Nº 11 - agosto 2016
Tânia Moreira, Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Departamento de Sociologia, Porto, Portugal. E-mail: tania.kismif@gmail.com.
Pedro Quintela , Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, Coimbra. Portugal. E-mail: pedroquintela@ces.uc.pt.
Paula Guerra, Universidade do Porto, Faculdade de Letras e Instituto de Sociologia, Porto, Portugal. E-mail: paula.kismif@gmail.com
Resumo: Este artigo analisa a tensão constitutiva da cultura punk a partir de uma dimensão particular: a dialética entre o global e o local. Debruça-se sobre o contexto muito particular das cenas punk em Portugal, de 1977 até à atualidade, abordando as suas múltiplas ancoragens espaciais: on e off line. Trata-se de entrecruzar analiticamente a vinculação e as pertenças territoriais e afetivas do punk com as novas fronteiras, interações e dinâmicas propiciadas pela Internet no espaço virtual de afirmação do punk português no presente.
Palavras-chave: Punk; digital; globalização; culturas juvenis.
Online Punk. Punk Offline. Crossed spaces and times of the Portuguese youth (sub)cultures
Abstract: This text analyses the constitutive tension of the punk culture from a particular dimension: the dialectic between the global and the local. It focuses on the very particular context of the punk scenes in Portugal, from 1977 to the present, addressing its multiple spatial anchorages: on and off line. In this text we intertwin analytically the linkage and the territorial and affective belongings of punk to the new frontiers, interactions and dynamics provided by the Internet in the virtual space of affirmation of Portuguese punk in the present.
Keywords: Punk; digital; globalization; youth culture.
1. Introdução[1]
Este artigo explora a tensão constitutiva da cultura punk a partir de uma dimensão particular: a dialética entre o global e o local. Enquadra-se num projeto de investigação sobre o punk português, de 1977 até à atualidade. Trata-se das suas múltiplas espacializações, tal como decorrem da implantação territorial das bandas, da sua relação com a sociedade portuguesa e da relação com o punk internacional, os seus média e os seus símbolos. Metodologicamente, a análise recorre aos discursos de 70 protagonistas punk (músicos, editores, promotores, fãs, críticos) que entrevistámos, e a bases de dados constituídas por 539 bandas portuguesas, 1429 registos fonográficos, as letras de 264 canções e 93 fanzines correspondendo a 177 edições. Este material empírico integra uma parte substancial do conjunto que é objetivo da investigação recensear e arquivar, para uso público.
Atendendo à centralidade que assumem na nossa análise, uma nota particular impõe-se quanto ao conjunto das entrevistas. Foram aqui tratados os tópicos relativos a: (1) background internacional da cena punk portuguesa; (2) uso da Internet e das redes sociais; (3) perspetiva acerca do lugar e da trajetória de Portugal no sistema mundial; (4) justificações acerca do uso nas canções da língua portuguesa e inglesa; (5) disseminação das cenas punk pelo território nacional e identificação de comunidades locais e suas modalidades de funcionamento.
O Quadro 1 carateriza os entrevistados.
Quadro 1. Caraterização dos entrevistados, segundo o género, a idade, as habilitações escolares e o lugar de residência (em %, N = 70)
2. Cenas musicais: um brevíssimo enquadramento teórico
Sabemos a importância da localização das manifestações (sub)culturais num território, num contexto. O conceito de cena cultural desenvolve-se a partir dos conceitos de campo, inicialmente proposto por Pierre Bourdieu, e de mundos da arte, avançado por Howard S. Becker (cf. Bennett e Peterson, 2004, p. 3). De acordo com vários autores, este conceito consegue articular bem as dimensões local e global das dinâmicas contemporâneas. Ele surge no âmbito das teorias apelidadas de post subcultural studies, para designar determinados clusters de atividades socioculturais, as quais se agregam pela sua localização (normalmente um bairro, cidade ou área urbana) e/ou pelo tipo de produção cultural (por exemplo, um estilo de música) (Bennett, 2004, p. 223; Straw, 2004, p. 411). O trabalho de Will Straw (1991) foi seminal. Ele construiu uma análise sofisticada da interacção da música com o gosto e a identidade, explorando a ideia de translocalismo – isto é, que clusters de agentes musicais geograficamente dispersos podem envolver-se em práticas culturais colectivas graças à capacidade de a música transcender as barreiras físicas. A partir de então, o conceito tem vindo a ser cada vez mais utilizado em análises sobre a produção, performance e receção da música popular, envolvendo coordenadas de tempo e espaço.
