N.º 22 - abril 2020

Manuel Carlos Silva
Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho
& Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Polo da Universidade do Minho (CICS.NOVA.UMinho)
& PDSCI/CEAM/UnBrasília.
Campus de Edifício 15, 4710-057, Gualtar, Portugal.
Email: mcsilva2008@gmail.com

Sheila Khan
Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho
& Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS/UMinho).
Campus de Edifício 15, 4710-057, Gualtar, Portugal.
Email: sheilakhan31@gmail.com

Rui Vieira Cruz
Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho
& Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Polo da Universidade do Minho (CICS.NOVA.UMinho)
& Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS/UMinho).
Campus de Edifício 15, 4710-057, Gualtar, Portugal.
Email: rmvcruz@gmail.com

Resumo: Neste artigo os autores dão conta dos resultados de uma pesquisa localizada no Bairro das Andorinhas, um bairro criado nos anos 1980 em Braga, com base na recolha  de dados quantitativos e qualitativos obtidos através da aplicação de inquérito e do uso metodológico de narrativas de vida, os autores analisam as condições de vida objetiva, os hábitos e modos de vida, as relações e representações não só entre os diversos grupos da comunidade, assim como as relações destes  com a sociedade circundante e as instituições e poderes públicos (polícia, tribunal, segurança social, e, especialmente, a Câmara e empresa municipal BragaHabit). Os dados recolhidos apontam para registos (semi)ocultos a nível familiar e comunitário, dos quais resultam ações e reivindicações de melhoramentos no bairro.

Palavras-chave: habitação e bairro social, modos de vida, registos (semi)ocultos, Braga.

Abstract: This paper discusses the results of a research project developed at Andorinhas neighborhood, created in the early 1980’s in Braga. It is based on quantitative and qualitative data resulting from the application of a survey and life narratives. This methodology allowed for the analyses of the objective living conditions, habits and ways of life, relationships and representations not only between various groups of the community, as well as the relations between the neighborhood inhabitants and the surrounding society, including the institutions and public powers (police, court, social security, and especially the Municipality and municipal housing company BragaHabit). The results suggest the presence of (semi)hidden records, both at family and community levels, that result in actions and claims for neighborhood improvements.

Keywords: living conditions and social housing, ways of life, (semi)hidden transcripts, Braga.

Introdução: O problema

Este texto surge como um dos resultados parcelares no quadro de um projeto mais amplo de investigação coordenado pelo primeiro autor do texto, projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) dedicado ao estudo dos modos de vida e formas de habitar em ‘ilhas’ e bairros sociais no Porto e em Braga (PTDC/IVC-SOC/4243/2014). Entre estes, um dos bairros selecionados em Braga foi o Bairro das Andorinhas, localizado na freguesia de S. Vicente, nascido em 1983 e finalizado em 1986, somando atualmente 224 fogos, compostos maioritariamente por famílias portuguesas. Sendo inicialmente conhecido como um bairro social é composto por 32 entradas/prédios de apartamentos num conjunto total de 6 blocos, tendo conhecido, passadas duas décadas, uma considerável degradação nalguns edifícios, mas a sua configuração posterior, sem deixar de abranger inquilinos de casas geridas pela BragaHabit[1], enquanto empresa pública municipal, veio a conhecer outras modalidades, nomeadamente pela via da compra de casa própria ou arrendamento a senhorios privados, perdendo alguma da sua inicial caraterização e classificação. O bairro, para além de espaços verdes envolventes não potencializados, possui diversas lojas e outros estabelecimentos não habitacionais, alguns dos quais espaços associativos, designadamente para jovens na sequência de protocolo com o Fundo de Apoio a Organismos Juvenis (FAOJ) em 1988, e centros de atividades como o Parque Street Workout, inaugurado em 2017.

Quer neste bairro já reconfigurado e com condições relativamente melhores que nos demais bairros sociais, designadamente em Braga, perpassados de maiores carências económico-sociais designadamente habitacionais não se verificam movimentos manifestos de contestação aos poderes públicos, observando-se contudo pela via associativa formas de reclamação junto da Câmara, embora na esfera familiar e informal, se detetem registos semi-ocultos de crítica aos protagonistas institucionais. A questão que se coloca de imediato será: como se compreende e explica os baixos níveis de conflitos manifestos, ou seja, quais os mecanismos e razões de maior frequência e persistência de formas informais de queixa e registos semiocultos de crítica?

Este artigo tem como objetivo perceber a relação dos moradores não só com o espaço habitacional e com os demais moradores no prédio/ou bloco de prédios, mas também com a área envolvente da cidade e, em particular, com as instâncias do poder local e as diversas instituições públicas.

Na sequência do enquadramento teórico, sintetizaremos a estratégia de pesquisa e os respetivos métodos e técnicas utilizadas no projeto de pesquisa, as quais foram de ordem quantitativa e qualitativa, nomeadamente o inquérito e a entrevista semiestruturada. Por fim, procuraremos responder à questão considerando alguns resultados da pesquisa em duas vertentes nucleares: em primeiro lugar, proceder a uma caraterização sociodemográfica e económica, tendo em conta as condições objetivas de vida tais como tipos de atividade profissional menos valorizados e mal remunerados, baixos salários e baixas escolaridades; em segundo lugar, analisar as relações entre os moradores, assim como as representações socialmente partilhadas pelos moradores sobre as instituições societais e políticas envolventes, designadamente os media, a polícia, o tribunal, a segurança social, a Câmara e, em particular, a empresa municipal BragaHabit. Dito de um modo mais expressivo, procuraremos descrever, analisar e cruzar as dimensões objetivas e subjetivas das vidas dos moradores e evidenciar quer os tipos de relações de colaboração (de partilha e de cumplicidades) e/ou atrito a nível da comunidade, quer, perante relações de dependência perante o poder camarário, algumas conivências com as figuras do poder camarário. Com efeito, são raros os confrontos abertos com mundo social e político envolvente e mais frequentes as maledicências e queixas em registo informal e (semi)oculto e menos visíveis na esfera pública como estratégia de sobrevivência, tal como o têm analisado diversos economistas morais e sociólogos em diversos contextos, já operários (Estanque 1999; Silva 2012a; Thompson 1982/1963), já camponeses na América Latina (Wolf, 1974), Scott (1990) no Sudeste Asiático ou Silva (1998) no Noroeste de Portugal.

Habitação, instâncias de poder e moradores: Breve enquadramento teórico

A habitação dita social, sendo do domínio público pela via do Estado Central ou das instâncias municipais, pressupõe a prestação de um serviço de habitação providenciado, organizado e/ou gerido por organizações governamentais e/ou empresas municipais, a fim de suprir carências habitacionais de determinados grupos sociais vulneráveis e/ou com poucos recursos, cujos custos ora de arrendamento ora de compra de habitação não podem ser suportados por esses grupos sociais no quadro das políticas e leis do mercado habitacional dominantes. A provisão de habitação é mais do que a simples construção de um espaço de residência mensurável em metros quadrados, pelo que deve ser acompanhado de comércio, serviços e instalações vitais para tornar o espaço residencial habitável e confortável no quadro do direito à cidade (Bonetti, 1994, p. 18ss; Ibern, 2013; Lefebvre, 1968; Scott, McCarthy, Ford, Stephenson & Gorrie, 2016), exigindo-se que outros serviços como água e saneamento, eletricidade e outros ligados à educação, saúde e abastecimento estejam disponíveis, o que nem sempre é o caso em muitos bairros sociais. É tendo em conta uma perspetiva multidimensional que é possível aferir em que medida as referidas vantagens/desvantagens nos respetivos ‘bairros sociais’ estão presentes: por um lado, as sociabilidades, vivências socioculturais e redes de vizinhança e/ou, por outro, eventuais processos de exclusão e/ou segregação socio-espacial em ambiente urbano e nas imediações dos referidos bairros (Apparicio, Séguin & Naud, 2008, p. 356; Baptista, 1999; Costa, 1999; Cordeiro, 1997; Guerra, 1996; Hannerz, 1983). A importância das sociabilidades e das redes de vizinhança culmina em efeitos de vizinhança, uma hipótese que assume que viver privado de vizinhos tem um efeito negativo na vida dos residentes, ao nível ora das suas interações, ora das suas características individuais (Sharp & Lashua, 2016). Os ambientes e redes de vizinhança influenciam o comportamento, a saúde (física e mental) e a qualidade de vida dos residentes e, consequentemente, a sua satisfação com o ambiente residencial. Portanto, o papel que os ambientes de vizinhança desempenham nas interações sociais, nas relações interpessoais, na perspetiva de trabalho, nas condições financeiras, no status social e até nas relações conjugais é vital para o desenvolvimento local e regional. Os autores recém-mencionados evidenciam nos seus respetivos estudos que as vizinhanças influenciam a forma como os indivíduos vivem, interagem, trabalham e descansam.

