N.º 30 - dezembro 2022

Raquel Rego
FUNÇÕES: Conceptualização, Recursos, Visualização, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal
E-mail: raquel.rego@ics.ulisboa.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7342-8695

Ainda que a recuperação socio-económica seja incerta, tanto mais agora que estamos perante o agravamento da crise por via da guerra na Ucrânia, o impacto da pandemia COVID-19 na nossa vida em sociedade permite-nos já tirar algumas conclusões. Uma desssas conclusões é que existem trabalhadores (profissionais de saúde, cuidadores e outros prestadores de serviço de proximidade) que revelaram de forma inequívoca o seu humanismo e indispensabilidade neste período[1].

Ora, se olharmos com atenção para estes trabalhadores, percebemos que muitos integram o que se pode chamar de economia social. Neste sentido, do ponto de vista das organizações de trabalho encontramos cooperativas, associações, fundações, empresas sociais, entre outras organizações que na sua missão priorizam o interesse das pessoas, assentando numa adesão voluntária e adoptando um funcionamento democrático (órgãos sociais electivos e prestação de contas)[2].

Ainda que com passos nem sempre seguros, a visibilidade institucional e política dada à economia social tem tido em Portugal algum avanço recente. Isto sucedeu, por exemplo, com a publicação da Lei de Bases da Economia Social em maio de 2013 (Lei n.º 30/2013). O chamado sector social é reconhecido como co-existente com o sector privado e público e a sua protecção promovida na Constituição da República Portuguesa[3], mas ainda não tinha um regime jurídico organizado numa lei de bases nem se procedera a uma reforma legislativa.

A atenção dirigida à economia social tem resultado também de influências supra-nacionais, designadamente europeias, sem surpresa pois a acção positiva do enquadramento europeu tem sido demonstrada em diversas políticas. Esta influência é notória assim também com outro marco institucional: a criação da Conta Satélite da Economia Social pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e pela Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES). Esta iniciativa permitiu o levantamento de dados quantitativos para avaliar o peso da economia social na economia nacional ao longo de três edições (2010, 2013 e 2016) (INE/CASES, 2019). Uma iniciativa cuja motivação remete para a Resolução do Parlamento Europeu sobre Economia Social de 2009 e que por certo beneficiou também, por exemplo, da acção da equipa do “Projecto Comparativo do Sector Não Lucrativo”, liderado por Lester M. Salamon da Universidade Johns Hopkins. Tal como levado a cabo em dezenas de países do mundo inteiro, este projecto da universidade norte-american deu à luz, então de forma inédita, as primeiras estatísticas sobre voluntariado e emprego no sector social em Portugal, em 2005, pela mão da Professora da Universidade Católica Portuguesa, Raquel Campos Franco (Franco et al., 2005). A equipa do projecto também procurou sensibilizar as instituições nacionais para que fosse dada continuidade a esta recolha de dados, questão fundamental de resto no relatório da OIT objecto desta recensão.

É, pois, neste contexto que o relatório Trabalho digno e a economia social e solidária constitui mais um indicador da importância que o sector social está a assumir do ponto de vista político e institucional. Note-se que ele está acessível no website do Escritório da Organização Internacional do Trabalho, em Lisboa, portanto disponível para o/a leitor/a lusófono/a, desde que com acesso à Internet, graças ao apoio financeiro do Ministério do trabalho e da colaboração da CASES.

Estando longe de ser a primeira vez que a OIT contempla a economia social nos seus debates, grupos, normas ou acções, inclusive multilaterais (como fica demonstrado no capítulo 4, em particular na saliência de projectos com cooperativas, e no anexo que reúne instrumentos normativos e respectivas referências ao sector social), este relatório tem a particularidade de ter integrado a agenda da Conferência Internacional do Trabalho, a 110ª, ocorrida em meados de 2022.

A inovação do relatório é dupla: apresenta uma definição universal de economia social (capítulo 1)[4]e uma agenda de acção (capítulo 5).  E a motivação é tornar nomeável para melhor conhecer e intervir:

Apesar de uma definição universalmente acordada poder não captar totalmente a diversidade da ESS [economia social e solidária] à volta do mundo, a sua ausência impede a representação adequada da ESS nas estratégias e políticas de desenvolvimento internacionais. Impede ainda a compilação de estatísticas de ESS abrangentes, fiáveis e internacionalmente comparáveis. (p.11)

Não se trata, pois, de uma obra científica ou académica, mas de um documento político, com alguns dados secundários “credíveis”, que merece a nossa leitura desde logo por duas razões. Primeiro, o largo espectro regional, pois as publicações da OIT têm quase sempre esta escala global que nos alerta para a diversidade dos países e regiões do globo (capítulo 1), inclusive para as várias posições dos parceiros sociais (capítulo 3), viabilizando assim uma análise e proposta informada. Por outro lado, a junção dos temas do sector social com o trabalho digno, nomeadamente tendo em conta a criação de emprego pelo sector social e redução das desigualdades em áreas rurais por meio em particular das cooperativas (capítulo 2), é prova do reconhecimento deste sector como relevante para o mundo do trabalho e, por conseguinte, perseguindo também este objectivo de desenvolvimento que marca a política universal no século XXI.

