N.º 27 - dezembro 2021
João Tiago Gouveia
Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Centro de Ética, Política e Sociedade.
Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal.
E-mail: joao_gouveia_@hotmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6624-8816
Resumo: A epidemia de coronavírus desencadeou uma vasta epidemia de vírus ideológicos que se insinuavam há algum tempo a partir da psicopolítica atual, dominada pelo avanço neoliberal e tecnológico, conducentes a ampliar os fenómenos que caracterizam a denominada época da pós-verdade. Pondo a tónica nos discursos dos grupos que reinventam a pandemia através dessa lógica, desenvolve-se o conceito de desobediência alternativa, entendido como uma reificação das novas formas de subjetividades impulsionadas pela psicopolítica segundo Byung-Chul Han, questionando-se acerca da sua legitimidade moral tendo em consideração as definições distintas de desobediência civil de Henry David Thoreau e Hannah Arendt. Conclui-se que a pandemia veio revelar não só desigualdades e contradições que atravessam o mundo, mas também os entraves ao surgimento de um projeto comum assente numa consciência global. Neste sentido, a crescente falta de comprometimento para com a verdade é geradora de mudanças políticas e sociais que colocam em causa a própria democracia liberal.
Palavras-chave: pandemia, psicopolítica, pós-verdade, desobediência civil.
Abstract: The spread of the coronavirus epidemic eventually triggered ideological reactions that had been taking hold for some time as a consequence of neoliberal and technological advances, conducive to amplifying the phenomena that characterize what has been called the Post-truth Era. Focusing on the discourses of the groups that reinvent the pandemic through of this logic, we seek to develop the concept of alternative disobedience, understood as a reification of the new forms of subjectivities driven by psychopolitics, according to Byung-Chul Han, questioning their moral legitimacy taking into consideration Henry David Thoreau’s and Hannah Arendt’s distinct definitions of civil disobedience. It can be concluded that the pandemic has revealed not only inequalities and contradictions across the world, but also the obstacles to the emergence of a common project based on a global conscience. In this sense, the growing lack of commitment to the truth generates political and social changes that call into question liberal democracy itself.
Keywords: pandemic, psychopolitics, post-truth, civil disobedience.
Introdução: enquadramento e enunciado do problema[1]
A emergência de um eventual vírus com capacidade de se espalhar muito depressa era um dos riscos globais mais prováveis com o qual os especialistas se debatiam há décadas (Rosling et al., 2019). Quando a pandemia COVID-19 irrompeu nas nossas vidas no início de 2020 para definitivamente as transformar, o medo do desconhecido uniu-nos a todos na tentativa de travar algo invisível e ameaçador. Não foi difícil envolver as pessoas num projeto comum.
O confinamento foi a principal medida para conter o vírus, numa altura em que as máscaras de proteção eram escassas e a Organização Mundial de Saúde tinha defendido o seu uso seletivo e limitado (C.A.C., 2020). Discurso que viria a ser posteriormente alterado assim que os países começaram a dispor de maior número para cobrir toda a população (Gil, 2020).
Ainda mal tínhamos tido tempo para digerir o que estava a acontecer, começam a surgir as primeiras reflexões sobre a pandemia, algumas das quais bastante polémicas. Muitos foram aqueles que viram uma oportunidade para confirmar as suas teorias precedentes, aceitando apenas os factos que serviam de apoio ou justificação às mesmas.
Não sendo aqui o lugar mais indicado para nos estendermos sobre as diversas leituras prematuras que se desenvolveram em torno da pandemia, exemplificaremos apenas o caso de Giorgio Agamben, que inicialmente abordou o problema da pandemia apelidando-a de “invenção” (Agamben, 2020, citado em Cachopo, 2020, p. 15).[2] Para o filósofo, o Estado, ao decretar medidas de vigilância e de restrição sob o pretexto da pandemia, estaria a instrumentalizar o pseudo-instinto de urgência e a colocar em causa a própria democracia (Santos, 2020). Agamben insurge-se assim contra as medidas restritivas para confirmar a sua ideia preexistente acerca do “Estado de Exceção” e mostrar como ela nos permite compreender o momento atual e antecipar o futuro (Agamben, 2003/2010).
Apesar das evidentes diferenças, o mecanismo pelo qual se consome e acredita em discursos falseados da realidade, não é muito diferente, na medida em que também aqui se aceita apenas os factos que confirmam e justificam a nossa posição original, que quanto menos esclarecida for, mais propensa será a aceitar esses mesmos discursos.
Eis a possível conexão comum entre ambos os casos. No entanto, no segundo trata-se de um epifenómeno que de forma alguma se esgota na tendência humana para confirmarmos as nossas ideias, teorias, ideologias, mas sim com a total indiferença perante a verdade dos factos, que tem vindo a crescer com a massificação da internet, e que se coaduna com aquilo que se tem denominado como época da pós-verdade. Um período caracterizado por um conjunto de fenómenos que, mesmo não sendo novos, são um desafio não apenas para a ideia de conhecer a realidade, mas para a existência da própria realidade. Como refere Myriam Revault d’Allonnes: “A pós-verdade deixa entrever a possibilidade de um regime de indiferença para com a verdade e, inclusive, a abolição do seu valor normativo pela eliminação da distinção entre o verdadeiro e o falso” (d’Allonnes, 2018/2020, p. 27).
Numa altura em que se esperaria maior confiança na verdade dos factos, muitos foram os que se lhe opuseram, desvalorizando as evidências empíricas, quer através de notícias falsas ou fora do seu contexto original, quer através de teorias conspiratórias e negacionismos vários, sempre sob o véu de um alegado ceticismo legítimo[3]. Dissemos “alegado” porque na verdade ceticismo nada tem que ver com negacionismo: o ceticismo é um posicionamento epistemológico que defende a incerteza da verdade e não a sua negação. Mais problemático se torna quando saem da esfera das redes sociais e ganham uma dimensão pública, sob a forma de protesto, unindo vários manifestantes, acentuando ainda mais os efeitos da pandemia.[4]
A esse tipo de fenómeno passaremos a designar de desobediência alternativa. E é precisamente sobre este conceito que se baseará o presente artigo.
O conceito de desobediência alternativa será desenvolvido a partir da época da pós-verdade, pois baseia-se numa lógica alternativa, anti-intelectualista, e da confrontação de duas noções de desobediência civil, a de Henry David Thoreau e a de Hannah Arendt. Mas será a psicopolítica neoliberal e digital a estrutura superior a partir da qual se fundamentará grande parte da relação entre pós-verdade e desobediência civil, na qual a desobediência alternativa tem a sua origem.
Primeiramente, abandonando a noção de biopolítica foucaultiana e assumindo a psicopolítica como principal via de acesso às técnicas de poder do regime neoliberal hodierno, justificaremos e enquadraremos alguns processos psíquicos que têm vindo a orientar o sujeito e a limitar a sua liberdade, sem que este tenha sequer consciência disso, remetendo para alguns aspetos da identidade interna e opositiva de determinados grupos no quadro da pandemia de COVID-19. Para depois passarmos à definição da época da pós-verdade no interior da qual se amplia a circulação e alcance dessas visões (e ficções) processuais da psicopolítica atual, até então inimagináveis, a partir das novas tecnologias existentes.