O modelo de habitação social/pública, particularmente no passado, tem produzido uma forma de poder hegemónico que ativamente produz e reproduz assimetrias e exclusões socio-espaciais (Almeida, Capucha, Costa, Machado, Nicolau & Reis, 1992; Bourdieu, 1970; Costa, 1998), as quais se configuram como vantajosas para a manutenção do status quo e das divisões socio-espaciais vigentes, reforçando o controlo, a autoridade e o reforço de poder. Se conceitos geográficos de teor descritivo são relevantes (vg. habitat concentrado ou disperso), uma análise sociológica que vise a interpretação e explicação de espaço não só como suporte físico de atração/polarização e fluxos, mas também como código cultural e de representação de si e dos outros e como campo de efeitos de poder terá que socorrer-se, como apontam Remy (1975), Harvey (1977) e Sharp e Lashua (2016), das teorias do espaço urbano como formas de poder e controlo, uma ideia aliás já seminalmente avançada por Weber (1978), Foucault (1979) e neoweberianos como Ledrut (1968) e Freund (1975).

Embora sem alcançar os objetivos desejados, desde a década de 1980 têm surgido nalguns países políticas no sentido de que a ideia de segregação socio-espacial dos habitantes seja progressivamente abandonada, dando origem a novas práticas. Inicialmente, confinados a espaços sem acessos a transportes ou sem condições de saneamento, a formação de novos bairros com espaços de habitação melhorados e mobilidade de diferentes comunidades com maiores níveis de rendimento gerou novas práticas e exigências, espaços com acessos e estruturas (Forest-Bank, Nicotera, Anthony, Gonzales & Jenson, 2014). Ainda que excepcionalmente, nalgumas situações a habitação pública tem servido como forma de mitigar ou contrariar os processos de gentrificação e a especulação imobiliária sentida após a crise deste mercado em 2007. Assim, não mais centrado no isolamento de populações com baixos rendimentos a um espaço definido, o objetivo proclamado passaria por dar visibilidade social e integrar estas populações em habitações acessíveis, com qualidade, em locais previamente existentes, fazendo uso de estruturas de comércio e serviços já existentes no espaço envolvente (New York City Public Design Commission, 2018).

Os estudos sociológicos têm-se centrado nas condições sociais dos aglomerados familiares que compõem os espaços das habitações sociais/públicas, ignorando regularmente a (de)composição das habitações e as reformulações que estas sofrem ao longo do tempo e os esforços que as comunidades conjugam para evitar tal fenómeno (Grey, Jiang, Nascimento, Rodgers, Johnson, Lyons & Poortinga, 2017). Os espaços de habitação pública formam, por isso, um standard que aferem e avaliam: (i) a qualidade da habitação/construção e seus indicadores económicos, culturais e sociais; (ii) o seu ambiente residencial, no qual se inclui o design e a funcionalidade da estrutura, a qualidade dos materiais de construção e a quantidade do espaço interno e externo à habitação, os serviços proporcionados; e (iii) a relação entre os indivíduos nesses espaços. Estes standards, para além de fornecerem indicadores sobre a qualidade de vida, servem também como material legal para a proteção de senhorios e inquilinos relativamente à modificação destes espaços (Rajaei, 2016).  Se, por um lado, as más condições de habitação, assim como humidades e fugas de água atuam como forma de estigma social de pobreza, por outro lado, têm também efeitos negativos sobre a saúde dos seus habitantes, gerando problemas respiratórios, asma, algumas doenças mentais, problemas regularmente associados com o ato de habitar em casas frias e húmidas (Grey, Jiang, Nascimento, Rodgers, Johnson, Lyons & Poortinga, 2017). Diferentes estratégias tais como pintar as fachadas de vários blocos de forma igual, ou a existência de blocos com graffiti geram um conjunto de representações sociais e subjetivas sobre a composição desses blocos e, consequentemente, do bairro (Flores-Colen, 2010). Há estudos que registam uma correlação entre melhores condições de habitação e melhoramentos nas condições de saúde no longo prazo (Grey, Jiang, Nascimento, Rodgers, Johnson, Lyons & Poortinga, 2017).

Mais que a construção de edifícios e das questões técnicas, o ambiente residencial incorpora a noção de bairro e envolve um sentimento de pertença e a satisfação dos residentes resultando numa demonstração de uma ligação entre o sentido de lugar (SOP)[2] e a satisfação residencial (RS). Alguns dos problemas da urbanização contemporânea assentam na crise de lugar, não no sentido dito pós-moderno que lhe deu Marc Augé (1994) ao ponto de assumir de determinados espaços como “não lugares”, mas no sentido de ausência, degradação ou baixíssima intensidade de relações sociais em antigos bairros sociais, nos quais se desmantelam redes sociais ou que obrigam à deslocação forçada de um lugar para outro, perdendo-se a memória e o sentido de pertença e partilha comunitária. De uma forma geral, os processos de urbanização sob a égide do capitalismo desregulado designadamente no século XX produziram quantidades enormes de conexões e de relações sociais, em que foram negligenciados os laços emocionais emergentes da ação do bairro e do sentimento de pertença ao lugar.  Os ‘bairros sociais’ criados ou decorrentes desse processo tornaram-se repositórios de indivíduos de baixos rendimentos e reduzidos recursos. Se, em princípio, tais contextos espaciais seriam suscetíveis de gerar laços fortes de vizinhança à micro-escala, os constrangimentos económicos e decisões políticas a nível municipal e central são de tal ordem que dificultam o reforço desses laços, sendo até caraterizados por relações de indiferença, quando não de emulação e conflito.

A formação de diferenciados espaços em contexto urbano prende-se, na esteira da abordagem weberiana (Weber, 1978), também partilhada por Bader e Benschop (1988) e Silva (2012), com o diferente grau de disposição de recursos por parte dos diferentes grupos sociais, que se vão localizando no quadro do mercado de habitação ora própria ora arrendada, o qual é definido conforme o valor do solo e da respetiva renda fundiária (Santos, 1982) e respetivo poder de compra e/ou aluguer. Tal quer dizer que, numa economia de mercado, acederão aos espaços centrais, mais nobres e valiosos os grupos com mais recursos, sendo os demais afastados para os subúrbios ou periferias. Como o capital não se ocupa de oferecer habitação a custos controlados e preços acessíveis por não ser rentável, terá que ser o Estado Central ou as entidades camarárias a ocorrerem às necessidades dos grupos mais desprovidos (Silva, 2012), justamente pela criação de bairros sociais, amiúde precários e degradados. Com efeito, existem diversas situações e fatores de risco dentro das vizinhanças em que se destacam fenómenos como a pobreza, a falta de oportunidades económicas, a desorganização das vizinhanças, a debilidade ou mesmo a ausência de laços de solidariedade da vizinhança, a ativação ou a padronização de normas sociais reprovadoras de comportamentos ditos ‘desviantes’, como referem alguns teóricos da sociologia (Becker, 1963; Goffman, 1988; e, no caso português, cf. Capucha, Costa, Machado, Nicolau & Reis, 1992; Gonçalves, 1994; Guerra, 1996, p. 173).[3] Tais comportamentos ‘desviantes’ ou ‘criminais’, dados como anti-sociais numa certa versão psicologista[4], em argumento sociológico crítico são também eminentemente sociais na medida em que são resultantes da interação entre a sociedade (e os padrões dos indivíduos ‘normais’ e sobretudo os ‘empreiteiros da moral’) e os indivíduos de comportamento dito desviante (Silva, 2012). As condições que propiciam estas práticas sociais não podem ser analisadas sem ter em conta as condições objetivas de existência e ausência de poder de disposição sobre recursos dos seus habitantes, como referido, como tão pouco podem ser desconexas do respetivo espaço físico degradado, da inexistência de infraestruturas, equipamentos e serviços adequados, e do confronto com más habitações e área envolvente negativa (Schwarz, 2010). Donde, os principais fatores de proteção incluem oportunidade de educação, de emprego, e atividades que liguem a comunidade à sociedade de ‘acolhimento’ com apoios das instâncias do Estado Social e mediação de membros da rede não-familiar (Forest-Bank, Nicotera, Anthony, Gonzales & Jenson, 2014).