O espaço é mesmo um fator crítico na abordagem das cenas musicais. As práticas e as suas inter-relações inscrevem-se no espaço e nele se articulam com outros processos sociais. As cenas culturais têm um caráter muito urbano (Blum, 2001, p. 10), mas não se reduzem à cidade. Devido às tecnologias de comunicação e à mobilidade dos suportes físicos – como cassetes, CD, Vinil, etc. –, bem como por causa dos concertos e tournées, os limites de cada cena alargaram-se. Por um lado, mais pessoas acedem a suportes de música gravada, por exemplo. Por outro, a tecnologia atual, para além de tornar os processos mais acessíveis, garante uma qualidade semelhante aos antigos processos de gravação. Assim, músicos e bandas não precisam mais de ter o apoio das grandes editoras para receber a atenção do público, conseguindo fazer tudo autonomamente, desde a gravação até à própria divulgação das suas músicas. Com o desenvolvimento da Internet, a comunicação entre as bandas e os fãs tornou-se mais fácil. Este contexto acelera o dinamismo das cenas – o seu surgimento, desenvolvimento e até desaparecimento; e as cenas podem surgir quer nos meios urbanos, quer em meios rurais e em áreas de contiguidade rural-urbana, podem surgir quer nos centros quer nas periferias. Aliás, a vinculação entre cena e localização física deixou de ser tão evidente. Hoje, uma cena cultural pode ser translocal ou até, sobretudo, virtual (Bennett e Peterson, 2004).
3. As cenas punk em Portugal: entre o local e o global
Procurámos compreender a emergência e o desenvolvimento da cena punk portuguesa, na sua relação com a cena punk internacional, tal como dominada pelo paradigma anglo-saxónico e polarizada nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Como vários outros movimentos da cultura popular contemporânea, o punk rapidamente se globalizou. As juventudes urbanas de todos os continentes depressa tiveram acesso à sonoridade e à linguagem do punk, bem como ao processo de produção e difusão, à visão do mundo e aos estilos que lhe estão associados. Portugal não é exceção. E uma maneira simples de compreender a força da influência global começou por ser evidenciar o uso sistemático da língua inglesa, quer para a designação das bandas, das suas gravações e dos seus fanzines, quer para as letras das canções.
Mas não podíamos ficar por aqui, se queríamos compreender a relação da cena punk local que nasceu e cresceu em Portugal com a cena punk global. E, assim, o primeiro exercício que fizemos foi considerar as interpretações propostas, sobre essa relação, pelos protagonistas portugueses. Recorrendo às entrevistas que realizámos a 70 desses protagonistas, identificámos três interpretações principais. Duas assumem a existência de uma cena punk portuguesa, estruturada como tal: ou por mimetismo face à cena global, como sustenta a primeira interpretação; ou por apropriação e recriação, como sustenta a segunda.
O mimetismo pode ser vivido como uma radical inferioridade da cena portuguesa, ou um atraso face às referências internacionais, transpostas tais quais e mesmo assim com anos de intervalo. Ou pode ser modulado, porque, embora tratando-se genericamente de uma cópia do que vem de fora, ao menos essa cópia foi imediata.
Já os protagonistas do punk português que recusam a ideia de simples cópia, valorizam o que há de apropriação e, portanto, recriação no punk português, face ao internacional. Numa série de argumentos de intensidade crescente, isso aconteceu porque tinha de acontecer, dada a diferença objetiva da situação nacional face, por exemplo, à britânica; ou porque a própria pequenez do meio português obrigou a adaptar e reinventar processos, numa aplicação muito realista do princípio do it yourself; ou porque houve mesmo um esforço de adaptar à circunstância portuguesa as causas e conteúdos matriciais do punk; ou, finalmente, porque os protagonistas nacionais foram capazes de aceder a várias influências e cruzá-las, gerando uma cena própria, porque híbrida.
Como vimos, a controvérsia entre mimetismo e transformação não esgota o debate sobre a inserção internacional da cena punk portuguesa. Uma terceira posição é possível e é expressa no debate. Foca-se na inexistência desta cena, como tal. Não se distinguiu suficientemente de outros géneros, pós-punk. Não produziu resultados materiais e duradouros em quantidade bastante. Foi demasiado residual, revelando-se a maior parte dos cultores do punk pouco autênticos, mais seguidores de uma moda do que aderentes a uma cultura. Nunca cresceu, manteve-se frágil, não chegou por isso a ganhar força e visibilidade. Estes argumentos, referidos variavelmente pelos entrevistados, negam autonomia à cena portuguesa. Ao fim e ao cabo, convergem com a primeira interpretação. Ou a cena portuguesa, sendo cena, não é portuguesa, porque é cópia da cena internacional (primeira interpretação), ou, sendo portuguesa, não é cena, porque não chega ganhar a estrutura e densidade (terceira interpretação).