Aspetos da psicopolítica hodierna
Segundo Byung-Chul Han,
O neoliberalismo como uma nova forma de evolução, ou até como uma forma de mutação do capitalismo, não se ocupa primariamente do biológico, o somático, o corporal. Pelo contrário, descobre a psique como força produtiva. Esta viragem orientada para a psique e, por isso para a psicopolítica, está relacionada com a forma de produção do capitalismo atual, uma vez que este último é determinado por forma de produção imateriais e incorpóreas (…) O corpo como força produtiva já não é tão central como na sociedade disciplinar biopolítica [itálico acrescentado]. (Han, 2014/2015, p. 35)
De modo que, contrariamente à biopolítica traçada por Foucault[5], a técnica de poder própria do neoliberalismo adquira hoje uma forma mais subtil, capaz de escapar a toda a visibilidade, assemelhando-se mais um ambiente generalizado, que regula não só a produção de cultura como também o trabalho e a educação, agindo como uma espécie de “barreira invisível que constrange o pensamento e a ação livre” (Fisher, 2009/2020, p. 31). Razão pela qual, o indivíduo submetido não tenha necessariamente consciência da sua submissão, supondo-se inteiramente livre. No fundo, é como se o tradicional panótico fosse agora aberto e autoimposto. Portanto, continua Han (2014/2015, p. 24), “a presente crise da liberdade consiste em que estamos perante uma técnica de poder que não nega ou submete a liberdade, mas antes a explora”.
Se a submissão podia ser pensada como resultado de um tipo de poder negativo imposto ao sujeito por meio de ameaças, hoje pode ser entendida como uma orientação do próprio sujeito, operando por meio do reforço positivo. Pensemos na própria ideia de felicidade.
Se a felicidade assumiu um papel de tão grande destaque nas sociedades neoliberais, tal acontece porque comprovou ser um conceito muito útil para reacender, legitimar e reinstitucionalizar o individualismo em termos aparentemente não-ideológicos, através do discurso neutro e avaliado da ciência [psicologia positiva]. (Cabanas & Llouz, 2018/2019, p. 86)
Além disso, à medida que avançamos na direção de um controlo baseado numa vigilância passiva, a partir de uma aparência de liberdade e comunicação ilimitadas, precipitamos numa crise da liberdade de alcance máximo, pois que afeta agora a própria vontade livre. Neste sentido, o Big Data tem demonstrado ser um instrumento psicopolítico extremamente eficaz que permite adquirir um conhecimento integral inerente à sociedade da comunicação que, de forma aberta, agrava o controlo psicopolítico do presente e do futuro. De acordo com Han (2014/2015, p. 21), “trata-se de um conhecimento de dominação, que permite intervir na psique e condicioná-la a um nível pré-reflexivo”.
Contudo, o Big Data é apenas um dos exemplos que compõe o motor das transformações digitais que acontecem hoje em dia capazes de interferir no conjunto dos processos psíquicos, conscientes e inconscientes e a condicioná-lo a um nível pré-reflexivo. A própria forma de como a informação é hoje selecionada e apresentada, aliada às novas tecnologias, como as redes sociais, precipitam na psique dos sujeitos como um poder, na medida em que influencia as nossas decisões.
Graças ao progresso da tecnologia, temos conhecimento sobre mais injustiças sociais do que alguma vez na história da humanidade. Quando, no passado, pessoas do outro lado do mundo morriam por causa de um vírus letal, ninguém sabia nem se preocupava; significando que a nossa vigilância do sofrimento melhorou consideravelmente. Esta visibilidade melhorada pode ser entendida como um sinal de progresso humano. No entanto, se considerarmos, por um lado, a insensibilidade que a banalização da violência nos trouxe e, por outro, a constante difusão veloz de conteúdos justapostos, que tanto pedem uma atenção séria, para, logo depois, provocarem uma descontração ou um desvio inusitado, também pode ser entendida como um sinal de retrocesso. Neste último caso, veja-se o seguinte excerto, retirado da novela distópica Fahrenheit 451 de Ray Bradbury:
Clique, imagem, olhe, olho, agora, toque, aqui, ali, rápido, vá. Acima, abaixo, dentro, fora, porquê, como, quem, o quê, onde, hã?, ah!, zás!, trás!, bing, bong, bang!, bum! Tudo digerido, resumido, digerido-resumido. Política? Uma coluna, duas frases, um título! E depois, de repente, tudo desaparece! A mente dos homens anda a tal velocidade neste carrossel movidos pelas mãos dos editores, exploradores e radiodifusores que, nesse movimento centrífugo, se perde tudo o que seja pensamento, considerado desnecessário, uma perda de tempo! (Bradbury 1953/2020, p. 82)
De acordo com o filósofo alemão Sloterdijk (1983/2011), essa oscilação simultânea de acontecimentos importantes e de acontecimentos insignificantes alastra na nossa consciência de forma invasiva, produzindo uma espécie de desintegração mental e indiferença por aquilo que realmente é digno de valor. Por exemplo, se as estatísticas, como refere Santos (2020, p. 515), “transformam a tragédia humana em números abstractos que acabam por criar indiferença perante a tragédia humana e o modo como ela afeta a vida das famílias e das comunidades”, a crescente “remediação digital” de que nos fala João Pedro Cachopo (2020), e a subsequente intersecção por anúncios e notícias falsas, vem favorecer ainda mais essa indiferença, mas também o esquecimento. Segundo Milan Kundera, a velocidade da vida atual, gerada pela globalização e pelo consumismo, é proporcional ao esquecimento que ela produz: o grau de lentidão seria diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade seria diretamente proporcional à do esquecimento (Kundera, 1995/1996).
Como anteviu o escritor norte-americano Neil Postman, as distrações tecnológicas, alteraram o discurso racional, tornando-o mais superficial (Postman, 1985, citado em Kakutani, 2018/2018). Sabe-se que o pensamento é discussão, conversa entre áreas cerebrais, e a conversa requer tempo e lentidão, “necessária à dialética da interação que está na base da racionalidade” (Maffei, 2014/2018, p. 112). Hoje tudo se processa a um ritmo e velocidade estonteantes: estamos sujeitos a uma enorme quantidade de informação, sobretudo sob a forma de imagem. Pelo que capacidades como a criatividade e raciocínio lógico, necessários para desenvolver um espírito crítico e desmontar discursos falsos, ficam bastante comprometidos, prejudicando, entre outras coisas, a comunicação racionalmente mediada.
Nas redes sociais é possível exprimir perspetivas a um vasto número de pessoas sem necessariamente estabelecer diálogo com as mesmas, anulando o próprio tempo de debate e estreitando as possibilidades de diálogo racionalmente mediado, uma vez que grande parte dos discursos que surgem nestas plataformas seguem uma lógica profundamente anti-intelectualista, através da disseminação de conteúdos que apelam mais à emoção do que à razão, ampliando de forma considerável o que o filósofo estadunidense Frankfurt chamou de “conversa fiada” e a respetiva falta de ligação com a preocupação com a verdade: “É apenas esta falta de ligação com a preocupação com a verdade — esta indiferença em que saber como as coisas realmente são — que eu considero como a essência da conversa de chacha ou da conversa fiada” (Frankfurt, 2005/2019, p. 42).
Segundo Guerreiro (2021a), uma das consequências mais visíveis das redes sociais é a captação e formação de centros e ondas coletivas de força timótica. Etimologicamente esta última palavra procede do grego thymós, estando na base de uma teoria platónica, cujo significado se refere ao “órgão” de onde nascem os impulsos.[6] Devido ao estado permanente de alta tensão timótica que atravessam as redes sociais (e outros meios de comunicação), a preocupação com a verdade e a dimensão crítica diminuem consideravelmente, acabando por produzir a indiferença e o descomprometimento político-social face a várias questões, designadamente as que dizem respeito à pandemia.