Uma outra abordagem nuclear às condições de vida objetiva dos moradores e suas representações prende-se com a sua relação com o poder não só ao nível nacional, como, e sobretudo, ao nível municipal e local. Existe amiúde um choque relativamente aos planos e políticas urbanas que os poderes municipais desejam implementar e as necessidades, as culturas, representações e expectativas por parte dos moradores, comerciantes locais e outros. Os moradores, se, por um lado, não denotam uma mundividência homogénea sobre o bairro, sobre a sociedade e a política por pertença de classe, étnica e geracional, por modos e trajetórias de vida ou ainda por diversas narrativas e influências político-ideológicas, por outro lado, têm amiúde a perceção de serem objeto de desclassificação social e estigma por parte de outsiders.

Estratégia de pesquisa: Métodos e técnicas

Nesta pesquisa foram utilizados métodos e técnicas quantitativas e qualitativas de modo complementar, tendo em conta as vantagens e desvantagens de cada uma das técnicas de recolha de dados. Entre os instrumentos de ordem quantitativa há a referir a aplicação de um inquérito presencial junto dos moradores/as e respetivas famílias, elaborado pelo responsável do projeto e colaboradores. Foram aplicados 96 inquéritos, dos quais foram validados 92, constituindo estes 95,8% de uma amostra, a qual, embora não representativa, procurou ilustrar a diversidade de grupos sociais aí presentes. Os resultados aqui apresentados são inseridos num quadro de estatística exploratória e descritiva.

Para além dos inquéritos, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas junto dos inquiridos/as, o que representou uma componente importante na medida em que nos dá conta de determinadas motivações e significados não só das suas respostas no questionário, como permite aceder através de histórias ou narrativas de vida a dimensões qualitativas que doutro modo se perderiam. Os objetivos destas técnicas passaram pela constituição de um ‘benchmarking’[5] técnico para aferir que variáveis os moradores consideram relevantes para a composição do seu bairro/comunidade e que características merecem ser mantidas ou alteradas.

Se consideramos importante mapear o bairro como uma comunidade (community mapping), não pretendemos de modo algum idealizar a comunidade como uma realidade totalmente harmónica ou integrada. Assim, mapear o bairro é uma técnica de recolha de dados visual e relacional, a qual foi complementada com outras formas de recolha de dados (questionário, entrevistas), mas também com outras formas de dados por via da observação etnográfica, de modo a ilustrar as relações socio-espaciais e, assim, retratar a construção de identidades em torno de dimensões como classe social, género ou raça/etnia, tal como o apontam van Ingren, Sharpe e Lashua (2016, p. 5): “to ask for a map, is to say ‘tell me a story.’

Para levarmos a cabo a tarefa de mapear a comunidade, como refere van Ingren Sharpe e Lashua (2016, p. 5) ou, talvez mais diretamente, aproximarmo-nos da comunidade, foi fulcral a autorização por parte da Associação de Moradores do Bairro das Andorinhas (AMBA) para aceder às instalações sobretudo do Bar da Associação, a que acresceram as ‘passeatas’ etnográficas nos espaços quotidianos proporcionadas por alguns moradores, particularmente por parte de alguns informantes privilegiados, criando um clima de confiança entre grande parte dos moradores.

Por fim, importa referir que a presença constante e demorada consubstanciada na observação — e não raro observação participante — nalgumas situações tais como celebrações comunitárias revelou-se extremamente fecunda e útil no aprofundamento da relação e na confissão de testemunhos muito eloquentes, particularmente em relação aos portadores de poder institucional, nomeadamente da BragaHabit. Se, por um lado, a equipa de investigação teve facilidade de acesso a um conjunto de indivíduos graças ao sinal de abertura e palavra de confiança dada pela Associação de Moradores como entidade de cuidados (v.g. crianças, deficientes e idosos), de mediação de conflitos internos e de relação com entidades externas, teve, por outro, dificuldades em conseguir convencer alguns indivíduos para participar na pesquisa: uns por uma questão de insegurança de vida e outros por sentirem e manifestarem algum ressabiamento e cepticismo no que diz respeito à atuação da Direção da AMBA, que por estes era vista como entidade de vigilância e controlo local de comportamentos.[6] Dado, porém, os relevantes serviços prestados pela Direção da AMBA[7], esta foi muito relevante para levar a bom termo esta pesquisa através de apresentação dos investigadores à população nos diversos locais de convívio (bar da associação, cibercafé e outros cafés locais, recintos desportivos, espaços de ginástica).

Tendo em conta notas de observação e do mapeamento do Bairro das Andorinhas, obtidas através dos testemunhos e anotações do diário de campo, foi possível por esta via conhecer os registos semi-ocultos da comunidade que, segundo Scott (1990), são reveladores das perceções e representações dos moradores sobre os demais moradores e sobretudo dos forâneos e, muito em particular, com os poderes instituídos da Câmara.

Mapeando o Bairro das Andorinhas

Atendendo às diversas estratégias de mapeamento (físico/geográfico, económico, social e político), um primeiro objetivo, como referido, consiste em descrever e analisar as condições de vida objetiva, os hábitos, modos de vida e mundividências, e, seguidamente, as relações e representações não só entre os diversos grupos na comunidade como sobretudo com os outsiders da sociedade circundante e/ou sobretudo sediados nas instituições e poderes públicos (polícia, tribunal, segurança social, partidos políticos e, em especial, a Câmara e, no seio desta, a empresa municipal BragaHabit).

Caracterização sociodemográfica do Bairro

O Bairro das Andorinhas é um espaço territorial relativamente acessível, física e geograficamente integrado na própria cidade, embora, do ponto de vista económico e social, não o seja, dado o débil poder aquisitivo dos seus moradores. Originariamente construído pelo IGAPHE e presentemente sob gestão da BragaHabit, o bairro combina, além dos espaços comerciais, a habitação pública, arrendada pela BragaHabit, e habitação privada, com fogos arrendados ou comprados por agentes privados. Sendo a amostra validada composta por 92 inquiridos/as, estes dividiam-se entre 48,8% de elementos do sexo masculino e 52,2% do sexo feminino. Os inquiridos/as, na sua maioria, possuem a nacionalidade portuguesa (98,6%), têm Portugal como país de origem (97,8%) e classificam-se enquanto brancos/caucasianos (96,7%).

Relativamente à idade, os inquiridos/as apresentam uma amplitude entre os 20 e os 87 anos, estando o valor médio definido em torno dos 49 anos (valor médio de 48,95). Quanto à escolaridade dos seus habitantes, apesar de conhecer algum avanço e diversidade em relação ao padrão existente nos anos 80 e 90 graças também ao aumento da escolaridade obrigatória para os nascidos após o 25 de Abril de 1974, persiste uma baixa escolaridade. Assim, embora se evidencie o valor médio e o da mediana no 3º ciclo/antigo 5º ano (33,7%), os três grupos maioritários de indivíduos integram-se nesta última divisão, no 1º ciclo/ 4ª classe (28,1%) e no 2º ciclo/6º ano (18,0%). Note-se que a amostra possuía também indivíduos com ensino secundário ou em formação profissional (13,4%) e analfabetos (6,7%). Estes dados contrastam com similar pesquisa realizada em 1999 (Barreira, 2000), com base numa amostra de 80 famílias, na qual 11,0% da população era analfabeta, 49,0% possuía apenas o ensino básico, 25,0% o ensino preparatório ou unificado, 13,0% o nível complementar (7º ano liceal, escola comercial e industrial), ainda que frequentemente incompleto, e apenas 2,0% da mesma teria frequentado um curso superior.

