Nº 9 - maio 2015
Andreia Melo, aluna do 3º ano do curso de sociologia pós-laboral do ISCTE-IUL.É formadora e angariadora imobiliária numa empresa de vendas imobiliárias, com a qual colabora há 14 anos.
Resumo: Este artigo propõe-se estudar a importância da educação numa prática aparentemente distante do circuito académico, como é a profissão do agente imobiliário. Analisa-se a importância do percurso académico no sucesso profissional e evolução de carreira nesta atividade. A análise é desenvolvida tendo como base empírica dados de um inquérito aplicado aos 50 melhores vendedores portugueses da empresa em referência, em 2008 e 2013. Numa segunda abordagem, sustentada em entrevistas diretivas, comparam-se as experiências de dois diplomados (em sociologia e engenharia) com as de um agente com formação de nível secundário, procurando analisar quais os traços que os diferenciam mutuamente.
Palavras-Chave: formação escolar; vendas imobiliárias; sucesso profissional; sociologia.
Abstract: This article analyzes the importance of education in the real estate agent, an occupation seemingly distant from the academic circuit. The goal is to analyse the importance of university level education in the professional success and career evolution for these professionals. This analysis is based on a survey applied to the 50Portuguese best sellers of a real estate company, in 2008 and 2013. In a second qualitative approach, supported in directive interviews, we compare the experiences of two graduates (in sociology and engineering) with an agent with secondary level of education. At this stage, we try to analyse the features that differentiate these sellers.
Keywords: school training; real estate sales; professional success; sociology.
Introdução
A generalidade dos livros de técnicas de vendas tendem a remeter para o mesmo género de pensamento: “A venda é um domínio que respeita a cada um de nós, sob uma forma ou outra. Quer seja a título profissional ou pessoal, ninguém escapa à necessidade de vender; pedir um aumento de salário, seduzir um homem, uma mulher, discutir um assunto qualquer, é vender o seu profissionalismo, a sua personalidade, o seu encanto, as suas ideias” (Aguilar, 1992, pp. 14). Ou seja, indica-nos que, mais do que as vendas existirem em toda as áreas da vida do indivíduo, as capacidades de venda podem ser desenvolvidas por qualquer indivíduo independentemente da sua formação de base. Quando olhamos para o sector das vendas imobiliárias, percecionamos que não há qualquer obrigatoriedade de formação formal para o exercício desta profissão.[1]
Desde há décadas se verifica que, “em termos puramente estatísticos, a crescente importância do “sector terciário” é dada, entre outros indicadores, pelas percentagens de 50% a 75% da população ativa que lhe está afeta nas sociedades avançadas (…) movimento a que, naturalmente, a União Europeia não ficou alheia.” (Almeida, 2007, pp. 146)Na conjuntura atual no nosso país, marcada pela crise instalada desde 2008, há um desafio crescente de empregabilidade, e a área comercial constitui-se como uma plataforma onde afluem muitos dos recém-chegados ao trabalho, entre outros em transição profissional que procuram oportunidades de reconversão do seu perfil como trabalhadores ativos (INE, 2012b).
Nesta sequência, e no que concerne especificamente ao exercício da atividade profissional no setor, é pois relativamente comum encontrarmos alguma variabilidade nos perfis de qualificação dos agentes aí empregues. Isto mesmo em relação ao setor das vendas imobiliárias – incluído na classificação de profissões no agrupamento das profissões técnicas, “das ciências, engenharias de nível intermédio”[2]. Sendo tal variação ainda potencialmente alargada pelo facto de a formação formal requerida para o exercício desta profissão ser a “escolaridade mínima obrigatória e formação inicial e contínua adequadas” ou “Quando a escolaridade mínima obrigatória for inferior a nove anos de escolaridade, deve ainda o interessado fazer prova da posse de três anos de experiência profissional adequada”(DR, 2004).
Tal é aliás observável no terreno. Como agente imobiliária e formadora de técnicas de vendas numa das maiores empresas do sector, lido pessoalmente com os recém-chegados e apercebo-me que nestes novos fluxos, para além de um crescente número de indivíduos com ensino superior, incluindo doutorados de várias áreas, o peso dos que detêm níveis de escolaridade básica, desde o 3º ciclo de escolaridade, é ainda expressivo, denunciando um perfil qualificacional da população ativa em Portugal ainda algo deficitário na comparação com outros países europeus (Martins, 2012).
