N.º 14 - outubro 2017
Vera Borges
Universidade de Lisboa, Instituo de Ciências Sociais (ICS-IUL) e Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL),
Dinâmia’Cet — Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território,
Avenida das Forças Armadas, Edifício Sedas Nunes, 1w8, 1649-026 Lisboa, Portugal.
Email: vera.borges@iscte.pt; vera.borges@ics.ul.pt
Resumo: Este artigo apresenta algumas linhas de força de um trabalho de observação etnográfica dos públicos-participantes num espetáculo de teatro: quem são eles, como ali chegaram, o que fazem e o que pensam deste processo? O espetáculo integrou um novo ciclo programático do Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa, e foi construído com um pequeno grupo de habitantes dos bairros dos Lóios e das Amendoeiras, em Marvila. Tendo como inspiração teórica as múltiplas genealogias do fenómeno da arte colaborativa e, no caso português, a pesquisa empírica de T. Lopes e S. Dias (2014), pretende-se analisar este processo de co-criação e discutir até que ponto se encontra influenciado pela proliferação das práticas artísticas colaborativas e pelas atuais formas de produção, difusão e espetacularização da cultura.
Palavras-chave: arte colaborativa, públicos-participantes, teatro, instituições culturais.
Abstract: This article presents the main lines of an ethnographic observation study of the participant publics in a theatre performance: who are they, how did they get there, what do they do and what do they think of this process? The play is part of a new program cycle at the Maria Matos Municipal Theatre in Lisbon and was put together with a group of residents from the Lóios and Amendoeiras neighbourhoods in Marvila. With the theoretical underpinning of the multiple genealogies of the phenomenon of collaborative art, and in the Portuguese case, the empirical research of T. Lopes and S. Dias (2014), the aim of this work is to analyse the co-creation process and discuss the extent to which it is influenced by the proliferation of collaborative artistic practices and the ways in which culture is currently produced, diffused and performed.
Keywords: collaborative art, participant publics, theatre, cultural institutions.
Contextualização, premissas e metodologia
Nos últimos anos, temos vindo a assistir ao aparecimento de um importante número de instituições teatrais, artistas e profissionais da cultura organizados em torno de projetos que enfatizam o papel e a participação dos habitantes locais nas artes. Estes colaboram em seminários e atividades, workshops, sessões de trabalho, reuniões, ensaios e espetáculos, dando a sua opinião, contando histórias de vida pessoais e histórias locais. A arte e as suas práticas forjam, deste maneira, relações profundas com os mundos sociais e os seus intervenientes no território.
Nem sempre a condição relacional destas práticas representa casos de sucesso para os artistas e para os habitantes locais, mas a sua colaboração é um desafio que pode oferecer alternativas à esfera cultural mediática. Neste sentido, coloco como hipótese que mesmo quando o teatro se desenvolve e alarga nos seus propósitos artísticos, redes e formas de produção, adquire, simultaneamente, através dos seus artistas e intervenientes, o carácter de um processo circunscrito e territorializado (Borges, 2015). Diferentes territórios modelam e estruturam as práticas criativas (e são por elas estruturados), a mediação cultural e o sucesso dos projetos (Borges & Lima, 2014a). Não se trata apenas da localização geográfica, mas também da rede de relações e intersecções sociais que artistas, habitantes e instituições conseguem ativar e usar num dado território (que ultrapassa, muitas vezes, as fronteiras geográficas institucionalizadas), promovendo a criação de “pequenas comunidades de arte colaborativa” (Borges, 2017a; 2017b).
Já nos anos 60, a arte feita a partir dos lugares, contextos e especificidades dos seus habitantes locais emergia como uma reação dos artistas à mercantilização da arte, fazendo-se prevalecer a sua autonomia mas também a sua universalidade (v. a geografia da arte de Kwon, 2004). Durante os anos 70 e 80, este tipo de arte foi intersectado pela land art, process art, arte conceptual, comunitária, performance, instalação e arte pública. Os criadores insistiam que não se separa o trabalho artístico do local onde ele é feito e das pessoas que o habitam (Kester, 2005; 2011). Muitos destes projetos construídos com os habitantes locais tiveram a sua inspiração na pedagogia crítica de P. Freire (1972) e nas técnicas do Teatro do Oprimido de A. Boal (1979).
Esta aproximação tinha — e tem — o desafio de habilitar as pessoas e tornar as comunidades locais partes ativas do seu mundo, em termos culturais, políticos e económicos.[1] A ideia dos artistas é construir uma arte que toque os habitantes, que os ajude a resolver os seus problemas, através de formas de expressão mais criativas. A arte serve assim para dar visibilidade ao que de mais intrínseco existe na localidade e que está escondido do olhar dos outros.[2]
Por seu turno, nos dias de hoje, assiste-se a uma apropriação e reinvenção destas práticas artísticas e a sua aproximação a públicos socialmente mais alargados, através de processos e dispositivos de participação que visam tornar o teatro um espaço de reconstrução cívica, uma comunidade festiva, cada vez mais aberta, a venue, de que nos fala A. Brown (2012), Markusen & Brown (2014) e, mais recentemente, o director do Teatro Maria Matos, M. Deputter[3] (Diário de bordo, 27.01.2017), em entrevista. Produzem-se, desta forma, novos discursos sobre os projetos artísticos: procuram ser mais colaborativos, com modos de participação efetiva dos habitantes, em processos de co-curadoria e co-criação de espetáculos, o que reflete a mudança no mundo contemporâneo, nas suas instituições e missões.