Quanto ao estado civil, os dados revelam uma maioria de pessoas casadas (54,3%) ou em união de facto (7,6%), amiúde com filhos, totalizando 61,9% da amostra. Das várias categorias restantes apuraram-se 19,6% de solteiros/as e 12,0% de viúvos/as (12,0%). Os indivíduos separados (1,1%) e divorciados (4,3%) contabilizam 5,4% da amostra. No que diz respeito ao tipo de organização familiar, embora a lei sustente a igualdade dos cônjuges na gestão da casa, predomina a conceção ser o homem o ‘chefe de família’ no sentido de ser o provedor da casa em termos parsonianos (cf. Parsons, 1956) mas inclusive expressa no senso comum em ditados machistas popularizados como “em casa manda ela, mas nela mando eu”, embora não já tão acentuada como no final dos anos 90, em que, segundo Barreira (2000), 74,0% dos inquiridos/as concordava com o referido ditado.[8] Com efeito, ao tempo desta pesquisa apenas 23,0% das esposas exerciam uma profissão fora da esfera familiar, situação que, segundo Pais (1985) e Wall (1999), se agrava com o nascimento do primeiro filho, em que a mulher ou se retira do mercado de trabalho ou acumula o trabalho extradoméstico com trabalho doméstico. Mesmo quando os homens declaravam concordar em dividir as tarefas domésticas, as desigualdades nesta área eram bem evidentes, cabendo, em regra, à mulher cozinhar, passar a ferro, arrumar a casa, ir às compras, acompanhar os filhos na escola e em questões de saúde, contribuindo o homem com reparações em casa, passeios com os filhos, tratamento de assuntos bancários, compra de bens mais caros, dados estes que convergem com outros estudos levados a cabo por Torres e F. Silva (1998), Wall (2005), Wall e Amâncio (2007) e Silva (2016).

Quanto às atividades profissionais, não contabilizando cerca de um quarto da população ainda em fase de escolaridade ou formação, salvo 15,0% que trabalhavam em atividades de comércio ou serviços (contabilistas, vendedores/as) e 12,0% que estavam desempregados, a grande maioria estava ocupada em profissões predominantemente manuais, designadamente operários (metalúrgicos, construção) e costureiras, serviços de limpeza, domésticas e venda ambulante, bastantes dos quais exercidos sem contrato e no setor informal, evidenciando algumas continuidades com a configuração das atividades ocupacionais dos anos 90 (cf. Barreira 2000).[9]

Quanto aos rendimentos das famílias podemos atestar a seguinte distribuição na figura 1.

Figura 1 Rendimentos dos agregados familiares das Andorinhas (%)
Fonte: Inquérito aos Moradores do Bairro das Andorinhas (IMBdA).

Relativamente às condições económicas dos agregados familiares do Bairro das Andorinhas (BdA) regista-se que a maioria das famílias (60,9%) situa-se entre a não obtenção de rendimentos e/ou rendimentos muito baixos, por um lado, e rendimentos baixos entre 751 euros e 1000 euros, atendendo que se verifica a junção de rendimentos de dois ou mais membros da família. Há ainda a registar o valor com a importante percentagem de 24,7% no escalão entre 1001 e os 1500 euros, embora não tão elevados tratando-se de dois ou mais rendimentos por família. Salvo 4,1% que detém rendimentos mais confortáveis entre 2001 euros e 3000 euros, os restantes 35,7% situam-se num escalão com rendimento intermédio razoável entre 1001 e 2000 euros, mas a maioria vive com rendimentos baixos ou muito baixos.

No que concerne a habitação, os dados revelaram que os moradores/as habitam há cerca de 32 anos no bairro (moda[10]) e que cerca de três quartos dos residentes vivem em habitações arrendadas (72,5%) e um pouco mais de um quarto reside numa habitação própria (27,5%). Entre o grupo composto por habitações arrendadas, a maior destes moradores são arrendatários da empresa municipal BragaHabit (64,1%) e os restantes 35,9% arrendaram a casa a senhorios privados ou a familiares. As rendas mensais variam entre valores inferiores a 100 euros (37,7%) e, entre 101 e 200 euros, há 49,2%, perfazendo no total 86,9% da amostra, estando os restantes 13,1% com valores de renda superiores a 200 euros.

Dada a amplitude das idades e a construção do Bairro das Andorinhas, a vasta maioria não habitou sempre no bairro. Assim, 89,0% viveram noutros locais, designadamente noutros bairros nas proximidades como as Palhotas, as Parretas e noutros locais das freguesias de Real e de S. Vicente. Assim, vivenciaram a nova casa nas Andorinhas com melhores condições como uma melhoria substancial, uma conclusão já detetada em 1999 por Barreira (2000), na qual este autor destaca uma perceção negativa do bairro por parte de cerca de 3/4 dos inquiridos,[11] perceção essa que entretanto se foi contudo diluindo ao longo do tempo e inclusive convertendo em  perceção positiva pela valorização do bairro, a sua centralidade e integração em relação à cidade (cf. figuras 3 e 4).

Aliado a este facto da centralidade física do bairro em relação à cidade,  importa, por fim, sublinhar um elemento de identidade captado pelo registo etnográfico: a ligação informal de grande parte de moradores sobretudo jovens ao Sporting Clube de Braga, sendo de destacar a indumentária que estes últimos usam com o símbolo do clube e o facto de, nas imediações do bairro, existir um estabelecimento comercial frequentado pelos elementos de uma das claques do referido clube designado “Red Boys Andorinhas” (Martins, 2017), denotativo das credenciais do bairro.[12]

O espaço de habitação: Tipologia de apartamentos

A tipologia predominante foi o T3 (60,4%), seguida do T4 (30,8%) e do T2 (8,8%), não tendo sido encontradas outras tipologias. Nos espaços internos todos os residentes apontaram que possuem sala, cozinha, eletricidade, saneamento, água corrente e soalho de madeira, flutuante ou mosaico (salvo 11,0% que têm divisões com chão em cimento).  Relativamente a outras condições, a grande maioria refere ter quarto de banho completo (95,6%), havendo famílias que possuem apenas retrete e duche e ainda outras que só possuem retrete. É de destacar que os fogos T3 ou superior possuem mais que um quarto de banho, fomentando esta pluralidade de opções.

No que concerne a climatização da habitação, somente uma minoria possui ar condicionado (5,5%) ou aquecimento (13,2%), lareira (12,1%) e caldeira (2,2%). A vasta maioria possui gás canalizado/natural (96,7%) com base numa reformulação estrutural que o Bairro das Andorinhas sofreu há uns anos, designadamente entre 2003 e 2005.

Quanto a equipamentos, todos os inquiridos revelaram possuir frigorífico e fogão, seguindo-se outros produtos como máquina de lavar roupa (96,7%), forno (98,9%), televisão (98,9%), esquentador (97,8%), Tvcabo/satélite (97,8%), micro-ondas (95,6%), aspirador (92,3%), internet (84,6%), arca/congelador (74,7%), hifi ou rádio (74,7%), máquina de secar roupa (35,2%), máquina de lavar louça (30,8%), máquina de filmar (14,3%). Comparados estes dados com outros recolhidos em 1999 por Barreira (2000), considera-se ter havido um ganho considerável na aquisição de determinados equipamentos que nessa altura eram possuídos por percentagens menores: máquinas de lavar roupa (85,0%), aspiradores (70,0%), mas bem menores em micro-ondas (5,0%), máquinas de lavar loiça (10,0%).

