Nº 8 - dezembro 2014

João Aldeia, doutorando em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, com o acolhimento do Centro de Estudos Sociais da mesma universidade. Financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia com uma bolsa individual de doutoramento.

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Resumo: As diversas representações sobre o fenómeno dos sem-abrigo tendem a articular-se, levando a uma narrativa dominante que tem no seu centro um arquétipo de «sem-abrigo» que é, simultaneamente, «alcoólico», «toxicodependente», «doente mental», «preguiçoso» e «amoral». Por um efeito-sinédoque, as características muito visíveis de uns poucos indivíduos são representacionalmente atribuídas a todas as pessoas que vivem na rua, levando à sua desqualificação e estigmatização. Este arquétipo não é empiricamente verificável, mas a sua disseminação acrítica reforça a individualização da explicação do fenómeno, invisibilizando as suas causas estruturais. Procurando combater a reprodução acrítica de discursos e práticas sobre o fenómeno dos sem-abrigo, que não só não o resolve com contribui para a desqualificação estigmatizante de quem vive na rua, o texto analisa o arquétipo de «sem-abrigo» criado pelo efeito-sinédoque e defende que os indivíduos sem-abrigo não são «doentes mentais», «toxicodependentes» nem «alcoólicos».

Palavras-chave: «alcoolismo»; «doença mental»; efeito-sinédoque; fenómeno dos sem-abrigo; «toxicodependência».

 

Abstract: The different representations of homelessness tend to connect, leading to a dominant narrative that has in its centre a homeless archetype which is, simultaneously, «alcoholic», «drug-addicted», «mentally ill», «lazy» and «amoral». By a synecdoche-effect, the very visible characteristics of a few individuals are representationally attributed to all people living on the street, leading to their disqualification and stigmatization. This archetype is not empirically verifiable, but its acritical dissemination reinforces the individualization of the explanation of homelessness, invisibilizing its structural causes. Seeking to combat the acritical reproduction of discourses and practices on homelessness, which do not solve it and moreover contribute to the stigmatizing disqualification of homeless people, this text analyzes the «homeless» archetype created by the synecdoche-effect and holds that homeless individuals are not «mentally ill», «drug addicts», nor «alcoholics».

Key words: «alcoholism»; «mental illness»; synecdoche-effect; homelessness; «drug addiction».

Introdução

É possível identificar três tipos gerais de discursos sobre o fenómeno dos sem-abrigo nas representações que sobre ele são veiculadas pelos media, por parte da academia, por políticos e pelo imaginário colectivo dos cidadãos domiciliados. Em primeiro lugar, existe uma narrativa (a)moralizante, que representa os actores sem-abrigo como sujeitos que rejeitam a normatividade do resto da sociedade. Há igualmente uma narrativa medicalizante, que constrói os indivíduos sem-abrigo como «doentes mentais» e explica a chegada e permanência na rua por via de patologias individuais. Em terceiro lugar, há uma narrativa sistémica, que critica a organização estrutural dos mercados laboral e habitacional e do Estado, nos quais encontra a origem do fenómeno (Gowan, 2010).

A individualização patológica, que mescla os discursos medicalizante (diferença médico-biológica) e (a)moralizante (diferença sociocultural e de «personalidade»), é a narrativa dominante sobre o fenómeno. Através de um efeito-sinédoque – um processo discursivo que simplifica e obscurece a complexidade de um fenómeno, pervertendo-o ao representá-lo espuriamente na totalidade através de uma característica de uma sua pequena parte, não identificável no resto do fenómeno –, esta narrativa dominante cria um arquétipo de «sem-abrigo» que incorpora e sintetiza as piores características pessoais, sociais e morais que quer o discurso (a)moralizante quer o discurso médico atribuem a quem vive na rua. Este sujeito é «preguiçoso», «doente mental», «toxicodependente», «alcoólico», «criminoso», «potencialmente perigoso».

As características empíricas heterogéneas de quem vive na rua, contudo, não correspondem a este constructo narrativo. Não desconstruir este arquétipo leva à reprodução acrítica um conjunto de discursos e práticas sobre o fenómeno dos sem-abrigo que não só não o resolve como contribui para a desqualificação estigmatizante de quem vive na rua. Por este motivo, é fundamental negar a existência deste «sem-abrigo tipo» na praxis. Estes sujeitos já têm a vida suficientemente difícil; não a dificultemos ainda mais com as nossas investigações.

Começo o texto discutindo os tipos de discursos e representações dominantes do fenómeno dos sem-abrigo, defendendo que estes têm como principal efeito a produção do arquétipo de «sem-abrigo» mencionado. Num segundo momento, procuro contribuir para a desconstrução deste constructo reflectindo sobre a debilidade sociológica da atribuição dos rótulos de «alcoólico», «toxicodependente» ou «doente mental» a quem vive na rua.

O efeito-sinédoque no fenómeno dos sem-abrigo

A tendência para discutir o fenómeno dos sem-abrigo como sendo algo isolado do resto da sociedade é notória nos media, na política, na parte da academia que domina a investigação sobre o tema, e, em geral, no imaginário colectivo da sociedade domiciliada (Blau, 1992; Feldman, 2006; Gaboriau e Terrolle, 2007; Gaboriau, 2009; Gaboriau e Terrolle, 2009). Isto contribui para criar os «sem-abrigo» como «categoria à parte»; como algo que se encontra social, moral e administrativamente deslocado de uma sociedade que, assim, deve intervir sobre os indivíduos que vivem na rua. Como afirma Damon, “ser sem-abrigo – deveria ser dito ser visto ou reconhecido como sem-abrigo – não é uma característica natural de um indivíduo. Somos pobres, somos desviantes, somos sem-abrigo porque fomos assim nomeados por outros actores sociais” (2008, p. 9)[2].