Assim, a partir dos contributos teóricos da sociologia da arte e da cultura, das políticas públicas, estudos urbanos — v. Lopes & Dias (2014); Markusen & Brown (2014) — e das múltiplas genealogias do fenómeno da arte colaborativa (Kester, 2005; 2011), o presente artigo analisa o contexto de criação teatral de um projeto intitulado “Assembleia”. O projeto foi construído por R. Catalão, antigo jornalista do jornal nacional Público que se apresenta como encenador (Diário de bordo, 17.03.2017). Para o fazer, R. Catalão trabalhou com um grupo restrito de habitantes de Marvila, bairro próximo do Teatro Municipal Maria Matos. De acordo com as palavras do diretor deste teatro, M. Deputter (Diário de bordo, 27.01.2017), estes habitantes do “bairro vizinho” não frequentam o teatro. Por isso, a equipa de produção de R. Catalão foi até ao bairro para assim “o” trazer ao teatro.
No contexto português, este tipo de trabalho artístico está identificado pelos sociólogos da arte e da cultura T. Lopes e J. Dias (2014) que, pelo uso de metodologias colaborativas, mostram quem são os novos públicos do teatro, como o acompanham e vivem.[4] Por sua vez, com este artigo pretendo desenvolver uma abordagem crítica da “Assembleia”, projeto que também conta com a colaboração do público e a participação de habitantes locais.
A partir deste projeto, revejo ligações e tensões que a colaboração, como prática artística e o seu agenciamento por parte dos artistas e participantes, mobiliza. Para o fazer, recorro aos contributos das pesquisas que realizei nos últimos anos (2014-2016), como os estudos de caso no mundo da música, teatro, teatro-circo, teatro-musical, chamando a atenção para as “pequenas comunidades de arte colaborativa”, as suas atuais premissas e formas de conhecimento geradas a partir das mesmas (Borges, 2017a; 2017b).
Faço notar que, com a utilização dos termos práticas colaborativas e relacionais, analiso um conjunto de processos e interações partilhadas que pretendo tratar como formas de uma praxis criativa (v. Kester, 2011, p. 9). Sendo a arte colaborativa um complexo fenómeno cultural com numerosas tendências, a minha preferência será apoiar-me numa análise das micro-interações, redes e diferentes articulações, práticas e locais de participação e colaboração dos indivíduos; e mostrar como este caso pode afinal revelar algumas das condições (e tensões) de evolução no teatro contemporâneo.
Para uma “cartografia de interações”
A “Assembleia” de R. Catalão e dos seus participantes é aqui entendida como um “caso-contexto”, para utilizar a ideia de A. Abbott (2001, p. 141): “(…) a unidade do ‘caso’ (como o ator social, por exemplo) é realizada para exigir que os atributos do caso extraíam o significado do ‘caso-contexto’”. Neste sentido, os casos estão sempre em diálogo com o seu meio, com a ação e os limites da parte do “enredo” que se descreve (Abbott, 2001, p. 144). Já a escrita deste caso-contexto obedece, em certa medida, ao estilo retratista que utilizei em Todos ao Palco! (Borges, 2001) e Arte Colaborativa (Borges, 2017b). A partir desta ideia, pretendo esboçar uma breve “cartografia de interações” relacionais, muito inspirada pelo trabalho da antropóloga C. Bastos (2001, p. 318). Um exercício de reflexividade sobre as interações dos intervenientes, sob um olhar mais crítico, com recurso aos registos no diário de bordo, as entrevistas e conversas com os intervenientes. O uso das fotografias dos ensaios inspira-se no trabalho de Becker (1998) e na forma como desenvolvi a análise de três estudos de caso em Arte Colaborativa (Borges, 2017b).
A minha entrada no terreno desta pesquisa foi feita em diferentes tempos para compreender o que estava para lá da montagem do espetáculo no teatro e o que ficou do processo sociológico de construção do espetáculo. De novo, entrei neste teatro da mesma forma que o fiz em meados a década de 90, quando entrei na Sala da Comuna, em Lisboa, para falar com o encenador J. S. Melo (Borges, 2001). A mesma ideia: observar os ensaios, as pessoas e como se organizam. Mas agora encontrei os habitantes locais-participantes, o público e a equipa artística do teatro.
Primeiro, falei com o director do Teatro Maria Matos (M. Deputter). Esta conversa foi antecedida de uma outra com uma das colaboradoras da equipa de comunicação (R. Tomás). Depois, acompanhei a montagem do espetáculo no teatro com os dois atores — convidados depois das sessões de trabalho no bairro — e as equipas artística e técnica; onde se encontrava a responsável pelo movimento de cena, a bailarina (C. Gonçalves), e os “atores principais-participantes” (a jovem estudante de teatro, S. Ferreira, e o jovem que espera encontrar um trabalho, P. Henriques). Foi também a oportunidade de conversar com a produtora das Produções Independentes (T. Guerreiro), e o intermediário privilegiado, no bairro, um antigo morador e um profissional das artes (P. Lage).
Em seguida, acompanhei a chegada do público-participante ao teatro (16 pessoas) para compreender o efeito das conversas no bairro. Mostrou-se um grupo interessado em desvendar os bastidores do teatro. Já durante a estreia do espetáculo, este público-participante, convidado a discutir os temas propostos pelo encenador, mal se ouviu, ao contrário do que acontecera nos ensaios. Estava presente um outro grupo de habitantes-participantes doVale da Amoreira, jovens habituados a participar nos projetos de R. Catalão e que surpreenderam o grupo de Marvila.[5]
Posteriormente, estreado o espetáculo, voltei a conversar com algumas destas pessoas, em Marvila. No Centro de Promoção Social da PRODAC, Unidade de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade, de Marvila, entrevistei duas das participantes do bairro (S. Veiga Ferreira, que ajudou à entrada do teatro no bairro, enquanto responsável por esta Unidade); e P. Cruz, educadora de infância neste Centro). Voltei a conversar com a jovem atriz (S. Ferreira), agora em Marvila. E, de volta ao teatro, entrevistei o encenador (R. Catalão).
