reformulação das lutas das gerações anteriores para a justiça de género e libertação sexual em termos de justiça criminal. De acordo com Bernstein, o feminismo carcerário caracteriza-se por localizar os problemas sociais em indivíduos desviantes ao invés de nas instituições e busca remédios sociais por meio de intervenções de justiça criminal, ao invés de soluções para um estado de bem-estar social redistributivo. Porém, esta abordagem deixa intactas as estruturas sociais que conduzem mulheres e homens de baixa renda a formas de migração arriscada e à exploração nos setores informais do trabalho, incluindo as situações relativamente raras qualificáveis como “tráfico” (Bernstein, 2018). Entretanto, as evidências da eficácia das atuais lógicas punitivas são escassas, chamando a atenção para a posição desvantajosa e desigual que as mulheres ocupam no sistema penal, tanto como “vítimas de tráfico” como “criminosas” (Daich & Varela, 2020; Ward & Wylie, 2017).

Antes de voltar a atenção para o discurso das organizações de mulheres e feministas portuguesas sobre o tráfico, examinarei primeiro a agenda destas organizações e as suas próprias lutas internas e externas no contexto deste estudo. Ainda antes, na próxima sessão, dou conta da metodologia de estudo utilizada.

Metodologia

Os dados coletados para este estudo incluem documentos (planos nacionais e relatórios técnicos), materiais feministas (sítios de internet, manifestos, materiais de arquivo), bem como entrevistas qualitativas. Entre 2015 e 2022, coletei mais de sessenta entrevistas qualitativas com atores estatais e não estatais. Neste artigo, mobilizo, em particular, sete entrevistas com as várias organizações de mulheres e feministas envolvidas na Rede de Apoio e Proteção às Vítimas do Tráfico (RAPVT). A RAPVT foi prevista no segundo Plano de Ação Nacional de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos (II PAPCTSH 2011-2013) com o objetivo de favorecer a cooperação entre diferentes atores no campo institucional da luta contra o tráfico, tendo sido criada em 2013. A rede é coordenada, desde então, pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) e composta por várias organizações governamentais e não governamentais. As organizações de mulheres e feministas envolvidas na RAPVT — todas elas participando na pesquisa — são: a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), o Movimento Democrático das Mulheres (MDM) e a Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV). A UMAR é uma organização de âmbito nacional, que surgiu em 1976 das fileiras femininas da União Democrática Popular (UDP), com o objetivo de reivindicar os direitos das mulheres no então novo contexto político. Atualmente, a organização afirma um feminismo comprometido socialmente e independente de partidos políticos. De forma similar, o MDM surgiu no período autoritário como um grupo semilegal ligado ao Partido Comunista Português (PCP). Também esta organização de mulheres, de âmbito nacional, se descreve atualmente como independente de partidos políticos, além do Estado e de religiões, indicando a união das mulheres e a defesa dos seus direitos como cidadãs, trabalhadoras e mães como um dos seus primeiros objetivos. De origem mais recente, a AMCV foi constituída formalmente em 1993. Além do caráter independente, laico e não lucrativo, a organização indica como o seu objeto a promoção dos direitos humanos de mulheres, jovens e crianças, com uma preocupação especial para o combate de todas as formas de violência contra estes.

 Das sete entrevistas mobilizadas neste artigo, cinco foram com estas organizações de mulheres e feministas que fazem parte da RAPVT, tendo incluído, no caso da UMAR e da AMCV, tanto pessoal técnico quanto dirigentes; no caso do MDM, a pessoa que participou na entrevista é uma dirigente da organização. As organizações que participaram na pesquisa não são certamente representativas das associações de mulheres e feministas portuguesas; entretanto, tal como indica a própria composição da RAPVT, elas são representativas das associações de mulheres e feministas historicamente envolvidas no campo institucional da luta contra o tráfico em Portugal.

Duas das entrevistas mobilizadas no artigo foram coletadas com pessoal técnico e dirigente da CIG, uma entidade do Estado, integrada na Presidência do Conselho de Ministros que, pelas suas tentativas de incluir as demandas e os atores do movimento de mulheres no Estado, tem sido descrita como uma expressão do “feminismo de Estado” português (Monteiro & Ferreira, 2016).

O artigo também beneficia do meu posicionamento a favor dos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras do sexo, bem como o meu compromisso académico para com a justiça e a mudança social (ver Clemente, 2022c).

As organizações de mulheres e feministas portuguesas: agendas, contrastes e alianças

Antagonismo, desconfiança e resistência institucional nos movimentos de mulheres e feministas e nos estudos feministas, de género e de mulheres têm historicamente caracterizado o contexto político, social e cultural português (Ferreira, 2019; Tavares, 2011).

Silenciamento e instrumentalização dos grupos de mulheres caracterizaram a ditadura repressiva e antifeminista do Estado Novo. No entanto, mesmo nos anos imediatamente posteriores à “Revolução dos Cravos” de 1974, o contexto cultural e político permaneceu substancialmente fechado às organizações autónomas de mulheres e às demandas feministas (Tavares, 2000, 2011). Em particular, num período de intensas disputas político-partidárias, um dos seus principais protagonistas, a esquerda revolucionária, tendia a ver o feminismo como um movimento burguês desestabilizador e divisionista e subordinava as suas demandas específicas às demandas de classe (Melo, 2016; Monteiro & Ferreira, 2016). Como resultado, durante muito tempo, no período pós-revolução, o termo “feminismo” foi censurado como “uma palavra maldita” (Carmo & Amâncio, 2004, p. 11) e as demandas relativas à sexualidade, aos direitos reprodutivos e ao fim do patriarcado encontraram especial resistência (Melo, 2016).