Isto para dizer que construir a psicopolítica que nos rodeia implica compreender o poder que a ideologia neoliberal aliada aos meios digitais exerce sobre as massas, comprometendo o exercício de diálogo racionalmente mediado, essencial para reconhecer a verdade dos factos e decidir livre e esclarecidamente, portanto, tendo implicações na própria psique do indivíduo e, por conseguinte, na sua noção de liberdade e desobediência. Motivo pelo qual de seguida se vai remeter para certos aspetos da identidade interna e moral dos participantes em protestos negacionistas relacionados com a pandemia de COVID-19.
Sobre a identidade interna e moral negacionista
Para a moral, o que é legítimo é querer respeitar as medidas de contenção motivadas pela pandemia, assumindo o lugar de outras pessoas que eventualmente poderiam ser infetadas caso se infringisse essas mesmas medidas e compreendendo a sua utilidade global;[7] mas, se considerarmos o problema em termos políticos, mais importante do que a racionalidade moral subjacente é obedecer seja por que motivo for.
Se pensarmos em termos éticos, apenas quem assume o lugar dos outros age eticamente. Neste sentido, existem diferenças entre a pergunta ética que colocamos a nós próprios (como me devo comportar perante uma situação limite como a da pandemia?) e a preocupação política visando que todos obedeçam independentemente das suas razões.
Assim, quer do ponto de vista moral quer do ponto de vista ético, seria de esperar que as pessoas tentassem se proteger de todas as formas possíveis de um vírus que é altamente transmissível, entendendo o uso da liberdade na sua relação com os outros e contribuindo para a diminuição das mortes provocadas pelo vírus. Mas, ultrapassada a fase inicial de instinto de urgência, mas também de deslumbramento (a reclusão para a reflexão e reencontro consigo mesmo, reavivando, para alguns, a solidariedade perdida), seguiu-se uma fase de protesto contra as respostas impostas pela situação pandémica, pautada pelo desrespeito das medidas de confinamento, das limitações à liberdade de circulação ou de ajuntamentos, e restantes recomendações e obrigações em geral.
Pelo mundo fora, as ruas de várias cidades agitaram-se num crescendo contínuo anti-confinamento, anti-máscaras, anti-vacinas, reunindo no dia 20 de março de 2020 perto de três mil pessoas só em Lisboa.[8] Entre os vários manifestantes encontram-se os que recusam as conclusões da ciência. Referimo-nos aos negacionistas científicos. E, aqui, convém fazer uma distinção de conceitos. O negacionismo não é sinónimo de ceticismo. Por exemplo, se alguém é cético em relação à vacinação contra a COVID-19, devemos perguntar-lhe acerca das evidências empíricas que sustentam a sua posição. Se a sua resposta for algo como: “Não há prova que alguma vez me faça mudar de ideias”, então há boas razões para supor que está a posicionar-se fora dos limites da racionalidade baseada em provas. Portanto, quando a crença se sobrepõe aos factos ou, se quisermos, quando o ceticismo se transforma na certeza dogmática de que existe uma verdade oculta e além dos sentidos, estamos perante um caso de negacionismo. Por isso é que os seguidores das teorias da conspiração, para os quais a pandemia não passa de uma intriga de contornos obscuros, são também negacionistas (Cesare, 2020/2020). Mas o mesmo já não se pode dizer dos adeptos da “conversa fiada” que, apesar de corporalizam a “falta de ligação com a preocupação com a verdade” (Frankfurt, 2005/2019, p. 42), cumprem objetivos diferentes. Enquanto os negacionistas acreditam piamente na falsidade das evidências empíricas, ou na existência de um poder oculto por trás das mesmas, os adeptos da “conversa fiada” são movidos por uma leviandade em relação à verdade em geral (ou aos critérios da sua validação), levando-os por sua vez a se identificar com os movimentos negacionistas ou com os grupos que subestimam a gravidade da pandemia. Também seria um erro classificar como negacionistas os libertários mais radicais, segundo os quais as restrições excecionais impostas pelo Estado são coercivas e até mesmo um pronúncio de uma distopia totalitária. Trata-se de um grupo que hipervaloriza a vontade individual em detrimento das necessidades coletivas. O que não quer dizer que sejam mais legítimos do que os outros: numa situação limite como a que vivíamos, em que foi decretado estado de emergência, de nada vale a liberdade individual se negar a natureza social da liberdade. A liberdade é, fundamentalmente, uma palavra relacional, por conseguinte, ser livre não significa outra coisa senão realizarmo-nos mutuamente (Han, 2014/2015). Logo, interpretar as recomendações e obrigações das autoridades de saúde como indignas de respeito porque são atentatórias à liberdade individual, invocando o direito constitucional à resistência, por exemplo, é bastante questionável, desde logo se tivermos em consideração o dano que tal direito tido como constitucional exerceria noutros direitos, liberdades e garantias.[9]
Tanto quanto sabemos, esses grupos surgem frequentemente misturados, convocando manifestações sem distanciamento e sem máscaras, unidos pela mesma intenção de desafiar as medidas de contenção, e invertendo o valor da própria responsabilidade moral, ao se responsabilizarem apenas diante de uma ideia que transcende os limites da racionalidade, como uma superioridade (a verdadeira consciência), sentindo-se eles próprios prisioneiros do estado-limite provocado pela pandemia. Razão pela qual, optou-se por agrupá-los na mesma categoria, de acordo com as similaridades que apresentam entre si, independentemente dos seus motivos e intenções particulares[10], sejam eles negacionistas ou movidos por um ímpeto ideológico, pois em ambos os casos vivem numa espécie de estado de inautenticidade a respeito da realidade envolvente.
É importante notar que distinguir tal grupo de desobedientes é simples e intuitivo, mas não deve servir para nomear todas as pessoas que são críticas à gestão da pandemia ou interpretam os dados de forma dissonante: manifestar-se publicamente contra as medidas de contenção não significa ter uma visão errada sobre os factos, tal como questionar o valor desmesurável de certos números não significa necessariamente ser negacionista. Em alguns casos, faz todo o sentido questionar a aparente cientificidade da argumentação. Como refere Bernard-Henri Lévy, a própria “comunidade do conhecimento não é mais comunitária do que as outras; é atravessada por divisões, sensibilidades e interesses divergentes, e, obviamente disputas fundamentais [itálico acrescentado]” (Lévy, 2020/2020, p.25). Já para não referir que os médicos nem sempre têm mais informação do que nós, e há algo um pouco absurdo na confiança cega que lhes é dedicada. Além disso, os próprios modelos matemáticos para prever a progressão futura da pandemia têm falhado recorrentemente; o que nos devia fazer refletir sobre o valor do cálculo e da estatística, sobretudo desde que se tornaram num dos principais guias para a tomada de decisões políticas (Guerreiro, 2021b). Segundo Guerreiro (2021b), como noutros domínios, deparamo-nos hoje, no espaço público, com dois extremos: por um lado, temos a emergência da lógica anti-intelectualista; no polo oposto, temos o chauvinismo científico a colonizar a política, dando origem a um governo da ciência, dominado por “especialistas” que de certo modo passam a substituir os cidadãos por força do seu acesso à “verdade dos factos” e, a partir daí, a conferir uma espécie de direito natural de soberania da explicação e, consequentemente, a governar a sociedade de acordo com essa mesma “verdade” (Guerreiro, 2021b). O facto dos decisores políticos terem sido pressionados a se colocarem politicamente nas mãos dos especialistas, veio contribuir para a ideia geral de que, se algo corresse mal, seria por não terem seguido a opinião científica, repercutindo-se depois na sua própria reputação enquanto políticos.
