N.º 27 - dezembro 2021
João Teixeira Lopes
Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Departamento de Sociologia, Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal.
E-mail: jlopes@letras.up.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6891-7411
Frente a frente com o vírus
No princípio era a pergunta e este livro é um impressionante gerador de questões. Com Boaventura Sousa Santos a indagação transporta ainda uma clarificação sobre os caminhos a seguir, alargando os horizontes do possível através de um labor que se edifica a partir de um grande incómodo. Que incómodo é esse? A constatação de que o pensamento hegemónico cavalga as monoculturas redutoras e as formas mais insidiosas de violência (o genocídio e o epistemocídio), as quais procuram apagar as sementes de insurgência, localizando as práticas e os territórios emancipados e silenciando a polifonia da diversidade incomensurável do mundo.
A atual pandemia constitui o melhor pretexto para um confronto da contemporaneidade consigo mesma, os seus modos de desenvolvimento, os seus regimes de (des)conhecimento, as suas (incapacidades) de inteligibilidade e tradução das diferenças. Assim, ao pensar de outra maneira, desafiando os dogmas da fatalidade, a imaginação enfrenta o presentismo que reduz todas as evidências ao conformismo da impossibilidade de um aqui e agora; eterno presente encarcerado no esquecimento do passado e na contenção distópica do futuro como ininterrupta sucessão de presentes. No paroxismo da crise, o sociólogo dialoga com o vírus, traduz a sua linguagem e busca decifrar a mensagem. Este é o programa forte do novo livro do sociólogo mais internacionalizado de língua portuguesa.
A tese não carece de ambição: a pandemia do coronavírus é o clímax de um fim, o precipício da modernidade iniciada no século XVI com a colonização e desde então assente em três vértices inextricavelmente ligados: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. A lição seminal da intensidade pandémica pode exprimir-se na máxima “a partir de agora, entramos numa época em que pertencemos à natureza” (p. 15). O vírus é, pois, o grande revelador, a potência onde se concentram as contradições de um tempo em ruínas. Sob esse prisma, o vírus é radical. Não tem contemplações, não nos é anterior ou exterior. Na verdade, vírus e humanos coexistem, qual híbrido, exprimindo a relação predadora face à natureza, nesta orgia destrutiva onde sobressaem as alterações climáticas, desmatando as florestas e penetrando em territórios outrora habitat exclusivo de animais selvagens.
Ora, se nenhum retorno é possível, importa conhecer o que de novo se insinua e emerge. As Epistemologias do Sul, que Boaventura tem trabalhado há muito, fornecem os utensílios para esse afã. Não se pense nelas como uma evocação geográfica, encontre-se antes um método para perscrutar os saberes (práticas, discursos, formas organizativas) que permitem “fazer falar o silêncio” e os silenciados, aqueles e aquelas, seja no sul ou no norte geográficos que, ao longo de séculos, sofreram nas malhas da exploração capitalista, da violência colonial de destruição de saberes e memórias, com agudo prolongamento no racismo que estrutura as nossas sociedades ou na subordinação das mulheres aos modos de pensar, fazer, dizer e sentir masculinos. A necropolítica vigente destrói subjetividades e patrimónios de disposições; a “micropolítica dos pequenos medos” (Lazzarato, 2009) paralisa na precaridade, na incapacidade de mobilizar recursos reflexivos e de prever ou desenhar um futuro outro.
Por conseguinte, o livro pode ser entendido como um pensamento rebelde à procura de consequências. Não é possível fugir para as ilhas encantadas ou para qualquer alienação que o feiticismo oferece em abundância. Na urgência, amplia-se o conhecimento para vencer o apocalipse derrotista de todas as feições. Temperado pela esperança metódica, sistemática e organizada, criam-se as condições intelectuais para a construção de utopias viáveis, baseadas na “ecologia de saberes”, na “tradução intercultural” e no princípio do não desperdício das experiências. A crise do coronavírus, ao não permitir um retorno, exige que inventemos algo de novo e que emerge já nesse caleidoscópio de saberes, práticas e discursos geradores de emancipação que instituem a diversidade do mundo.
A grande novidade da presente pandemia é que torna improcedentes as tentativas de naturalização e neutralização do fenómeno que é um desastre social e político, criado por um modo de desenvolvimento e uma subjetividade produtivista, espetacular, predadora e competitiva. Se desarmadilharmos as estruturas que são o seu alicerce, incluindo as de teor cognitivo, ultrapassaremos o mero estado de negatividade em que alguma da teoria crítica tem mergulhado. O pessimismo é a recusa da razão crítica em mover-se para fora de si mesma, no lance antropofágico que inaugura um novo tempo.