Neste contexto, as organizações de mulheres adotaram uma série de escolhas estratégicas, entre as quais a cooperação com os partidos de esquerda dos quais surgiram e o ajuste dos discursos e demandas das mulheres para se alinharem melhor com uma “revolução socialista” (Melo, 2016, 2017). Esta estratégia permitiu que as suas organizações beneficiassem dos recursos ideológicos, organizacionais e financeiros dos partidos aliados, dando-lhes a oportunidade de trabalhar no sentido de mudar as perceções político-partidárias e sociais das causas mais divisionistas, como a do aborto (Melo, 2016). No entanto, a diluição do feminismo no antifascismo por meio do entrelaçamento das questões democráticas e de classe com as de género também teve um preço (Tavares, 2011). Um deles foi a fragmentação do movimento de mulheres, dividido por fronteiras ideológicas e também pela competição por recursos e filiados (Melo, 2016; Tavares, 2000, 2011). Em particular, as rivalidades entre os partidos de esquerda tornaram cada vez mais improvável a cooperação entre as organizações a eles filiadas, mesmo depois de terminado o período revolucionário. Além disso, a exclusão de certas reivindicações feministas por algumas organizações de mulheres tornou improváveis ações conjuntas com as poucas organizações feministas da época, como o Movimento de Libertação da Mulher (MLM).

No contexto de transição para a democracia, houve também a escolha estratégica das organizações de mulheres optarem por uma relação de cooperação com o Estado, bem como com alguns partidos políticos (Monteiro & Ferreira, 2016). Em particular, as organizações de mulheres buscaram pragmaticamente um espaço de mobilização e acesso ao poder político dentro de um dos setores do Estado em processo de modernização: a atual CIG (Monteiro & Ferreira, 2016).

Expressão do feminismo de Estado português, durante algum tempo, a CIG constituiu um espaço formal de discussão com organizações de mulheres e representantes de vários setores governamentais (Monteiro, 2013). No entanto, a cooperação das organizações de mulheres com a CIG tem, mais uma vez, influenciado o possível repertório de ações das organizações, bem como as suas estruturas de mobilização (incluindo modalidades de atuação e fontes de financiamento). Em outras palavras, tal cooperação ofereceu recursos organizacionais e financeiros às organizações de mulheres, mas custou a aquiescência, a dependência e o substancial desempoderamento delas (Monteiro & Ferreira, 2016; Tavares, 2011).

Também o feminismo de Estado não tem tido um caminho fácil: as pressões do feminismo transnacional favoreceram a presença de um mecanismo oficial de igualdade de género, mas o centralismo estatal também contribuiu para a marginalização da CIG nos processos de tomada de decisão política (Monteiro, 2013; Monteiro & Ferreira, 2016). Especialmente nas últimas décadas, com o crescente protagonismo das políticas de igualdade, devido também aos compromissos internacionais, a CIG tem-se configurado cada vez mais como um executor de políticas, ao invés de um órgão militante e político, proponente de política ou consultor (Monteiro, 2013). A “europeização” e as crescentes tendências neoliberais também contribuíram para a reestruturação das relações deste órgão burocrático e operativo com as organizações de mulheres e feministas (Monteiro & Ferreira, 2016). Em particular, ao longo dos anos, a subcontratação de serviços no âmbito das prioridades políticas definidas pela CIG acompanhou a redução drástica de outros tipos de financiamento destas organizações.

Recentemente, novas iniciativas dinamizaram o contexto português, com as redes sociais a oferecerem espaços para o desenvolvimento de novas formas de militância feminista. No entanto, as organizações feministas portuguesas não têm assumido a força e coesão que têm mostrado noutros contextos em resposta aos recentes avanços de políticas conservadoras e neoliberais (Daich & Varela, 2020; Monteiro & Ferreira, 2016; Tavares, 2011).

A questão da prostituição

A prostituição é um dos temas por muito tempo deixado à margem pelas organizações de mulheres e feministas portuguesas, na constante necessidade de equilibrar as suas prioridades com o conservadorismo e a exclusão política que as têm caracterizado. A dependência do Estado e o facto de o apoio que recebem do Estado estar subordinado a uma agenda predefinida têm contribuído para tornar o diálogo com as mulheres no mercado do sexo uma experiência completamente excecional. Assim, a entrada da prostituição no debate de várias organizações, na primeira década do século XXI, pode ser lida principalmente como uma consequência da mobilização institucional contra o “tráfico sexual” (Clemente, 2022b; Duarte, 2012; Prata, 2015).