Ora, reconhecer a capacidade dos especialistas é também reconhecer as suas limitações. A mais óbvia de todas é que os especialistas atuam apenas dentro da sua própria área. Cabe aos decisores políticos pesar as diferentes considerações dos especialistas com a opinião pública, evitando analisar os problemas a partir de um único ângulo, que cega para a informação que não se “encaixe” nesse mesmo ângulo. Portanto, aceder à realidade a partir de vários prismas, jamais deve ser confundido com negacionismo científico.
De acordo com Paul Mason, “para defender a racionalidade tem de se defender aquilo que ela se baseia: a proposta de que a experiência, a par da observação precisa, podem criar verdade verificável nos nossos cérebros” (Mason, 2019/2019, p.31). Embora a possibilidade de criar verdade também dependa do reconhecimento das limitações da própria experiência. Partir de mentiras para desobedecer e expor os outros ao perigo de contágio, contribuindo para diminuir a folga nos cuidados hospitalares, não reconhece nem a experiência nem as limitações da experiência. Eis a lógica (ou não lógica) dos grupos sobre os quais nos referimos que, em nome de uma conspiração ou de uma pretensa fixidez de verdade, rebelam-se, desvalorizando a pandemia.
Eis a questão da reificação da normalização da “consciência falsamente formada e falsamente informada” de que nos fala Sloterdijk (1983/2011, p.387) que tende a dificultar a adesão à própria realidade, independentemente de como nos sentimos em relação a ela. Portanto, já não se trata de abandonar a verdade factual, mas de corromper o processo através do qual os factos são reunidos de forma credível e utilizados de forma confiável para organizar a realidade que nos rodeia, aquilo que se tem denominado de época da pós-verdade, conducente com a psicopolítica do capitalismo tardio que tem vindo a condicionar a psique do indivíduo a um nível pré-reflexivo.
Pós-verdade
Passados 6 meses depois do início da pandemia, o The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene publicou um artigo sobre o impacto da “infodemia” na saúde pública, distinguindo entre boatos, estigmatizações e teorias da conspiração publicadas em plataformas online de vários países (Santos, 2020).
A mentira, a deturpação de factos, e outros fenómenos semelhantes, não são produtos do nosso século. Todavia, o tempo presente gerou novas particularidades e alterou completamente o modo como são comunicados, mas também instrumentalizados.[11] O que levou o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Ghebreyesus, a afirmar que o mundo enfrentava não apenas uma pandemia, mas também uma luta contra a pandemia de informação, a qual chamou de “infodemia” (Santos, 2020, p. 274).
Embora a expressão já tivesse sido referida anteriormente por Ralph Keyes, na obra publicada em 2004, The Post-Truth Era. Dishonesty and Decepion in Contemporay Life, conforme nota d’Allonnes (2018/2020), a “pós-verdade” só começou a estar no centro da atenção pública no final de 2016, quando foi proclamada palavra do ano pelo dicionário de Oxford, que a definiu como um adjetivo “relativo ou denotando circunstâncias em que factos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal.” (Flood, 2016, para. 2).
Tal como os seus congéneres prefixais (pós-modernidade, pós-guerra, pós-pandemia…), a pós-verdade não marca apenas qualquer coisa que vem depois do que a precede, mas também uma rutura qualitativa que dá origem a um novo regime de historicidade: o prefixo “pós-”, mais do que a ideia de que passámos à frente da verdade no sentido temporal, indica no sentido de que “a verdade foi eclipsada” e se tornou “irrelevante” (McIntyre, 2018, p. 5). No entanto, também é sinal de uma certa dificuldade em nomear a singularidade do tempo presente, nas palavras da filósofa Myriam Revault d’Allonnes, “em sinalizar o indício de uma crise da qual o ‘pós-’ é, por assim dizer, a denominação, a manifestação lexical” (d’Allonnes, 2018/2020, p. 13).
Entre os acontecimentos que inauguraram oficialmente a indiferença pela verdade está a campanha em torno do Brexit e os episódios que acompanharam a eleição de Donald Trump. Segundo Revault d’Allonnes estes dois acontecimentos colocaram em causa não só a noção de verdade, mas sobretudo aquilo que Hannah Arendt designou por “verdade de facto” (d’Allonnes, 2018/2020, p. 62),
A verdade de facto diz respeito aos contextos, aos acontecimentos em que uma multiplicidade de indivíduos está envolvida, e só existe quando comprovada. Os factos e as opiniões resultam ambos dessa multiplicidade (d’Allonnes, 2018/2020). Todavia, a sua proximidade radica apenas no sentido dos primeiros serem a matéria das segundas, e não o contrário como no seguinte exemplo: aquando da cerimónia de tomada de posse do então Presidente Donald Trump, o secretário de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer, garantiu que tinha sido a maior audiência de sempre a testemunhar um evento semelhante, apesar das imagens confirmarem precisamente o oposto (Cardoso, 2017). A conselheira de Trump, Kellyanne Conway, questionada sobre a polémica, respondeu que Spicer não tinha mentido, mas apenas apresentado “factos alternativos”. Ao que o jornalista terá respondido: “Factos alternativos não são factos, são falsidades.” (Esteves & Sampaio, 2020, p. 29).
Ora, se as opiniões não se fundam senão no sentido em que se fundamentam em verdades de facto, a pós-verdade desfaz essa validação e consegue, assim, eliminar a linha que separa a verdade da mentira. “Já não é necessário que os factos informem as opiniões.” (d’Allonnes, 2018/2020, p. 16). Basta simplesmente que se queira que tal exista, como vimos no exemplo anterior, em que Spicer insiste numa inverdade que é refutada por todas as fontes credíveis, sendo ainda depois disso validado pela conselheira da Casa Branca. Trata-se de uma evidente manobra de embuste com vista a influenciar ou manipular a opinião pública, mas também uma inversão da própria noção de verdade, o que leva McIntyre a ressalvar que o espectro da “pós-verdade” não se limita a exercícios de mentira ou manipulação: trata-se de um fenómeno mais vasto em que a própria noção de verdade é destruída a partir da ideia de que “a reação da multidão muda realmente os factos relacionados com uma mentira.” (McIntyre, 2018 p. 9). Daí que, continua Lee McIntyre, “o que parece novo na época da pós-verdade é um desafio não só à ideia de conhecer a realidade, mas à própria existência da realidade.” (McIntyre, 2018, p. 10). Conclusão que nos convida a revisitar a distopia desenvolvida por Orwell (1948/2007) em “1984″.
Se, com a emergência da pós-verdade, a distopia de Orwell (1948/2007) tem presentemente tão forte repercussão, não é tanto porque faz ressaltar a desumanidade de um sistema totalitário e ditatorial, seja ele de direita ou de esquerda. É, sobretudo, porque representa uma sociedade na qual a noção de verdade teria desaparecido completamente, dando lugar à possibilidade de “factos alternativos”, como dois mais dois ser igual a cinco.