No que às Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) diz respeito, a maioria possui telemóvel (90,1%), dos quais 41,8% são smartphones, seguindo-se computador (65,9%) e tablet (45,1%). A maioria dos inquiridos/as revelou estarem satisfeitos (66,7%) ou muito satisfeitos (5,6%) com as condições da sua habitação, contrastando com os que expressaram desagrado, revelando-se insatisfeitos (14,4%) ou muito insatisfeitos (13,3%). Se é constatável que as condições de habitação são razoáveis e a posse de equipamentos e instrumentos eletrónicos apresentam percentagens consideráveis, elas não bastam para atestar uma elevada qualidade de vida, mudar de modo de vida e, muito menos, conhecer uma ascensão social ascendente, a qual implica uma alteração do lugar de classe.

O espaço do bairro: Serviços disponíveis, transportes e acessos

Relativamente a serviços disponíveis no Bairro, a principal ênfase incidiu nos transportes públicos, sobre os quais a figura 2 nos mostra o grau de satisfação.

Conforme a figura 2, regista-se um grupo de questões de elevada consistência interna (alfa = 0,73), no qual os indivíduos revelaram-se de forma geral satisfeitos ou mesmo muito satisfeitos sobretudo com a qualidade dos transportes públicos (média = 3,9), apontando, todavia, críticas à sua baixa frequência e regularidade (média = 3,7) e ao preço (média = 3,5). A não existência de transportes públicos a circular regularmente no bairro foi contraposto com a existência de paragens relativamente próximas e a qualidade global dos serviços de transporte.

Os moradores revelaram-se bastante satisfeitos com as condições gerais do bairro, destacando como valor mais elevado o espaço para as crianças brincarem, incidindo o valor mais baixo na avaliação do bairro relativamente ao nível do espaço para pequenas reparações domésticas (alfa =0,74).

Um outro grupo de questões incidiu sobre as características internas do bairro. Em termos de consistência interna, o valor do alfa — 0,34 — revela baixa consistência entre o grupo de questões. Quando analisados os resultados, regista-se que as questões sobre assaltos no bairro, a circulação de droga e se seria melhor que algumas pessoas se fossem embora, apresentam valores de desvio padrão extremamente elevados em relação aos valores das médias. Tal justifica a baixa consistência interna do grupo, o que significa que diferentes indivíduos responderam de forma diferente a estas questões, tal como se pode registar na figura 4.

Figura 2 Avaliação dos transportes públicos (5 itens)
Fonte: IMBdA.

Figura 3 Avaliação das condições gerais do bairro (5 itens)
Fonte: IMBdA.

Figura 4 Representações sobre o Bairro das Andorinhas
Fonte: IMBdA.

Quando analisada a matriz de correlação entre as variáveis, registou-se que os indivíduos que responderam positivamente a cada uma destas três variáveis responderam também favoravelmente às duas restantes, o mesmo sendo válido para os que responderam negativamente. Esta questão revela que diferentes indivíduos interagem de forma diferenciada com o bairro e, principalmente, em diferentes espaços dentro do bairro.[13] Como se pode observar na figura 4, é de notar igualmente que, entre os valores mais elevados, a definição do BdA como um bairro limpo é o que apresenta um valor médio mais baixo (4,1) e um desvio padrão mais elevado (0,7).

As representações dos inquiridos/as sobre drogas evidenciam um enorme desfasamento. No diário de campo identificamos que os mais novos mencionam a existência de muita circulação de droga, contrariamente à posição das pessoas mais velhas. Se, à primeira vista, esta diferença poderia ser identificada como geracional, as entrevistas mencionam que os moradores/as mais velhos estão conscientes da existência de droga. O seu nível de comparação é, no entanto, a da realidade atual com os primórdios da formação do bairro, no qual o tráfico de drogas era mais notório: “Dantes era mau. Drogas. Não se podia andar na rua. Não tinha possibilidade de as crianças brincarem. (…) (Agora) não se vê como se via antes a droga. Hoje as crianças têm condições, têm aqui a pracinha.” (homem, 60 anos).

Relativamente a outras questões, nomeadamente representações e valores na esfera legal e ética, numa escala de três níveis de resposta entre 0 e 3, a figura 5 evidencia os seguintes dados.

Figura 5 Conceções morais sobre temas sensíveis (3 itens)
Fonte: IMBdA.

Como se constata na figura 5, a maioria dos indivíduos é a favor de relações sexuais antes do casamento (3,0), da legalização da procriação medicamente assistida (3,0) e da eutanásia/morte assistida (2,8). De diversas conversas informais foi possível inferir que não só a virgindade prematrimonial como a fidelidade conjugal por parte da mulher parece ser um valor partilhado por homens e mulheres, embora haja a registar que o requisito de fidelidade e submissão da mulher era bem mais presente, segundo Barreira (2000), no final dos anos 90, partilhada por 75% dos homens e 90% das mulheres, diferentemente dos dados mais recentes que apontam para um menor constrangimento moral a este respeito (cf. figura 5 ). [14]

Os valores médios mais baixos (ainda assim a tender para a concordância) incidem na adoção de crianças por casais do mesmo sexo (2,2), o casamento entre pessoas do mesmo sexo (2,5) e o aborto (2,6). O grupo de questões apresentou uma consistência interna aceitável de 0,7. Os principais receios que afligem os moradores/as (alfa = 0,5) são ‘ficar doente’, ‘não poder proporcionar um futuro aos filhos’ e ‘ficar desempregado’.

Avaliação e posicionamento dos moradores face às instituições/organizações

Quanto à perceção e avaliação dos moradores do bairro relativamente às diversas instituições, nomeadamente camarárias, procuramos apontar os principais problemas e quais as perceções e posicionamentos dos próprios moradores. A transformação do bairro desde os anos 80 até ao presente destaca-se por ser inicialmente um ‘bairro social’, mas ter perdido essa designação há cerca de uma década. A aquisição/compra dos apartamentos por parte de moradores levou à existência de um bairro, no qual existem, por um lado, habitações, na sua maioria, sob a regulação municipal (através da BragaHabit) e, por outro, habitações arrendadas a particulares por senhorios ou familiares. A superação da situação inicial, marcada por conflitos internos, devido ao tráfico de drogas, fez com que o bairro tivesse ganho uma abertura e, simultaneamente, um fechamento ao exterior: (i) uma abertura na medida em que, tendo eliminado algumas barreiras, tal fez com que indivíduos externos ao bairro, se quisessem, poderiam circular por lá; (ii) um fechamento, uma vez que os indivíduos mais cientes da sua situação económica e social demonstraram o desejo de se fecharem ao exterior a representantes de entidades ou indivíduos exteriores ao bairro.

O sentido de lugar e o sentido de pertença é interpretado de dois modos distintos. Enquanto internamente os laços sociais justificam o sentido de bairro, o estigma social por parte de outsiders torna a relação com estes, ambivalente: “vantagens (de viver no Bairro?) Os amigos! As desvantagens, é… sermos discriminados.” (mulher, 42 anos). Outros acrescentam que não é um problema exclusivo deste bairro — que aliás para bastantes já não é um ‘bairro social’ — mas partilhado por outros bairros ditos sociais:

Quem vive no bairro das Andorinhas, Santa Tecla, Enguardas, “as pessoas moram ali, as pessoas são todas umas anormais, pronto.” Na ideia deles é assim. Quando vêm conhecer as pessoas, ver o bairro em si veem que não tem nada a ver. Isso é que uma pessoa do bairro sente muito mais. Tenho orgulho. Tenho muito orgulho: “Morei no bairro das Andorinhas.” Tenho orgulho de dizer que morei aqui. E ainda agora faço parte disso (homem, 43 anos).

Este orgulho do bairro não é só partilhado pelas suas origens e modos de vida comuns como pelo modo de socialização na rua por parte não só de adultos, mas sobretudo de crianças e jovens, cujas brincadeiras, experiências, competências físicas e  psicológicas no enfrentamento de adversidades são valorizadas, para o que terão contribuído as socializações no bairro para as crianças, adolescentes e jovens. Particularmente no passado, conscientes da reputação ‘negativa’ sobretudo até última década, seus eventuais atos de indisciplina ou mesmo pequenas transgressões (pequenos furtos), aventuras ou excessos ‘criativos’ (por exemplo, venda de balões ou castanhas) eram vistos por comerciantes e outros, segundo Barreira (2000) como obra de ‘canalha’, ‘mal educados’, ‘rebeldes’ ou ‘índios’ (por exemplo, nos torneios de futebol, em visitas em grupo à Bracalândia).