Por fim, a discussão que faço no artigo antecipa o cenário de outras contribuições mais específicas sobre a forma como este “caso-contexto” se posiciona em relação a outras práticas artísticas e institucionais, no meio cultural português, no âmbito do estudo dos mecanismos de construção reputacional dos territórios das artes.[6]
A colaboração como prática artística: sob um olhar crítico
Para estudar as interações dos intervenientes do bairro e as equipas artísticas do teatro, contratadas por R. Catalão para desenvolverem o seu trabalho, interessa observar as formas a partir das quais as organizações e os artistas apelam à colaboração das pessoas e coletividades locais. Apesar do contexto pluri-colaborativo, no qual a arte contemporânea está envolvida (v. Borges, 2017a; 2017b), é necessário analisar e discutir as implicações destes projetos para aqueles que neles participam diretamente, procurando avaliar como falam destas experiências e as integram nas suas vidas. No fundo, extrair os sentidos daquilo que é relevante para os indivíduos que colaboram com os artistas.
Antes, porém, convém reconhecer que ao designarmos um projeto artístico como colaborativo isso não significa que o mesmo não se confronte em detalhe (em todas as suas dimensões, v. a pesquisa de Beirne, 2013; Beirne & Knight, 2002; 2007). Reconhecer a existência de dinâmicas participativas é um ponto de partida importante, mas sempre que a colaboração é um elemento diferenciador relativamente a práticas baseadas numa ideia de criação e autoria individual.
De resto, este ponto de partida deve ser acompanhado de uma problematização acerca do funcionamento destas dinâmicas, pois as pressões para se institucionalizar este tipo de prática artística aumentaram nos últimos anos. Até certo ponto, por força da sua integração nas agendas das políticas públicas locais, nacionais e europeias; nas modalidades de apoios e subsídios às artes em geral (Borges & Lima, 2014a; 2014b; 2014c; 2014d; 2014e).[7]
Convém, pois, refletir sobre estas dinâmicas para ultrapassar alguns dos seus principais limites. Estes contextos de criação são apoiados, por vezes, num conjunto de pressupostos e programas pensados e concebidos “fora dos bairros”, onde se pretendem aplicar. São situações que podem criar constrangimentos que levam a discutir a autenticidade das ações e o tipo de compromisso que está subjacente aos programas das artes com a comunidade local. Comprometem-se artistas e projetos: com uma fase de preparação, por vezes, muito curta, para cumprir a programação dos teatros, nem as populações estão realmente implicadas nos projetos, nem os artistas fazem o trabalho nas condições que desejavam. Quando isso acontece, observam-se tensões, constrangimentos, e a dualidade de papéis e compromissos — artísticos, de produção, administrativos, económicos — obrigam-nos a repensar métodos e premissas (v. Jennings, 2013; Jennings & Baldwin, 2010). Assim, é importante manter a discussão em aberto e orientá-la seguindo três linhas de força que apresento a seguir:
- Como é que o “caso-contexto” em análise se posiciona em relação ao delineamento teórico da arte colaborativa? E em relação às práticas artísticas e institucionais no meio cultural português? Até que ponto este caso serve para promover dinâmicas institucionais diferentes?
- Será que a comunidade é criada pelo projeto de teatro? Ou a comunidade é preexistente aos projetos e até se profissionaliza na resposta aos mesmos? Até que ponto os públicos-participantes podem condicionar o sucesso do projeto?
- Convidar atores não profissionais e públicos-participantes tem vindo a tornar-se cada vez mais comum, mas como é que as diferentes agências individuais e colectivas actuam? Que forças individuais, institucionais e comunitárias intervêm neste caso?
O Teatro Maria Matos: entre os eventos-festa e o trabalho no bairro
Quando cheguei ao Teatro Maria Matos, para esta conversa com o seu director, M. Deputter, entrei pela porta dos artistas e fui encaminhada para o camarim dos atores. Foi nesta sala ampla, com espelhos, mesas e luzes, que o director, antigo responsável pelo Festival Alkantara, falou sobre os propósitos da sua missão neste teatro, quando sucedeu ao ator D. Infante, em 2008. Era “uma missão de colaboração com as estruturas e os artistas existentes na cidade”. E continuou, dizendo: “a colaboração faz parte do nosso ADN” (Entrevista a M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017).
A esta ideia de colaborar com organizações e artistas da cidade, juntou-se a necessidade de programar espetáculos de carácter pluridisciplinar, de teatro-dança, performance, e com isso criar um perfil de proximidade com a população local. O director chamou-lhe um perfil “mais afetivo” e mostrou a sua vontade de abrir as portas do teatro e oferecer ao seu público um contexto de maior convivialidade e confiança no trabalho apresentado: “a lógica do venue, teatro recetivo” (expressão utilizada por M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017).
