Nº 3 - junho 2011
Amélia Augusto, Doutorada em Sociologia e Docente do Departamento de Sociologia da UBI – Universidade da Beira Interior. Endereço electrónico: aaugusto@ubi.pt
Abstract: This paper seeks to outline some thoughts I have been doing within my teaching of sociology, and more particularly the sociology of health and illness, to courses of health sciences. Thus, I seek to outline some difficulties and obstacles, but also learning and sharing that have resulted from teaching in these courses. Although not in an exhaustive form, I also intend to discuss the relevance of the acquisition of typically sociological skills by these students.
Keywords: sociology of health and illness; sociological skills; health professionals; self-reflexivity.
Resumo: Esta comunicação pretende dar conta de algumas reflexões que tenho vindo a fazer no âmbito da minha docência de sociologia, e mais particularmente de sociologia da saúde, a alunos de cursos de ciências da saúde. Procura-se, assim, dar conta de algumas dificuldades e obstáculos, mas também de aprendizagens e partilhas que têm resultado da leccionação a esses cursos. Ainda que de modo não exaustivo, procura-se também discutir a pertinência da aquisição de competências tipicamente sociológicas por parte destes alunos.
Palavras-chave: sociologia da saúde; competências sociológicas; profissionais de saúde; auto-reflexividade.
A presente comunicação não se insere dentro do que consideramos os parâmetros “normais” de uma comunicação. Não discute contribuições ou proposições teóricas na área, nem está ancorada numa investigação empírica estruturada e sistemática levada a cabo no âmbito do ensino da sociologia da saúde em cursos de ciências da saúde. Trata-se, sobretudo, de uma reflexão em torno da minha experiência de leccionação da unidade curricular de sociologia da saúde a futuros profissionais de saúde, e procura dar conta de algumas interrogações, de algumas dúvidas, mas também de algumas constatações que resultam da minha participação nesses cursos. Se outros propósitos não resultarem desta minha comunicação, o facto de me ter exigido uma atitude reflexiva, suficientemente organizada, em relação à minha prática profissional, para dela dar conta a terceiros, vós, já terá sido algo muito proveitoso.
Aquando da proposta de criação de um curso de medicina na UBI, e nos tempos que se seguiram à sua efectivação, escrevi algumas comunicações sobre a importância de introduzir a sociologia da saúde no curriculum médico. E mantenho a afirmação dessa importância nas aulas que lecciono aos alunos dessa área. Essa atitude de “defesa” está tão enraizada em mim, que por diversas vezes dei comigo, na fase preparatória desta comunicação, a dissertar sobre ela, para me aperceber, logo a seguir, que este não é propriamente um público que necessita que lhe chamem a atenção para a relevância da sociologia da saúde.
Muita da discussão internacional sobre o ensino da sociologia a cursos da área da saúde passa pela afiliação departamental do sociólogo. Há quem considere que pertencer a um dado departamento, como seja o de saúde pública, de ciências do comportamento ou de medicina, pode determinar o poder negocial desse sociólogo no âmbito do curriculum, o modo como é valorizado pelos colegas e mesmo o tipo de sociologia da saúde que lecciona. No meu caso, a minha afiliação institucional é para com o departamento de sociologia, dado o carácter matricial da minha Universidade, departamento onde também lecciono sociologia da saúde a alunos de sociologia.
E se esta pertença traz algumas vantagens, como seja uma maior autonomia na definição de conteúdos programáticos, a manutenção de uma ancoragem e de um contacto permanente com questões tipicamente sociológicas e actuais, a verdade é que a integração “do outro lado” se torna mais difícil e não acontece plenamente, acabando por, de certo modo, ser entendida como “visitante” num dado momento do ano lectivo. Isto afasta-me, embora não completamente, de desenvolver uma leitura aturada sobre as grandes preocupações, orientações e discussões que se possam estar a operar no âmbito desses cursos.
Deixem-me que vos fale um pouco sobre o contexto da minha leccionação das questões sociológicas da saúde, da doença e da medicina na Faculdade de Ciências da Saúde, dado que considero que esse contexto influenciou o modo como essa leccionação se estrutura, nomeadamente ao nível das metodologias de ensino-aprendizagem. Logo aquando da preparação do curso de medicina, a Faculdade adoptou um novo modelo de ensino, que aos poucos se foi alargando a outros cursos da área. Trata-se de um modelo centrado no aluno, que promove a auto-aprendizagem por objectivos e que estimula a adopção de metodologias de ensino activas, como seja o problem based learning. As unidades curriculares (UC) são constituídas por várias Unidades Pedagógicas intensivas que decorrem com base em ensino tutorial, existindo uma avaliação no final de cada uma. Mesmo as UC que são asseguradas por departamentos de outras áreas científicas seguem este modelo. Este cria contingências contextuais, como seja a dificuldade na marcação das aulas num horário repleto de tutorias desdobradas, o que leva a uma certa competição por espaço e tempo, e a uma certa pressão relativamente à avaliação. Mas também encerra em si um grande potencial para o ensino da sociologia da saúde a futuros profissionais de saúde, já que enfatiza a adopção de competências que eu considero serem particularmente providenciadas pela sociologia, além de incentivar a participação e o envolvimento activo dos alunos. Voltarei a esta questão mais tarde.