Para Feldman, as representações do fenómeno dos sem-abrigo oscilam dinamicamente ao longo de três eixos:

Em três registos – capacidade de acção [agency] (livre ou dominado), valoração (sagrado ou profano), e resposta política (santuário ou criminalização) – o fenómeno dos sem-abrigo é marcado por uma duplicidade, um conjunto recorrente de oposições. O mais comum é entre uma visão que sacraliza a falta de recursos [helplessness] dos sem-abrigo, aos quais deve ser dado santuário, e uma visão que demoniza a capacidade de acção dos sem-abrigo, que devem ser disciplinados pelas leis (2006, p. 14).

Segundo Gowan (2010), são identificáveis três tipos de discursos sobre este fenómeno, sendo estes derivativos dos discursos mais vastos sobre a pobreza. Em primeiro lugar, encontramos o discurso-do-pecado [sin-talk], dominante na Europa e na América do Norte até ao final do século XIX/início do século XX. Esta narrativa explica a existência de pessoas a viver na rua pela amoralidade e preguiça dos indivíduos sem-abrigo, atribuindo-lhes uma capacidade de acção puramente negativa e negando quaisquer efeitos estruturais que contribuam para a situação. Os actores sem-abrigo, segundo este primeiro tipo de discurso, são pessoas que recusam o código normativo da sociedade domiciliada, preferindo viver da «bondade» (leia-se: caridade) das instituições ou de actividades ilegais. Em segundo lugar, surge o discurso-sistémico [system-talk], dominante durante o período do Estado Social. Este foca-se exclusivamente nas dinâmicas estruturais da pobreza e reivindica formas de regulação social – ou mesmo de mudança, nas posturas mais críticas. Porém, trata-se de um discurso que retira quase inteiramente a capacidade de acção aos indivíduos que são afectados pelos de efeitos estruturais da pobreza de modo mais intenso, vendo-os como vítimas passivas[3]. Em terceiro lugar, é identificável o discurso-da-doença [sick-talk], que começa nos Estados Unidos da América nas décadas de 1980 e 1990 e rapidamente se expande para outros países do Ocidente Norte. Partilhando características com ambos os discursos anteriores, esta narrativa, tal como o discurso-do-pecado, encara o fenómeno dos sem-abrigo de forma puramente individual e, tal como o discurso-sistémico, nega a capacidade de acção de quem vive na rua. Porém, nesta narrativa, a existência de pessoas a viver na rua é explicada por patologias individuais. Deste modo, a solução para o problema não passa pela regulação dos mercados habitacional ou laboral (como ocorre no discurso-sistémico) mas pela identificação das patologias específicas de cada indivíduo sem-abrigo que entra em contacto com o conjunto dos serviços «assistencialistas».

Os diferentes tipos de discursos sobre o fenómeno que Gowan (2010) discute são localizáveis ao longo dos eixos de representação definidos por Feldman (2006). O discurso-sistémico, observando criticamente a forma como determinados sujeitos são estruturalmente dirigidos e mantidos na vida na rua e, em grande medida, retirando a capacidade de acção e reflexão aos indivíduos sem-abrigo, avalia-os como «sagrados» (leia-se: merecedores de ajuda enquanto seres humanos e cidadãos) e, como consequência, exige uma acção política que os apoie, que permita a quem vive na rua ter «direito a ter direitos». O discurso-do-pecado reconhece capacidade de acção e reflexividade aos sujeitos sem-abrigo, mas avalia-os como «profanos», i.e., como «preguiçosos, amorais e potencialmente perigosos» para o resto da sociedade. Por este motivo, exige uma resposta política para o problema – percebido como um conjunto de indivíduos que não desejam respeitar as normas da sociedade domiciliada – que acentue a repressão e a punição. Por último, o discurso-da-doença, como foi referido, tal como o discurso-sistémico, retira inteiramente a capacidade de acção e de reflexão aos indivíduos sem-abrigo. Porém, ao contrário da outras posturas, o discurso-da-doença permanece «indeciso» no eixo de avaliação, levando a que o desejo de apoio – a que a reivindicação de acção política – seja também paradoxal. Os «sem-abrigo como doentes» não são nem inteiramente «sagrados» nem completamente «profanos»; antes, são apresentados como axiologicamente neutros ao nível do discurso. Na prática, contudo, eles são «sacralizados» enquanto sujeitos que necessitam de ajuda mas também tornados «profanos», sendo construídos como destituídos de capacidade para agir, pensar e ser morais: deve-se, portanto, agir sobre eles – «ajudá-los», dado que são «sagrados», mas forçar a ajuda, dado que são também «profanos».

Esta «indecisão» do discurso-da-doença leva a que se reivindique um tipo de «santuário» particular no eixo de resposta política: um «santuário» heterotópico, composto por “lugares reais, lugares efectivos, lugares que são desenhados na própria instituição da sociedade, (…) tipos de lugares que estão fora de todos os lugares, ainda que sejam efectivamente localizáveis” (Foucault, 1984, s.p.). Concretamente, trata-se de um santuário composto por “heterotopias de desvio”, “aquela[s] onde colocamos os indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à média ou à norma exigida” (Foucault, 1984, s.p.), no caso, a norma domiciliada. Este santuário heterotópico marginaliza quem é nele colocado, correspondendo a uma forma de protecção com contornos de criminalização, em que se torna semelhante forçar o sujeito a aceitar uma intervenção «assistencialista» orientada de fora de forma draconiana e criminalizá-lo remetendo o problema para as instituições repressivas. Este carácter paradoxal do discurso-da-doença leva a que o dispositivo médico seja empiricamente mesclável com o modelo repressivo; esta «indecisão» do discurso-da-doença quanto à sua localização nos eixos de avaliação e de resposta política facilita a interpenetração de repressão e «assistência», de «pecado e doença» enquanto discursos e práticas de acção oficiais (Snow e Anderson, 1993; Zeneidi-Henry, 2002; Terrolle, 2004; Feldman, 2006; Lyon-Callo, 2008; Gowan, 2010; Aldeia, 2012).