Os dados do último recenseamento geral da população (INE, 2012a) indicam que, em Portugal, cerca de 15% da população com 23 ou mais anos completou o ensino superior; 32% da população com 18 ou mais anos completou pelo menos o ensino secundário; e 50% da população com 15 ou mais anos completou pelo menos o 3º ciclo do ensino básico.
Perante esta diversidade que pauta a área das vendas, em particular a área técnica da angariação imobiliária, propomo-nos, em primeiro lugar, determinar em que medida o grau de escolaridade é um fator relevante no desempenho profissional dos agentes imobiliários. Qual a importância das qualificações formais para a evolução profissional do indivíduo, e nomeadamente no acesso a posições sociais reconhecidas? Num segundo plano, procura-se ainda perceber em que medida o campo das vendas imobiliárias, por excelência uma área que implica competências relacionais acrescidas, é também um espaço potencial de acolhimento de diplomados em sociologia. Nesta segunda vertente analítica, iremos comparar a performance profissional e estatuto profissional de um vendedor com formação em sociologia, com as experiências de outro detentor de formação inicial em engenharia e um terceiro que detém apenas o nível secundário de ensino.
No plano substantivo, a análise desenvolvida está suportada na exploração dos dados recolhidos junto de uma empresa imobiliária multinacional; na minha experiência profissional enquanto angariadora e formadora em técnica de vendas (13 e 7 anos de experiência, respetivamente) e ainda em entrevistas semi-estrutradas, realizadas a três angariadores imobiliários. De notar ainda que os três entrevistados são colegas de trabalho, exercendo atividade na mesma empresa onde os dados quantitativos foram recolhidos. Nestes testemunhos, procuramos compreender a perceção que têm das posições sociais que ocupam, e até que ponto é que a educação adquirida é operacionalizada enquanto capital técnico e científico e cultural, contribuindo, ou não, para a sua posição social atual. Por outro lado, iremos de forma específica, analisar o que é a sociologia do ponto de vista de quem a exerce neste contexto profissional específico (Costa, 2001), quais as competências que ela traz ao angariador imobiliário, diferenciando-o em relação a licenciados em outras áreas.
Anthony Giddens refere-nos que “os atores sociais têm incorporado no seu quadro de valores e representações as próprias condições estruturais em que vivem (…) mas ao mesmo tempo, as condições estruturais incorporadas não são senão o resultado da própria ação social e do sentido que nela investem os seus protagonistas, portadores de uma “autorreflexividade” sempre potencialmente inovadora.” (Giddens, 1980,em Mauritti, 2003, pp. 103). Esta autorreflexividade, referida pelo autor, é potencialmente incrementada no seu exercício ativo, nomeadamente quando as pessoas possuem mais formação. É nesta ótica, que iremos analisar e desconstruir de que forma a formação formal se relaciona com o posicionamento social, as representações e expectativas dos agentes.
Objeto de estudo: o angariador imobiliário
Segundo a Classificação Portuguesa de Profissões de 2010, a profissão de agente imobiliário pertence ao Grande Grupo 3 (técnicos e profissões de nível intermédio), ao Sub-Grande Grupo 33 (técnicos de nível intermédio, das áreas financeira, administrativa e dos negócios, Sub-Grupo 333 (agentes de negócios) e Grupo Base 3334 (agente imobiliário e gestor de propriedades). No descritivo genérico das tarefas e funções específicas inerentes a esta atividade aponta-se como principais práticas:
“obter informações sobre os bens imobiliários para vender ou alugar, condições do proprietário e necessidades do comprador ou arrendatário; Mostrar e explicar os bens imobiliários a vender ou alugar aos possíveis compradores ou arrendatários; apoiar as negociações entre arrendatários e proprietários nas rendas e outras despesas; elaborar acordos de arrendamento ou venda e estimar os custos; organizar a assinatura de contratos de arrendamento e transferência de direitos de propriedades; cobrar rendas e obrigações monetárias por conta do proprietário e verificar bens imobiliários antes, durante e após arrendamento”(INE, 2011, pp. 227-8).
A legislação portuguesa, com o Decreto-Lei 211, publicado em 2004, conferiu ao angariador imobiliário uma credibilidade profissional bastante acentuada definindo que “A atividade de angariação imobiliária é aquela em que, por contrato de prestação de serviços, uma pessoa singular se obriga a desenvolver as ações e a prestar os serviços previstos (…)”, devendo o angariador, conforme refere o Decreto-Lei 69 de 2011 “ser empresário em nome individual,…”. Este Decreto-Lei inicial foi para os profissionais desta área um avanço substancial através do seu reconhecimento jurídico e respetiva inserção na tutela do InCI – Instituto da Construção e do Imobiliário, a entidade reguladora destes dois sectores.