Isto foi uma primeira abordagem: fazer esta mudança de programação e colaboração, começar a trabalhar com artistas que estão fora do teatro, o que significa que o nosso teatro também entrou noutra lógica de programação, que é a lógica do venue, teatro recetivo. (…) O que significa que surgiu um outro problema, o perfil da própria casa: (…) como é que conseguimos criar uma cara para o nosso teatro, um perfil reconhecível? (Entrevista a M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017)
Para construir esse perfil, Deputter e as suas equipas artística e de comunicação apostaram nos ciclos programáticos do teatro. Estes ciclos fazem a ligação espontânea e informal com os vizinhos do bairro, convidados a visitar o teatro e a participar na festa: podem ser eventos gastronómicos — como já mostrei no caso do Teatro Viriato, em Viseu (Borges, 2017b) — que promovem a celebração de diferentes culturas e identidades, como aconteceu com o “Comer Lisboa — Food Art”, uma inspiração trazida por artistas espanhóis.
Neste caso, produziu-se uma maqueta da cidade de Lisboa feita só com alimentos. Convidaram-se pessoas das comunidades hindu, cabo-verdiana, brasileira, romena, chinesa e portuguesa. M. Deputter conta que eram 12 grupos de origens diferentes que habitavam em Lisboa. Os habitantes locais participaram num workshop onde se ensinou a construir edifícios com as comidas específicas de cada comunidade.
Era uma maneira de saborear a diversidade da cidade, porque de repente tinhas Lisboa feita de vários sabores e, assim, de uma maneira muito direta sentes de facto que Lisboa não é uma cidade de mono-cultura, é uma cidade muito rica de culturas. (Entrevista a M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017)
O evento intitulado Ar Livre, realizado no mês de julho, não se cinge a único tipo de disciplina artística e promove a interação deste Teatro com os habitantes locais. Participaram mais de 400 pessoas. “Criámos uma festa”, convidando o público a juntar-se ao Teatro:[8]
Criar uma relação afetiva entre o público e o teatro. (…) Para criar isto, começámos a criar eventos que vão um bocado para além de simplesmente fazermos um espetáculo, vão à sala e saem. Começámos a pensar em eventos especiais que podiam criar esta relação e temos feito vários, organizámos eventos fora do teatro, aqui no jardim, à volta no bairro, convidando a visitar o teatro, num ambiente muito menos formal, saímos um bocado deste formato da peça teatral, criámos uma festa, onde há comida. Um evento que já fazemos há muitos anos, é Ao Ar Livre, de facto é uma festa para o nosso público, para as pessoas do bairro, fazemos aqui mesmo ao lado. (Entrevista a M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017)
As pessoas do bairro colaboram? Aparecem nestes eventos? Deputter afirmou: “Há pessoas que nos ajudam a pôr isto de pé”. E continuou:
Houve uma grande mudança na própria criação teatral, não é só no teatro, no mundo artístico em geral, na relação que querem estabelecer com o público e com a sociedade. (…) A partir dos anos 2000, sente-se nas artes um novo interesse na sociedade, na política, uma vontade de intervir, surgiu uma outra onda, de novo desde os anos 60, uma nova onda de arte politica, teatro politico, arte de intervenção e uma grande vontade de voltar a encontrar o público. (Entrevista a M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017)
O teatro do público ou Create to Connect
A rede Create to Connnect, à qual o Teatro Maria Matos pertence, é disso um bom exemplo. Esta rede mobiliza 13 estruturas culturais europeias que trabalham em torno de novos dispositivos para atrair público mais diversificado para o teatro (v. a este propósito, Taylor, 2003).[9]
Para Deputter, é importante abrir o teatro ao “grande público” (entretanto, arredado do teatro, desde os anos 90, do século XX) e não apenas aos “conhecedores”, trazê-lo para ver todas as artes, visuais, teatro, dança. Foi assim que nasceu a ideia de convidar o público para participar nos espetáculos. O que pode acontecer sem a presença de atores ou performers profissionais.
São encenadores ou coreógrafos que trabalham, especificamente, com amadores porque eles acham que estes amadores têm uma certa fragilidade, uma beleza na sua não virtuosidade…, às vezes a virtuosidade também cansa, vão à procura de uma beleza que é mais natural, mais pura, menos trabalhada. Temos feito aqui também. Mas há outras possibilidades, quando os artistas criam peças de teatro e vêm cá alguns dias antes e incluem um grupo de pessoas dentro do espetáculo, é um espetáculo que já tem um formato feito, com profissionais, mas há um papel para o público. Mas também há espetáculos onde não há nada disso, o público faz o espetáculo. (Entrevista a M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017)
House On Fire ou o teatro político
É neste contexto que Deputter começa a trabalhar com a sua equipa no sentido de ir ao bairro de Marvila para encontrar o público-participante e trazê-lo ao Teatro Maria Matos.[10]
A ideia era encontrar uma questão particular com interesse para a comunidade local para chegar à questão política que orienta os projetos, como aquela que R. Catalão procurou trabalhar no espetáculo “Assembleia”: a co-habitação e os seus problemas.
Neste caso, apresentava-se uma assembleia com políticos-públicos-participantes. Estes discutiam o problema da co-habitação e, em seguida, dois habitantes locais-atores falavam sobre a história pessoal (real ficcionada) de um deles, P. Henriques, e da sua relação doentia com o seu vizinho que o fez ficar fechado em casa durante pelo menos 10 anos. Em palco, foi um vai-e-vem entre a questão pessoal e a questão política (v. Angelaki, 2017). De resto, o teatro político é a ideia seguida pela rede de teatros da House On Fire que M. Deputter ajudou a criar e, portanto, foi fácil integrar os objetivos do trabalho de R. Catalão e do director deste Teatro.