Portanto, os indivíduos sem-abrigo são socialmente construídos como destituídos de capacidade de acção e reflexão «positiva» mas detentores de uma capacidade de acção e reflexividade «negativa». Consoante o caso, esta representação da capacidade dos indivíduos sem-abrigo para pensarem e agirem desloca-os social, moral e administrativamente da sociedade domiciliada. «Eles» (que vivem na rua) não são como «nós» (que temos casa). O facto de se distinguirem por serem «intencionalmente diferentes» (dado que são «amorais, preguiçosos e perigosos») ou por serem «biologicamente desviantes» (por serem «doentes» e incapazes de ser como «nós») depende do contexto específico de que falamos.

Dada a interpenetração das posturas repressiva e «assistencialista», o fenómeno dos sem-abrigo é produzido como um problema individual de cada pessoa que se encontra na rua, invisibilizando as suas causas estruturais. Neste contexto, encontramos uma distinção fundamental entre as explicações da pobreza pela preguiça individual ou pela injustiça social que se reflecte no modo como o fenómeno dos sem-abrigo é construído. Para Paugam e Selz,

a explicação pela preguiça remete para uma concepção moral fundada no sentido do dever e na ética de trabalho. Nesta óptica, os pobres são de algum modo acusados de não cuidarem suficientemente de si mesmos [ne pas suffisament se prendre en charge eux-mêmes] e os poderes públicos não têm portanto de os ajudar. Segundo esta abordagem, cada indivíduo é responsável por si mesmo e só a sua coragem pode evitar que conheça a pobreza. A explicação da pobreza pela injustiça social remete, pelo contrário, para uma concepção mais global da sociedade. Os pobres são antes de mais vítimas de um sistema que os condena. Neste espírito, os poderes públicos têm um dever: o que ajudar os pobres no sentido de uma maior justiça social. Desta forma, a explicação pela preguiça e a explicação pela injustiça social correspondem a opiniões contrastantes cujo sentido ideológico e político não escapa a ninguém (2005, p. 296).

Portanto, uma diferença na representação do mundo leva a oposições nas explicações e nas reivindicações de acção pública para aquilo que é percebido como problemático. Todavia, independentemente da explicação dominante para a pobreza e do grau de «empatia» sentido pelos «pobres», permanece sempre uma divisão dicotómica representacional entre «bons e maus pobres» – e os «maus pobres» são sempre percebidos como «amorais e preguiçosos»; são sempre responsabilizados pela sua situação (Katz, 1989; Castel, 1996; Wacquant, 2000; Young, 2007; Bauman, 2009; Castel, 2009; Wacquant, 2009).

Apesar do fenómeno dos sem-abrigo ser discutido como algo que se encontra «deslocado» do resto da sociedade, a forma como a questão mais vasta da pobreza é representada influencia o modo como a questão dos sem-abrigo é abordada (Blau, 1992; Gaboriau e Terrolle, 2007; Lyon-Callo, 2008; Gowan, 2010). Mesmo que os «sem-abrigo» sejam criados como «categoria à parte», afirmando que nem todos os indivíduos pobres vivem na rua, tal argumento não nos pode fazer ignorar o facto de que não é por nem todas as pessoas pobres viverem na rua que o problema da vida na rua não é uma questão de pobreza (Blau, 1992; Snow e Anderson, 1993; Lyon-Callo, 2008; Gaboriau, 2009; Gaboriau e Terrolle, 2009; Gowan, 2010).

A forma como as sociedades representam e tratam os seus elementos mais pobres reflecte-se, portanto, no modo como se lida com o fenómeno dos sem-abrigo (Blau 1992; Phelan et al., 1997; Gaboriau e Terrolle, 2007; Gaboriau, 2009; Gaboriau e Terrolle, 2009; Gowan, 2010). Tal como na explicação da pobreza, também no caso deste fenómeno há uma oscilação entre a compreensão estrutural e a justificação individual. A individualização das causas, no modelo conceptual que hibridiza o discurso-do-pecado e o discurso-da-doença, é acompanhada por uma responsabilização individual de quem vive na rua por esta situação. Mas a estigmatização a que o imaginário colectivo vota os «pobres» é ainda maior no caso do fenómeno dos sem-abrigo: os indivíduos que vivem na rua são mais estigmatizados e culpabilizados pela sua situação de carência, precariedade e pobreza do que os «pobres com domicílio» (Phelan et al., 1997). Ser «sem-abrigo» funciona como um master status (Lyon-Callo, 2008; Gowan, 2010)[4] que desvaloriza e estigmatiza inteiramente quem vive na rua. Segundo Becker, “alguns estatutos, na nossa sociedade como em outras, anulam todos os outros estatutos e têm uma certa prioridade” (1973, p. 33). Nenhuma outra fonte de criação de identidade é reconhecida a quem carrega consigo um tal master status: o rótulo de «sem-abrigo» sobrepõe-se a todos os rótulos alternativos. Ou, antes, sobrepõe-se àqueles que são passíveis de elevar estatutariamente o sujeito; mas conjuga-se com aqueles que o podem desvalorizar. No imaginário colectivo, ser «sem-abrigo» não é somente não ter casa; é ser completamente definido por um conjunto de carências que se agrupam e reforçam. É ser «sem-abrigo», mas também ser «sem saúde mental», «sem vontade de trabalhar», «sem respeito pelas normas da sociedade domiciliada», «sem higiene», «sem capacidade para deixar de consumir substâncias». Tudo isto se conjuga para criar um «sem-abrigo tipo» que passa a orientar as acções do Estado e dos cidadãos face a quem vive na rua.