No meio imobiliário, este quadro legal serviu para promover um reconhecimento social de uma nova fase desta profissão: se até lá os angariadores eram trabalhadores técnicos por conta de outrem, a partir daí eram reconhecidos como técnicos autónomos numa prestação de serviços, dotando-os da obrigatoriedade de formação contínua. Também ficou regulada a obrigação de formação formal (ainda que em défice a meu ver), para o exercício da atividade: “a capacidade profissional consiste na posse de escolaridade mínima obrigatória e formação inicial e contínua adequadas (…) Ficam dispensados de comprovar formação inicial os interessados que possuam grau de bacharel ou de licenciado”(DR, 2004), sendo acrescentado em 2011 “de bacharel ou de licenciado ou de mestre…”, refletindo alterações que decorrem da implementação do referido processo de Bolonha na acreditação de níveis de formação superior; entre os quais ganham relevo crescente indivíduos com estudos ao nível de pós-licenciatura.
Ranking dos melhores vendedores em 2008 e 2013:estudar vale a pena
Para compreender melhor até que ponto a formação de base tem importância no desempenho e consequente sucesso do profissional de vendas, foram utilizados no estudo os rankings nacionais de fecho de ano da empresa em referência, relativamente a dois anos, 2008 e 2013. Esta seleção procura introduzir uma perspetiva comparativa diacrónica sobre o período recente de crise económica: 2008 o “ano da crise”, que colocou enormes desafios nesta área, 2013, o último para o qual existem dados. Dentro do ranking, foram selecionados os “25 melhores vendedores”, aos quais aplicámos um pequeno inquérito com cinco questões específicas: sexo; idade; nível de escolaridade; antiguidade na empresa; e grau de satisfação em relação à atual profissão, tendo em conta a sua formação base (ver quadro 1).
No total, responderam ao inquérito 76% dos vendedores incluídos dos dois rankings anuais aqui em referência. Esta taxa de resposta é mais expressiva (88%) no segmento de indivíduos que se posicionam no ranking relativo ao último ano.
Apesar de não termos dados gerais sobre a empresa, é particularmente notória a prevalência de homens nos rankings de colaboradores que apresentam melhor performance em termos de volume de negócios. No total dos dois anos, este indicador remete-nos para uma tendência de reconfiguração entre os dois anos num reforço do sexo masculino. No que concerne tanto à média de idades (43 anos), como ao número de anos na empresa (6 anos), não existem diferenças nos dois períodos.
Relativamente à formação de base, denota-se também um reforço dos mais qualificados, sem contudo diminuir a presença de indivíduos com ensino básico. Relativamente aos licenciados, verifica-se uma variedade de áreas de formação, com prevalência para as áreas de gestão e marketing, que tiveram um reforço exponencial entre os dois anos. A sociologia não emerge nos descritivos como área de formação, embora possamos especular que pode eventualmente ter sido uma formação inicial, por exemplo, do mestre em análise de dados. É de acrescentar que todos os inquiridos, sem exceção, referiram trazer competências da sua formação para a sua atual atividade profissional.
Quanto ao grau de satisfação, é de realçar com nota positiva o aumento para a média 5 no último ano. No total, verifica-se uma ausência de repostas 0, 1 e 2, que facilmente se explica pelos lugares que ocupam no ranking interno da profissão.
Entre os inquiridos que responderam grau de satisfação três (4/16, em 2008; 2/22, em 2013), apenas um é licenciado (em engenharia naval). Este justificou a sua escolha, referindo que a profissão nada tem a ver com o curso. Para este agente, e tal como refere o Prof. António Firmino da Costa em relação à sociologia: “a matriz científica da formação de base apresenta-se como uma referência “em negativo”, algo a que se renuncia, ou que se rejeita, pelo menos no emprego, por não se encontrar maneira de transpor eficazmente os instrumentos e os produtos cognitivos (…) para a ação profissional” (Costa, 2004, pp. 52).