Durante a transição democrática e por um período significativo depois dela, as organizações de mulheres enquadraram a prostituição como “um ataque aos direitos sociais e económicos das mulheres e sobretudo como uma forma de violência patriarcal” (UMAR, entrevista realizada em 2018; itálico acrescentado). Os poucos atores, incluindo organizações religiosas, preocupados com a prostituição convergiram para a necessidade de descriminalizar e proteger as “vítimas” da prostituição que, desde a revisão do Código Penal de 1982, não eram mais processadas pela prática da prostituição (Oliveira, 2017). As posições abolicionistas sobre a prostituição favoreceram também a ratificação, em 1991, da Convenção Internacional das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, de 1949, que identifica a prostituição com o tráfico. Desde o início dos anos 2000, estas posições foram reforçadas pela fundação da Plataforma Portuguesa pelos Direitos da Mulher. Embora a participação em eventos e debates nas redes antitráfico nacionais sugira que o financiamento nacional e internacional desta plataforma pareça dar grande visibilidade à sua presença e às suas posições, o diálogo e a intervenção junto das mulheres do mercado do sexo têm sido completamente residuais.

Nos últimos anos, com a entrada do tráfico na agenda política nacional, assistimos também a um reposicionamento de algumas organizações feministas no que diz respeito à questão da prostituição. É o caso da UMAR, que, com a resolução da Assembleia Geral de 2011, afirmou a necessidade de “abrir campo a uma diferente reflexão feminista sobre a prostituição” (União de Mulheres Alternativa e Resposta [UMAR], 2011, para. 3) com o objetivo de combater o estigma da prostituição e reconhecer os direitos laborais das prostitutas. As entrevistas com as representantes da organização indicam que as pesquisas no mercado do sexo (ver Oliveira, 2011; M. Ribeiro et al., 2005, 2007), aliadas a uma reflexão cada vez maior sobre as questões da sexualidade, por sua vez estimulada pelo diálogo com o movimento LGBTQ+, contribuíram para o reposicionamento dessa organização (ver também UMAR, 2011).

Atualmente as organizações de mulheres e feministas no campo português da luta contra o tráfico apenas convergem para apontar a prostituição como uma das questões mais violentas e fraturantes. Os contrastes sobre a prostituição parecem ter contribuído para colocar esta questão à margem da mais ampla agenda política portuguesa (F. B. Ribeiro & Silva, 2019).

O tráfico e o combate ao tráfico

Voltando a atenção para o tráfico, é possível encontrar uma mobilização contra o tráfico no final da década de 1970. Promovida pela UMAR na sequência da publicação de reportagens jornalísticas denunciando casos de mulheres portuguesas traficadas em Espanha, esta mobilização decorreu numa altura em que o tráfico era amplamente identificado como prostituição (Clemente, 2019). A ação é descrita por esta organização como “a face visível da nossa posição contra o tráfico, mas também contra a prostituição” (UMAR, entrevista realizada em 2018).

Nos anos subsequentes, enquanto a UMAR lentamente adotou o rótulo feminista, o combate ao tráfico permaneceu na periferia das suas preocupações. Entretanto, desde o final da década de 1990, Portugal assistiu também a um aumento da imigração. Um número crescente de mulheres migrantes do Brasil e do Leste Europeu começou a aparecer no mercado do sexo português. Desde os primeiros estudos promovidos pelas principais instituições públicas, dentro de programas europeus mais amplos de combate ao “tráfico sexual”, não emergiram evidências de tráfico (ver Manita & Oliveira, 2002). Ao longo dos anos, novos estudos no mercado do sexo português convergiram para o questionamento do alarme crescente em torno do tráfico sexual (ver Alvim, 2018; Oliveira, 2011; M. Ribeiro et al., 2007). No entanto, as relações de poder transnacionais e o objetivo de cumprir as agendas internacionais e europeias estimularam Portugal a tomar medidas contra o tráfico (Clemente, 2019).

Essa intervenção exacerbou o protagonismo de alguns atores institucionais como a CIG, que assumiu a coordenação das atividades de luta contra o tráfico em Portugal. No processo de construção do atual sistema de combate ao tráfico, esta agência governamental, que é a expressão do feminismo de Estado no país, mobilizou algumas organizações, incluindo organizações feministas e de mulheres como a UMAR, o MDM e a AMCV. Embora tivessem uma experiência limitada com “vítimas de tráfico”, enquanto organizações históricas do Conselho Consultivo do CIG, elas detinham o capital simbólico e social (Bourdieu, 1986) para uma “chamada às armas” contra o tráfico (Clemente, 2019). No caso da UMAR, a organização disponibilizou as suas estruturas de atendimento às mulheres vítimas de violência de género para respostas emergenciais às vítimas de tráfico. A tentativa de acumular o capital cultural necessário para responder às solicitações institucionais também encorajou ações informais:

O que andávamos a fazer eram giros. Por iniciativa da UMAR ou com parceria informal entre nós e a Associação Positivo, que tinha o projeto Red Light. Basicamente, também para começar a entender a realidade da prostituição e do tráfico sexual, porque a UMAR também foi chamada a dar parecer sobre políticas públicas. (UMAR, entrevista realizada em 2018)

Enquanto isso, à semelhança do que aconteceu em outros contextos, organizações abolicionistas como o MDM tentaram descrever todas as trabalhadoras do sexo como “vítimas de tráfico”. Importando o discurso abolicionista internacional, elas tentaram fazer do combate ao tráfico um campo de discussão sobre as políticas de prostituição. No entanto, isso logo gerou “irritação” de alguns atores institucionais. Nas palavras de um representante da CIG:

Irrita-me a falta de seriedade de algumas organizações no debate dessas questões. Não há nada que impeça que haja propostas e lobby se houver uma proposta clara e concreta sobre a prostituição. Mas as coisas precisam ser construídas. Já tivemos tentativas de iniciativas legislativas sobre a prostituição por partidos juvenis em Portugal. Eles falharam, claro! Uma coisa é a posição que eu, ou qualquer outra pessoa, podemos ter como cidadão, outra coisa é quando represento uma instituição pública do Estado. Não posso dizer: “Sim, o Estado português vai legalizar ou criminalizar a prostituição”. (CIG, entrevista realizada em 2015)

Em suma, na primeira década deste século, o debate sobre a prostituição que o combate ao tráfico desencadeou em Portugal colocou o feminismo de Estado português sob forte pressão. O seu objetivo burocrático de construir um campo de combate ao tráfico teve primeiro de lidar com as pressões de diferentes organizações — católicas, bem como de mulheres — que pediam para intervir na prostituição por meio da criminalização da compra de sexo. Essa meta poderia ter prejudicado a meta maior de construção de um sistema de combate ao tráfico, devido ao substancial desinteresse político pela prostituição, que representa uma questão polémica tanto a nível internacional quanto nacional.

Assim, a concetualização da prostituição e das suas causas pelo feminismo de Estado português é certamente diferente da assumida pelas organizações feministas pró-direitos das trabalhadoras do sexo. Em particular, a CIG tem descrito a prostituição e o tráfico sexual como uma forma de violência contra as mulheres e uma grave violação dos direitos humanos (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género [CIG], 2015). No entanto, desde os primeiros debates públicos sobre o tráfico, a CIG afirmou também a necessidade de distinguir a prostituição do tráfico sexual (Varandas & Saraiva, 2000). A distinção entre prostituição “forçada” e “voluntária” permitiu deixar a prostituição largamente à margem das preocupações do feminismo de Estado, salvaguardando assim o seu objetivo de construir um sistema de combate ao tráfico (Clemente, 2019).

Organizações feministas pró-direitos dos trabalhadores do sexo, como a UMAR, viram esta distinção como uma forma de conter as pressões abolicionistas. No entanto, a mesma distinção foi estrategicamente usada pelas próprias organizações abolicionistas de mulheres para dar mais força às suas reivindicações. Em alguns casos, além de distinguir o tráfico da prostituição, organizações de mulheres abolicionistas, como o MDM, passaram a aceitar o “convite” institucional para ampliar a ideia do tráfico, evitar o foco no tráfico sexual e, assim, deixar a guerra contra a prostituição fora do combate nacional ao tráfico (ver também Clemente, 2022b). Trazendo as “vítimas do tráfico sexual” para a periferia da sua ansiedade de resgate, estas organizações continuam a beneficiar do financiamento do combate ao tráfico e de parcerias governamentais.

Entre segurança do Estado e justiça criminal

Pelo menos nos primeiros momentos de construção do campo português de combate ao tráfico e apesar das divisões e tensões geradas pelas diferentes interpretações da prostituição e do tráfico, várias organizações da sociedade civil — incluindo organizações de mulheres e feministas — sentiram-se desafiadas por uma abordagem de combate ao tráfico caracterizada por um enfoque na justiça criminal (ver também Clemente, 2021). Nas palavras de uma representante da UMAR: “Todas concordaram em pelo menos um ponto. Organizações abolicionistas e organizações que não o são concordaram que as organizações deveriam identificar formalmente as vítimas” (UMAR, entrevista realizada em 2018).

A identificação das “vítimas de tráfico” pela polícia e a subordinação dos seus direitos à colaboração na perseguição criminal de traficantes são um exemplo de práticas de combate ao tráfico decorrentes da implementação no contexto nacional de normas e políticas internacionais caracterizadas por um enfoque na justiça criminal.

A pesquisa documental também aponta para algumas tentativas, embora tímidas, de resistência das organizações feministas a uma abordagem baseada em objetivos de segurança do Estado e de justiça criminal. Por exemplo, em 2011, a UMAR enfatizou a fraca proteção do direito ao trabalho e à migração como causa do tráfico, criticando as práticas incentivadas por uma conceptualização do tráfico como uma questão de segurança do Estado:

Algumas dessas campanhas [de combate ao tráfico] acabam por servir os interesses dos sistemas policiais no combate à imigração ilegal, quando sabemos que a verdadeira raiz do problema está na falta de estatuto legal e de trabalho com direitos para as/os imigrantes. (UMAR, 2011, para. 3)

Às vezes, mesmo sem questionar uma abordagem carcerária ao tráfico, algumas organizações têm reivindicado um tipo diferente de presença no combate ao tráfico: “Nós temos vindo a reivindicar, por exemplo, nós gostávamos de ser parceiras para poder ter parte em processos judiciais de mulheres. Violência doméstica, tráfico, etc. Nunca conseguimos” (MDM, entrevista realizada em 2016).