De notar que esta rede de teatros e festivais se organizou para responder a uma candidatura aos Fundos Europeus e, desde há cinco anos, o Teatro Maria Matos lidera, partilha ideias, espetáculos e publicações com os outros teatros europeus da rede: “O que é mesmo notável, eu não sabia, mas nós fomos a primeira instituição do país, em Portugal, que conseguiu ter um apoio europeu para um projeto liderado por uma instituição [teatral] portuguesa. Nunca tinha acontecido antes” (Entrevista a M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017).
Numa publicação da rede House On Fire, intitulada Joined Forces. Audience Participation in Theatre, A. Burzynska (2016, pp. 9-12), crítica de arte e curadora, afirma que o teatro é um “espaço de ensaio para a democracia”, um lugar onde se encoraja não só a observar, mas a ser crítico, ativo e responsável por aquilo que está a acontecer. E sublinha:
os novos media mudaram a forma como as informações são recebidas — de forma interativa, seletiva e dialógica. (…) Os novos consumidores de informações e entretenimento tomaram literalmente as coisas nas suas próprias mãos, escolhendo o conteúdo preferido, navegando a história em estilo não linear, em rede, comentando, e adicionando o seu próprio conteúdo. (Burzynska, 2016, p. 10)
É a vanguarda do teatro europeu, nas palavras de Deputter:
(…) esta nova onda do teatro político, como eu estava a dizer é algo que nós estamos a seguir de muito perto, porque é algo que está a acontecer no próprio teatro, e como nós queremos seguir a evolução da oferta teatral, nós acompanhamos. (…) Há uma série de teatros que estão na mesma onda, que eu acho que é a vanguarda daquilo que está a acontecer na Europa, na área do teatro e nas artes performativas. (Entrevista a M. Deputter, diário de bordo, 27.01.2017)
É neste contexto que chegamos à “Assembleia”, de R. Catalão. A entrada do encenador no bairro de Marvila foi uma sugestão de M. Depputer que a integrou no Ciclo Utopias. Se o teatro não serve aquela comunidade nem a comunidade frequenta o teatro, então o Teatro Maria Matos vai ao bairro, afirmou o seu director.
A Assembleia de R. Catalão
Cheguei ao café situado do outro lado da rua, da porta dos artistas do Teatro Maria Matos. A entrevista com R. Catalão decorreu no café, na rua daquele Teatro. Do lado de lá, circula o comboio, mas não se dá por nada (notas do diário de bordo, 17.03.2017). Começámos pelo percurso de R. Catalão fora do teatro. Licenciado em Comunicação Social pela FCSH (Universidade NOVA de Lisboa), trabalhou no jornal no início dos anos 2000. Abandonou a carreira de jornalista, quando começou a participar nos projetos artísticos de J. Fiadeiro e, depois, de V. Jorge Silva.
Hoje considera-se encenador e afirma que o seu trabalho é assente na “composição em tempo real”, método da dança que lhe agrada e que experimentou com o bailarino e coreógrafo J. Fiadeiro:
Para mim, o processo de transição não foi para a dança, foi quando me interessei mais pelo teatro. Na verdade só trabalhei com coreógrafos, quando chego a Portugal começo a usar essas metodologias do meio da dança aplicada a pessoas que eram do teatro… A C. Gonçalves [bailarina] acha que a minha forma de trabalhar é muito balética. A dança contemporânea tem muitas metodologias de trabalho que foram criadas contra a rigidez do ballet, o excesso de rigor, eu não sei muito bem porque foi quase intuitivo. (Entrevista a R. Catalão, 17.03.2017)
Mas, apesar de considerar que os processos da dança contemporânea são muito interessantes, R. Catalão diz que podem tornar-se muito fechados e compreendidos por um número reduzido de pessoas. A ideia é então que os seus trabalhos artísticos sejam montados com as histórias dos outros: “[as histórias] correspondem a uma vivência” das pessoas. Explicou, depois, que os ensaios representam “períodos de pesquisa” e que “a vivência ali contada é aquela que se teve antes de começar a peça, depois cria-se distanciamento e ficção” (Notas do diário de bordo, 17.03.2017):
o [meu] fazer tem muito a ver com uma sistematização do ballet. Fui lá de forma intuitiva, com uma perspetiva crítica. (…) Comecei a utilizar um processo diferente: a vivência é aquela que tu tiveste antes da peça e depois o período de ensaios está a sistematizar isso, a trabalhar essas matérias (…). Têm de ser vividas? Esse é o meu cavalo de batalha. O processo de fazer a peça cria uma ficção, porque cria um distanciamento, o uso de uns materiais e não de outros, a montagem daquilo tudo vai gerar uma ficção. Sim, vem sempre de uma vivência, é uma questão de força, é difícil acreditares se não foi vivido. Se uma coisa é importante é porque foi vivida, se não foi vivida estás a trabalhar o convencionalismo do teatro. (Entrevista a R. Catalão, 17.03.2017)
Como são escolhidas as pessoas para participar nas sessões?, perguntei. “Eu encontrei aquilo que procurava, mas as pessoas não estavam despertas para isso.” R. Catalão tem experiência deste tipo de trabalho desenvolvido com públicos-participantes, no Vale da Amoreira (Barreiro e Moita). Naquele caso, o encenador sabe sempre quem são, de onde vêm e o que sentem os seus participantes. Reconhece que basta o “vocabulário de olhares” e eles estão dentro da sua lógica.