Numa época marcada pela difusão desmensurada de informação falsa, deturpada, enganadora ou descontextualizada, com o objetivo de manipular a opinião pública ou simplesmente atrair tráfego e obter receitas de publicidade, há quem encontre a oportunidade perfeita para lançar campanhas de propaganda e manipulação política. Não é um fenómeno novo, mas atingiu um grau que transforma numa das mais preocupantes ameaças às sociedades democráticas, sobretudo pela ação das redes sociais que permeiam a opinião pública e pelo descrédito que atinge, hoje em dia, as vias tradicionais de difusão de notícias, mas também pelo facto de certos líderes políticos começarem a classificar notícias verdadeiras como fake news, simplesmente porque são negativas para si. Neste sentido, Graig Silverman, editor do BuzzFeed News, aponta o dia 11 de janeiro de 2017 como um ponto de viragem no significado de fake news, pois foi nessa data que o então Presidente dos EUA, Donald Trump, “redefiniu o termo para significar, efetivamente, notícias de que ele não gostava.” (Silverman, 2017, citado em Esteves & Sampaio, 2019, p. 21) Segundo uma avaliação da Snopes, um site dedicado à desconstrução de notícias falsas, entre o início de 2017 e 2019, Trump utilizara o termos fake news mais de 450 vezes no seu Twitter, referindo-se na maior parte das vezes à comunicação social, jornalistas e até mesmo fat-checkers (Esteves & Sampaio, 2019).
Portanto, já não está em causa se uma notícia é verdadeira ou falsa, mas se está de acordo com determinados desejos ou convicções políticas. A divisão entre o verdadeiro e o falso acaba, assim, por ser insignificante face à eficácia do “fazer crer.” (d’Allonnes, 2018/2020, p. 13). Pouco importa se os factos informam ou não as opiniões: as verdades incómodas ou indesejadas são rapidamente transformadas em “subjetividades” que se podem sustentar como se não estivessem diretamente apoiadas em factos indubitáveis: transforma-se as fake news precisamente no seu oposto (Esteves & Sampaio, 2019).
A pós-verdade pretende assim caracterizar o relativismo que tomou conta da nossa cultura, excessivamente condescendente para com certas afirmações isentas de validação científica, mas que agora se vêm apresentando sob o disfarce de uma espécie de ceticismo legítimo. Segundo Michiko Kakutani, esse relativismo teve o seu início com o surgimento do pós-modernismo, que argumenta entre outras coisas que as teorias científicas são construídas socialmente: “são infundidas pela identidade da pessoa que postula a teoria e os valores da cultura na qual estes se formam; por conseguinte, a ciência não pode fazer reivindicações de neutralidade ou de verdades universais.” (Kakutani, 2018/2018, p. 41).
Não cabe aqui fazer uma análise sobre as posturas marcadamente diferentes em relação à rejeição do modernismo e do pensamento iluminista no qual o pós-modernismo se alicerça através das suas diferentes vozes, mas apenas aludir ao princípio subjacente pelo qual se regem, que se caracteriza “pelo ceticismo radical em relação à possibilidade de adquirir conhecimento objetivo ou verdade e um compromisso para com o construtivismo cultural” (Pluckrose & Lindsay, 2020/2021, p. 35). Para Kakutani (2018/2018), ao colocar em causa a possibilidade de uma realidade objetiva e ao trocar as noções de perspetiva e de posicionamento pela ideia de verdade, o pós-modernismo consagrou o princípio da subjetividade. Isto não significa que a ideia pós-moderna rejeite a realidade, mas que se foca essencialmente na subjetividade que a produz. Neste sentido, a linguagem é encarada como sendo pouco confiável e instável, o que, em alguns casos, tem contribuindo para a politização da ideia de que os factos científicos não são mais do que uma posição relativa de qualquer coisa.
Como mostraram as ações levadas a cabo por Trump contra os cientistas americanos da Agências de Proteção do Ambiente, a apropriação de um discurso a favor de uma subjetividade científica, na maior parte das vezes só serve para atender a motivações pessoais, interesses económicos ou políticos. Durante a pandemia, essa apropriação ficou ainda mais evidente, através de declarações polémicas e até mesmo perigosas para a segurança dos cidadãos, alimentando a emergência de grupos negacionistas e de teorias da conspiração face ao vírus.
Quando responsáveis políticos apelam mais às emoções ou às crenças pessoais do que à racionalidade e à reflexão sobre os factos objetivos é porque, julgam eles, terão mais hipóteses de moldar a opinião pública e ganhar a adesão e o apoio dos cidadãos. A mentira, a deturpação, a conspiração, são, muitas vezes, mais plausíveis, até mais tentadoras, do que as verdades de facto, dado que causam mais impacto, como também antecipam aquilo que não raras vezes o público deseja ouvir (d’Allonnes, 2018/2020 p. 68), sobretudo quando o seu nível pré-reflexivo já está condicionado pela psicopolítica neoliberal e digital.
Adorno, em 1967, já alertava para o perigo da lógica anti-intelectualista, na ascensão de determinados grupos que se alimentam precisamente de fantasias e fantasmas para alcançar poder (Adorno, 2019/2020). Arendt também já tinha chamado a atenção para o mesmo ponto, escrevendo que o súbito ideal do estado totalitário não é o nazi ou o comunista persuadido, mas “pessoas para quem a distinção entre o facto e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a distinção entre o verdadeiro e o falso (isto é, os padrões de pensamento) já não existem.” (Arendt, 1951, citado em Mason, 2019/2019, p. 159). E, mais recentemente, d’Allonnes (2018/2020, p. 14) refere que “é possível considerar que a emergência da pós-verdade se relaciona com o aumento dos populismos (…).”
Hoje, graças aos meios tecnológicos cada vez mais sofisticados e poderosos, esses grupos podem alcançar melhores resultados. De acordo com Volker Weiß:
Na era da Internet, a combinação constatada por Adorno entre uma perfeição extraordinária dos meios e uma abstrusidade completa dos objetivos é mais evidente do que nunca. Deu-se muita atenção às suas manifestações, como bots, trolls e fake news. Sob esta superfície, torna-se evidente precisamente a constelação de meios racionais e objetivos irracionais, que Adorno considerava uma tendência civilizatória global, mesmo sem tais excessos [itálico acrescentado]. (Weiß, 2019/2020, pp. 81-82)
Étienne de La Boétie refere no seu ensaio Discurso sobre a Servidão Voluntária o seguinte: “Mas não há dúvida nenhuma de que o tirano só se sente em segurança quando consegue ter como súbitos homens sem valor.” (La Boétie, 1563/2020, p. 42). Acrescentando, mais à frente, que “os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, o preço da liberdade que perdiam, as ferramentas da tirania.” (La Boétie, 1563/2020, p. 43).
Se pensarmos no que são hoje os “engodos da servidão”, “as ferramentas da tirania”, veremos que cada vez mais se articulam com os meios tecnológicos, capazes de favorecer o embrutecimento da verdade dos factos e, por sua vez, fomentar a lógica anti-intelectualista que confere a segurança e a estabilidade necessárias para o crescimento de extremos políticos.
O surgimento do que designamos de desobediência alternativa designa a materialização da crescente crença em factos alternativos sob a forma de ação política, colocando em causa as restrições impostas pelo estado de emergência e, em alguns casos, negando até a existência da pandemia. É, portanto, um tipo de protesto alicerçado num mundo fictício no interior do qual os indivíduos, manipulados, se reconhecem e encontram sentido para lidar com as consequências da pandemia.