É observável neste processo a acção de algo que pode ser designado por efeito-sinédoque: todas as piores características que podem ser encontradas em alguns dos indivíduos que vivem na rua passam a ser usadas para caracterizar todos aqueles que não têm acesso a uma casa. Como Elias e Scotson defendem

o grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características “ruins” de sua porção “pior” – de sua minoria anômica. Em contraste, a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar, mais “nômico” ou normativo – na minoria de seus “melhores” membros. Esta distorção pars pro toto, em direcções opostas, faculta ao grupo estabelecido provar suas afirmações a si mesmo e aos outros; há sempre algum fato para provar que o próprio grupo é “bom” e que o outro é “ruim” (2000, pp. 22-23).

No caso do fenómeno dos sem-abrigo, devemos considerar quem vive na rua como o “grupo ruim” e os indivíduos domiciliados como o “grupo bom”. Obviamente, nenhum destes agregados constitui um grupo no sentido sociológico do termo. Antes, tanto eles quanto a relação entre eles devem ser entendidos como figurações, ou seja, como “redes de seres humanos interdependentes, com equilíbrios de poder assimétricos e em mudança constante [shifting]” (Van Benthem van den Bergh apud Norbert Elias Foundation, 2013). Deste modo, o argumento de Elias e Scotson (2000, pp. 22-23 et passim) é válido para o fenómeno dos sem-abrigo desde que o transponhamos para uma figuração de nível superior, como é o caso da sociedade, ultrapassando o nível inferior da figuração comunitária estudada pelos autores.

A postura eliasiana é um modo de conceber o mundo como agregação progressiva de figurações de diferentes ordens de complexidade, integração e organização (Elias, 1997, 2002, 2004, 2005, 2006; Elias e Scotson, 2000). A realidade é, para Elias, um enorme conjunto de interdependências em mutação perpétua e não planeada. Várias figurações de ordem inferior interpenetram-se, encadeiam-se, integram-se, equilibram-se com diferentes níveis de poder relativo e organizam-se para formar figurações mais complexas – a realidade local, o mercado laboral, os Estados nacionais, o mundo[5]. Estas últimas têm propriedades próprias, não derivadas de modo directo das primeiras, e modificam-se continuamente, influenciando a forma como as figurações de ordem inferior se podem encadear, integrar, equilibrar e organizar. O processo não é planeado por nenhum dos actores envolvidos. Antes, todos eles realizam planos próprios – todas as figurações de diferentes níveis procuram dirigir-se para determinado caminho – mas, uma vez que o processo é sempre interaccional, nenhum desses planos é inteiramente realizado. Os projectos individuais alteram-se em função das acções de outros indivíduos e, como consequência, o que é desejado por cada indivíduo particular nunca corresponde de modo exacto ao que ocorre na empiria[6].

No fenómeno dos sem-abrigo, o efeito-sinédoque deriva, em grande medida, do facto das suas representações dominantes serem influenciadas de modo desproporcional pelas partes mais visíveis da vida na rua e não terem em conta todo o resto do fenómeno, mais dificilmente observável. Uma parte substancial da realidade deste fenómeno tem um carácter pouco visível. Vários indivíduos sem-abrigo procuram apresentar uma aparência estética que não permita a sua identificação como alguém que vive na rua por transeuntes. Os espaços de pernoita na rua situam-se preferencialmente, por motivos de protecção e de privacidade, fora do olhar dos cidadãos domiciliados. A esmagadora maioria das pessoas que vivem na rua não são identificáveis como «sem-abrigo» por quem com elas se cruza. Porém, ao mesmo tempo, a existência de sujeitos sem-abrigo é inegável, e a academia e os media, entre outros actores, contribuem para lembrar os cidadãos domiciliados, de modo pontual, que há quem não tenha casa. Assim sendo, os indivíduos domiciliados (onde se incluem os representantes da academia, dos media, do Estado e partidos políticos) tenderão a associar todo o fenómeno dos sem-abrigo às demonstrações de sofrimento mais visíveis que este produz, aos poucos sujeitos que, por diversas razões, são momentaneamente incapazes de esconder a sua pobreza, a sua indignação, a sua fome, o seu sentimento de injustiça, os efeitos do consumo de álcool ou de drogas. Como Phelan et al. defendem,

as percepções sobre as pessoas sem-abrigo têm elevada probabilidade de serem fortemente influenciadas por um pequeno número de indivíduos sem-abrigo muito visíveis – visíveis quer nos media quer na sua comunidade local – que se tornam salientes devido ao seu comportamento ou aparência perigosa, disruptiva ou inestética (1997, p. 325).

Deste modo, os atributos altamente estigmatizados de uns poucos são transmitidos por «osmose representacional» para todos os indivíduos que vivem na rua. Os muitos sujeitos sem-abrigo que são relativamente indistintos dos cidadãos domiciliados passam, então, a ser representados através dos comportamentos e aparências mais atípicas apresentados por uns poucos indivíduos sem-abrigo, o que tem como efeito a desvalorização estatutária de todos os «sem-abrigo».