Quadro 1. Perfil dos vendedores com melhor volume de negócios, anos 2008 e 2013
De realçar ainda que relativamente aos inquiridos com formação de nível básico ou secundário, todos eles referiram, sem exceção, que com mais estudos, teriam certamente atingido ainda melhores resultados que os atuais. Não deixa de ser curioso que durante o inquérito, indivíduos na mesma situação, justificaram o seu grau de satisfação muito elevado, alegando precisamente o desajustamento, no caso acima das expectativas, entre a formação adquirida e o sucesso profissional alcançado. Citando a título exemplificativo uma das respostas: “onde poderia ter este tipo de rendimento com a escolaridade que eu tenho?”
No conjunto dos nomeados no ranking de “melhores vendedores” com perfis de formação de nível básico ou secundário, parece assim desenhar-se um padrão dual que, em todo o caso, denota uma opinião transversal por parte dos inquiridos de que estudar tende a fazer a diferença. Temos de um lado o sentimento de frustração de não ter prosseguido os estudos, os quais seriam agora uma fonte de evolução ou uma capacitação para o melhor desempenho na sua carreira e, por outro lado, a ideia de que a condição atingida configura um reconhecimento inesperado, já que tendo em conta os seus perfis de escolarização não esperariam ter tido acesso à posição social, de grande sucesso, que alcançaram. Quanto aos licenciados, com uma exceção, todos consideram que o facto de terem formação de nível superior é um fator que explica os seus resultados melhorados.
Agentes imobiliários: perfis e trajetórias
Numa perspetiva de aprofundamento dos dados obtidos através do inquérito, foram ainda realizadas três entrevistas a vendedores com perfis de formação diversificados, dos quais nenhum se encontra no ranking estudado anteriormente. Destes entrevistados dois têm diploma de nível superior (Engenharia química e sociologia) e um terceiro apenas concluiu o secundário.
Na análise que se desenvolve, procura-se identificar alguns dos “marcadores de trajetória” – incluindo aqui experiências e atributos significativos nas trajetórias profissionais preconizadas – e elementos de ligação à empresa e ao setor de mediação imobiliária. Através de uma compreensão sobre os recursos, práticas e orientações valorativas procuro perceber interligações entre experiência e formação; satisfação pessoal e expetativas de realização profissional
Henrique
- 38 anos
- Formação de base: Licenciado em Sociologia pelo ISMAT/Lusófona, em Portimão
- Há 13 anos na atual empresa
- Rendimento médio: escalão “2.500€ – 3.000€”
- Grau geral de satisfação em relação à atual profissão: 5
Henrique faz questão de referir que a sua trajetória académica foi fruto de uma forte preocupação social e uma enorme vontade de poder contribuir para uma sociedade mais justa. E considera ter sido uma opção acertada. Para Henrique, ser licenciado é uma vantagem em qualquer trajetória profissional. Concretamente, …a Sociologia a área que melhor nos permite compreender as dinâmicas e comportamentos dos grupos…, considerando que este é um dos fatores chave para o seu sucesso na gestão das relações com os clientes e os colegas. Diz que a sua formação ajuda-o a ter …uma perceção mais real da sociedade e das necessidades humanas. Apesar disto, dando conta da necessidade premente de constante atualização e ajustamento do perfil profissional aos desafios colocados, neste momento, encontra-se a aguardar um processo de equivalências para prosseguir com uma nova Licenciatura em Gestão de Recursos Humanos, considerando-a como fator fundamental para a expansão da sua empresa.
Tal como Filipe (entrevistado com formação inicial em Engenharia), também Henrique, num olhar focado nas suas experiências profissionais, relativamente diversificadas, refere que o seu percurso profissional não teve relação direta com o curso. Começou pela área hoteleira, onde exerceu diversas funções desde barman até diretor, e depois seguiu por outros sectores, mas sempre na vertente comercial ou em negócio próprio. Na avaliação que faz sobre as suas experiências, assinala que o que sempre motivou as diversas mudanças foram fundamentalmente a ambição e o desafio. Atualmente tem sociedade numa empresa de Mediação Imobiliária, sendo o responsável pelo recrutamento, formação e motivação da equipa comercial. Particularmente nesta posição, tem vindo a redescobrir a sociologia, colocando em prática muito do que aprendeu: desde as estatísticas, à seleção de pessoal, à motivação de grupos… passando pelos brainstormings ou definição de objetivos.