Podemos considerar a desobediência alternativa como um corolário da psicopolítica hodierna e da assunção da pós-verdade, na qual os “factos alternativos” se integram, ampliados e multiplicados por redes digitais que criam uma espécie de recomendação tácita em cada partilha. O seu método é aproveitar a atual psicopolítica e multiplicar sempre o absurdo, incentivando a propagação viral e levando os seus usuários a confiarem mais acriticamente na validade de certos conteúdos.
Desobediência civil
O termo ‘Desobediência Civil’, cristalizou-se historicamente a partir da obra Civil Desobedience, de Henry Thoreau, publicada em 1849. Ainda que três séculos antes, Étienne de La Boétie houvesse pensando sobre o assunto como forma de apelar para a opressão praticada pelos tiranos: “Se nada se lhes der, se não se lhes obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres, reduzidos a nada; da mesma forma que a raiz, sem humidade e alimento, se torna seco e morto.” (La Boétie, 1563/2020, p. 23). A questão era então de saber por que razão se obedecia tão cegamente aos tiranos. La Boétie responde dizendo que era porque a natureza humana havia sido apoderada por vícios. Ainda assim, o filósofo francês acreditava na possibilidade de superação: pois haveria “na nossa alma uma semente natural de razão, a qual, se cultivada com bons conselhos e bons costumes floresce em virtude (…).” (La Boétie, 1563/2020, p. 26)
La Boétie propõe-se questionar a liberdade humana perante a opressão, um exercício que acaba por ser bastante semelhante ao de Thoreau (1849/2015). Porém, com uma diferença substancial: em La Boétie trata-se de um manifesto contra a servidão voluntária numa sociedade aparentemente sem consciência da opressão em que vive. Já em Thoreau, pode-se dizer que se trata de um ensaio sobre a desobediência como meio para alterar determinadas leis injustas: “As leis injustas existem. Deveremos nós contentar-nos com obedecer ou devemos antes fazer tudo para as emendarmos?” (Thoreau 1849/2015, p. 27).
Em 1846, Thoreau passou uma noite na prisão, após ter recusado pagar impostos, uma atitude justificada pela sua posição contrária à escravatura e ao conflito que opunha os Estados Unidos ao México: “Há milhares de pessoas que em teoria se opõem à escravatura e à guerra, mas que, de facto, nada fazem para que a escravatura e a guerra acabem.” (Thoreau 1849/2015, p. 22). A seu ver, uma coisa seria certa:
(…) se mil, ou cem ou mesmo dez homens honestos, se até mesmo um só homem honesto, no Estado de Massachusetts, renunciando à posse de escravos, rompesse com as normas que o Estado impõe e se deixasse fechar na cadeia, o resultado seria a abolição da escravatura na América. (Thoreau 1849/2015, p. 30)
É a partir deste contexto que desenvolve as suas ideias sobre a desobediência civil que, como veremos, se fundamentam mais em apelos à consciência individual do que à coletiva. O que é compreensível, tendo em conta a sua atração pelo individualismo e naturalismo: “Temos de viver sozinhos, só connosco, dependeremos apenas a nós, estarmos sempre prontos para começar de novo, não termos muito de nosso.” (Thoreau 1849/2015, p. 34).[12]
Nas palavras de Thoreau (1849/2015):
É evidente que nenhum homem tem obrigação de se dedicar totalmente à eliminação do que está errado, por muito monstruoso que o erro seja; toda a gente tem o direito de se dedicar a outras atividades mais convidativas. Mas é seu dever, pelo menos lavar as mãos e, no caso de desistir de pensar mais no assunto, tem de fazer por não dar, na prática, apoio à iniquidade. (p. 25)
O facto de Thoreau ter-se focado mais na consciência pessoal, e não tanto “na relação moral de um cidadão com a lei” (Arendt, 1970/2017, p. 17), leva-nos a considerar a sua teoria da desobediência civil muito próxima da objeção de consciência. Vejamos. Ao fundamentar a desobediência civil na esfera da subjetividade, Thoreau parte da consciência individual e da obrigação moral da consciência:
Não hesito em afirmar que todos quantos se dizem abolicionistas têm obrigação de retirar imediatamente o seu apoio (tanto pessoal como material) ao governo do Estado de Massachusetts, em vez de ficarem à espera de obter uma exígua maioria, mais votante, para então recorrerem ao direito de se impor. (Thoreau, 1849/2015, p. 29)
Portanto, o filósofo estadunidense encoraja a todos os abolicionistas a se concentrarem na sua própria natureza moral, em vez de se guiarem por ações coletivas. A desobediência é entendida como um meio pelo qual o indivíduo age de acordo com seus próprios princípios, perante uma situação por si considerada injusta. Caso contrário, seria como admitir uma derrota pessoal: “Obedecer é como confessar que nada valho.” (Thoreau, 1849/2015, p. 35).
O risco de nos tornarmos complacentes com o mal com o qual não estamos pessoalmente comprometidos tem sido uma das objeções mais comuns à desobediência civil de Thoreau, designadamente a tecida por Arendt.
Segundo Arendt: “Os argumentos apresentados em defesa da consciência individual ou de atos individuais, ou seja, os imperativos morais ou os apelos a uma lei mais alta, seja ela secular ou transcendente, são inadequados quando aplicados à desobediência civil.” (Arendt, 1970/2017, p. 12). Desde logo porque a consciência é uma categoria demasiado subjetiva. Embora possa, por vezes, impedir a cumplicidade com o mal, não exige necessariamente uma ação coletiva capaz de impulsionar mudanças positivas no discurso político e, consequentemente, no bem-estar da comunidade. Motivo pelo qual Arendt acuse a teoria da desobediência de Thoreau de ser demasiado subjetiva e não-política (Arendt, 1970/2017).
Apesar da recusa de Thoreau em pagar impostos constituir uma violação pública da lei, ele fá-lo a título pessoal e não necessariamente porque se sentisse responsável por um projeto comum de bem-estar da comunidade, correndo o risco de a sua ação ser entendida como um crime ou contraordenação, e não como um protesto. Assim, para que uma violação à lei seja compreendida como uma desobediência civil, Arendt argumenta que ela também deve ser coletiva, caso contrário é uma objeção de consciência. Daí distinguir entre objetores de consciência e participantes na desobediência civil: “Os últimos são de facto minorias organizadas, aglutinadas por uma opinião comum, (…), e pela decisão de tomar uma posição contra as políticas do governo (…).” (Arendt, 1970/2017, p. 12). Acrescentando, adiante:
A desobediência civil ocorre quando um significativo número de cidadãos se convence de que os canais normais da mudança já não funcionam, e as queixas não são ouvidas ou não se age quanto a elas, ou então, pelo contrário, quando o governo está prestes a mudar e embarcou e persiste em modos de ação cujas legalidade e constitucionalidade estão abertas a sérias dúvidas. (Arendt, 1970/2017, p. 32)
Em suma, só aqueles que desobedecem pública e coletivamente à lei são verdadeiros desobedientes civis. Portanto, enquanto Thoreau compreende a desobediência civil como um compromisso individual, Arendt entende-a como um compromisso coletivo, orientado para um projeto comum.[13]
O compromisso individual pode ser usado para justificar todo o tipo de opinião, ou crença pessoal, portanto, não garante, necessariamente, a moralidade de uma ação. Já a consciência baseada num compromisso coletivo busca ser adaptada à necessária e desejável mudança, ou à necessária e desejável proteção do status quo, de modo a alertar a opinião pública, e através dela melhorar a sociedade. Contudo, quer Thoreau, quer Arendt, não previram a possibilidade de a desobediência se vir a justificar a partir de factos alternativos, cuja legitimidade moral é, no mínimo, questionável.