Uma questão nesta pesquisa consistiu em saber qual a avaliação que os moradores fazem dos media e das diversas instituições e organizações envolventes, sejam as que estão enquadradas em instituições do poder central tais como as equipas do Rendimento Social de Inserção (RSI) e da Segurança Social do Ministério da Segurança Social, a Polícia de Segurança Pública (PSP) do Ministério da Administração Interna, sejam instituições camarárias, em especial a empresa municipal encarregada das questões de habitação nos bairros sociais. A figura 6 dá conta das diferenciadas avaliações dadas pelos moradores às referidas instituições numa escala de 0 a 4. (Ver figura 6)

Figura 6 Avaliação das instituições/organizações pelos moradores do BdA (4 itens)
Fonte: IMBdA.

Pelas respostas dos moradores expressas na figura 6 constata-se que as suas avaliações relativamente às equipas do RSI e da Segurança Social apresentam valores médios baixos, representando as respostas a este item pouco mais de 15% do total de respostas, o que é pouco representativo.  O recurso à Segurança Social pela via das assistentes sociais num contexto e ‘cultura da pobreza’ a que se referia Lewis (1979) nem sempre assumia um carácter coletivo de partilha, entreajuda e reivindicação, sendo, em regra, empreendidas estratégias de sobrevivência e/ou de vitimização, sob forma familiar ou individual, as quais, segundo a anotação dalguns ‘empreiteiros da moral’ como o pároco de S. Vicente, segundo Barreira (2000), teriam sido interpretadas por este de modo reprovatório:

Aquela gente só sabe é pedir. Eles só vão à Segurança Social para pedir. E aldrabam os dados. Tenho conhecimento. Agora trabalhar não estão para isso. Já lá temos ido perguntar se há pessoas que queiram vir trabalhar aqui na igreja a limpar e assim, mas não. Eles preferem pedir. Dá-lhes menos trabalho. Sei de pessoas “se estavam a aproveitar” da distribuição de géneros pelos mais pobres, por parte da Igreja; quando sabiam que nós lá íamos escondiam os televisores, escondiam os telefones para a gente vir com uma ideia de que realmente eles eram pobrezinhos.

Se há queixas relativamente a falta de equipamentos sociais, falhas no sistema de saúde e/ou na assistência social no âmbito da Segurança Social — maiores no passado que em tempos mais recentes — a avaliação mais negativa é, todavia, apontada à BragaHabit (média = 2,9), seguindo-se os media (média = 3,0), a Câmara Municipal e a PSP (média = 3,1). Embora a BragaHabit seja em termos numéricos a mais criticada das organizações, existem indivíduos que defendem a sua pertinência, esfera e modo de ação: “Eu não tenho nada a queixar. Não tenho queixa. (…) a BragaHabit tem uma razão de ser, e acho muito bem!” (homem, 60 anos). Porém, abundam as críticas apontadas à empresa municipal responsável pela habitação. Os moradores indicam que os melhoramentos realizados em alguns espaços do bairro exigiram a sua própria força de trabalho e resultam de problemas de investimento: “quanto às obras, a caixa de escada fui eu que pintei. Pintei as caixas de escada todas(…). Uns desabafam: ‘como pintei a caixa de escada, vamos pagar todos o material’. E pronto. Quem pagou o material tem caixa de escada toda pintadinha.” (homem, 60 anos). Outros sustentam que a BragaHabit não tem em conta as melhorias que os residentes fazem dos seus espaços: “Olha, há muita gente que fizeram obras, mas há muita gente também que não pode fazer obras e a BragaHabit havia de ver isso também” (mulher, 60 anos). Este esforço de cooperação e que reforça o laço de comunidade resulta de uma inação financeira da BragaHabit: “Tem muitas, muitas melhorias a fazer e nós nos juntamos para isso. A BragaHabit diz que não tem verba, que não tem verba” (homem, 43 anos). Mais, os continuados problemas de investimento reportados por parte da BragaHabit serviram de incentivo a diversos moradores para um esforço de aquisição de casa: “Hoje nós compramos a casa, senão a BragaHabit não faz nada” (homem, 46 anos). Quando quisemos perceber os maiores problemas que afetavam as habitações, registamos queixas incidentes sobre as fachadas (e telhados) e também de canalizações:

As frentes pelo menos que tem que para tirar aquela humidade, cada casa tem… Eu sempre pintei (homem, 67 anos); Precisa de canos novos, já estão os canos arrebentados, da banheira também para o meu quarto, as paredes todas descascadas…

Já fiz requerimentos (à BragaHabit) e nunca… Já vieram tirar fotografias, mas nunca mais vieram a casa fazer nada, só tiram fotografias, mas por acaso eu não vejo nada, arranjar nada. Só se arranjar aos outros, a mim nunca me arranjaram. Eu fartei-me de ir lá e não posso contar com nada (mulher, 60 anos)

É neste cenário de inação por parte das autoridades camarárias que as famílias do bairro se encontram: reportam os problemas, nomeadamente as fracas condições sanitárias e canalizações, as fachadas e as infiltrações de humidades, a BragaHabit regista-os, mas sem realizar uma atuação que efetivamente resolva os problemas. Confirma-se também neste bairro o que Tadeu, Tadeu, Simões, Gonçalves e Prado (2018) já detetaram como principais causas de problemas nas fachadas e de humidades: a má escolha e aplicação de materiais e a falta de manutenção. Pelas notas de campo registamos uma constante menção aos problemas de infiltrações e humidade, os quais, segundo os moradores, viriam as ser resolvidos em parte por iniciativa dos moradores na pintura das fachadas e janelas para embelezamento dos edifícios e, para reaproveitamento energético, pela colocação de reboco térmico pelo exterior, conhecido como ETICS (External Thermal Insulation Composite Systems), o que chamavam regularmente capotto.

As queixas incidentes sobre os media refletem, por um lado, representações como sendo o bairro das Andorinhas responsável por práticas alegadamente ‘criminais’ e, por outro lado, por não ser dado destaque aos seus eventos e celebrações comunitárias locais e, menos ainda, aos protagonistas do bairro, fenómeno também evidenciado por Martins (2017, pp. 89-109) que destacou que as noções de um bairro problemático, perigoso e a sua associação à criminalidade e ao tráfico de droga se deve com grande propriedade aos processos de estigmatização muito estimulados pela intervenção dos meios de comunicação. Neste sentido, será possível avançar com o seguinte argumento: a estigmatização social representa um intermediário negativo entre os moradores e os do resto da cidade.

Ao município as maiores queixas assentaram no desinteresse pela comunidade e pelas suas práticas, acusando inclusive os membros do executivo camarário de não conhecer o Bairro das Andorinhas. Mais complexas sãos as observações retiradas sobre a avaliação da PSP. Com base nas notas extraídas do diário de campo foi possível analisar que as queixas sobre a PSP incidem não sobre eventuais falhas, mas mais da sua circulação constante nas imediações do bairro, pressupondo tratar-se de um bairro potencialmente criminoso, rótulo este convergente aliás com a ação dos media locais.

Embora fossem mencionados acima os problemas com a limpeza no Bairro, a avaliação dos moradores sobre a AGERE, empresa municipal responsável pelo abastecimento da água e pela limpeza, saneamento, tratamento de jardins e lixo obteve uma média acima da avaliação das demais empresas municipais, mas denotando uma consciência crítica abaixo do expectável, projetando apenas em vizinhos a razão da ‘falta de limpeza’ ou ‘a falta de educação’, queixas estas que, apesar de menos frequentes que nos primeiros tempos, ainda persistem de algum modo.