Filipe
- 40 anos
- Formação de base: Licenciado em Engenharia Química, ramo de Biotecnologia no IST, com pós-graduação em Gestão Empresarial no INDEG/ISCTE
- Formação complementar: técnicas de vendas no âmbito empresarial, programação neurolinguística, fotografia e desenvolvimento pessoal.
- Há 5 anos na atual empresa
- Rendimento médio: escalão “3.000€ ou mais”
- Grau geral de satisfação em relação à atual profissão: 4
A sua trajetória académica, por aquilo que me falou, não constituiu propriamente uma “escolha” efetivamente pensada e amadurecida: Eu acho que é difícil com 17 anos saber exatamente o que é que nós queremos fazer. Há pessoas que se calhar sabem, obviamente que sim, eu não …. Não deixa de ser curioso a relação (ou a falta dela) que o Filipe faz entre o curso que tirou e a sua atual profissão, … ou seja, eu não me arrependo de ter feito o curso que fiz, muito provavelmente, e tendo em atenção o que eu faço hoje qualquer curso que eu tivesse tirado se calhar não teria servido, ou não estaria exatamente a fazer aquilo que tivesse estudado. O Filipe problematiza assim uma visão estreita, relativamente partilhada, inclusive em alguns indicadores institucionais de referência, para a monitorização dos percursos profissionais dos diplomados pelo ensino superior, o qual questiona a adequação entre a educação e as funções desempenhadas pelos diplomados (ver por exemplo relatórios sobre empregabilidade publicados pelos ISCTE-IUL)[3].
Na sua trajetória profissional, entre as profissões que exerceu, considera que apenas durante um ano tive uma profissão que se poderia classificar como estando diretamente relacionada com o meu curso. Mas, dando conta que as escolhas e os projetos de formação/profissão estão em permanente ajustamento, refere que rapidamente saiu dessa atividade: Porque cheguei à conclusão que aquilo não era para mim. Passou por outras experiências, todas elas como empresário, nomeadamente nas áreas do catering, gestão de eventos e investimentos imobiliários, até à atual profissão de angariador imobiliário. Justifica o seu percurso empreendedor como uma necessidade de autonomia … eu senti novamente a necessidade de trabalhar para mim, de não estar dependente de outras pessoas…
Carlos
- 58 anos
- Formação de base: Curso Geral do Comércio e Secção Preparatória para os Institutos Comerciais, equivalente ao 11º ano, na Escola Industrial e Comercial de Matosinhos
- Formação complementar: “dezenas” (segundo o próprio) nas áreas comercial e de gestão dentro e fora das diversas empresas onde esteve.
- Há 12 anos na atual empresa
- Rendimento médio: escalão “900€ – 1.200€”
- Grau geral de satisfação em relação à atual profissão: 4
Descrevendo a sua trajetória no ensino, Carlos refere que frequentou os antigos 6º e 7º anos de liceu, ingressando depois num curso complementar de contabilidade e administração, que o entanto não concluiu. Mas faz questão de assinalar que a nível de formação complementar fiz algumas dezenas de formações profissionais (…) das quais destaco o Mestrado em Relações Humanas e Vendas, administrado pelo Dale Carnegie Institute Incorporated. É de realçar que não sendo este curso um mestrado no sentido formal (trata-se de um curso de curta duração, sem atribuição de grau), o entrevistado apresenta-o num enquadramento próprio ao ensino superior, o que remete para o reconhecimento que confere a este grau de ensino.
Profissionalmente, começou como estagiário de escritório, tendo depois passado por diversas empresas ao longo de 11 anos, sempre na área de contabilidade. Segue-se a entrada na área comercial, por desafio e ambição, passando por diversos sectores. No seu percurso profissional as experiências mais relevantes têm lugar no sector automóvel, onde permaneceu por 18 anos. Só depois entrou na área imobiliária, onde já desempenhou diversas funções, como gestor de equipa e diretor de agência, encontrando-se atualmente como angariador imobiliário. Ao longo de toda a entrevista, denotei nas reações que atualmente as suas motivações alteraram-se substancialmente, revelando uma prevalência para a vivência da vertente pessoal em relação à vivência profissional, como o próprio refere em relação aos seus projetos futuros: Manter os meus amigos, continuar a escrever os meus livros de poesia e viver tranquilamente.
Análise do percurso académico e profissional dos entrevistados
Com trajetórias académicas e profissionais diversificadas, os três entrevistados acentuam a “liberdade”, a “autonomia”, o “desafio” e a “ambição”, como fatores preponderantes de escolha para o exercício da profissão atual. Outro elemento comum é a concordância de que os rendimentos que auferem atualmente (bastante inferiores no 3º entrevistado) são adequados às funções, no sentido em que, como refere Carlos, depende apenas dos meus resultados e do meu empenho.