Durante o estado de emergência, a maioria das pessoas obedeceu voluntariamente às medidas impostas pelo Estado, não estivéssemos efetivamente a viver uma situação-limite. Portanto, não se tratou de obedecer por hábito ou por cobardia, como diria La Boétie (1563/2020), mas por convicção racional — a confiança nas evidências empíricas que nos iam chegando.
Foi graças à convicção racional de que o vírus se transmitia rápida e descontroladamente, que as medidas de restrição mereceram especial consideração, pois não só diminuíam o contágio como protegiam a liberdade e o direito dos outros em não ficarem infetados. O que não significa que tais restrições não gerassem situações de extrema injustiça, criando, ou ampliando, as diferenças e as desigualdades sociais preexistentes. Aliás, diversos foram os protestos ocorridos ao longo da pandemia, chamando a atenção para a necessidade de respostas alternativas, designadamente, entre nós, o movimento “Na Rua Pelo Futuro da Cultura”, reivindicando medidas de emergências efetivas para o sector, sem que nunca tivessem questionado a efetiva existência da pandemia ou a eficácia das restrições (Lusa, 2021). O que significa que a desobediência civil pode ser moralmente justificada, mesmo sob certas situações-limite, como é o caso de uma pandemia. Bem diferente quando da crença em factos alternativos, como veremos de seguida.
Desobediência alternativa
Em traços gerais, a desobediência civil é uma forma de protesto público em que se viola deliberadamente a lei, com vista a combater uma injustiça que por vezes reside na própria lei violada, e costuma ser geralmente pacífica, estando quem desobedece disposto a sofrer as consequências decorrentes dessa mesma violação.[14] Encontramos aqui vários elementos que, simultaneamente, compõem o núcleo fundamental da desobediência civil: a publicidade, a ilegalidade do ato, a orientação contra uma injustiça e a pacificidade. Note-se que em nenhum deles se encontra qualquer menção que sugira a necessidade de verdade em relação aos factos que motivam essa desobediência. Parte-se do princípio que quem participa na desobediência fá-lo baseando-se em factos e não em meras suposições extraídas de “factos alternativos”. Já a desobediência alternativa seria uma forma de protesto também público em que se infringe deliberadamente a lei, no entanto, mostrando indiferença ou negação pelos factos que sustentam a validade da norma violada. O que em alguns casos pode constituir até um ato de violência, quando essa mesma indiferença ou negação incita ou provoca danos a terceiros. Por exemplo, no caso da pandemia, infringindo o uso obrigatório de máscaras de proteção em locais públicos de risco. O que não parece ser entendido como uma verdadeira agressão por parte destes grupos. Na verdade, parte da sua legitimação resulta da ideia de que estão a ser solidários face às injustiças produzidas por “factos alternativos”, isto é, que, no fundo, estão a ser globalmente responsáveis. Daí a distância que separa este tipo de responsabilidade da responsabilidade apoiada em factos, o que nos leva a questionar a sua alegada pretensão pública e política.
Apoiando-se mais na ficção do que na realidade, a desobediência alternativa pode ser entendida como um indicador inegável de uma perda significativa de consciência moral e racional, pronúncio da própria psicopolítica contemporânea, a partir da qual se gera novas redes de discurso que não têm correlativo no meio social fora do espaço em que se situam, precipitadas e alimentadas pelo próprio funcionamento das redes sociais.
Por isso, também pode ser compreendida como um contra-espaço, encontram um refúgio, opositivo, contra a realidade existente, promovendo comunidades de solipsistas que confirmam os pressupostos umas das outras.
O facto da desobediência alternativa se recolher em circuitos fechados (bolhas) remete-nos para a sua natureza heterotópica, isto é, marginal relativamente ao espaço social comum padronizado. Evidentemente que esta analogia só é possível se partirmos da sua função opositiva e distintiva, notada por Foucault num outro lugar de contra-espaços, as “heterotopias” (Foucault, 1986/2005, s.n).
De acordo com Foucault:
Em primeiro lugar, existem as utopias. As utopias são sítios sem lugar real. São sítios que têm uma relação analógica directa ou invertida com o espaço real da Sociedade. Apresentam a sociedade numa forma aperfeiçoada, ou totalmente virada ao contrário. Seja como for, as utopias são espaços fundamentalmente irreais. (Foucault, 1986/2005, s.n)
Ao contrário das utopias, as heterotopias não são “sem lugar”, os seus lugares são localizáveis e não raras vezes acessíveis, ainda que partilhem com as primeiras o poder de suspender ou de inverter a realidade.
Entendemos que a desobediência alternativa, ao fazer surgir no interior da sociedade um lugar desviante, requalifica o espaço real, participando da “estranha afinidade salientada por Arendt entre capacidade de mentir e exercício da liberdade” (Arendt, n.d, citado em d’ Allonnes, 2018/2020, p. 102). Desta maneira, contrariamente às heterotopias que imaginativamente enriquecem de forma positiva o real, não desorganizando o mundo como ele é senão na ordem a habitá-lo, a desobediência alternativa, indiferente à separação entre verdadeiro e falso, limita-se a gerar substitutos falaciosos que recusam as verdades de facto ao mesmo tempo que destroem o solo do mundo comum, projetando-se mais como um refúgio que opera de forma lateral a partir da destruição do social e do político, do que como um verdadeiro contra-espaço que reconhece os factos de onde habita.
Daí que a desobediência alternativa corresponda a uma manifestação de negação do projeto comum, sendo, portanto, desprovida de qualquer “nós político” com capacidade de ação comum. E, apesar de se crer livre de qualquer poder negativo externo, submete-se à lógica profundamente anti-intelectualista que ao longo do tempo foi sendo sedimentada pela ideologia neoliberal e as novas tecnologias, sendo, assim, uma expressão material de uma crise profunda da própria racionalidade e liberdade.
Conclusão
Este trabalho procurou desenvolver o conceito de desobediência alternativa a partir do acontecimento pandémico, mas que se vinha insinuando há algum tempo a partir da psicopolítica contemporânea.
A psicopolítica neoliberal e os seus instrumentos tecnológicos de controlo cada vez mais sofisticados não são compatíveis no interior de um projeto comum, liberal, democrático e universal, pois interferem na forma como lidamos com a verdade factual, mas também com a própria liberdade, resultando na intensificação do egoísmo e do individualismo que limita a resposta coletiva para lidar com determinados fenómenos como a pandemia.
A noção de desobediência alternativa de que aqui tratamos é entendida como um dos resultados possíveis e materiais desse mesmo poder que vem orientando o sujeito; não um poder tradicional, que se lhe impõe negativamente, mas insidioso e autoimposto, impedindo-o de estabelecer uma relação autêntica consigo mesmo e, consequentemente, com a objetividade circundante. Se, como refere Arendt, a desobediência deve ser um compromisso coletivo, a desobediência alternativa vem colocar isso em causa, não só através da falta de identificação com a verdade dos factos, mas também com a sua natureza claramente apolítica. Neste sentido, numa situação-limite em que se deveria incentivar a noção de comunidade, os principais grupos de desobediência alternativa, revelam não só a permeabilidade dos discursos da pós-verdade, mas também uma profunda crise nas lutas coletivas.
