N.º 33 - dezembro 2023

José Maria Carvalho
FUNÇÕES: Conceptualização, Visualização, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Departamento de Sociologia, Escola de Ciência Sociais da Universidade de Évora.
Largo dos Colegiais, 2, Apartado 94, 7002-554 Évora, Portugal
E-mail: carvalhoze10@hotmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1479-2155

Deu à estampa em junho de 2022, pela mão das Edições Húmus e com a chancela do CICS.NOVA/Edições, o título Atores da educação musical. Etnografia nos programas socioculturais El Sistema, Neojiba, Orquestra Geração (355 págs.), da autoria de Alix Didier Sarrouy.

Como o título enuncia, o assunto do livro é a utilização da música para fins educativos junto de populações jovens residentes em ambientes urbanos socioeconomicamente desfavorecidos, tendo como unidade de análise três núcleos — Santa Rosa de Agua, Bairro da Paz e Miguel Torga — pertencentes a três programas socioculturais desenvolvidos em latitudes diversas, respetivamente o El Sistema (Venezuela), o Neojiba (Brasil) e o Orquestra Geração (Portugal).

No capítulo introdutório, o autor posiciona-se num lugar fronteiriço entre os mundos da arte e da educação, ou, como chega a escrever, nos “mundos da arte-educação” (p. 253), definindo as linhas mestras das correntes teóricas seguidas, a saber, o pragmatismo clássico estadunidense, o interacionismo simbólico e a Escola de Chicago. Procurando visar a arte musical na “espessura das ações” (p. 32), Sarrouy enaltece o seu elo com a vida, na medida em que constitui uma “experiência” (Dewey, 2010) situada no tempo e no espaço que “resulta da vida em sociedade” (p. 32), podendo servir de “instrumento para atingir fins que a ultrapassam” (p. 22). Porque inserida na teia de interações estabelecidas em cada um dos núcleos, a obra de arte é considerada mais como um processo do que um resultado final: “se o objetivo musical pode servir de motor, é sobretudo no processo que se focalizam os numerosos ensinamentos dos professores junto dos alunos” (p. 246). O que conduz ao questionamento de como pode a música constituir um instrumento valioso para a prossecução de uma educação de qualidade, isto é, para o desenvolvimento pessoal e social dos jovens que frequentam os núcleos.

Ainda no capítulo introdutório Sarrouy apresenta as principais opções metodológicas. O núcleo, entendido como “espaço físico situado no tempo, onde decorre a ação socioeducativa” (pp. 37-38) com o objetivo de “atingir resultados junto dos jovens alunos através do ensino da música sinfónica” (p. 255), é o ponto onde arte e educação se cruzam, formando, por isso, “o sujeito e a problemática da investigação” (p. 37). Dada a natureza situada do processo musical, os “resultados dos núcleos dependem da relação entre os seus atores diretos (…) e das condições de trabalho que os objetos e o espaço possibilitam” (p. 255), elementos cuja indagação requereu o desenvolvimento de “metodologias qualitativas de ordem empírica e compreensiva” (pp. 35-36) que leva a sério aquilo que os atores dizem e fazem. Mantendo um “foco conscientemente indefinido” (p. 37) à partida, Sarrouy aplica as “artes da escuta, da observação e do diálogo” (p. 43) no curso da sua etnografia, demonstrando uma adaptação bem conseguida às diferentes capacidades expressivas dos atores, após o que realiza um trabalho de indução assente, sobretudo, na observação das situações concretas, posteriormente descritas detalhada e espessamente, e na condução de entrevistas semiestruturadas, seguidamente codificadas.

Nas Partes I e II, Sarrouy faz, respetivamente, uma descrição minuciosa dos três contextos de pesquisa e dos tipos de atores envolvidos, mais ou menos diretamente, na malha de relações que dão corpo aos núcleos: alunos, professores, encarregados de educação, auxiliares de educação e diretores e coordenadores, procurando uma leitura compreensiva das suas origens, trajetórias e pontos de vista. Este exercício tem o mérito de manter como pano de fundo os núcleos, definindo os atores e seus contextos à luz da densa malha de relações que lhes dá corpo.