A relação do punk português com o punk global é, pois, uma questão crítica, que divide os protagonistas do nosso campo. O que é mais uma demonstração de como este se organiza em tensão, com ambiguidades, contradições e mutações. Mas indica também a relevância daquela relação, crucial para a identificação coletiva dos músicos, mediadores e públicos que em Portugal se querem referir à nova música underground dos fins dos anos 70 do século XX em diante.
Mas, por outro lado, o punk global vai para lá da disseminação planetária dos grupos e das sonoridades que se afirmam, primeiro, na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos da América, expandindo-se e globalizando-se ao longo das décadas seguintes. A existência de uma tecnologia de comunicação e de uma plataforma de conteúdos e interações que quebrou as barreiras do espaço e do tempo e colocou virtualmente todo o mundo em contacto instantâneo, veio dar à palavra “global” um sentido próprio. A Internet alimenta a globalização cultural com fluxos de comunicação muito descentralizados e horizontais, e de abrangência mundial (cf. Appadurai, 2005). Isto condiciona também a tensão entre hegemonia e contra-hegemonia, em múltiplas arenas, incluindo o punk. A questão das relações de influência entre o global e o local tem de ser, pois, modulada.
Como várias outras cenas, o punk português usa intensivamente, pelo menos desde os finais dos anos 90, a Internet e, em particular, as redes sociais. A rápida circulação de notícias, imagens, sons e ideias, as conexões entre atores e grupos de todo o mundo, a acessibilidade imediata a informações e conteúdos diversos, através das edições e arquivos digitais, tudo isto promove um sentido de comunidade global, de pertença a uma cena global, que caracteriza a cena punk portuguesa tanto quanto outras cenas nacionais. A consequência é óbvia. A cena portuguesa é local, porque moldada num contexto social, cultural e político específico. Mas também é parte da cena global, da comunidade global, por todo o mundo, da música e da cultura punk.
Os protagonistas entrevistados – 90% dos quais dizem ter página no Facebook e usá-lo para obter informação e participar em eventos – convergem nesta apreciação. De uma forma geral, reconhecem que a Internet e as redes sociais vieram para ficar e não lhes ter acesso significa ficar-se excluído de uma série de dimensões relativas não só à esfera da criação e fruição musical, mas também à vida quotidiana no seu todo. Sustentam, em particular, que as novas possibilidades oferecidas pela Internet contribuem para manter o punk vivo e ativo, freando a sua paralisação ou desgaste.
Por outro lado, se olharmos para a nossa base de dados de bandas, ativas em Portugal entre 1977 e 2013, encontramos dados igualmente interessantes. Do total de 539, 43% têm conta no Facebook e 54% no Myspace. Mas é preciso ter presente que 39% das bandas recenseadas remontam às décadas anteriores a 2000, antes, portanto, do nascimento desses serviços. O quadro global que assim se constitui, no espaço virtual, não anula certamente as escalas micro e meso das relações sociais. Através do estudo de caso de grupos musicais numa região portuguesa, Tânia Moreira (2013) mostrou que as páginas Facebook das bandas acolhem sobretudo interações entre aqueles que se encontram física e socialmente mais próximos. Mas este ponto não há de perturbar quem quer que perceba que a sociedade não se organiza por camadas sobrepostas, mas sim por esferas e escalas cruzadas (O’Connor, 2003).
Quando ponderam o valor acrescentado pela Internet ao desenvolvimento do punk como uma cultura global, os entrevistados identificam uma ou várias das quatro vantagens referidas de seguida. Em primeiro lugar, a Internet tornou possível uma verdadeira democratização do acesso à informação. Não só é gigantesca a dimensão dos conteúdos que estão disponíveis em linha, como o acesso é fácil, rápido e quase ilimitado. Não surpreende, pois, que vários entrevistados destaquem que a partilha de ficheiros faz com que os públicos conheçam uma vasta quantidade de projetos musicais, mesmo antes de pensarem adquirir os seus registos. O acesso às edições digitais tem assumido cada vez maior importância, até porque é frequentemente gratuito. O Myspace parece ser uma plataforma muito efetiva nesta função, mas bem acompanhada pelas plataformas com ligação ao Facebook (Bandcamp, SoundCloud, Spotify, Podcasts, etc.).
A segunda vantagem, muito associada à primeira, mas agora do lado das bandas, está nas novas possibilidades de divulgação. São vários os músicos entrevistados que afirmam utilizar a Internet para dar a conhecer os seus projetos e trabalhos, vender discos e demos, estabelecer contactos, trocar discos e fanzines. Paralelamente, a Internet e as redes sociais servem igualmente de veículo para a mobilização em torno de mensagens e causas que também corporizam a cena punk portuguesa.