O «alcoolismo» e a «toxicodependência» dos «sem-abrigo»

As formas discursivas discutidas, simplificando a realidade empírica da vida na rua e desqualificando quem nela vive, contribuem para a perpetuação do fenómeno dos sem-abrigo. Para eliminar este fenómeno, é preciso ir para além do efeito-sinédoque. Como afirma Blau, ao falarmos do fenómeno dos sem-abrigo,

temos primeiro de desacreditar vários mitos. Um mito é o de que as pessoas sem-abrigo são doentes mentais. Outro é o de que as drogas e o álcool são as causas primárias do fenómeno dos sem-abrigo. Um terceiro é o de que os sem-abrigo são inadaptados preguiçosos que causaram a sua própria situação [brought their plight upon themselves]. Todas estas explicações partilham a crença (…) comum de que as pessoas pobres são de algum modo responsáveis pela sua pobreza. O crescimento rápido da população sem-abrigo[7] representa uma oportunidade maravilhosa para testar esta proposta, dado que requer que os seus crentes argumentem que, devido a alguma razão misteriosa, um grupo significativo de cidadãos subitamente se tornou irresponsável ao mesmo tempo (1992, p. IX).

Torna-se, assim, fundamental analisar criticamente as características individuais negativas recorrentemente atribuídas aos actores sem-abrigo, e os supostos elevados e generalizados consumos de álcool e drogas ilegais entre quem vive na rua são um ponto de entrada na discussão tão válido como qualquer outro.

Alguns indivíduos que vivem na rua consomem álcool ou drogas ilegais. Alguns consomem estas substâncias em excesso. Nenhuma destas afirmações equivale a dizer que todos os indivíduos sem-abrigo têm dependências de uma ou mais destas substâncias. O uso de álcool e de drogas entre os indivíduos sem-abrigo é profundamente heterogéneo e não é tão disseminado quanto muitas das representações sobre o fenómeno afirmam (Blau, 1992; Snow e Anderson, 1993; Beck, Legleye e Spilka, 2006; Johnson e Chamberlain, 2008; Lyon-Callo, 2008; Gowan, 2010). Partir do facto de que alguns sujeitos sem-abrigo consomem álcool ou drogas para uma afirmação deste consumo como causa do fenómeno é um non sequitor, lógica e empiricamente inverificável. Adicionalmente, estes consumos heterogéneos têm de ser enquadrados no contexto de dominação da vida na rua e é necessário distinguir entre «uso» e «abuso». Ninguém que tenha uma casa é considerado alcoólico por beber uma cerveja, mas um indivíduo sem-abrigo que pernoite num centro de acolhimento pode ser proibido de aí entrar ao final do dia por ter consumido uma pequena quantidade de álcool, mesmo que tal não provoque um comportamento que perturbe os outros sujeitos que aí pernoitam (e.g., Lyon-Callo, 2008, p. 59). A quem vive na rua é negada representacional e institucionalmente a possibilidade (a capacidade) de fazer um uso esporádico das substâncias recreativas da sociedade domiciliada. Na rua, todo o «uso» é transformado em «abuso», é percebido como indicador de uma dependência. Para mais, para que seja possível afirmar que estes consumos são «elevados», «frequentes», «generalizados» ou que constituem «dependências», é fundamental averiguar a incidência destes consumos entre a população domiciliada, de modo a podermos compará-la com a realidade da vida na rua. Como Young afirma, “nós sorvemos os nossos gins tónicos e tomamos valium em alturas de stress, enquanto que eles, Deus os ajude, drogam-se” (2007, p. 203).

Dois problemas levam a que se considere o consumo de álcool e drogas (bem como a «doença mental») como uma causa para o fenómeno dos sem-abrigo: (1) as más definições e estimações dos consumos entre os indivíduos sem-abrigo, raramente se comparando a suposta incidência deste problema na população que vive na rua com os níveis de consumo entre a população domiciliada; (2) e a confusão analítica entre «causas» e «efeitos» da vida na rua. Como Blau afirma,

a investigação nas ciências sociais (…) consistentemente transforma características demográficas em causas do fenómeno dos sem-abrigo. Muitos alcoólicos vivem em casas e algumas pessoas domiciliadas são emocionalmente perturbadas. Em nenhum dos casos um atributo demográfico – abuso de substâncias ou doença mental – é usada como uma explicação para o seu estatuto domiciliado. Qualquer análise cuidadosa do poder destes atributos para “explicar” o fenómeno dos sem-abrigo requer uma comparação da sua incidência no resto da população. Ela também exige provas de que eles são realmente causas do fenómeno dos sem-abrigo e não uma das suas consequências.

Esta última exigência vai no sentido oposto da argumentação habitual, que procede automaticamente do atributo para a causa. Ela supõe que, se alguém é emocionalmente perturbado, é a sua perturbação emocional que o torna sem-abrigo. Mas o fenómeno dos sem-abrigo é em si mesmo extremamente perturbador, e poucas pessoas poderiam ser sem-abrigo por qualquer período de tempo sem que isso afectasse o seu comportamento (Blau, 1992, pp. 17-18).

O consumo de álcool ou de drogas é não é uma causa do fenómeno dos sem-abrigo. Admitamos que podem haver casos em que o consumo de álcool ou de drogas contribua para rupturas na rede familiar ou de amizades dos sujeitos ou que contribua a perda de um emprego. Admitamos ainda que, como consequência dessas rupturas, alguns sujeitos se tornem «sem-abrigo». Ora, as causas da chegada à rua em tais trajectos biográficos tipificados não são os consumos mas as características das redes relacionais a que os indivíduos pertenciam ou do mercado de trabalho, que se revelam incapazes de garantir aos indivíduos a protecção de que necessitam.