Por seu turno, no caso de Marvila, o projeto previa ser feito na e com as comunidades dos bairros de Lóios e Amendoeiras, mas Catalão sabe que a experiência não correu como esperava. A entrada da equipa de mediação, contratada pelo encenador, não foi bem gerida. Mais tarde, optou-se pela intervenção de um facilitador comunitário, P. Lage, antigo morador no bairro e profissional de teatro. A directora e técnica superior da Unidade de Desenvolvimento e Intervenção da proximidade, em Marvila, S. Ferreira aceitou a entrada da “Assembleia”, mas considera-se uma entrada demasiado rápida e feita em cima da hora, tendo em conta os prazos para a apresentação do espetáculo.[11]
O interesse desta “Assembleia” para a população local resultava das assembleias comunitárias que já existiam neste território, desde 2012, altura em que se iniciou um conjunto de metodologias participativas e de envolvimento da população local nas decisões e debates sobre os seus problemas. Estas assembleias visavam capacitar as pessoas para argumentar e decidir em conjunto. São metodologias de ação que podem ajudar a resolver problemas de integração e ajudam a “manter a comunidade em construção” (Entrevista a S. Ferreira, notas do diário de bordo, 13.03.2017). Com o passar das sessões, e sem que se sentissem plenamente esclarecidos quanto aos objetivos (mas apenas confiantes no teatro), muitos dos participantes deixaram de aparecer ou mostraram-se surpreendidos com “horas de conversa que não se percebia para onde levavam as pessoas” (Diário de bordo, 13.03.2017).
Entretanto, já as sessões decorriam, quando se juntaram ao grupo dois participantes escolhidos que foram integrados no espetáculo, deixando de fora todos os outros potenciais atores-participantes: S. Ferreira, a jovem que estudou para ser actriz; e P. Henrique, o jovem desempregado. A primeira foi trazida pela mãe, uma das “facilitadoras” do bairro. Os dois jovens tinham naturalmente tudo aquilo que era preciso, segundo Catalão: “olhar, voz e corpos”. Mas a jovem atriz queria aprender mais.
Três dias de ensaios no Teatro Maria Matos
“Esta é a minha camisa que tu vestes” (conversa de Catalão com os atores-participantes, notas do diário de bordo, 20.02.2017), foi assim que tudo começou naquele teatro, no primeiro dia de ensaios, na sala lisboeta.[12]
Catalão explica aos atores-participantes que este trabalho é entendido como uma arte que “calça os sapatos do outro”.
A minha conversa inicial com P. Lage foi importante para compreender melhor este contexto de criação e a ansiedade dos seus jovens habitantes-participantes. Já se sentiam os nervos e a agitação dos dias que antecedem a estreia, acrescido pelo facto de que conta muito com a discussão pública dos temas propostos pelo encenador, e que podem (ou não) gerar discussão na plateia.
“Conhecer uma pessoa é pores-te nos sapatos dela” (conversa de Catalão com os atores, notas do diário de bordo, 21.02.2007). Por isso, a ideia e metodologia utilizada por R. Catalão é ouvir as histórias dos outros, e com essas histórias, contadas e repetidas muitas vezes, constrói-se o espetáculo. Este trabalho contém espontaneidade e humor, mas também provocações e silêncios. Nem todos querem contar a sua história. Foi o que aconteceu com a jovem atriz. O processo de trabalho do encenador propõe chegar ao mais íntimo de cada um e o problema pessoal torna-se político. Neste caso, o tema era a co-habitação (o tema nem sempre foi seguido nas sessões em Marvila, nem na discussão pública, durante a apresentação do espetáculo, no Teatro Maria Matos, em Lisboa). S. Ferreira não queria contar a sua história. Não contou.
Catalão identificou o problema. S. Ferreira cantou (mas não contou a sua história), uma voz linda. Mas ela queria mais. Um texto para dizer em palco. Aprender a técnica teatral. E depois disto? Nada… “Os projetos deixam coisas não resolvidas”, “fazem-se com as aparas de outros projetos”, afirmou R. Catalão. Quando se referiu a outro projecto-colaborativo, chamado “Agora Nós”, disse que nesse processo sentia-se felicidade: “o grupo era forte e excluiu-me, fiquei de fora, o grupo era muito bom. Um trabalho feliz pelas pessoas” (…) Os projetos geram futuro (…)” (Entrevista a R. Catalão, 17.03.2017).
Dois dias antes da estreia de “Assembleia”, R. Catalão admitia não ter conseguido “traduzir a matéria para a cena”. As suas palavras: “Eu tive boa ideia, intuição, encontrei, mas a matéria é escorregadia, fugitiva. As poucas pessoas que apareceram entraram e saíram. O processo foi lento. Não tenho disponibilidade para estar a fazer isto um ano. Eu percebo aquilo que estou a fazer” (Notas do diário de bordo, 21.02.2017).
A propósito da parte sombria e mais negativa do seu projeto, R. Catalão afirmou:
Enfiei-me dentro de um poço e esqueci-me do escadote. Os temas estão lá dentro, como ir até lá? E como sair? Até que ponto posso interferir? Mudar? O que se leva daqui? Tudo o que faça, se não é eficaz, tem de ser corrigido. O que eu desconhecia no bairro eram as pessoas, as dinâmicas conhecia. Eu já trabalhei, vivi e nasci num sítio assim. (Entrevista a R. Catalão, 17.03.2017)
Nos ensaios, ao terceiro dia: “Vou em direção ao desastre”, afirmou a certa altura Catalão, enquanto se filmava todo o trabalho dos jovens atores que faziam as marcações e batiam o texto. À noite, chegaram aos ensaios as pessoas que compunham o público-participante. Eram 16 pessoas, jovens e menos jovens, técnicos de ação social, reformados, filhos de outros participantes. Alguns daqueles que acompanharam o processo, no bairro, consideraram ter estado perdidos, “sem saber para era aquilo”. O processo e os resultados foram muito questionados pelos envolvidos. Algumas destas pessoas admitiram que participaram porque gostavam de ser reconhecidas pelos outros habitantes do bairro; outras participaram porque a atividade estava ligada à Unidade de desenvolvimento e intervenção, de Marvila. Outros “não esperavam a escolha de um rapaz e de uma rapariga que não foram às sessões desde o início…” (palavras de uma das participantes, 13.03.2017). Por isso, alguns deixaram de aparecer.