Além disso, todos referem a importância da sua formação inicial para o desempenho profissional atual. Henrique refere que a sociologia permitiu-me adquirir conhecimentos que hoje me são muito úteis nas relações com clientes e colegas”; já Filipe (o vendedor com formação em engenharia) refere que o que melhor o diferencia são as competências de numeracia: há uma coisa muito óbvia: os números (…) hoje em dia vivemos muito à base de comissões, (…) de rentabilidades, de taxas (…) e acho que sou bom com um cliente a perceber toda essa componente; finalmente Carlos, com um perfil de formação geral mais baixo, destaca na sua performance profissional atual a importância das formações complementares.
Não deixa de ser interessante compreender a abrangência do campo profissional em questão: do angariador imobiliário, e como ensinamentos de áreas tão diferentes conseguem ser transportados para esta profissão. Gostaria, ainda de salientar que se denota a importância do ensino na trajetória de vida e, nomeadamente profissional destes indivíduos, a saber: o único não licenciado sentiu a necessidade de formações complementares, às quais imprime um reconhecimento “superior” e considera-as de extrema importância para o seu trajeto profissional; ambos os licenciados concordam de forma mais ou menos explícita que, como refere Filipe: acima de tudo também tem mais a ver com o facto de tu gostares de saber, não é? (…) Repetir, aplicar a outras coisas, eu acho que isso também me acompanha aqui. (…) Tenho interesse em saber, em aprender, em perceber…, o que demonstra uma atitude concordante com o facto de no total dos rankings, anteriormente estudados, 58% dos vendedores com maior volume de negócios serem licenciados.
A sociologia nas vendas imobiliárias: uma visão de abrangência que desemboca na experiência pessoal
Segundo os censos de 2011, no total de 10169 pessoas diplomadas em Sociologia que exercem uma atividade económica, 815 pessoas ou seja, 8% enveredaram por áreas relacionadas com as vendas e o sector imobiliário, distribuídas pelas diferentes profissões conforme abaixo indicado (INE, 2011).
Esta percentagem, algo expressiva, indica que há uma fatia que envereda pelas vendas e quase metade (41%) pelo sector específico do imobiliário.
Figura 1: Os sociólogos nas vendas
Fonte: INE, Censos 2011 (cálculos próprios).
Com base na minha experiência pessoal como formadora e angariadora nesta área, concordo que, tal como Rui Brites Silva refere, “a formação académica em sociologia é das mais adequadas ao mercado de trabalho do terceiro milénio na área dos serviços (…) as competências requeridas se centram primordialmente, em aspetos de âmbito relacional, informativo e comunicacional embora, como se depreende, não descurem as competências técnicas inerentes ao exercício da profissão”(1998, pp.107).
Estes traços são particularmente relevantes na área das vendas, e encontram-se também patente nas entrevistas: Henrique determina saber comunicar com o mundo exterior, chegar aos grupos de clientes que nos interessam (…) tudo tem a ver com a sociologia neste ramo; já Filipe, sendo de uma área completamente distinta assume que acaba por procurar uma visão sociológica do cliente: … perceber as razões do cliente, o que é que o move e o que é que o faz fazer determinada coisa.
Enquanto formadora residente nesta empresa, desde 2008, em técnicas de vendas estive diretamente envolvida em dezenas de formações, as quais mobilizaram várias centenas de proponentes vendedores. Ao longo dos cursos, venho a notar uma grande diferença entre os formandos das áreas sociais face aos de outras áreas de formação académica. Isto tendo em conta, não só, a forma como abordam os diferentes aspetos da profissão, nomeadamente na relação com o cliente, bem como o trabalho em equipa. Com frequência, os diplomados em áreas como engenharias ou gestão estão mais centrados em aspetos “mais frios” da profissão: números, taxas de rentabilidade, quadros e gráficos que determinam os valores para os imóveis; já os diplomados com formação inicial em áreas das ciências sociais, são mais propensos a uma abordagem mais relacional e comunicacional. Tal é notório, por exemplo, na sensibilidade acrescida para a necessidade de compreensão do cliente em termos de estilos de vida e orientações valorativas.