Assim, a crise é o início de uma transição paradigmática, para utilizarmos a expressão de Thomas Kuhn. Crise e crítica associam-se, pois, num movimento dialético de grande fulgor, separando, revelando, avaliando e desafiando as opiniões conservadoras, os discursos falsamente encantatórios, as autoridades costumeiras. No chão áspero da crítica cabe o diagnóstico que Boaventura faz da modernidade tardia, mas também o esquisso das cartografias da esperança. Tal como o autor refere em artigo já antigo, “a teoria é a consciência cartográfica do caminho que vai sendo percorrido pelas lutas políticas, sociais e culturais que ela influencia tanto quanto é influenciada por elas” (Santos, 1999, p. 215). Tais cartografias não normativas e sem limites fixistas, que registam e ampliam as boas práticas, implicando os próprios agentes sociais, seus territórios e formas organizativas, mostram o profundo conhecimento do autor sobre uma miríade de experiências que vão sendo concretizadas em vários continentes. Esse mapeamento cognitivo é uma condição de mobilização para transcender a ordem vigente que explode pelo vírus. Aliás, o livro, pelas suas riquíssimas notas de rodapé, onde constam links para muitas desses ensaios de emancipação, permite uma navegação flutuante e em rede, mas de onde brota um conhecimento que une os pontos, os tempos, as escalas de observação e os territórios. Essas cartografias teriam uma consequência mitigada sem uma perspetiva prudente de totalização em processo. Tal holismo é o da tradução, não o do ponto de vista soberano. Propõe pontes e não fecha portas. Acrescenta, pelo diálogo da diferença. Confere visibilidade, resgatando silêncios. Combate o poder, dando voz. Se ficássemos apenas por um somatório de engrenagens e focos, em jeito de dispersão rizomática, perderíamos o enfoque partilhado e coletivo.
Que caminhos insinua a cartografia rebelde? Um calcorrear, que demorará o seu tempo e exigirá um enorme esforço, entre as monoculturas excludentes e as ecologias do interconhecimento. Em concreto, propõem-se dinâmicas: “Da monocultura do saber rigoroso às ecologias de saberes; da monocultura do tempo linear à ecologia das temporalidades; da monocultura da classificação social ex natura à ecologia das diferenças, e reconhecimentos; da monocultura da escala dominante à ecologia das trans-escalas; da monocultura do produtivismo capitalista à ecologia de produtividades”. Constroem-se, pois, os alicerces das pluralidades futuras, valores que não se reduzem ao valor e que contribuirão, ousadia do autor, para “uma nova declaração não-universal cosmopolita de direitos e deveres humanos”, onde, entre outras dimensões, a Natureza também será titular de direitos. Pela minha parte, talvez refém de recalcitrante costela crítica iluminista, não teria obstáculos em pugnar por um universalismo translocal, não soberano, de percurso, tenso e dialógico, fundado no interconhecimento e promotor de desvendamento mútuo. O sociólogo Boaventura inscreve-se, aliás, nas possibilidades que a heterogénea ciência crítica moderna apesar de tudo abarca, levando ao limite as potencialidades das controvérsias, do controlo cruzado de pares e da força certeira do pensamento não domesticado e não burocrático. É certo que as forças de convergência face ao status quo encontram particular conforto na mercantilização de um saber pronto a usar e embevecido pelo fétiche do “mérito” e pelas virtudes da “concorrência” e da “produtividade” econométrica. Mas é ainda a partir das margens de autonomia do campo científico que a proposta epistemológica, ética e política do sociólogo se expande, em espirais sucessivas de uma rede conceptual singularmente articulada e coerente. Na sociologia plural que defendo (Lopes, 2012), sociólogos académicos com distintos papéis e repertórios, subvertendo os interesses dominantes nos interstícios da dominação e impondo uma desaceleração ao imediatismo mercantil, poderão traduzir nos seus próprios termos e ritmos (teorias, conceitos, desenhos metodológicos) o compromisso com as lutas sociais, o diálogo com todos os saberes e experiências. Como o próprio defende, este livro não é um manifesto anti ciência, pois procurar alargar os limites internos e externos da prática científica em direção ao oceano dos conhecimentos.
Eis-nos, pois, perante um roteiro bem fundado de esperança. Assim preparados, o vírus encontrará agentes empoderados e não resíduos enfraquecidos, sub-humanos e descartáveis. O medo não se alimentará do medo.
Referências
Lazzarato, M. (2009). Neoliberalism in action: inequality, insecurity and the reconstitution of the social. Theory, Culture and Society, 26(6), 109-133.
Lopes, J. T. (2012). Da especificidade da sociologia na transformação do mundo. In M. J. Casa-Nova, A. Benavente, F. Diogo, C. Estêvão, & J. T. Lopes (Orgs), Cientistas Sociais e Responsabilidade Social no Mundo Actual (pp. 25-34). Edições Húmus.
Santos, B. S. (1999). Porque é tão difícil construir uma teoria crítica? Revista Crítica de Ciências Sociais, (54), 195-215.
Data de submissão: 09/12/2021 | Data de aceitação: 29/12/2021
Notas
Por decisão pessoal, o autor do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Autores: João Teixeira Lopes