A terceira vantagem diz respeito às condições de criação e produção musical. Várias investigações a têm assinalado (Kahn-Harris, 2007; Bennett, 2008; Dale, 2010; Guerra, 2013 e 2014). Novos recursos e ferramentas fazem com que, no limite, qualquer pessoa possa tocar e até gravar a partir de casa. Combinada com as anteriores – isto é, com a acessibilidade dos conteúdos e as possibilidades de disseminação – esta facilidade de produção alarga dramaticamente os horizontes de possibilidade dos agentes da cena underground. Os novos média e redes sociais digitais democratizam o acesso aos produtos e aos criadores musicais, tornam visíveis e conferem relevo a esses produtos e criadores, fazem mover a cena musical, prevenindo a sua estagnação.
Finalmente, mas não menos importante, a Internet permite que o contacto entre os membros da comunidade punk perdure para lá da fase de envolvimento mais ativo. Este aspeto adquire maior relevância à medida do envelhecimento, quer dos indivíduos quer das gerações e formas musicais (Bennett, 2006, 2013). Não surpreende, pois, que seja uma das vantagens mais referidas pelos entrevistados. Muitos assinalam a importância dos blogues, que permitem a quem se afastou por razões profissionais manter uma ligação ao punk. Outros consideram o Facebook uma ferramenta essencial à recuperação das antigas ligações e à reaproximação de pessoas entretanto desconectadas. Outros valorizam nas redes sociais a possibilidade de comunicação entre cenas geograficamente dispersas. Porque anula a distância física, porque mantém os contactos, porque possibilita a redescoberta, porque facilita, portanto, o sentido da comunidade continuando para além do tempo e da distância, a Internet reforça laços e afetos.
Claro que o mundo virtual não escapa à averiguação crítica dos entrevistados, não fossem eles protagonistas, ativos ou retirados, da cultura punk. E identificar as críticas não é menos relevante para compreender a identidade punk. Encontrámos fundamentalmente três críticas. A primeira é a crítica à impessoalidade tecnológica. Dispensando a copresença física, a Internet pode baixar a qualidade da interação. Os encontros, enquanto interações prolongadas e face a face, são menos habituais, se não inteiramente descartáveis. O fundamento da segunda crítica é que a tecnologia digital induz a morte dos objetos físicos, dos suportes materiais que estavam no coração da cultura punk. Aos olhos de alguns entrevistados, a progressiva substituição de vinis, CDs, demo tapes, etc., por ficheiros digitais parece sugar a energia do movimento e da ação contracultural. Como tudo pode concentrar-se num ecrã, tudo pode diluir-se, isto é, perder-se num ecrã.
Talvez se perceba melhor, a esta luz, a resiliência do fanzine, como objeto físico (apenas 30% dos 93 fanzines registados na nossa base de dados têm edição em linha). E talvez se perceba melhor, também, a persistência – e o revivalismo – do vinil na cena musical (cf. Thompson, 2004). Os dados do nosso estudo de caso são claros: a edição em vinil nunca atingiu números altos (quando comparados, por exemplo, com o CD), mas os números de hoje são da mesma ordem de grandeza de há trinta anos, e a curva até apresenta uma tendência de ligeira subida nos anos mais recentes.
A última crítica não é menos relevante. O alvo é a trivialização. A imensidão da informação disponível, a extrema facilidade do acesso e a velocidade do ciclo de afirmação, erosão e substituição de ideias e formas, tudo isso contribui para uma vulgarização do punk. O que o banaliza: reduz a consumo o que deveria ser participação multimodal, degrada em moda o que deveria ser atitude e escolha. Vários autores advogam a “morte do punk” e, com esta, a morte das subculturas clássicas (Cogan, 2010; Sabin, 1999). Estes grupos foram importantes para a alteração da ordem social em várias partes do mundo, sendo que sua a força provinha da capacidade de chocar, de desobedecer a normas estabelecidas. No entanto, tudo isto mudou, pois, com o tempo, estas transgressões à norma tornaram-se, por assim dizer, normais, ou seja, algo expectável, tendo estas narrativas sido incorporadas pelo reportório capitalista, que reconfigurou a imagem de “rebelde” num potencial consumidor.
4. A cena punk portuguesa: uma pluralidade de subcenas locais
A questão da identidade no punk português não se coloca apenas em torno da relação entre a sua cena local e a cena global, que estudámos na segunda secção deste artigo. A Internet transforma os termos em que pode ser definido e pensado o “global”, porque acrescenta à densificação da malha física à escala planetária um mundo virtual onde quase não há restrições de espaço e de tempo. Isto alarga incomensuravelmente o âmbito da comunidade global – isto é, de todos quantos, independentemente do lugar e da trajetória pessoal, se sentem vinculados a essa cultura musical e juvenil. Mas não deixa de pôr em causa a sua natureza de comunidade (cf. Duncombe, 1997), porque a trivialização da Internet pode ser uma força análoga e convergente com as outras forças (como a indústria e os média) que tornam a cultura numa moda ou num produto de consumo – ou seja, que lhe retiram o caráter underground. Aqui germina, portanto, outra tensão. É mais uma a juntar às outras que fazem a geografia do punk, quando esta é analisada em termos de relações entre local e global, e entre centros e periferias.