Tais atos de resistência e reivindicações, no entanto, precisaram de lidar com o desafio da “confiança” no sistema de combate ao tráfico e dos diferentes atores a nível institucional. Como um representante da CIG explica:

A justiça criminal quer pegar os criminosos e condená-los. Para fazer isso, a polícia deve coletar evidências durante a investigação. O que as organizações da sociedade civil têm aqui? O interesse das organizações é proteger a vítima. Assim, temos vários atores, mas embora os seus interesses sejam diferentes, não são incompatíveis — muito pelo contrário. Eles são totalmente compatíveis. Para ser compatível, deve haver altos níveis de confiança entre essas organizações. (CIG, entrevista realizada em 2015)

Ainda assim, ao longo da pesquisa, várias organizações têm enfatizado a dificuldade causada pelo papel central desempenhado pela polícia num contexto em que atitudes ambíguas em relação à prostituição se sobrepõem às tendências europeias para a criminalização dos migrantes (Oliveira, 2017; M. Ribeiro et al., 2005, 2007). Esta dificuldade produziu o que, a nível institucional, às vezes é descrito como “autoexclusão” por parte de várias organizações. No entanto, a minha observação nas redes institucionais de combate ao tráfico, realizada a partir de 2018 com a participação nas suas reuniões e encontros públicos, confirma o caráter processual da atual presença das organizações mais críticas, incluindo as organizações feministas (ver Clemente, 2022c). Nas palavras de uma delas:

Havia encontros onde havia uma reflexão sobre o tema, onde havia uma abertura para as organizações colocarem questões [e] partilharem ideias, mas perderam-se com o tempo. A participação das diversas organizações em redes institucionais de combate ao tráfico, como a Rede de Apoio e Proteção às Vítimas do Tráfico (RAPVT), acaba sendo intimamente articulada com o que as organizações governamentais fazem a nível nacional — praticamente tudo é feito para implementar o Plano de Ação Nacional de Combate ao Tráfico. (UMAR, entrevista realizada em 2018)

Os níveis cada vez mais reduzidos de participação no combate ao tráfico por parte de organizações feministas parecem ter enfraquecido as possibilidades de uma reflexão mais robusta sobre a atual abordagem ao tráfico, que é baseada, também em Portugal, na segurança do Estado e na justiça criminal. Em vez disso, nos últimos tempos, essas organizações parecem estar divididas, mesmo no que diz respeito à abordagem atual da justiça criminal.

É o que sugerem algumas parcerias e intervenções mais recentes entre organizações de mulheres abolicionistas e atores institucionais que focam a sua atenção na conceptualização do tráfico como crime e no objetivo da sua perseguição. Podemos encontrar um exemplo recente no desenvolvimento do aplicativo ACT — Agir Contra o Tráfico Humano, desenvolvido pelo MDM, em colaboração com o Ministério da Administração Interna (MAI), por meio do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH). Foi por ocasião da apresentação deste aplicativo que uma representante do MDM chamou a atenção para a preocupação de fazer “a distinção entre aquilo que é tráfico humano e outros crimes como, por exemplo, o auxílio à imigração ilegal” (DN/Lusa, 2019, para. 4) e o objetivo da justiça criminal de “denunciar [o tráfico], através da queixa eletrónica, diretamente para o MAI” (DN/Lusa, 2019, para. 8). Quanto ao “apoio às vítimas de tráfico”, a sua subordinação à perseguição de traficantes parece ter escapado às preocupações atuais.

Discussão

Os dados analisados indicam que a entrada do tráfico na agenda feminista portuguesa está substancialmente ligada às oportunidades criadas pela agenda institucional de combate ao tráfico e aos seus objetivos de implementar um sistema que o enfrente. Deste ponto de vista, a experiência das organizações feministas não é diferente da de outras organizações não governamentais no combate ao tráfico português (Clemente, 2021), mas esta experiência é certamente diferente da das organizações feministas do fim do século XIX (Limoncelli 2010) ou das organizações feministas contemporâneas em contextos como os EUA (Bernstein, 2018).

A construção do campo português de luta contra o tráfico encorajou a convocação de várias organizações (Clemente, 2019), incluindo organizações de mulheres e feministas, para fornecer evidências de tráfico, oferecendo-lhes pelo menos a ilusão de um espaço de discussão sobre questões que logo mostraram ser divisivas. A questão principal aqui é a conceptualização do tráfico, a sua relação com a prostituição e as políticas relacionadas.

À semelhança do que aconteceu a nível internacional na época da negociação do Protocolo de Palermo (Doezema, 1998, 2010), o potencial impasse criado pela identificação abolicionista do tráfico com a prostituição e o pedido de algumas organizações de intervenção nas atuais políticas da prostituição têm encorajado uma distinção entre prostituição “forçada” e “voluntária”. Ao contrário do que aconteceu internacionalmente, essa distinção foi afirmada principalmente pela organização estatal abolicionista que coordena as atividades de combate ao tráfico, tendo sido posteriormente adotada pelas várias organizações de mulheres e feministas.

Reforçando as críticas de Doezema (1998, 2010), este artigo sugere que, no contexto português, tal distinção tem produzido o desinteresse progressivo não só dos direitos dos profissionais do sexo, mas também das “vítimas de tráfico sexual”. De forma mais ampla, esta distinção tem contribuído gradativamente para uma despolitização neoliberal do combate ao tráfico que discutivelmente pode oferecer qualquer oportunidade para reivindicar os direitos dos trabalhadores migrantes explorados no mercado do sexo e em outros mercados de trabalho mais ou menos formais (ver também Clemente, 2022d).