Em tempos de pandemia, as notícias falsas, o negacionismo científico, traduzem-se diretamente em danos reais. A crescente propagação e ampliação de inverdades, partilhadas massivamente pelos meios de comunicação atuais, além de configurarem atuações suscetíveis de serem consideradas ilegítimas, têm revelado que o esforço necessário para garantir que as pessoas estejam bem informadas está a ser vencido pelo embrutecimento da pré-reflexão, tornando a comunicação num conjunto de frases sem tempo de serem digeridas, e impedindo o diálogo racionalmente mediado, essencial para a conservação de um projeto comum assente na deliberação ou troca coletiva que favoreça a elaboração e o exercício de um juízo partilhado. Quanto mais os “factos alternativos” forem normalizados, mais a comunicação será irracionalmente mediada e se tornará operativa, dando lugar a ações humanas cada vez mais extremistas e irracionais.
Daí chegarmos à conclusão de que a linguagem da pós-verdade é incompatível com a linguagem democrática, porque não implica um diálogo apoiado na livre argumentação racional, como diria Habermas, mas numa configuração própria da psicopolítica hodierna, por meio da qual se pode construir uma realidade subjetiva desligada do mundo da vida que, se baseando em “factos alternativos”, compromete o ideal de democracia liberal. Portanto, uma ameaça para o próprio processo democrático, assente no princípio de participação. Daí que busca por “factos alternativos” não gere diálogo nem comunidade, desde logo por excluir a racionalidade que nos une enquanto seres humanos.
Aquilo que verdadeiramente partilhamos uns com os outros não é nem a ignorância nem o saber, mas sim uma exigência de racionalidade e verdade.[15] Ser responsável é assim lidar com os dados objetivos e renunciar à tentação de se servir de factos que, como vimos, não seguem nenhuma regra nem verdade e, como tal, são incapazes de orientar um diálogo racional. Se, como refere Frédéric Gros, desobedecermos é, portanto, supremamente, obedecermos, obedecermos a nós próprios, então desobedecer à verdade dos factos é tornarmo-nos traidores de nós mesmos, na medida em que estamos a negar a nossa própria natureza racional (Gros, 2017/2019, p. 198).
Dito isto, a desobediência alternativa, ao resultar da psicopolítica hodierna, a partir das consequências da chamada época da pós-verdade, deve ser entendida mais como um “refúgio” que reforça o espaço de heterotopia em que estes participantes se encontram, do que como uma verdadeira desobediência no sentido político e social do termo, já que se centra fora dos limites da verdade e racionalidade e, como tal, da vida pública. Ainda assim, a desobediência alternativa não deixa de abrir igualmente possibilidades para novas formas de resistência geradoras de mudanças políticas e sociais profundas, com um impacto negativo nas democracias liberais, e como tal, apela por uma reflexão mais profunda sobre a regulação das redes sociais e do impacto da ideologia neoliberal na vida das pessoas.
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Data de submissão: 06/07/2021 | Data de aceitação: 23/12/2021
Notas
Por decisão pessoal, o autor do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.
[1]Nota prévia: o presente artigo construiu-se a partir de uma ideia que surgiu pouco depois das diversas manifestações que, um pouco por todo o lado, se multiplicaram contra as medidas restritivas que vigoraram durante os períodos de confinamento obrigatório, motivadas por uma visão negacionista da realidade. Para a sua realização, recorreu-se a mais fontes de natureza jornalística do que seria de supor, mas sem as quais dificilmente se poderia alcançar o parte do objeto em torno do qual se desenvolve esta reflexão.
[2]Sobre o problema da ideologia patente na “filosofia oracular” da pandemia vd. Rosas (2020).
[3]Entre nós, os Médicos pela Verdade, os Jornalistas pela Verdade, os Juristas pela Verdade, são apenas alguns exemplos dos movimentos que foram surgindo durante a pandemia. Cf. (Pereira, 2021).
[4]Ressalve-se, no entanto, que os protestos aos quais nos referimos não são os que visam encontrar um equilíbrio entre saúde e economia, tendo por base propostas fundamentadas, nem os que se opõem à forma de como os governos têm gerido a pandemia, mas sim aqueles que negam a evidência empírica, não raras vezes sem cumprir com as normas de segurança e, em alguns casos, incitando à desobediência civil.
[5]No seu ensaio “Post-Scriptum Sobre as Sociedades de Controlo”, Deleuze (1993, citado em Han, 2014/2015) faz a distinção entre a sociedade disciplinar foucaultiana, que se organizava em torno dos espaços fechados da fábrica, da escola e da prisão, e a nova sociedade de controlo, em que todas as instituições estão integradas numa empresa dispersa. A biopolítica foucaultiana é a forma de governo típica da sociedade disciplinar, sendo inadequada para o regime neoliberal que explora principalmente a psique. Neste sentido, a biopolítica, que se serve da estatística da população, não tem acesso ao psíquico, não fornecendo material para o psicoprograma da população, cf. (Han, 2014/2015).
[6]Sloterdijk (2006/2010), inclusivamente escreveu um ensaio sobre a situação timótica do nosso tempo, com o título Cólera e Tempo.
[7]Partiu-se da ideia kantiana segundo a qual existem princípios universais que estão acima de qualquer comportamento, a partir do conhecido axioma: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” cf. (Kant, 1797/2007, p. 59), mas também da ideia utilitarista patente em Mill (1861/2005) de que a legitimidade moral deverá poder ser traduzida por uma generalização acerca do que, de forma mais provável, possa criar felicidade.
[8]Cf. Neves (2020), Reuters (2020), Rodrigues (2021) e Carmo (2021).
[9]Por exemplo, um restaurante em Lisboa recusou cumprir a ordem de encerramento prevista pelo estado de emergência invocando o direito à resistência. Por muito que não sejam consensuais as medidas aplicadas para conter o vírus, não há legitimidade legal para invocar tal direito como justificação para não acatar uma ordem de encerramento, desde logo porque esta é legitimada pela declaração de estado de emergência. Cf. (Diário de Notícias, 2021).
[10]Sobre a diferença entre motivos e intenções cf. Ricoeur (1969/1988), nas páginas 50 a 51.
[11]Essa instrumentalização pode ser tanto política como económica, potenciada através de uma poderosa rede tecnológica que promove, entre outra coisas, a vigilância e o controlo, através da compra de dados e algoritmos que condicionam a forma de pensar, como bem demonstra Zuboff (2019/2020).
[12]Sobre a sua experiência naturalista e individualista vd., em particular, Thoreau (1854/2018).
[13]Ainda que a objeção de consciência, enquanto compromisso individual, e o protesto público não sejam exatamente iguais, podem estabelecer relações entre si, se considerarmos que quem desobedece a determinadas leis espera poder encorajar outras pessoas a fazer o mesmo (Nathanson, 2006). Na verdade, não faltam exemplos de pessoas que desafiaram as convenções previamente estabelecidas, tendo servido de inspiração para o que viria a ser um protesto público, sobretudo depois de julgadas e executadas, como foi o caso de John Brown: “Estes homens, ensinando-nos a morrer, ensinaram-nos também a viver.” (Thoreau 1849/2015, p. 86). Neste sentido, para Donatella Di Cesare, (2021, p. 116), “o gesto da desobediência apresenta-se então modelado por uma superioridade moral e permeado por um ideal de martírio”.
[14]Sobre a defesa dos protestos não violentos, vd. Butler (2021).
[15]Estamos a basear-nos na ideia kantiana da autonomia da razão humana vd. Kant (1797/2007).
Autores: João Tiago Gouveia