O que todos os indivíduos sem-abrigo têm em comum – para além do rótulo – é a pobreza extrema. Representar os «pobres» como «bêbados» ou «drogados» denota um preconceito classista incapaz de observar que, verosimilmente, a pobreza pode mesmo ser inibidora do consumo regular de grandes quantidades de álcool ou de drogas. Como Orwell observou,

quando tomamos a ideia segundo a qual todos os vagabundos são bêbados e a examinamos por um momento, ela torna-se ridícula. Não há dúvida [sic] de que muitos dos vagabundos beberiam bastante se tivessem ocasião para isso, só que está na natureza das coisas que essa ocasião não se lhes proporcione. Nos dias que correm, o litro da solução aguada e pálida a que chamam cerveja custa, em Inglaterra, sete pence. Uma bebedeira de cerveja custaria pelo menos, por esta tabela, meia coroa, e um homem que dispõe regularmente de meia coroa para beber não é um vagabundo (2003, p. 256).

Adicionalmente, o consumo de drogas ou de álcool funciona como um mecanismo de socialização entre indivíduos sem-abrigo (Beck, Legleye e Spilka, 2006; Johnson e Chamberlain, 2008)[8]. Em situações de vida na rua caracterizadas pela ruptura ou enfraquecimento dos laços com os indivíduos próximos com os quais os sujeitos se relacionavam antes de serem «sem-abrigo», os novos contactos estabelecidos já na rua são, muitas vezes, as únicas pessoas com quem estes sujeitos se relacionam regularmente (Snow e Anderson, 1993; Gowan, 2010; Aldeia, 2011). O álcool e as drogas aparecem nestas relações desenvolvidas na rua como «facilitadores de interacção» entre os indivíduos.

No caso do consumo de álcool deve ainda ser tido em conta que esta substância tem valor calórico e, como tal, protege – ainda que pouco – do frio intenso que quem vive na rua é forçado a sofrer em certas alturas do ano, sobretudo, tendo em conta que, muitas vezes, estes indivíduos passam fome, não obtendo as calorias necessárias para sobreviver em baixas temperaturas pelo consumo de comida (Gaboriau e Terrolle, 2007, p. 47)[9]. Como um indivíduo sem-abrigo disse a Garnier-Muller: “já dormi na neve com um frio intenso! Eu devo a minha vida ao álcool!” (2000, p. 155).

Há, contudo, um factor de visibilidade que potencia o efeito-sinédoque: uma parte dos consumidores habituais de drogas duras ou de álcool acaba por apresentar uma aparência inestética (pelos padrões domiciliados) ou comportamentos que se destacam em espaço «público», levando a que sejam reconhecidos pela população domiciliada que com eles se cruza como «sem-abrigo». Sendo estes os «sem-abrigo» que os transeuntes identificam, todos os «sem-abrigo» passam a ser representados a partir das características destes poucos com muita visibilidade.

A «doença mental» dos «sem-abrigo»

O número de indivíduos sem-abrigo que padecem de doenças mentais é muito exagerado no imaginário colectivo, pelos media, pela profissão médica, pela «assistência» e pela academia (Blau, 1992, pp. 77 et seq.; Snow e Anderson, 1993, pp. 211 et passim; Bresson, 2003). Tal exagero decorre grandemente de um problema de definição. Isto implica saber quem tem poder para definir outrem como «doente mental» mas também de que forma um sujeito é assim definido (segundo que critérios). Como afirma Blau, “os sem-abrigo são inegavelmente pobres; é demasiado conveniente politicamente que eles sejam também doidos” (1992, p. 77). A conveniência política da rotulagem dos «sem-abrigo como doentes mentais» torna fulcral analisar esta representação.

Vários estudos sobre o fenómeno dos sem-abrigo mobilizam critérios discutíveis na sua definição de «doença mental». A título exemplificativo, é usual a classificação dos indivíduos sem-abrigo como «doentes mentais» caso estes tenham sido diagnosticados como detentores de um problema psiquiátrico, psicológico ou emocional, ou caso tenham recebido ajuda de profissionais da área da doença mental em qualquer ponto da sua vida, mesmo que tenha sido há décadas e antes da sua chegada à rua (Bresson, 2003, p. 314). Assim, é possível avançar a hipótese de que, ao contrário da população que permanece domiciliada, que pode, eventualmente e em alguns casos, desligar-se do rótulo de «doente mental», esta etiqueta parece acompanhar os indivíduos sem-abrigo durante toda a vida, mesmo que o problema concreto que motivou o acompanhamento por profissionais da área da saúde mental tenha há muito sido «debelado».

Grande parte dos indivíduos sem-abrigo são diagnosticados como «doentes mentais» devido ao consumo de álcool e/ou drogas (Snow e Anderson, 1993; Bresson, 2003, p. 314; Lyon-Callo, 2008; Gowan, 2010). Ora, como foi visto, a própria representação do que é «consumir substâncias» é particular no fenómeno dos sem-abrigo, transformando narrativamente o «uso» em «abuso», levando a que, deste modo, haja um número significativo de indivíduos sem-abrigo rotulados como «doentes mentais» devido ao seu uso esporádico de álcool ou de drogas. Porém, mesmo tendo em conta somente os sujeitos que realmente têm uma dependência de álcool ou drogas, não se pode ignorar que, como foi referido, estas desempenham uma função enquanto «mecanismo de socialização na rua» (Beck, Legleye e Spilka, 2006; Johnson e Chamberlain, 2008). Dado que o seu uso, muitas vezes, se inicia ou intensifica por motivos de socialização, temos de admitir que ele não provém de uma qualquer patologia individual que predispõe um sujeito para determinada dependência.