No mapeamento da comunidade e consequente observação no campo registamos alguns problemas apontados como estendais para a roupa no espaço público, a não-limpeza exterior das entradas dos edifícios e a interior nos blocos habitacionais, a colocação do lixo em qualquer local, problemas esses que a Associação e os próprios moradores assumiram como práticas e falhas individuais a corrigir (de resto gradual e parcialmente resolvidos), aliás na sequência de práticas já instaladas desde o início do bairro pelos próprios moradores. Há moradores e, em particular, os membros da Associação de moradores, para além de vigiarem comportamentos dissonantes ou desprestigiantes como o de consumo de droga, empreendem estratégias de revalorização do bairro através das festas comunitárias e dos atos vigilantes que repetidamente enfatizam a reivindicação por melhores condições infraestruturais e estéticas e equipamentos no bairro. Mais, os moradores do Bairro das Andorinhas fazem uso, de modo amiúde subterrâneo, de uma “língua bem afiada” de crítica aos outsiders sobretudo políticos e manifestam também amiúde suas expetativas e reivindicações, seus sentimentos de pertença honrosa ao bairro perante os detratores e sobretudo os políticos surdos às suas reivindicações. Os dados recolhidos apontam para a verificação de registos (semi)ocultos a nível familiar e comunitário, em termos de economistas morais como Thompson (1982/1963), Wolf (1974), Scott (1990), os quais, por vezes nomeadamente em processos de competição eleitoral, são explicitados e tornados públicos pela Associação de Moradores, de modo a potenciar e obter algumas das reivindicações e melhoramentos no bairro. Contrariamente a perceções e imagens mais negativas nos anos 90 sobre o bairro, como o constatou Barreira (2000),[15] nesta pesquisa comprovamos algumas melhorias infraestruturais, de reparação de casas e de equipamentos sociais que têm tornado o bairro mais agradável.

Conclusão

Este estudo revelou-se inovador em dois aspetos: por um lado, destacaram-se, através da análise dos dados qualitativos e quantitativos, as condições socioeconómicas objetivas de vida: desemprego ou ocupações em trabalhos predominantemente manuais e/ou precários no setor de comércio e serviços, baixos rendimentos, baixas escolaridades incluindo algum analfabetismo, condições razoáveis de habitação como resultado de lutas coordenadas pela AMBA; por outro lado, constatamos cenários subjetivos e humanos que influenciam e interferem com uma leitura sobre os modos de vida e de habitar o Bairro das Andorinhas. Por outro lado, esta investigação revelou dados importantes no que diz respeito à relação de poder e de interação entre o bairro e as instituições que pautam de forma substantiva a sustentabilidade habitacional, emocional e física do bairro.

O Bairro das Andorinhas apresenta-se como um espaço habitacional com quase 40 anos, com blocos de prédios construídos inicialmente com uma seleção de materiais de construção mais fracos de forma a reduzir os custos de produção e sem estandardização, pelo que nem todos os blocos possuem a mesma qualidade de construção. Contudo, os seus habitantes reportam ser um bairro bem localizado, calmo, seguro, agradável para se viver, com comércio e serviços locais nas imediações, mas com acesso limitado a transportes públicos. O Bairro das Andorinhas, para além de deixar ser rotulado como um ‘bairro de droga’, como o era no início até ao final dos anos 90 (JN 9-9-1998), reverteu também um inicial processo de desenraizamento e/ou de ligação a um velho espaço físico e contribuiu para gerar um sentimento de lugar junto das gerações mais novas, que investiram não só nas habitações, mas no espaço envolvente através da participação no bairro não de moradores como de ex-moradores, para o qual contribuiu, em larga medida, a Associação dos Moradores.

Em termos de localização, o Bairro das Andorinhas expandiu o seu raio de ação. Por um lado, há pessoas que preferem mudar e sair do bairro, mas há outras que querem manter-se no bairro. Por outro lado, há indivíduos que já não moram no bairro, mas continuam a aceder aos estabelecimentos presentes, desde cafés à sede da Associação de Moradores. E outros ainda que revelam morar nas imediações do bairro. Os que escolhem sair retornam, todavia à vida sociocultural do bairro, acima de tudo por afinidades e relações familiares e, sem dúvida, por uma memória de vida que os acompanha na medida em que, embora já não sendo moradores, se identificam com este espaço como lugar de pertença e razão da sua identidade social.

Relativamente ao problema da circulação e eventual consumo de drogas no seio do bairro persiste divergência de opiniões, sobretudo manifesta por diferenças geracionais e suscitada pelos imensos problemas que o bairro registou nas décadas de 1980 e 1990, de que os mais idosos têm memória, relativizando a situação atual. Por outro lado, se ainda existe alguma degradação urbanística pela má qualidade de materiais usados, esta situação era há décadas atrás bem mais complicada e problemática, designadamente pela inexistência de infraestruturas e equipamentos sociais, pela generalização de grafitis e desmazelo nos cuidados das partes exteriores (e nalgumas, interiores) das casas.

Foi enfatizado o foco nas obras exteriores à habitação, designadamente pintura e reparação de telhado, complementado pela colocação de ETICS que sustentam assim ganhos de eficiência energética, complementados com embelezamento do espaço. Salvo em relação com a empresa de água e resíduos AGERE sobre a qual os moradores têm uma avaliação algo acima da média e com o funcionamento da Segurança Social, sobre a qual emitem uma avaliação média razoável, verifica-se por parte dos moradores/as uma relação tensa com os media, acusados de serem promotores de estereótipos e elementos estigmatizantes sobre o bairro, articuláveis com inações, omissões e posicionamentos negativos por parte da Câmara e sobretudo da BragaHabit. Sobre esta há diferentes perceções, embora predominantemente negativas, das quais algumas bem contundentes aliadas a uma conflitualidade ora manifesta ora, em regra, latente. Enquanto alguns moradores/as dizem entender a utilidade de uma organização como a BragaHabit, outros criticam a negligência, assim como os critérios adotados para fazer face aos seus problemas de habitação. Estas práticas de ação/inação por parte da organização responsável pela habitação transmitem uma ideia de aleatoriedade e desinteresse no futuro do bairro. O facto de tratar-se de moradores vulneráveis e com poucos recursos, contrariamente ao expectável, não detêm poder de disposição e negociação, são mais dependentes e, por isso, são mais contidos nas críticas abertas às figuras de poder local ou municipal. Contrariamente à teoria da privação relativa e a uma interpretação dogmática da posição leninista (cf. Silva, 1998, 2012a), segundo as quais quanto mais pobres forem os atores sociais mais predispostos à crítica, à contestação ou à rebelião, tal não se verifica na relação entre moradores pobres e instâncias do poder local ou municipal, tal como o constaram e analisaram sociólogos e economistas morais acima referidos em diversas situações histórico-empíricas. Os pobres e privados de recursos, quando não organizados e posicionados em situação vulnerável em termos atomicistas, preferem resguardar-se na esfera pública e, quando muito, soltam os seus ‘desabafos’ ou ‘queixas’ num registo familiar ou informal e, amiúde, (semi)oculto, de modo a terem o beneplácito dos detentores de poder e, sobretudo, não sofrer retaliações pela emissão de críticas abertas, frontais ou públicas.

Agradecimentos

Este projeto é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/IVC-SOC/4243/2014).

Siglas

IGAPHE = Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado

JN= Jornal de Notícias

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Data de submissão: 02/05/2019 | Data de aceitação: 07/12/2019

Os autores do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.

[1]A BragaHabit é a empresa municipal de habitação de Braga, responsável pela promoção e gestão dos imóveis de habitação social, realizando também a gestão dos apoios à habitação do município, assim como a gestão de serviços ligados à reabilitação urbana.

[2]O sentido de espaço (SOP) e a perceção desse mesmo espaço traduz-se na forma como o elemento humano age com o seu ambiente envolvente, tornando a experiência de um local espacial específico memorável e agradável para o indivíduo. Tal como refere Silva (2012, p. 188), o lugar “não é um simples contentor ou ‘ponto no espaço’, mas representa o local de encontro que providencia aos atores sociais diversos contextos de transação e modos de (com)vivência (solidariedade-oposição, inclusão-exclusão, distância-proximidade, integração-segregação), ao mesmo tempo que lhes vai fixando e estruturando a atividade quotidiana de trabalho e de lazer”. Assim, o sentido de lugar é uma amalgama de emoções, afetos e perceções conscientes e inconscientes, assentes não só no presente do quotidiano, mas em trabalhos de memória (Bourdieu, 2006). Ele envolve interações de pessoa-para-pessoa mas também de pessoa-para-lugar (Ghafourian & Hesari, 2017), o que lhe confere uma capacidade multifacetada de explicar os laços entre os indivíduos e a configuração do local no qual residem, assim como a sua cultura, seus valores e símbolos sociais.