Particularmente, no caso dos licenciados em sociologia, a procura de uma compreensão não apenas do cliente isolado, mas dos seus contextos e dos padrões de comportamentos sociais que o levam a agir de determinada forma. Como refere Rosário Mauritti (2011, pp. 29), a “casa, especialmente a residência principal, é ‘o centro do mundo’, o espaço a partir do qual os indivíduos e suas famílias constroem laços significativos consigo e com os seus contextos, permitindo-se uma abertura para a intimidade (…). Ela constitui, para muitos uma espécie de materialização da sua ‘verdadeira’ identidade.” Ter uma perceção mais clara sobre quem são os clientes, o tipo de família, idades, escolarização, capacidade económica e orientações de consumo, entre outros aspetos, é sem dúvida um elemento benéfico na adoção de uma estratégia para a venda. Neste ponto, em termos do seu perfil técnico-mercantil, os sociólogos com uma formação muito investida na compreensão destes traços, serão seguramente sempre candidatos a ocupar posições de excelência no ranking de vendedores, mesmo apesar de nos anos em referência esse não ter sido o caso. Este potencial da sua formação sendo transversal aos licenciados em sociologia, poderá, claro está, ser ainda incrementado, ou não, pelas chamadas soft skill, ligadas por exemplo, com a “responsabilidade”, “organização”, “autonomia” e, de forma mais geral, às competências relacionais e comunicacionais – entre as quais, particularmente, se inclui o domínio de línguas estrangeiras, cada vez mais relevante no mercado imobiliário, dado o incremento de procura de residência em Portugal por parte de cidadãos com outras proveniências. Para além destas competências podemos realçar fatores de personalidade, como o empenho e o gosto pela atividade.[4] Sobre as competências relacionais, a título ilustrativo, Carnegie, autor de um dos livros de referência na formação de técnica de vendas refere: “Alimente um desejo profundo, motivador, de dominar os princípios das relações humanas” (Carnegie, 1936, pp. 5)
Conclusão
A palavra sucesso provém do latim successus, ou seja, aquilo que sucede, que virá a acontecer depois de. Para os angariadores imobiliários, objeto deste estudo, a palavra sucesso é muito mais abrangente: significa rendimento, reconhecimento, estatuto, aliados à autonomia, liberdade de escolha e ambição, próprias da condição desta profissão e do meio em que se insere. Como um dos entrevistados referiu: Só posso estar satisfeito ao máximo, faço o que eu quero, reconhecem o meu trabalho e ainda recebo, e bem, por isso!
Como observadora participante, sei que também é uma realidade enquadrada por toda uma estrutura empresarial que incentiva a competitividade e o reconhecimento de posições sociais. Um dos exemplos esteve aqui em análise: o ranking. Mas para além disso, há ainda os prémios, os “diplomas” e toda uma panóplia diversificada, nem sempre formalizada, de reconhecimentos, através dos quais se estabelecem hierarquias simbólicas de poder e estatuto social entre os agentes que participam no campo.
Em geral espera-se que o angariador imobiliário apresente no seu perfil características comuns, como a ambição, a liberdade e a autonomia, ou seja, características que olhadas num perspetiva menos positiva, também poderão significar nas experiências individuais trabalhar por objetivos e fazer depender da sua concretização o rendimento auferido; e como tal, a vivência também de experiências (senão materiais pelos menos percebidas) de insegurança e instabilidade, stress constante e pressão competitiva para se ultrapassar e ser melhor. Certamente que muitos que seguem para esta área fazem-no, frequentemente, porque se afigura a alternativa possível no leque constrangido ou limitado de escolhas. Mas quem escolhe ficar (mesmo que num espaço de constrangimento) e consolidar uma carreira tem certamente como característica um espírito empreendedor, aliado a uma enorme vontade de aprendizagem, seja pela via formal, seja por outra.
Utilizando no estudo, como “medida” de sucesso, o facto do angariador se encontrar nos 25 primeiros lugares do ranking nacional da empresa, uma das principais organizações do ramo, poderemos concluir que a formação académica é de extrema importância nesta profissão. Há na transição de 2008 para 2013 a presença de um reforço de vendedores licenciados (50% para 64%), traduzindo, em primeira mão, o maior peso de indivíduos com formação superior no todo dos vendedores. Mas o estudo desenvolvido permite-nos também concluir que é um fator determinante para a posição do agente, que aquela seja complementada com formação específica da área. Não menosprezando a experiência profissional (nos dois anos em análise a média de anos de antiguidade na empresa é de 6 anos), a realidade é que tanto nas respostas ao questionário, como nas entrevistas, ficaram sempre realçadas as frustrações de quem não estudou, por uma falta de competências que lhes poderiam levar mais além e, por outro lado, uma satisfação generalizada por parte da esmagadora maioria dos licenciados (claramente prevalecentes no conjunto de nomeados posicionados no ranking) pois, regra geral, consideram que estão a utilizar competências dos seus cursos na sua atividade profissional.