Mas se “global” já quer dizer, pelo menos, duas coisas – (a) a cena internacional polarizada na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos e (b) o mundo virtual das tecnologias e plataformas digitais – o que é quer dizer “local”? Qual é a geografia “interna” do punk português, enquanto cena local? Como se articula esta cena com um território de 92 mil km2 habitado por 10,5 milhões de pessoas?
A resposta parece clara. No final dos anos 70 e durante os anos 80 do século XX, a cena punk concentrou-se em alguns lugares, com destaque para a área urbana de Lisboa. Mas, a partir dos anos 90 e até aos dias de hoje, tem vindo a disseminar-se um pouco por todo o território nacional. A Figura 1 mostra-o. Esta tendência está, por sua vez, associada ao crescimento do número de bandas criadas (Quadro 2). Quanto maior é o número de bandas em atividade, maior é a sua dispersão geográfica.
Figura 1: Bandas por década e localização (%)
NOTA: Por razões de apresentação, a Região Autónoma dos Açores e Região Autónoma da Madeira assumem uma disposição cartográfica ao nível da NUT III, enquanto Portugal Continental assume uma apresentação ao nível dos municípios.
Quadro 2. Criação das bandas por década (em número)
Esta disseminação não deixa de estar refletida nos depoimentos dos entrevistados. A impressão que se transmite é de uma cultura de raiz urbana que penetra em todo o lado. Diz Carolina, música de 34 anos:
“Eu acho que há [punk] por todo o lado. Tem a ver com uma maior concentração da população. É normal que, se calhar, em Lisboa e no Porto haja mais pessoal a gostar de punk, porque também há mais gente. Daquilo que me apercebi, há punk em todo o lado, não só aqui… Muitas vezes, íamos tocar para o norte, em festivais em Trás-os-Montes, íamos tocar às Beiras, à zona centro, à zona sul, até no Alentejo, em Évora e Beja. Havia sempre gente, também ligada aos sítios com mais estudantes, talvez. Mas acho que há por todo o lado, não há cidades punk, não há vilas punk, acho que por aí não podemos ir. Tem a ver com a concentração populacional de cada local”.
A ideia é clara: onde há gente, há gente jovem; onde há gente jovem pode haver punk. Por isso, Carolina assinala as várias regiões portuguesas e menciona Évora e Beja, duas cidades do interior. Correspondentemente, quando lhes é pedido que identifiquem cenas locais punk (isto é, diferentes localidades do país onde houvesse algum espírito e atividade punk), os entrevistados contribuem com uma lista relativamente vasta. À cabeça vêm as duas cidades principais, Lisboa e o Porto, e as suas coroas urbanas (como Loures, Oeiras, Cascais, Almada, Seixal, Barreiro, Espinho). Depois vêm as cidades médias do litoral populoso, como Viana do Castelo, Braga, Aveiro, Coimbra, Leiria, Setúbal, Faro. Depois vêm pequenas cidades do interior, como Viseu, Guarda, Covilhã, Castelo Branco. Depois vêm ainda pequenas cidades do litoral, como Barcelos, Caldas da Rainha, Torres Vedras, Lagos, Loulé. E ainda há referências a localidades de áreas francamente rurais, como Celorico da Beira e Sabugal. A lista não é exaustiva, mas mostra bem a disseminação territorial do punk.
Estas cenas locais apresentam tonalidades próprias, sobre as quais vários entrevistados se pronunciam. Mas não cuidaremos delas nesta ocasião. Para o nosso argumento, o que interessa perceber é que o punk português se territorializa, no sentido em que penetra virtualmente todo o país. Sendo uma manifestação cultural urbana, associada à juventude e à transição para a condição adulta, ele acompanha o processo pelo qual a cultura urbana se torna hegemónica em todos os meios, sejam eles claramente citadinos, suburbanos ou mesmo rurais. Isto é: emergindo em Portugal poucos anos passados sobre a revolução democrática de 1974, que pôs fim a quase 50 anos de ditadura política, o punk acompanhou a profunda mudança sociocultural que o país conheceu, da segunda metade dos anos 70 em diante. E, dada a sua natureza contracultural e o seu desafio explícito às convenções, hábitos e valores socialmente dominantes, não deixou de exprimir, até hoje, a complexidade e as contradições dessa mudança.