O efeito-sinédoque é visível na atribuição do rótulo de «doente mental» aos «sem-abrigo» (Blau, 1992, pp. 77-90). Uma parte reduzida dos indivíduos sem-abrigo apresenta patologias mentais graves e muito visíveis, tornando-se ruidosos ou esteticamente identificáveis com facilidade. A esmagadora maioria da população sem-abrigo não é tão identificável como «sem-abrigo», sendo que grande parte das pessoas que vivem na rua incomodam pouco os transeuntes domiciliados e procuram activamente manter um aspecto visual que não permita que os desconhecidos as reconheça como «sem-abrigo», tentado proteger-se do estigma associado a esta posição social dominada (Gaboriau, 2004, pp. 115-116; Damon, 2008, p. 3; Gaboriau e Terrolle, 2009; Aldeia, 2011). Porém, dado que uma patologia mental grave se pode traduzir num atributo de grande visibilidade, o problema de uma minoria vai afectar «por contágio» todos os outros indivíduos que vivem na rua. Enquanto categoria, os «sem-abrigo» passam, assim, a ser percebidos como «doentes mentais». Por este motivo, os indivíduos que não têm problemas de saúde mental e que procuram passar despercebidos para não serem identificáveis como pertencendo à categoria, caso sejam apesar disso identificados como pessoas que vivem na rua, passam automaticamente a ser representados através do atributo da minoria (Blau, 1992, pp. 77-90; Bresson, 2003, p. 322).

Adicionalmente, a atribuição de um rótulo de «doença mental» a certos comportamentos de quem vive na rua é, muitas vezes, baseada em descrições de terceiros ou em observações imediatistas e sem o cuidado de enquadrar esse mesmo comportamento num contexto e trajectória de vida. Como Snow e Anderson afirmam, “os comportamentos não podem ser entendidos fora dos contextos sociais em que ocorrem. Isto sugere que os comportamentos dos sem-abrigo devem ser vistos, primeiro e sobretudo, como adaptações a exigências ambientais” (1993, p. 38). A projecção da aparência de doença mental pode ser uma estratégia dos indivíduos sem-abrigo de para garantirem um mínimo de privacidade em espaço «público» (Snow e Anderson, 1993; Meert et al. 2006). Numa lógica goffmaniana (Goffman, 1993), a forma como os indivíduos se apresentam em público pode ter a intenção de estimular a evitação dos transeuntes (domiciliados ou não), de modo a ganhar algum espaço pessoal onde possam proteger-se de agressões e de incómodos. Como Goffman (1990) observa, os indivíduos estigmatizados têm, em geral, consciência do seu estatuto estigmatizado e aprendem a geri-lo quando interagem com outros sujeitos. Em grande medida, essa gestão do estigma é feita através de diferentes usos dados pelo actor portador do estigma aos “ símbolos do estigma” [stigma symbols] (Goffman, 1990, p. 59) que permitem que outrem os classifique como pertencendo a uma categoria estigmatizada. Aos indivíduos sem-abrigo pode ser conveniente ocultar estes símbolos mas, por vezes, torná-los bem visíveis para que sejam deixados em paz pelos transeuntes não é menos funcional e racional. Dado que estes sujeitos não possuem um espaço «privado» em que possam descansar ou sentir-se protegidos, têm de procurar produzir de forma activa um espaço de privacidade relativa dentro do espaço público (Snow e Anderson, 1993; Pichon, 1996; Memmi e Arduin, 2002; Pichon, 2002; Proth e Joseph, 2005). Para o fazer, são muitas vezes forçados a mostrar-se ruidosos, agressivos, a agir como «loucos», para que os transeuntes não se aproximem deles. Como Meert et al. descrevem: “uma respondente [sem-abrigo] da Noruega dorme com uma barra de ferro ao seu lado e age como se fosse doida para afugentar as pessoas [to scare people away]” (2006, p. 31).

A vida na rua, devidos às privações, fome, cansaço, insegurança e medo que causa em quem a experiencia, compreensivelmente, leva a que muitos dos indivíduos sem-abrigo tenham, com frequência, reacções e comportamentos sobressaltados e a que, de forma não menos compreensível, muitas destas pessoas se apresentem taciturnas, impacientes, por vezes, sem vontade de interagir com outros sujeitos, quer estes sejam transeuntes ou profissionais da «assistência». Por um processo que desconsidera totalmente o contexto estrutural e interaccional da vida na rua, é frequente que estes sentimentos e comportamentos sejam interpretados (por profissionais do sector da saúde mental ou por pessoas sem qualquer formação nesta área) como sintomas de «depressão e ansiedade» em quem vive na rua, denotando um enviesamento classista que analisa a rua com grelhas sociais e cognitivas adaptadas à compreensão de pessoas (das classes médias e elites) domiciliadas. Estes sentimentos e comportamentos observáveis na rua não são indicadores de problemas de saúde mental de indivíduos. Tal não significa que não expressem profundos níveis de sofrimento dos indivíduos sem-abrigo. Mas não são causas da chegada nem da permanência na rua, levando a que a seja impossível ultrapassar esse sofrimento intervindo individualmente sobre cada pessoa sem-abrigo. Os comportamentos e reacções sobressaltadas, taciturnas ou impacientes de quem vive na rua são expressões de uma organização estrutural injusta que se materializam sobre corpos individuais. São consequências sobre os indivíduos de uma ausente ou insignificante protecção garantida pelo mercado, pelo Estado ou pelas redes sociais a que os indivíduos sem-abrigo pertencem. Não sendo características individuais mas consequências sobre os indivíduos, é impossível resolvê-las individualmente na medida em que uma tal intervenção deixe intocados os problemas estruturais de onde essas consequências derivam.