O ensino de sociologia da saúde a alunos de ciências da saúde não é tarefa fácil e isenta de “perigos”. O início das aulas é marcado por algum cepticismo e desconfiança relativamente à relevância da sua contribuição para a futura profissão, atitude que se vai modificando ao longo da UC.
Ao contrário do que acontece com o curso de sociologia, onde os alunos escolheram incluir na sua formação um foco particular nas questões da saúde e da doença, já que se trata de uma UC de opção, nos cursos de ciências da saúde onde lecciono ela é obrigatória, o que, a meu ver, exige que se trate de uma UC genuinamente para futuros profissionais de saúde, relevante para as preocupações médicas e de saúde, mas que mantenha uma integridade sociológica. Contudo, esta é uma tarefa complexa, já que implica definir tanto o que é relevante para estes alunos, em particular, como o que é incontornável em termos teóricos, conceptuais e metodológicos para a sociologia da saúde, e nem sempre os destinatários concordam com essa definição.
Existem vários estudos sobre o modo como os estudantes de ciências da saúde avaliam a presença da sociologia. Mas pelo facto de os estudantes avaliarem aquelas que julgam ser as suas necessidades, tal avaliação não tem de coincidir necessariamente com as suas necessidades efectivas, sobretudo quando se trata de antecipar contextos e resultados ainda desconhecidos da sua prática profissional.
Deverá a sociologia da saúde que é ensinada a estudantes de sociologia ser igual à sociologia da saúde que é ensinada a estudantes de ciências da saúde?
Bloom (1986) considera que para alguns programas de sociologia o rótulo de “aplicada” deve ser discutido e não condenado. Há um movimento, que pode ser constatado em quase todas as obras de sociologia especificamente dirigidas aos profissionais de saúde, para tornar o ensino da sociologia da saúde mais explicitamente “aplicado”, com a clínica em mente, com o objectivo de tornar os estudantes mais aptos para a profissão.
Na mesma linha, Iphofen e Poland (1997) dizem que manter o interesse destes estudantes depende do modo como são leccionados os aspectos do conhecimento sociológico, dos métodos e dos procedimentos que são mais claramente apreendidos por eles como acrescentando valor à sua profissão.
Um dilema fundamental no ensino de uma sociologia da saúde aplicada reside em decidir que elementos teóricos dessa disciplina são básicos para construir um entendimento aplicado. Quanta teoria incluir? A suficiente, haverá quem diga. E o que é suficiente?
Os alunos demonstram uma certa resistência a quadros analíticos abstractos de qualquer tipo e procuram aplicações práticas imediatas que vão ao encontro do que eles entendem ser as suas necessidades. Então, o que deveremos providenciar? Uma sociologia da saúde “pronta a usar”? O perigo é o de ensinar uma versão simplificada, “instantânea”, que pouco faz por iluminar a futura prática profissional dos alunos e que não presta um grande serviço à própria sociologia. Algumas obras vocacionadas para o ensino da sociologia a estudantes de ciências da saúde advogam o uso de uma linguagem não-técnica. Mas, não poderá o uso de uma linguagem comum e a procura de facilidades na leitura e na compreensão expor a nossa disciplina à velha crítica de que não passa de senso comum?
Algumas das disputas e controvérsias teóricas e metodológicas que sempre atestaram a vitalidade da sociologia ganham uma acuidade particular na sociologia da saúde. Para Earl (2001), esta grande variedade de perspectivas em competição, quando apresentadas aos alunos, leva a que estes questionem o valor das explicações sociológicas, já que não vislumbram um paradigma teórico dominante onde ancorarem as suas explicações, algo a que estão habituados nas disciplinas core do seu curriculum (um mesmo fenómeno, como por exemplo a emergência dos modernos sistemas de saúde, tem explicações diferenciadas, caso se trate de uma análise funcionalista ou marxista; nenhuma delas está errada, mas elas não são coincidentes).
Sharp (in Iphofen, 1997) fala da dificuldade, e do real valor, de ensinar a estes alunos modelos mutuamente contraditórios, os quais, segundo ele, podem implicar a recomendação de práticas e de cursos de acção também eles contraditórios. Sharp diz mesmo que se a sociologia lida bem com isto, estes estudantes, não.