Este é, aliás, um dos seus principais motivos de interesse para a análise sociológica. Olhando para as palavras e as atitudes do punk e dos punks, podemos compreender melhor a dialética da mudança social vivida pela sociedade portuguesa. O punk observa essa dialética do seu ponto de vista particular, underground. A maneira como olha a evolução recente e o estado atual da sociedade portuguesa é influenciada pela atitude que adota, com a sua opção pelas margens e periferias, a desconfiança face a tudo o que signifique mainstream, quer na música quer na vida, e a oposição aos poderes, tanto os poderes da indústria musical, como os das hierarquias sociais.
Não surpreende, pois, que das letras das canções e dos depoimentos dos entrevistados ressalte uma atitude bastante crítica. A denúncia e o protesto marcam o tom de 42% das 264 canções cujas letras já analisámos. Os temas de 60% dessas canções estão ligados à crítica social. E uma em cada seis das canções com crítica social refere explicitamente a situação portuguesa (cf. Guerra e Silva, 2015). Quanto aos depoimentos dos entrevistados, o tópico mais comum é a denúncia de quão conformista e fechada ainda é hoje, depois de quatro décadas de democracia, a sociedade. O modo de ser punk, menos chocante do que parecia nos primeiros tempos, continua a parecer exótico. A sua música e estética continuam a perturbar uma sociedade que face ao punk é conservadora.
Não é só o facto de se tratar de um país de poucos recursos, sem escala nem massa crítica para o desenvolvimento pujante de uma cena musical underground. É também, e sobretudo, a organização social e os bloqueamentos vividos persistentemente, que dificultam a integração e o futuro das gerações jovens. Ambas as caraterísticas – a escassez de recursos e a conjuntura de crise e ausência de oportunidades – dificultam, por um lado, a inserção e o impacto social do punk português, a que faltam condições de produção e distribuição, apoio mediático, interesse público. Mas, por outro lado, aumentam a razão de ser do punk, conferindo ainda mais sentido à sua opção underground, ao seu processo específico – do it yourself – e à sua voz crítica e rebelde. Em Portugal como em vários outros países (ex. Thompson, 2004; Gololobov et al., 2014), o momentum punk – isto é, a fase inicial e heroica – já passou. Contudo, há hoje muitas razões, dada a dimensão da crise e os seus efeitos sobre a juventude, para o punk continuar vivo, ou voltar à vida, ou redobrar de energia.
5. Reflexões finais
A ideia de grupo é central à cultura punk. Ela confere-lhe um cunho de subcultura – no sentido de uma cultura específica, com um conjunto próprio de valores, regras e expressões – e de contracultura – opondo-se ao que entende serem as culturas hegemónicas na sociedade. O grupo é duplamente definido. Por um lado, resulta da partilha de bens comuns e da adesão a um padrão de comportamento, criando-se assim internamente uma unidade: a comunidade do punk. Por outro lado, afirma-se na diferença e em oposição, muitas vezes violenta, aos outros e, em particular, aos mais poderosos de entre os outros.
As letras das canções mostram particularmente bem esta dupla referência (cf. Guerra e Silva, 2015). Na maioria (145, isto é, 59%) das 260 letras pertinentes, os cantores dirigem-se expressamente a interlocutores. Ora, em 10% destas 145 letras é percetível uma relação de natureza afetiva ligando locutor e alocutário; em 28% a ligação é de solidariedade de grupo (são pares, amigos, membros da mesma coorte geracional…); mas a ocorrência mais forte, com 37% de casos, é a relação de hostilidade, qualquer que seja a sua intensidade. As canções oscilam, pois, entre, de um lado, a celebração das relações interpessoais e das solidariedades grupais e, do outro, a hostilidade aos que são de outros grupos. O recurso frequente a linguagem grosseira (verificável em 36%, isto é, mais de um terço das canções analisadas) é muito instrumental para a expressão dessa hostilidade.
Vários entrevistados, punks envelhecidos, fazem corresponder o sentido de comunidade à fase inicial, heroica, do seu ativismo. A nostalgia doura as memórias. Teria sido mesmo uma comunidade de vida, cada cena local – primeiro em Lisboa, depois no Porto, depois noutras cidades como Coimbra ou Leiria, nos últimos anos 70 e nos anos 80 – baseando-se numa intensa vinculação recíproca e assemelhando-se a uma tribo ou família. As pessoas faziam as mesmas coisas, percorriam os mesmos sítios, apresentavam-se publicamente da mesma maneira, comungavam não só da música, roupas, acessórios e textos, como também dos valores e causas. Era uma cultura de rua muito forte – cujo declínio alguns entrevistados atribuem, como já vimos, à revolução nas condições de acesso e produção provocada pela Internet.