O trabalho digno (decent work), foi lançado no final do século passado pela OIT, ou seja, é uma política universal que resulta da concertação de actores sociais de interesses estruturalmente antagónicos: organizações sindicais, de empregadores e governamentais chegaram a um consenso quanto à importância de promover o trabalho com determinados requisitos. Desde então a expressão tem sido usada de forma generalizada, sob o risco até de se perder o sentido preciso que conquistou. Assumindo que o trabalho não é uma mercadoria, na senda da missão que levou à criação da OIT em 1919, o trabalho digno assenta em seis pilares: trabalho seguro, salários justos, condições de trabalho seguras, protecção social, diálogo social e trabalho com direitos. Esta política universal está hoje plasmada em diversos documentos, desde resoluções das Nações Unidas a Planos de Acção de grupos de países, entre muitos outros. É assim que o trabalho digno se tornou o 8.º Objectivo de Desenvolvimento Sustentável para 2030 das Nações Unidas. Acresce que, apesar de não ter qualquer carácter sancionatório associado e permanecer uma iniciativa dependente da vontade dos países, o trabalho digno tem indicadores instituídos para a sua monitorização desde 2008.

Na verdade, o relatório da conferência da OIT não fala apenas de economia social. Ele coloca em paridade a economia social e a economia solidária e esse é mais um elemento de interesse. A economia solidária pode ser reconhecida ao longo dos tempos, desde uma “economia fraterna” fervescente na primeira metade do século XIX com o surgimento das associações voluntárias, em Portugal como na Europa, mas só agora parece reconhecida do ponto de vista político. Ela emerge como mais uma expressão para designar este sector social, composto de múltiplas organizações e olhares disciplinares, sendo a sua especificidade proveniente do valor dado à solidariedade, mais do que ao interesse das pessoas. Como dizia Jean-Louis Laville (1995), a economia solidária é como que um retorno às origens. Ao falarmos de economia solidária estamos de facto a desenvolver um esforço de demarcação da tendência de muitas organizações da economia social para a profissionalização, em resultado da colaboração com um Estado-Providência em crise.

Ainda que transpareça um optimismo porventura excessivo (notório no entendimento das cooperativas como modelo de empresas sustentáveis, no sector social como solução para a transição da economia informal para a formal, ou na resiliência deste sector em particular perante crises), é certo que cabe a instituições como a OIT o encorajamento de um sector alternativo, estimulando junto dos países a promoção de um ambiente facilitador, a adopção de legislação, a recolha e compilação de dados (capítulo 5), etc. Para isso de facto importa antes de mais assentar numa definição do objecto, para que não fique lost in translation.

Referências

Franco, R. C., Sokolowski, S. W., Hairel, E. M. H, & Salamon, L. M. (2005). The Portuguese nonprofit sector in comparative perspective. Universidade Católica Portuguesa & Johns Hopkins University. http://ccss.jhu.edu/wp-content/uploads/downloads/2011/11/Portugal_NationalReport_2005.pdf

INE, Instituto Nacional de Estatística / CASES, Cooperativa António Sérgio para a Economia Social. (2019). Conta satélite da economia social 2016 / Inquérito ao trabalho voluntário 2018. https://www.cases.pt/wp-content/uploads/2019/11/Livro-Conta-Sat%C3%A9lite-Voluntariado.pdf

Laville, J.-L. (1995). Économie solidaire, économie sociale et État social. In J.-L. Klein, & B. Lévesque (Eds.), Contre l’exclusion, repenser l’économie. Actes du 13e colloque de l’Association d’économie politique (1ª ed., pp. 161-174). Presses de l’Université du Québec

Lei n.º 30/2013, de 8 de maio, da Assembleia da República. (2013). Lei de Bases da Economia Social. Diário da República, 1.ª série, 88, 2727-2728. https://files.dre.pt/1s/2013/05/08800/0272702728.pdf

Data de submissão: 01/09/2022 | Data de aceitação: 09/09/2022

Notas

Por decisão pessoal, a autora do texto não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

[1]A nossa definição é mínima pois pretende apenas situar por ora o/a leitor/a.

[2]Note-se que a autonomização do sector social do privado não é sempre pacífica e o relatório da OIT dá justamente conta da diversidade de opiniões (p.14).

[3]A proposta para discussão afirma:
“A economia social e solidária (ESS) compreende as unidades institucionais com finalidade social ou pública, que realizam atividades económicas baseadas na cooperação voluntária, na governação democrática e participativa, na autonomia e independência, cujas regras proíbem ou limitem a distribuição de lucros. As unidades da ESS poderão incluir cooperativas, associações, mutualidades, fundações, empresas sociais, grupos de autoajuda e outras unidades a operar de acordo com os valores e princípios da ESS nas economias formal e informal.” (p.14)

[4]A dificuldade em cingir a nomeação do sector a uma expressão, assunto muito debatido pela literatura científica, fica mais uma vez patente neste relatório. Veja-se em particular o capítulo 1 “A ESS à volta do mundo”.

Autores: Raquel Rego