A adoção desta distinção pelas organizações de mulheres e feministas portuguesas envolvidas no campo institucional da luta contra o tráfico assemelha-se a um mecanismo de ajustamento da definição do problema e das suas reivindicações, o que não é tão diferente daquele que tem historicamente caracterizado a relação destas organizações com as instituições políticas e aliadas. No entanto, a luta contra o tráfico tem ficado distante do que aconteceu com questões como a legalização do aborto — uma “questão silenciada”, por um certo tempo, nas organizações de mulheres para trabalhar para um contexto mais favorável dentro dos partidos, na ausência do apoio do feminismo de Estado (Melo, 2016; Prata, 2015; Tavares, 2011).

A definição de tráfico que as organizações de mulheres e feministas aceitaram contribuiu para afastar do campo do combate ao tráfico os potenciais conflitos, mas também os atores problemáticos — incluindo as próprias trabalhadoras do sexo. Elas foram logo seguidas pelas “vítimas de tráfico sexual”, cujo objetivo de resgate foi diluído por um objetivo burocrático neoliberal de ter formas heterogéneas e menos conflituantes de tráfico (ver também Clemente, 2019). Finalmente, a mesma participação de organizações de mulheres e feministas no combate ao tráfico tornou-se progressivamente mais processual, faltando envolvimento no debate, bem como na prestação de serviços. Isto é particularmente evidente no caso de organizações pró-direitos das trabalhadoras do sexo que, à semelhança de várias organizações ligadas à migração ou com uma posição claramente pró-direitos (Clemente, 2021), ocupam atualmente uma posição periférica no combate ao tráfico.

Entretanto, também no contexto português, no caso das organizações abolicionistas, parcerias e intervenções mais recentes parecem sugerir o reforço gradual de formas de “feminismo carcerário” neoliberal (Bernstein, 2018). Ao apresentarem preocupações de segurança e ao se curvarem às práticas de justiça criminal, essas organizações garantem o fortalecimento do seu capital económico, cultural, social e simbólico (Bourdieu, 1986) e, assim, a sua autorreprodução.

No entanto, o principal beneficiário dos discursos atuais sobre o tráfico e as suas vítimas parece ser o feminismo de Estado português. Ao evitar os contrastes criados pelo debate sobre a prostituição, este tem assegurado a possibilidade de atingir o seu objetivo burocrático de construir um sistema nacional de combate ao tráfico. No entanto, mesmo que isso tenha fortalecido o seu poder sobre os diferentes atores nacionais, bem como o reconhecimento internacional, isto não corresponde necessariamente a respostas eficazes que garantam a proteção das vítimas de tráfico (Clemente, 2022d) e a própria punição dos traficantes (Matos & Maia, 2015).

A marginalização das organizações mais críticas tem contribuído para a criação de uma distância entre a “lei nos livros e lei em ação” — é o que sugere a não aplicação do regime especial de concessão de autorização de residência a vítimas de tráfico de pessoas que não desejam ou não podem colaborar com as autoridades na investigação e repressão do tráfico (Decreto-Lei n.º 368/2007, 2007). Essa ineficácia da lei e das políticas pode ser observada em outros campos, como a igualdade de género (Monteiro & Ferreira, 2016). No entanto, no combate ao tráfico, não parece ter criado as mesmas tensões entre o Estado e as organizações feministas. Pelo contrário, o combate ao tráfico confirma as críticas que indicam, tendo em conta a sobreposição do neoliberalismo atual à histórica dependência estatal do feminismo português, as razões tanto para reduzidas ações autónomas das organizações feministas como para a reduzida eficácia das políticas (Monteiro & Ferreira, 2016; Tavares, 2011).

Atualmente, o combate ao tráfico parece exigir que as organizações de mulheres e feministas experimentem outras práticas. Sendo a suspensão dos contrastes em torno da prostituição improvável e, menos ainda, as lutas pelo acesso aos recursos, o combate ao tráfico parece exigir uma prática substancial de inclusão. A mobilização da ideia de feminismo “inclusivo” tem contribuído para a promoção de uma preocupação com as prostitutas “voluntárias” e as “forçadas” por algumas organizações. Enquanto isso, esta distinção e a ausência substancial de um projeto político partilhado com as trabalhadoras do sexo parecem limitar a possibilidade de as organizações de mulheres e feministas contribuírem para a melhor afirmação dos direitos das mulheres no mercado do sexo — sejam elas rotuladas como “vítimas de tráfico” ou não.

Será possível que práticas de “sororidade” — tantas vezes invocadas no discurso feminista — possam contribuir para o debate e a ação feminista no combate ao tráfico? É concebível a “inclusão” substancial das trabalhadoras do sexo e da sua causa nas organizações feministas? O combate ao tráfico parece exigir uma “solidariedade política” que, ao contrário do “apoio”, não será ocasional, mas o resultado de valores e objetivos partilhados e de um processo profundo e difícil de introspeção e comparação (hooks, 2000). Poderá tal sororidade se tornar um novo ponto de partida para organizações de mulheres e feministas inclusivas e um combate ao tráfico mais eficaz? Novas práticas e pesquisas futuras poderão ajudar-nos a responder a estas questões.

Referências

Alvim, F. (2018). Só Muda a Moeda: Representações sobre Tráfico de Seres Humanos e Trabalho Sexual em Portugal. Novas Edições Acadêmicas.