Iphofen e Poland (1997) criticam Sarp e dizem que ele está errado, já que o seu pensamento está baseado em erros epistemológicos. Segundo os autores, se eliminarmos essas controvérsias, dificilmente demonstramos os dilemas, os constrangimentos, as ambiguidades e as escolhas que estão envolvidos na prática e nos contextos de saúde. Tanto estes autores como Earl (2001) consideram que esta natureza multiparadigmática cria uma reflexividade inerente à sociologia, a qual dota estes estudantes de capacidades que lhes permitirão desenvolver uma postura reflexiva tanto em relação a si próprios, como em relação à sua prática profissional.
Na verdade, é difícil hierarquizar prioridades de ensino num conteúdo programático que apresente uma grande multiplicidade de tópicos, tendo os alunos dificuldade em se orientarem na “selva” de temas e de discussões da sociologia da saúde. Contudo, embora os alunos de ciências da saúde não precisem de cobrir todos os tópicos da sociologia da saúde (o que não acontece nem com alunos de sociologia), têm de ser capazes de reconhecer e compreender o carácter distinto da perspectiva sociológica em relação às questões da saúde, da doença e da medicina, e devem ser capazes de a aplicar aos seus futuros contextos profissionais. A clarificação de conceitos básicos, da própria sociologia, e a apresentação, ainda que breve, de algumas controvérsias teóricas relativamente a questões centrais da sociologia da saúde parecem-me fundamentais para afastar a ideia de que a aplicação destes quadros analíticos e conceptuais não passa de um exercício especulativo, típico do senso comum.
Embora haja uma série de conteúdos programáticos que poderão ser comuns ao ensino de diferentes cursos de ciências da saúde, dificilmente um programa-tipo terá o mesmo impacto em todos. Usualmente grupos ocupacionais diferentes preferem textos específicos para a sua área profissional. São bem recebidas as análises sobre as mudanças que estão a ocorrer no âmbito da saúde e da doença, mas são particularmente bem recebidas as análises sobre as mudanças que estão a ocorrer no âmbito da sua futura profissão, no ambiente e nas relações de trabalho.
Para Iphofen e Poland (1997), o ensino da sociologia tem uma importância particular no apoio ao empowerment profissional das ocupações de saúde, ao problematizar o domínio organizacional da medicina no campo da saúde, e ao aplicar uma perspectiva crítica à organização dos serviços de saúde. Esta análise crítica sobre o domínio organizacional da medicina, e sobre o domínio da própria profissão médica, tem efeitos diferenciados nos alunos, quer se trate de alunos de medicina ou de outros cursos da saúde. De facto, as discussões em torno do empowerment profissional em cursos que não a medicina acabam por motivar muito os alunos, que não raramente, mesmo em contexto de faculdade, já sentem o modo como o prestígio e a valorização associados à profissão médica os afecta nas relações que estabelecem, e estamos apenas a falar de estudantes. Neste caso particular, estou-me a referir aos alunos de Ciências Farmacêuticas, curso onde lecciono. Mas noutros contextos de ensino já tive a oportunidade de realizar estas discussões com enfermeiros, e elas são sempre muito participadas.
Já no caso dos alunos de medicina, virar o foco crítico da sociologia da saúde para a profissão nem sempre é fácil, pode ser intimidante e exige mesmo alguma coragem, dadas as características que todos reconhecemos à profissão. Mas nunca ninguém disse que o estudo da sociologia tornava a vida mais fácil. E esta dificuldade aplica-se tanto ao desenvolvimento de uma postura reflexiva em relação à profissão e a si próprios, enquanto profissionais, como em relação à tomada de consciência dos dilemas e controvérsias que habitam a vida humana, em geral, e as questões da saúde e da doença, em particular.
Volto, agora, à questão do modelo de ensino e às metodologias de ensino-aprendizagem.
O modelo que foi adoptado na Faculdade de Ciências da Saúde, da UBI, reconhece a importância de dotar os futuros profissionais de saúde de um amplo grupo de conhecimentos e competências em várias áreas científicas. Essas orientações tiveram reflexo na construção do curriculum e nas metodologias de ensino que se privilegiaram. O peso factual tipicamente imposto aos alunos de ciências da saúde, sobretudo em medicina, tem vindo a ser diminuído em favor de abordagens mais baseadas na resolução de problemas e de avaliação crítica que promovem a auto-aprendizagem e conferem competências de aprendizagem ao longo da vida.
No âmbito do que são as competências que reconhecem como fundamentais para se ser médico ou farmacêutico, por exemplo, estão competências que outras áreas, que não as ciências naturais, podem conferir. O ensino da sociologia da saúde deve tornar perceptível a relevância que as competências providenciadas pela sua análise trazem à futura prática profissional destes alunos. A sociologia da saúde não deve ser apenas lida, também deve ser usada.