Ao contrário, para P. Henriques, o jovem ator-participante, figura principal, que contracenava com S. Ferreira, o projeto foi muito bom: “Estava em casa, sem fazer nada” (notas do diário de bordo, 22.02.2017). Um ordenado, um trabalho a horas certas, notícias suas nos jornais, a estreia de um espetáculo num teatro de Lisboa. Uma emoção. Ainda por cima, a história era a sua. E no fim do processo, R. Catalão pagou ao vizinho desta história para falar com P. Henriques e dizer-lhe, cara a cara, por que razão lhe tinha feito tanto mal ao longo dos anos. Durante o espetáculo, conta-se este episódio e a resposta do vizinho. R. Catalão considerou: “o Pedro já se libertou daquela história”.
E, na sexta-feira, quando estrear o espetáculo? R. Catalão respondeu: “Eu gostava que fossem felizes durante uma hora e meia” (conversa durante o ensaio, notas do diário de bordo, 22.02.2017).
Conclusão
A permeabilidade da arte contemporânea a outras formas de produção simbólica, à transdisciplinaridade, inovação tecnológica, mas também aos públicos-participantes, socialmente diversificados, conjuga-se com projetos de educação pela arte, ativismo cívico, ambiental, e a procura de momentos de convivência e celebração entre pessoas. Como ficou demonstrado, os artistas encontram hoje novas de formas de se apresentar, de produzir os seus trabalhos, dar visibilidade à arte e aos seus lugares. Com as suas equipas, os artistas e as instituições recorrem a processos de mediação, produção e difusão que fomentam uma certa espectacularização da cultura, mas representam também momentos de aprendizagem, informalidade e experiência, questionamento e debate.
Algumas das experiências retratadas por M. Deputter, director do Teatro Municipal Maria Matos, respondem à necessidade de proximidade das instituições culturais, à sua abertura à comunidade. A festa pode ser um passo para criar essa relação mais próxima por parte de teatros cuja arquitetura gera dificuldades na criação da venue. As práticas criativas descritas são a prova de que existem mudanças profundas na arte contemporânea em si mesma e no teatro que se desafia a chegar a outros públicos.
No entanto, este tipo de arte que é feita com as pessoas é ainda muitas vezes uma arte feita sem estar com os outros nos seus interesses e expetativas. As trocas entre os artistas e estes intervenientes e habitantes locais nem sempre se desenvolveram de forma eficaz e nas duas direções. Por vezes, os diferentes intervenientes não encontraram a finalidade da sua participação no projeto, considerando que os artistas retiram valor às tradições da prática criativa que alguns já conhecem e experimentaram antes. Por isso, a ideia de que as pessoas participam nos projetos artísticos fazendo uso de uma ingenuidade e autenticidade, que os artistas consideram importante para o processo, deixa (em certa medida) de ter tradução no atual contexto em que as populações locais já estão mais habituadas a participar, produzir e promover as suas atividades, nos seus bairros.
Com base nos registos da observação que realizei durante o período de ensaios, as entrevistas e conversas informais junto dos públicos-participantes e principais envolvidos no processo, considero tratar-se de um “caso-contexto” que não se apoia numa visão de consenso em torno do processo e do resultado final. Mas sabemos que os resultados são, muitas vezes, progressivos e só apreciados mais tarde, embora também representem no imediato alguma frustração para os intervenientes.
Por seu turno, a nova agenda da arte mostra a relevância de teatros, coletividades, autarquias e públicos-participantes locais que “juntam forças” entre si — e até com instituições culturais estrangeiras —, formando redes que estimulam novas linhas de financiamento (Comunian, 2010).
Em relação às três questões e linhas de força que apresentei, em geral, considero que este “caso-contexto” é influenciado pela proliferação de práticas artísticas colaborativas. Estaremos a viver o mito da colaboração e participação? Provavelmente sim, mas tal não coloca em causa os projetos que se desenvolvem com os públicos-participantes, apenas nos exige uma análise mais demorada. Pode-se refletir sobre a distância entre a retórica destes projetos e o estímulo que os próprios teatros empreendem, com trabalhos de curta duração, sem responder aos interesses dos artistas e menos ainda aos interesses das populações que, no fim, se assinalam: “o abandono, para que serve tudo isto afinal?”.
Foram promovidas dinâmicas institucionais de aproximação a Marvila, mas a rapidez do processo não acautelou a criação de uma rede colaborativa que poderia funcionar, de forma mais imediata, nos projetos futuros do Teatro Maria Matos. Para um dos intervenientes-chave deste processo estar em palco representava uma etapa emergente de profissionalização. Também a ausência de retorno para os públicos-participantes mostrou ter efeitos desestabilizadores, tanto para o contexto de criação, quanto para a lógica artística da abordagem de R. Catalão, e para o tipo de participação desse público no debate, durante o espetáculo.