[3]A “má vizinhança” representa, segundo Guerra (1996, p. 173), uma expressão resultante da ruptura com as formas de apropriação do espaço, com as redes de sociabilidade e com os modos de vida habituais, pelo que o fenómeno de realojamento constitui “um processo de ‘urbanização à força’”.

[4]O manual Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10) da Organização Mundial da Saúde refere-se a comportamentos classificados de modo enviesado como antissociais como pertencendo ao índice F60.2 — Dissocial Personality Desorder, enquanto o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais da Associação Americana de Psiquiatria refere a característica antissocial como sendo um distúrbio de personalidade — Antisocial Personality Disorder DSM-5 301.7 (F60.2).

[5]Benchmarking é uma técnica que permite medir o desempenho em relação a outras possibilidades e usar essas informações para melhorar o seu próprio desempenho. (…) Benchmarking ajuda a identificar áreas, sistemas ou processos para melhorias — melhorias incrementais (contínuas) ou melhorias drásticas e comparar com outras práticas de organizações similares noutros bairros (HouseMark Star, 2012; Morris, Allinson, Harrison & Lomas, 2016; ReVelle, 2004). Por sua vez, um benchmark técnico permite aferir como os indivíduos hierarquizam um conjunto de propriedades/indicadores e como as integram ou interagem com elas.

[6]Esta situação reproduz outras em trajetos de pesquisa em que o investigador, vivendo ou contactando numa aldeia ou bairro com um conjunto de moradores (por exemplo, padre ou representantes do poder local), vê-se obrigado a fazer uma inflexão, tomando alguma distância em relação ao primeiro grupo para conquistar a confiança do segundo grupo, tal como ocorreu, por exemplo, no estudo de Lindoso por Silva (1998).

[7]Salvo 15% desempregados (dos quais 52% analfabetos ou com ensino básico), 8% reformados e 17% com empregos no sector comercial e dos serviços, em 1999 a maior parte era dos ativos era composta por mão de obra assalariada menos qualificada (operários metalúrgicos e da construção civil), 22% domésticas e reformadas domésticas (cf. Barreira 2000).

[8]Já, porém, no que concerne as formas verbais e sobretudo físicas de violência doméstica, não foi possível detetar o alcance destas situações, tendo sido detetadas por Barreira (2000) alguns casos em que violência doméstica era naturalizada por um entrevistado: “violências do género em que o marido deu uma coça na mulher e partiu-a toda (…), isso não há. Mas até faz bem uma chapada na mulher de vez em quando se ela merecer” (Barreira, 2000, p. 3).

[9]A este respeito, a par de interpretações culturalistas deste fenómeno (Peristiany, 1988; Pitt-Rivers, 1988), cf. estudos de vários autores tais como Schneider (1971), Cole (1991), Silva (2012) que atestam a relevância do valor da virgindade prematrimonial como condição para um casamento homogâmico ou hipergâmico, denunciando como, designadamente nas sociedades tradicionais, tal valor está estreitamente ligado ao binómio cultural honra-vergonha e este, por sua vez, para além dos aspetos ideológicos e de controlo patriarcal das mulheres, se relacionava com o valor económico ou patrimonial da mulher que para casar homogâmica ou hipergamicamente teria, para além de outros atributos, manter-se virgem para não perder posição no mercado matrimonial. Para entender este fenómeno e os diversos posicionamentos dos autores a este respeito, cf. Silva (2012).

[10]Valor de modo aproximado.

[11]Em 1999 Barreira (2000) constatava três formas de convivência social dentro do bairro: (i) a de inserção, ou seja, relacionamento não só com familiares, mas também com vizinhos em 43% dos casos, (ii) a de demarcação, mantendo relação exclusiva com familiares ou com pessoas com quem dividia o apartamento (“a minha vida é mais em casa, não me dou com ninguém”) em 47% dos casos e (iii) a de isolamento (caracterizada pela inexistência de qualquer convívio social duradouro) em 10% dos casos. Sobre estes processos de identificação e desidentificação e/ou demarcação, cf. também o estudo de H. S. Gonçalves (1994) sobre bairro social a sul de Vila Franca de Xira.

[12]Barreira (2000), não obstante constatar que a maioria gostava da casa, registou as razões dos inquiridos/as sobre o desgosto com o bairro: 68% pela toxicodependência, 57% pela “má vizinhança”, 20% pela “falta de limpeza”, 15% pela “má qualidade das construções” (15%) e 18% pela “degradação do bairro”. Apesar de haver 22% de moradores que têm imagem positiva do bairro, 69%, ou seja, a grande maioria tem uma imagem negativa do bairro resultante de situações de pobreza e sobretudo de processos de estigmatização, o que já acontece atualmente em bem menor medida nomeadamente graças ao trabalho da Associação. Sobre a perceção negativa da maioria dos moradores sobre o bairro das Andorinhas em recente estudo, cf. Martins (2017). Similar imagem negativa pôde ser encontrada noutros estudos como o de Gonçalves (1994).

[13]Independentemente dos posicionamentos diferenciados face à AMBA, foi possível constatar que a AMBA teve origem na necessidade de criação de uma comissão de moradores para lutar contra o aumento das rendas estabelecida pelo IGAPHE nos finais dos anos 80, o que, acrescido à acumulação de dívidas por famílias insolventes, refletia, segundo Barreira (2000), um sentimento generalizado de desamparo quer pelo IGAPHE (em 90%), quer pela própria Câmara Municipal (75%), sobre a qual desabafavam: “os próprios filhos da terra, fomos abandonados aqui caramba!”. Hoje num contexto diferente, a AMBA, embora negoceie com a BragaHabit rendas e outros assuntos, continua a prestar determinados serviços relevantes para a comunidade (preenchimento de formulários designadamente para Bragahabit), organiza atividades recreativas (passeios, jantares, convívios, festas de natal e procissões na páscoa) e outras de consumo e lazer, e constitui um espaço recreativo informal (vg. jogos de cartas, dominó), de visualização da prática desportiva (v.g. jogos de futebol) e de acesso a computadores sobretudo a crianças e jovens com funções tão distintas como acesso a videojogos ou a redes sociais online. Sobre a relevância do associativismo em bairros sociais, cf. Capucha (1990).

[14]Apesar de o realojamento inicial ter suscitado uma certa expectativa positiva de melhoria das condições de habitação, segundo Barreira (2000), o realojamento não parece ter induzido nos moradores/as maiores perspetivas de promoção e de integração social. Embora 38% dos inquiridos/as tenham respondido que, se não houvesse realojamento a sua situação seria pior, 35% dos inquiridos/as afirmaram não saber e 17% consideraram que o futuro não trará grandes alterações, restando apenas 13% que emitiram um posicionamento e expectativa mais otimista em relação ao futuro.

[15]Estas situações eram mais frequentes nas primeiras décadas da formação do bairro, cujas manifestações tais como “Nós somos das Andorinhas. Somos uma malta do caralho”, sobretudo por parte de jovens, constituíam formas de autodefesa e demarcação, afirmação e identidade grupal perante as desconsiderações e estigmas provindos do exterior (cf. a este respeito, Barth, 1966; Pinto, 1991; Sebastião 1996). Barreira (2000) refere vários episódios a este respeito designadamente com insultos por parte de jovens para com os outsiders adultos ou jovens. Por exemplo, aquando a receção feita pelos jovens das Andorinhas aos seus congéneres de Lousado, o Jornal de Notícias de 9-9-1998 retratou a situação da seguinte forma: “Mal chegou o autocarro de Lousado, gritaram, alto e bom som, a uma só voz: ‘Vamos f… o focinho!’ A razão deram-na depois: ‘É que não são do nosso bairro!’”.

Autores: Manuel Carlos Silva, Sheila Khan e Rui Vieira Cruz