Albano, agora com 39 anos, tradutor, a residir num país asiático, fala dessa maneira de viver como de uma filosofia:
“Era uma filosofia muito à volta do punk, era uma coisa onde pessoas com o mesmo interesse se juntavam, na rua, principalmente, ouviam música, partilhavam ideias e acabavam por fazer as suas próprias rampas [de skate] e ir a zonas que desconheciam, como andar em piscinas de casas desocupadas, de casas abandonadas, etc.”
Os grupos definiam-se pelos locais de encontros (como os cafés de bairros modernos de Lisboa, de que nos falou Inácio, agora com 55 anos, licenciado, ligado ao mundo da edição), ou pelas influências (como explica Elias, arquiteto coimbrão de 37 anos, uns estavam mais próximos do punk britânico, outros mais próximos dos blues americanos, outros mais ligados ao rock, etc.), ou pelas cidades onde construíam as suas cenas, e cujas singularidades as faziam parcialmente divergentes. A identidade grupal podia ser expressa em nomes próprios e em siglas, como os LB Punkx (para Lisboa Punk), ou LVHC (para Linda-a-Velha, um subúrbio de Lisboa, hardcore). Em todos os casos, era o grupo que se afirmava, num sentido que, para os “velhos punks”, se terá perdido. Ouçamos, por todos, Rui, lisboeta, 33 anos, com o ensino secundário e rececionista num hotel:
“Aliás nós andávamos muito com essa sigla nos nossos casacos, os LB Punkx, era uma forma de nos identificarmos, era uma forma de ser ‘ganguistas’. Tínhamos um bocado aquele sentido que, hoje em dia, acho que se perdeu. Naquela altura, éramos quase todos um grupo”.
A cena punk era, e nas mutações que foi sofrendo ainda é, uma cena. Isto quer dizer (1) um meio cultural, (2) constituído por múltiplos atores, tais como músicos, produtores, promotores, críticos, públicos, (3) que partilham entre si diferentes papéis (uns sendo públicos, ou promotores, ou coprodutores dos outros), (4) que se referem a conjuntos de valores e de atividades, não só musicais como de performance, comunicação, estética, hexis corporal, e (5) cujo efeito combinado cria um ambiente artístico e cultural que penetra e singulariza um dado território, seja ele um quarteirão, um distrito urbano, uma cidade, uma região – ou um mundo virtual.
A cena define-se, pois, na relação entre cultura, sociedade e território. Nela se cruzam diferentes escalas e configurações: o global e o local, o central e o periférico, o modal e o marginal, o macro e o micro, a reprodução e a criação, a imitação e a invenção, a norma e o desvio, a integração e a transgressão. A cena define-se na combinação destes e outros elementos, uma combinação que se faz e desenvolve numa dupla tensão, interna e face ao seu exterior. A cena underground potencia o lado periférico, marginal, inventivo e transgressivo (cf. Dines, 2004). Esse é o seu discurso inicial e é por relação a esse discurso que a cena se divide, às vezes radicalmente, quando o impacto junto de públicos ou o favor da indústria da gravação ou dos espetáculos aproxima o underground do mainstream. Mas como se situa a cena musical underground no que respeita ao jogo entre global e local, entre macro e micro, entre reprodução e criação?
Neste artigo, o punk português serviu de caso de estudo para abordar a problemática. Há bons motivos para escolhê-lo, visto que esse jogo é, ele próprio, crítico para a definição da identidade punk – quer dizer, para encontrar o que o une e o que o distingue, quer do ambiente societal, quer de outras cenas e modos de vida. Como vimos, o punk é global: um movimento musical que, emergindo nos anos 70, na Grã-Bretanha e EUA, rapidamente se difundiu por todo o mundo. Também é global no sentido em que se inclui nas práticas sociais e culturais urbanas e juvenis, proletárias e/ou de classes médias, e na cultura popular que lhes está associada, muito centrada na música, no concerto, nos laços de grupo e geração e na apresentação de si. A língua vernacular desta cultura é a mais global de todas as línguas, o inglês. A sua linguagem é urbana, moderna e cosmopolita. A Internet rapidamente se tornou uma tecnologia, uma rede e um modo de comunicação preferencial. Ela é um elemento típico do que Castells (1996) chamou a “cultura da virtualidade real”.