Sabemos que a “qualidade da experiência” (Dewey, 2005, pp. 50-51), daqueles que concebem e participam nos projetos artísticos, é aquilo que se revela mais importante, porque assegura valores e sentidos partilhados que fazem progredir a esfera pública. Por isso, é relevante compreender o impacto e a eficácia deste tipo de trabalhos e de como se podem melhorar. O trabalho é artístico, mas não é apenas um problema da arte e dos seus intervenientes, é também um desafio para a sociologia, as suas metodologias de investigação e a forma como podem ser utilizadas para ajudar a repensar os processos artísticos.
Nota
Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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Vera Borges. Investigadora Dinâmia’Cet-ISCTE-IUL e Investigadora Associada do ICS-Universidade de Lisboa.
Data de submissão: 20/06/2017 | Data de aceitação: 15/09/2017
[1]Veja-se, por exemplo, o Grupo de Teatro do Oprimido, do bairro dos Lóios, GTO, em Marvila. Marvila é uma freguesia portuguesa do concelho de Lisboa, pertencente à Zona Oriental da capital, com 7,12 km² de área e 37 793 habitantes (2011), densidade: 5 308 hab./km². Sobre esta freguesia ver o trabalho de enquadramento dos “circuitos culturais off” e “creative spaces” como valia na revitalização da freguesia, de J. Nunes e A. Sequeira (2011, pp. 33-41), publicado pela Forum Sociológico, no Dossiê “Transformação urbana: experiências locais”.
[2]As linhas gerais deste artigo foram apresentadas no Encontro “Sociologia e Intervenção Local”, realizado na Biblioteca Municipal de Marvila, a 19 de abril de 2017; e foram ainda debatidos na comunicação “Arte colaborativa: organizações, públicos e pequenas comunidades locais”, que realizei a 17 de junho de 2015, no ISCTE-IUL.
[3]Mark Deputter foi director do Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa, entre 2008 e outubro de 2017. Em novembro desse ano, substituiu Miguel Lobo Antunes (que estava desde 2004) na Culturgest, em Lisboa.
[4]V. o caso analisado, o Teatro Meia Volta e depois à esquerda quando eu disser, na sua vinda ao Teatro S. Luiz, em Lisboa.
[5]Vale da Amoreira, concelho da Moita, distrito de Setúbal. Este grupo de participantes está associado ao projeto ArtemRede. Juntos mais fortes, que já conta com 12 anos de atividade (ver Encontros sobre Experiências Culturais, com Marta Martins, 19.04.2017. Organizo estes Encontros com I. Conde, H. Murteira e A. Rocha, no ISCTE. Para acompanhar estes Encontros: https://int.search.tb.ask.com/search/video.jhtml?n=783a3647&p2=%5ECP5%5Exdm102%5ELMPTBR%5Ept&pg=video&pn=1&ptb=8550C3D8-F67B-4D57-9788-ACE0F724652&qs=&searchfor= Encontrso+sobre+Experiencias+Culturais+Marta+Martins&si= 38213955730&ss=sub&st=sb&tpr=sbt.
[6]Este artigo resulta do projeto de investigação intitulado “Reputação, Mercado e Território: Entre o teatro e a arquitetura”. Este projeto tem o apoio da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
[7]Ver ainda o encontro com M. Abreu (ator e produtor) e a sua descrição da concepção e implementação do Festival TODOS, realizado com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa. V. Encontros sobre Experiências Culturais (23.05.2017). Retrieved from https://www.facebook.com/Encontros-Mensais-sobre-Experi%C3%AAncias-Culturais-1887696608155181/. Por fim, ver Johanson, Glow, & Kershaw (2014).
[8] R. Tomás, da equipa de Comunicação deste Teatro, referiu-se à “lógica colaborativa na comunicação” referindo-se às reuniões informais (designadas Sala de Ensaios), por exemplo, com o Teatro São Luiz, a Fundação Calouste Gulbenkian, para partilha de estratégias para seduzir novos públicos (notas do diário de bordo, 14.07.2015). Por seu turno, Patrícia Costa descreveu as estratégias que desenvolveu com Cláudia Galhós, durante a apresentação do espetáculo “Histórias do Bosque de Viena”, sob a direção de Tónan Quito, em 2012, no Teatro Maria Matos, em Lisboa: numa abordagem de proximidade ao bairro, que há época não se sentia naquele teatro, as duas distribuíram rifas com excertos do texto do espetáculo e a oferta de bilhetes duplos, e promoveram ainda a realização de vídeos feitos com a participação dos logistas. (apresentação deste seu trabalho no Mestrado de Estudos de Teatro, Disciplina de Políticas Culturais, na Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa, 17.11.2017).
[9]Para saber mais detalhes sobre esta rede, consultar: http://www.createtoconnect.eu/.
[10]O Teatro desenvolve hoje estas dinâmicas com a colaboração de uma equipa mais vasta e pluridisciplinar, e com a participação de habitantes de Loios, Marquês de Abrantes, Alfinetes, Salgadas, Vale de Chelas: Encontro com os bairros — Topias Urbanas, Biblioteca de Marvila, 17 de junho 2017. Este projeto faz-se no âmbito da Rede Create to Connect e com o apoio do Programa Cultura da União Europeia.
[11]Na sala comum da PRODAC, em Marvila, vi as fotografias do espetáculo e as críticas publicadas nos jornais nacionais, expostas junto ao café. Por baixo, lia-se a seguinte inscrição: “Assembleia de Rui Catalão. Eu estive lá! Da próxima podes ser tu!”.
[12]Os ensaios no Teatro Maria Matos iniciaram-se no dia 21 de fevereiro e o espetáculo esteve em cena entre os dias 24 e 26 de fevereiro de 2017.
Autores: Vera Borges