Aradau, C. (2008). Rethinking trafficking in women. Palgrave Macmillan.

Bernstein, E. (2018). Brokered Subjects: Sex, Trafficking, and the Politics of Freedom. University of Chicago Press.

Bourdieu, P. (1986). The Forms of Capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education (pp. 241-258). Greenwood Press.

Carmo, I., & Amâncio, L. (2004). Desamaldiçoar o feminismo. A propósito de Vozes Insubmissas. A história das mulheres e dos homens que lutaram pela igualdade dos sexos quando era crime fazê-lo. D. Quixote.

CIG, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. (2015). Igualdade de Género em Portugal 2014. CIG.

Clemente, M. (2019). O tráfico sexual (já) não é sexy? Atores, definições do problema e políticas no campo português de combate ao tráfico. Gazeta de Antropología, 35(1), Artigo 2. http://hdl.handle.net/10481/58857

Clemente, M. (2021). The long arm of the neoliberal leviathan in the countertrafficking field: the case of Portuguese NGOs. International Review of Sociology, 31(1), 182-203.

Clemente, M. (2022a). A Construção do campo de combate ao tráfico de pessoas em Portugal. O papel das organizações não-governamentais. SOCIOLOGIA ON LINE, (28), 11-34.

Clemente, M. (2022b). Feminism and Counter-Trafficking: Exploring the Transformative Potential of Contemporary Feminism in Portugal. Social & Legal Studies, 0(0). https://doi.org/10.1177/09646639221119361

Clemente, M. (2022c). Opportunities and limitations in the counter-trafficking field: the experience of participating in Portuguese counter-trafficking networks. Etnográfica, 26(2), 467-487.

Clemente, M. (2022d). The counter-trafficking apparatus in action: who benefits from it?. Dialectical Anthropology, 46(3), 267-289.

Daich, D., & Varela, C. (Eds.) (2020). Los feminismos en la encrucijada del punitivismo. Editorial Biblos.

Decreto-Lei n.º 368/2007, de 5 de novembro, do Ministério da Administração Interna. (2007). Define o regime especial de concessão de autorização de residência a vítimas de tráfico de pessoas a que se referem os n. os 4 e 5 do artigo 109.º e o n.º 2 do artigo 111.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho. Diário da República, 1.ª série, 212, 8008-8008.

DN/Lusa. (2019, 25 de outubro). Movimento de Mulheres cria aplicação para telemóvel contra tráfico humano. Diário de Notícias. https://www.dn.pt/pais/movimento-de-mulheres-cria-aplicacao-para-telemovel-contra-trafico-humano-11445620.html

Doezema, J. (1998). Forced to Choose: Beyond the Voluntary v. Forced Prostitution Dichotomy. In K. Kempadoo, & J. Doezema (Eds.), Global Sex Workers Rights: Resistance and Redefinition (pp. 34-50). Routledge.

Doezema, J. (2010). Sex Slaves and Discourse Masters: The Construction of Trafficking. Zed Books.

Dottridge, M. (2018). Collateral damage provoked by anti-trafficking measures. In R. Piotrowicz, C. Rijken, & B. H. Uhl (Eds.). Routledge Handbook of Human Trafficking (pp. 342-354). Routledge.

Duarte, M. (2012). Prostitution and Trafficking in Portugal: Legislation, Policy, and Claims. Sex Res Soc Policy, 9(3), 258-268.

Ferreira, E. (2019). Women’s, Gender and Feminist Studies in Portugal: Researchers’ Resilience vs Institutional Resistance. Gender, Place & Culture, 26(7/9), 1223-1232.

Hooks, B. (2000). Feminism Is for Everybody: Passionate Politics. South End Press.

Kempadoo, K. (1998). Introduction: Globalizing Sex Workers’ Rights. In K. Kempadoo, & J. Doezema (Eds.), Global Sex Workers Rights: Resistance and Redefinition (pp. 1-28). Routledge.

Kempadoo, K. (2005). From Moral Panic to Social Justice: Changing Perspectives on Trafficking. In K. Kempadoo, J. Sanghera, & B. Pattanaik (Eds.), Trafficking and Prostitution Reconsidered: New Perspectives on Migration, Sex Work and Human Rights (pp. vii-xxxiv). Paradigm Publishers.

Limoncelli, S. A. (2010). The Politics of Trafficking: The First International Movement to Combat the Sexual Exploitation of Women. Stanford University Press.

Manita, C., & Oliveria, A. (2002). Estudo de caracterização da prostituição de rua no Porto e Matosinhos. CIDM.

Marcus, A., & Snajdr, E. (2013). Anti-anti-trafficking? Toward critical ethnographies of human trafficking. Dialectical Anthropology, 37(2), 191-194.

Matos, M., & Maia, Â. (2015). Tráfico de pessoas e tramitação criminal. CIG.

Melo, D. (2016). Women’s Mobilisation in the Portuguese Revolution: Context and Framing Strategies. Social Movement Studies, 15(4), 403-416.

Melo, D. (2017). Women’s Movements in Portugal and Spain: Democratic Processes and Policy Outcomes. Journal of Women, Politics & Policy, 38(3), 251-275.