Assim, a cultura punk apela a uma comunidade global. Ser global – isto é, referir-se constantemente à estrutura e aos polos centrais do movimento internacional – é uma condição necessária para ser punk. Mas não é suficiente, nem implica um processo linear. Não é suficiente, porque a comunidade punk, sendo paradigmaticamente uma comunidade de vida e um envolvimento ativo em todos as etapas do processo musical (segundo o princípio do it yourself), só no “local” se há de realizar plenamente. O grupo tem de ser circunscrito, limitado por uma condição e um código – mesmo quando o seu “espaço” é, não um território, mas o mundo digital. Depois, a relação entre “local” e “global” é complexa. Como muitos outros fenómenos globais, o punk, ao disseminar-se, localizou-se, assumindo diferentes cambiantes e tornando-se muitas vezes um híbrido cultural, nos diferentes países e regiões onde penetrou – e, dentro de cada país, nas diferentes localidades. Portugal ilustra-o bem em ambas as dimensões: é uma cena local, com múltiplas cenas “internas” locais. Depois, a subterraneidade que o discurso punk celebra, as margens e periferias que diz preferir, são dessa ordem microcósmica: o punk, que não quer necessariamente mudar a sociedade, quer pelo menos propor um lugar e um modo de vida à parte, uma subcultura e contracultura, um cosmos próprio. Finalmente, a autogestão do processo musical, de que o do it yourself é epítome, quer dizer, a vontade de controlar a produção, divulgação, comunicação, exibição, gravação e arquivo, obriga a uma escala que não pode ser nem macro, nem global.
Por isso, o dinamismo da cultura punk, que surpreende quer os cultores quer os estudiosos, tem muito a ver com a sua múltipla ancoragem potencial. Tem a ver com a sua capacidade de referir-se a várias escalas e cruzá-las numa configuração que lhe é própria. A cena punk não é inteiramente local nem é inteiramente global. A sua geografia é complexa e é dinâmica. Quando é preciso fundear, o punk recorre a várias âncoras. E é isso que o faz ainda hoje, quatro décadas depois do início da viagem, um navio capaz de acolher-se e visitar-nos em vários portos.
Referências bibliográficas
Appadurai, Arjun (2005), Dimensões culturais da globalização, Lisboa, Editorial Teorema.
Bennett, Andy (2004), “Consolidating the Music Scenes Perspective”, Poetics, 32, 223-234.
Bennett, Andy (2006), “Punk’s Not Dead: the continuing significance of punk rock for an older generation of fans”, Sociology, 40(2), 219–235.
Bennett, Andy (2008), “Towards a cultural sociology of popular music”, Journal of Sociology, 44(4), 419-432.
Bennett, Andy; Peterson, Richard A. (eds.) (2004), Music Scenes: local, translocal and virtual, Nashville, Vanderbilt University Press.
Blum, Alan (2001), “Scenes”, Public, 22/23, 7-35.
Castells, Manuel (1996), The rise of the network society, Cambridge, Blackwell.
Cogan, Brian (2010), The encyclopedia of punk, New York, Sterling Publishing.
Dale, Pete (2010), Anyone Can Do It: traditions of punk and the politics of empowerment, Tese de Doutoramento, Newcastle, Newcastle University.
Dines, Mike (2004), An investigation into the emergence of the anarcho-punk scene of the 1980s, Tese de Doutoramento, Salford, University of Salford.
Duncombe, Stephen (1997), Notes from underground: Zines and the politics of alternative culture, London: Verso.
Gololobov, Ivan; Pilkington; Hilary; Steinholt, Yngvar B. (2014), Punk in Russia. Cultural mutation from the ‘useless’ to the ‘moronic’, London, Routledge.
Guerra, Paula (2013), A instável leveza do rock: génese, dinâmica e consolidação do rock alternativo em Portugal (1980-2010), Porto, Afrontamento.
Guerra, Paula (2014), “Punk, expectations, breaches and metamorphoses: Portugal, 1977–2012”, Critical Arts, 28(1), 111-122.
Guerra, Paula; Silva, Augusto Santos (2015), “Music and More than Music: difference and identity in Portuguese punk”, European Journal of Cultural Studies, 18(2), 207-223
Kahn-Harris, Keith (2007), Extreme Metal: music and culture on the edge, New York, Bloomsbury Academic.
Moreira, Tânia (2013), Sons e lugares: trajeto e retrato da cena rock no Tâmega, Dissertação de Mestrado em Sociologia, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
O’Connor, Alan (2003), “Local Scenes and Dangerous Crossroads: punk and theories of cultural hybridity”, Popular Music, 21(2), 225-237.
Sabin, Roger (1999), “Introduction”, in Roger Sabin, Punk Rock: So What?: the cultural legacy of punk, London, Routledge, pp. 1-14.
Straw, Will (1991), “Systems of articulation, logics of change: communities and scenes in popular music”, Cultural Studies, 5(3), 368-388.
Straw, Will (2004), “Scenes and sensibilities”, E-Compós. Vol. 6, 1-16.
Thompson, Stacy (2004), Punk Productions: unfinished business, New York, State University of New York
Data de receção: 20/09/2015 | Data de aprovação: 18/10/2016
Autores: José Pedro Arruda