Garanto-vos que não foi fácil adaptar-me a este modelo, sobretudo ao foco nas aulas tutoriais, em detrimento das aulas de turma, mais tradicionais, que acontecem na minha UC apenas quando se encerra uma unidade pedagógica e se dá início a outra, nas chamadas aulas de seminário. E questiono-me muitas vezes se o que acontece nessas aulas de tutoria é suficiente, se cobri os tópicos que devia, se a compreensão dos mesmos foi efectiva, se o que era realmente importante foi apreendido. Mas há algo que acontece que não me traz qualquer dúvida, do interesse que esse tipo de aulas suscita nos alunos e do envolvimento na discussão desses tópicos.
A discussão de alguns tópicos parte muitas vezes das experiências dos estudantes, o que providencia práticas reflexivas de aprendizagem. Sei, por experiência, que adoptar essas experiências como recurso de aprendizagem é mais fácil quando se trata de alunos que estão numa fase mais final do seu curso, e que já tiveram algum tipo de experiências práticas no seu contexto profissional, e é ainda mais fácil quando estamos a lidar com profissionais de saúde.
O debate ligado à experiência aumenta claramente o prazer do estudo e torna-o mais atractivo e acessível para os estudantes. Mas, mesmo assim, é necessário ter cuidado tanto com a utilização dessas experiências, como com a utilização do debate. No caso das experiências pessoais, é fundamental que os alunos dêem o salto analítico que lhes permita perceber o modo como essas experiências são mediadas por forças, estruturas e desigualdades existentes na sociedade. Mesmo quando a utilização dessas experiências visa desconstruir estereótipos e visões preconceituosas sobre alguns fenómenos sociais, percebe-se que os alunos são mais propensos a identificar e denunciar o bias do outro do que o seu próprio.
Quanto ao debate, não obstante ele ser um importante recurso de aprendizagem, já que ajuda a construir as competências transferíveis da discussão e persuasão que são necessárias para o desenvolvimento profissional em qualquer contexto multidisciplinar, corre o risco de poder acabar muito longe de qualquer proposição sociológica relevante e bem fundamentada. Este é um risco que temos de reconhecer a fim de o tentar controlar, não só porque o resultado pode conduzir os alunos àquela leitura (que nenhum de nós quer fomentar) da sociologia como disciplina light, mas também porque poderá não os conduzir a nenhum conhecimento verdadeiramente sociológico.
Sabemos que estamos a ganhar terreno quando um futuro profissional de saúde diz que a doença pode ser vista enquanto fenómeno social que está ligado às circunstâncias de vida das pessoas. Perceber em que medida os alunos antecipam uma aplicação dessa constatação à sua prática profissional, é muito difícil. O facto de a sociologia da saúde aparecer numa fase muito inicial dos curricula dos cursos de ciências da saúde, pode levar a que seja entendida como uma disciplina introdutória, que depois se esquece, em grande parte. Claro que defenderia a introdução posterior no curriculum desses alunos, de uma outra UC, ou de um outro tipo de acompanhamento por parte de um sociólogo da saúde, numa fase em que os alunos já tivessem algum contacto com o seu contexto profissional.
A este respeito, e mais especificamente no que concerne ao ensino da medicina, Ludmerer diz que toda a gente que está envolvida nesse ensino tem de ter em conta um constrangimento, o tempo. O crescente corpo de conhecimentos médico-científicos e tecnológicos que é necessário dominar, e a concomitante reorientação para uma formação multidisciplinar, colocam novas pressões à definição e organização do curriculum médico, o que torna difícil o estabelecimento de prioridades de ensino. Talvez seja por iss, que não obstante ser hoje como nunca reconhecida a pertinência de dotar os estudantes de medicina com as competências proporcionadas pela sociologia, ela ainda tenha um peso tão residual no curriculum.
E, contudo, essa é a via privilegiada para construir e consolidar o necessário diálogo entre sociólogos da saúde e profissionais de saúde. Um diálogo que ainda está permeado por momentos de incompreensão que se devem a interpretações diferentes, e ainda persistentes, sobre a saúde e a doença, sobre a mutabilidade e a influência do sistema sociocultural e sobre a relevância de determinadas análises. Um diálogo que, acredito, poderá beneficiar não só cada uma das partes, mas também terceiros.
Referências
BLOOM, S.W. (1986), “The sociologist as a medical educator”, American Sociological Review, 96-101.
EARL, S. (2001), “Teaching sociology with the speech and language of therapy curriculum”, Education for Health, vol. 14, nº 3, 383-391.
IPHOFEN, R.; POLAND, F. (1997), “Professional empowerment and teaching sociology to health care professionals”, Teaching Sociology, vol. 25, 44-56.
Autores: Amélia Augusto