Molland, S. (2019). What Happened to Sex Trafficking? The New Moral Panic of Men, Boys and Fish in the Mekong Region. Sojourn: Journal of Social Issues in Southeast Asia, 34(2), 397-424.

Monteiro, R. (2013). Desafios e tendências das políticas de igualdade de mulheres e homens em Portugal. Estudos Feministas, Florianópolis, 21(2), 535-552.

Monteiro, R., & Ferreira, V. (2016). Women’s Movements and the State in Portugal: A State Feminism Approach. Sociedade e Estado, 31(2), 459-486.

Murray, A. (1998). Debt-Bondage and Trafficking: Don’t Believe the Hype. Forced to Choose. Beyond the Voluntary v. Forced Prostitution Dichotomy. In K. Kempadoo, & J. Doezema (Eds.), Global Sex Workers rights: Resistance and Redefinition (pp. 51-64). Routledge.

Oliveira, A. (2011). Andar na vida: Prostituição de rua e reação social. Almedina.

Oliveira, A. (2017). Prostituição em Portugal: Uma atividade marginalizada num país que tolera mais do que persegue. Bagoas — Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, 11(17), 201-224.

Outshoorn, J. (2005). The Political Debates on Prostitution and Trafficking of Women. Social Politics: International Studies in Gender, State & Society, 12(1), 141-155.

Pais, J. M. (2016). Enredos Sexuais, Tradição e Mudança: as Mães, os Zecas e as Sedutoras de Além-mar. Imprensa de Ciências Sociais.

Piscitelli, A. (2013). Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. CLAM/EdUerj.

Piscitelli, A., & Lowenkron, L. (2015). Categorias em movimento: a gestão de vítimas do tráfico de pessoas na Espanha e no Brasil. Cienc. Cult., 67(2), 35-39.

Plambech, S. (2014). Between “victims” and “criminals”: Rescue, deportation, and everyday violence among Nigerian migrants. Social Politics: International Studies in Gender, State & Society, 21(3), 382-402.

Prata, A. (2015). Contesting Portugal’s Bodily Citizenship. In J. Outshoorn (Ed.), European Women’s Movements and Body Politics: The Struggle for Autonomy (pp. 84-117). Palgrave Macmillan.

Ribeiro, F. B., & Silva, M. C. (2019). Perseguir ou Reconhecer? Abolicionismo, Autodeterminação e Reconhecimento de Direitos para o Trabalho Sexual. Gazeta de Antropología, 35(1).

Ribeiro, M., Silva, M. C., Ribeiro, F. B., & Sacramento, O. (2005). Prostituição Abrigada em Clubes (Zonas Fronteiriças do Minho e Trás-os-Montes). CIDM.

Ribeiro, M., Silva, M. C., Schouten, J., Ribeiro, F. B., & Sacramento, O. (2007). Vidas na Raia: Prostituição feminina em regiões de fronteira.  Edições Afrontamento.

Shih, E. (2016). Not in my “backyard abolitionism”: Vigilante rescue against American sex trafficking. Sociological Perspectives, 59(1), 66-90.

Silva, M. C., Ribeiro, F. B., & Granja, R. (2013). Prostituição e tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Letras Paralelas.

Sullivan, B. (2003). Trafficking in Women. International Feminist Journal of Politics, 5(1), 67-91.

Tavares, M. (2000). Movimentos de mulheres em Portugal: Décadas de 70 e 80. Livros Horizonte.

Tavares, M. (2011). Feminismos em Portugal: Percursos e desafios. Texto Editora.

UMAR, União de Mulheres Alternativa e Resposta. (2011). Resolução sobre a Prostituição: uma atitude pró-direitos e de combate à estigmatização. Consultado de http://umarfeminismos.org/index.php/component/content/article/33/479-resolucao-sobre-a-prostituicao-uma-atitude-pro-direitos-e-de-combate-a-estigmatizacao

Varandas, I., & Saraiva, M. S. (Eds.) (2000). Tráfico e Exploração Sexual de Mulheres. Actas do (01) Seminário Internacional. CIDM.

Varela, C. (2017). Entre el mercado y el sistema punitivo: Trayectorias, proyectos de movilidad social y criminalización de mujeres en el contexto de la campaña anti-trata. Zona Franca — Revista De Estudios De género, (24), 7-37.

Ward, E., & Wylie, G. (Eds.) (2017). Feminism, Prostitution and the State: The Politics of Neo-Abolitionism. Routledge.

Data de submissão: 02/05/2022 | Data de aceitação: 12/11/2022

Notas

Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.

[1]O presente texto incorpora e estende análises anteriores, nomeadamente Clemente, 2022a, 2022b.

[2]Oprimeiro destes projetos, desenvolvido entre 2014 e 2018, teve como objetivo o estudo da proteção de mulheres traficadas em Portugal (SFRH/BPD/93923/2013). Umsegundo projeto, atualmente em curso, centra-se na construção de sistemas de combate ao tráfico na Europa do Sul (programa Norma Transitória DL57/2016).

[3]Para uma análise da prostituição, do tráfico e do debate em torno deles, em Portugal, ver, entre outros, Alvim (2018), Oliveira (2011, 2017), Pais (2016), F. B. Ribeiro e Silva (2019), M. Ribeiro et al. (2005, 2007), Silva et al. (2013).

Autores: Mara Clemente