Tão ou mais problemático do que este enviesamento classista é o facto de, depois deste ocorrer, estes «sintomas de ansiedade e depressão» sejam agregados numa categoria de «doença mental» que inclui também patologias mentais graves como, por exemplo, psicoses – que não são particularmente significativas entre os indivíduos sem-abrigo (Blau, 1992; Snow e Anderson, 1993; Zeneidi-Henry, 2002; Bresson, 2003; Lyon-Callo, 2008). Esta agregação é um erro crasso frequentemente cometido por muitos profissionais das áreas da «assistência» ou da saúde mental. Repetindo: a dureza da vida na rua é claramente o factor explicativo da «depressão» e da «ansiedade» que vários indivíduos sem-abrigo experienciam (Blau, 1992; Snow e Anderson, 1993; Zeneidi-Henry, 2002; Bresson, 2003; Lyon-Callo, 2008; Gowan, 2010). O que há de verdadeiramente espantoso não é que hajam muitos indivíduos «ansiosos e deprimidos» por viverem na rua mas que nem todos os sujeitos sem-abrigo apresentem comportamentos e reacções passíveis de serem lidas como tais sintomas (Gaboriau e Terrolle, 2007, p. 12). Mas não ignoremos que rotular os indivíduos sem-abrigo como «doentes mentais» tem efeitos sistémicas ao nível da perpetuação do nosso modelo societal e de salvaguarda das instituições políticas e económicas: “Diagnosticar os sem-abrigo como doentes mentais rotula-os como diferentes e justifica a sua separação da sociedade. Nenhuma outra solução deixa as instituições políticas e económicas (…) tão intactas” (Blau, 1992, p. 77).

Para além da sinédoque

Os actores sem-abrigo não correspondem aos sujeitos que os discursos e práticas medicalizantes e repressivas constroem. Na rua não vivem seres estranhos, fundamentalmente diferentes de uma normalidade-padrão (ontológica, sociocultural e/ou biológica) que possamos encontrar na sociedade domiciliada. As narrativas (académico-científicas e outras) que enfatizam quaisquer características negativas essencialistas de «sem-abrigo tipo(s)» têm como principal efeito legitimar o status quo do fenómeno dos sem-abrigo. Elas responsabilizam quem vive na rua por viver na rua, negando as dimensões estruturais do fenómeno. Graças a elas, os mercados habitacional e laboral continuarão desregulados, organizados de um modo que não permite a quem vive na rua aceder a casas e empregos dignos. Do mesmo modo, as políticas públicas permanecerão direccionadas para lidar com o que se percebe como realmente problemático: os consumos de drogas ilegais e de álcool e as patologias mentais dos indivíduos sem-abrigo, que continuarão a ser tidos como principais (quando não exclusivas) causas da chegada e permanência na rua.

O efeito-sinédoque funciona sistemicamente de modo a permitir representações simplificadas de realidades complexas. Torna os problemas de alguns sujeitos desqualificados nos problemas de todos os sujeitos desqualificados, negando os problemas da maioria pela acentuação e difusão representacional dos de minorias com grande visibilidade. Por simetria, a desqualificação de quem vive na rua é fundamental à elevação estatutária de quem tem casa. Se várias características negativamente valorizadas são apontadas como traços definidores dos «sem-abrigo», elas são também tacitamente negadas aos «abrigados». As «doenças mentais», «dependências de substâncias» e «amoralidade» de quem vive na rua são o contraponto da maior «saúde mental» e «ética de trabalho» dos sujeitos com casa, tidos como essencialmente morais. Analisar as dimensões estruturais do fenómeno dos sem-abrigo é conditio sine qua non da desconstrução deste modelo dicotómico. Um dos passos fundamentais para uma solução do fenómeno que melhore as condições de vida de quem é «sem-abrigo», que elimine a sua desqualificação estigmatizante essencialista e lhes permita aceder aos recursos materiais fundamentais para viver com dignidade, é a construção de narrativas que dêem conta da complexidade e heterogeneidade do fenómeno, bem como, indo para além do dualismo, abordem as múltiplas ligações existentes entre «com» e «sem-abrigo».

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[1]Agradeço a Sílvia Portugal pela leitura atenta e sugestões. Todos os problemas que permaneçam são da minha inteira responsabilidade.

[2]Todas as citações em língua que não o português foram por mim traduzidas.

[3]Pelo menos, nas suas versões mais habituais. Estes tipos ideais narrativos são, como é óbvio, empiricamente heterogéneos e esta tipologia, como qualquer outra, é uma simplificação da complexidade da realidade. Deste modo, são encontráveis versões do discurso-sistémico que, vendo os indivíduos sem-abrigo como vítimas da organização estrutural da sociedade, não lhes negam a sua capacidade de acção e reflexividade (e.g., Snow e Anderson, 1993; Zeneidi-Henry, 2002; Lyon-Callo, 2008; Gaboriau e Terrolle (org.), 2009; Gowan, 2010).

[4]Sobre o conceito de master status, cf. Hughes (1945). Ver também Becker (1973, pp. 33 et seq.)

[5]Tal não significa que as figurações de ordem superior sejam sempre mais complexas, integradas e organizadas do que as figurações de ordem inferior que as compõem. Cf. Elias (1997, p. 59).

[6]Cf. Elias (2005, pp. 77-112) para uma explicação deste processo em termos de modelos de jogos.

[7]Sic. Os problemas da quantificação do fenómeno dos sem-abrigo são vários (Gaboriau, 2004; Aldeia, 2012), pelo que se torna impossível afirmar peremptoriamente que o número de pessoas a viver na rua está a aumentar (ou a diminuir, ou estabilizado). O que podemos afirmar é que a visibilidade do fenómeno aumenta.

[8]Tal como ocorre entre indivíduos domiciliados.

[9]Qualquer leitor/a que, perante este argumento, pense que o dinheiro gasto em álcool poderia ou deveria ser «melhor» gasto em comida deve ter em mente que um litro de vinho é substancialmente mais barato do que uma refeição.

Autores: João Aldeia