Referindo-me à teoria da prática de Pierre Bourdieu (2001), o individuo licenciado, agrega em si mais recursos culturais, que lhe conferem em conjunto com os outros capitais (económico, social e simbólico), um melhor posicionamento no espaço social. Não nos podemos, nem devemos iludir que esta área se encontra dominada pelo capital económico e é através dele que o individuo com menores recursos escolares e culturais (sem formação académica) investe, como ficou demonstrado, numa estratégia de ascensão da sua posição no espaço social.
Ainda dentro da formação académica, o estudo desenvolvido procura ainda demonstrar que, no caso específico da sociologia, esta contém um potencial de capacitação do sucesso profissional na área das vendas imobiliárias. Tal, “não no sentido retórico banalizado de que ‘tudo se relaciona com tudo’, mas de uma maneira concreta, multifacetada, cada vez mais acentuada e importante” (Costa, 2004, pp. 36): tendo em conta a possibilidade que o olhar da sociologia nos oferece para a construção de “produtos únicos”, ajustados a cada cliente e suas famílias. Provavelmente, não será por acaso que na minha experiência, como observadora participante, pude observar que na empresa os casos que conheço de licenciados/formandos em sociologia progrediram para funções de liderança, de chefia ou de formação.
E porque ficou comprovado que sim, vale a pena estudar! Resta-me deixar a questão, tendo em conta o atual panorama, se não compensará apostar no futuro, numa formação formal académica relacionada com esta área, onde vertentes multidisciplinares se encontram, promovendo com formação e conhecimento, não só a credibilidade desta profissão, bem como um serviço de excelência ao cliente que se encontra cada vez mais esclarecido. Não tenho qualquer dúvida de que a sociologia seria disciplina obrigatória, pela importância que ficou demonstrado ter nesta área. Fica lançado o desafio!
Referências bibliográficas
Aguilar, Michaël (1992), Vendedor de Elite, Paris, Edições CETOP.
Almeida, Paulo Pereira de “Emprego terciário, servicialização do trabalho e sistemas tecnológicos” (2007), in António Firmino da Costa, Fernando Luís Machado, Patrícia Ávila (orgs.)(2007), Sociedade e Conhecimento(coleção Portugal no Contexto Europeu, vol. II), Lisboa, Celta Editora, pp. 145-163.
Bourdieu, Pierre (2001) Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação, Oeiras, Celta Editora.
Carnegie, Dale (1936),Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, Alfragide, Lua de Papel.
Costa, António Firmino da (2004), “Será a sociologia profissionalizável?” em Gonçalves e outros (orgs.),Sociologia no Ensino Superior: Conteúdos, Práticas pedagógicas e Investigação, Porto, ISFLUP, Atas do encontro realizado em 6 e 7 de Dezembro de 2002 na FLUP.
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Martins, Susana da Cruz (2012) Escolas e Estudantes da Europa: Estruturas, Recursos e Políticas de Educação, Lisboa, Editora Mundos Sociais.
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Fontes Estatísticas e documentais
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Diário da República N.º 196 —1. Série A – 20 de Agosto de 2004.
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INE (2012b), Estatísticas do Comércio 2011, Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, I.P.
INE (2011), Classificação Portuguesa das Profissões de 2010, Lisboa INE, I.P.
[1] Este artigo teve uma primeira versão revista pela professora Rosário Mauritti, a quem agradeço pela leitura atenta e sugestões. Todos os problemas que permaneçam são da minha inteira responsabilidade.
[2] Grande grupo 3 de profissões, segundo a CPP 2010/ISCO 2008.
[3] http://www.iscte-iul.pt/servicos/insercao_profissional/empregabilidade.aspx.
[4] O agradecimento ao Filipe, Henrique e Carlos (nomes fictícios), que acederam ser entrevistados e que se dispuseram do seu tempo e paciência para responder às minhas questões.
Autores: Andreia Melo