Na Parte III (composta por quatro capítulos) desenvolve-se a análise sociológica, constituindo o centro do livro. No primeiro deles, o Capítulo VII, indaga-se a respeito do corpo como operador fundamental da aprendizagem e da vinculação dos jovens à música, mormente na sua relação com os instrumentos musicais. Enquanto prolongamento do corpo, estes promovem um trabalho de tomada de consciência do próprio corpo que passa pela postura, pela respiração, pela sensibilização do olhar, da audição e do tato, espoletando uma aprendizagem sobre si próprio. A música constitui uma “soma-experiência” (Shusterman, 1992) — estética, rítmica e cinestésica —, ou uma “experiência corporante”, onde o corpo é pensante e ativo, permitindo compreender a personalidade dos jovens, mas também agir educativamente: “educar o corpo é, pois, uma forma de educar a pessoa” (p. 233). Todavia, a relação com os instrumentos não ocorre num vazio, mas no contexto da orquestra, implicando a assimilação de regras e códigos de coordenação subjacentes à sintonização musical, desembocando igualmente numa aprendizagem sobre si pela alteridade. Mas também numa aprendizagem sobre os outros: a convivência com modos de vida díspares relativiza o posicionamento dos jovens, “sempre sobre um fundo de valores musicais: a escuta do outro; a construção em conjunto; a união na diferença; a complementaridade para atingir um resultado final. Assim se forma o aluno como cidadão” (p. 246).

No capítulo seguinte Sarrouy lembra que o contexto em que estas interações ocorrem ultrapassa o, mais imediato, ambiente orquestral, convidando, pois, a uma navegação entre várias escalas de pesquisa. Além da sua organização interna, os núcleos respondem a fatores externos inerentes aos contextos mais vastos em que se inserem. Desde logo, num habitat, o que passa por trazer à liça as dinâmicas dos bairros e cidades em causa, com o respetivo peso dos grupos de pertença dos jovens, tais como a escola, a Igreja ou as famílias. Mas também num ecossistema, que aponta para a cultura nacional, num sentido antropológico. Demonstra-se que “quando estudamos um núcleo, os seus atores, o seu habitat e os seus múltiplos ecossistemas, apercebemo-nos de que o conjunto está interconetado” (p. 282), pelo que fatores aparentemente distantes podem facilitar ou dificultar a adesão, a permanência e o envolvimento dos jovens na experiência musical.

O modo como estas diferentes escalas de análise se articulam é o mote do Capítulo IX, salientando-se a ideia que, longe de seguirem uma lógica de reprodução linear dos seus contextos, os núcleos se adaptam à constante transformação dos mesmos. A continuidade entre o trabalho realizado nos núcleos e os seus contextos não é fluída, tampouco fácil, sendo antes uma questão empírica. Por um lado, existem “descontinuidades” quando a ação dos núcleos se vê interrompida por forças contrárias (como ter que ajudar os pais), por outro, “contrastes” quando os jovens são colocados perante diferenças extremas (como a segurança, vivida nos núcleos, por contraposição ao perigo, experimentado em alguns bairros). Podendo dar azo à desmotivação e desvinculação dos jovens, o autor refere que as descontinuidades e contrastes podem, paradoxalmente, constituir fatores de ligação aos núcleos na medida em que os jovens, resilientes face aos seus contextos, as identifiquem como caminhos a evitar e provocações a responder, conseguindo-as converter em algo positivo.

Essencial para cogitar o envolvimento dos jovens nos núcleos é a “convenção cinética”, conceito densificado no Capítulo X. Se as convenções costumam ver sublinhada a sua vocação de constrangimento, Sarrouy realça o lado inverso. A convenção cinética é aberta e fluída, onde a regra é não bloquear a ação e saber resolver o quotidiano, conduzindo os esforços situados de adaptação às particularidades sociais de cada jovem e núcleo, permitindo “um grau de liberdade e de movimento aos atores para resolver de forma mais flexível os problemas dia a dia” (p. 305). Esta subdeterminação facilita a conversão das dificuldades em vínculo aos núcleos, visto que mantém os jovens sobre a tensão da surpresa e evita a adoção de uma postura-base, oferecendo um equilíbrio entre a segurança do apego e o risco da desfamiliarização, e assim motivando-os. A experiência musical, e artística em geral, privilegia precisamente este “estranhamento familiar” (p. 324), concedendo liberdade para agir de forma exploratória e, assim, desencadeando dinâmicas de capacitação, confiança e responsabilização.

Nas Notas Conclusivas, Sarrouy destaca duas ideias principais que, conjugadas, permitem situar a real valia da música enquanto instrumento educacional em contextos adversos. A primeira é que a música oferece ferramentas e capacidades que vão para além da música: “serve para retirar as crianças das ruas, ocupá-las em grupo, dar-lhes responsabilidade e objetivos educativos” (p. 20) e “permite modelar cidadãos conscientes dos seus deveres e direitos em sociedade” (pp. 337-338). A segunda é que a música, por si só, não é uma panaceia dos problemas sociais, tendo que ser enquadrada nos devidos contextos sociais e articulada com várias instâncias do trabalho social:

utilizar uma arte musical como ferramenta para uma mudança social no indivíduo não é tarefa fácil, pois a instituição e os atores têm primeiro de compreender o que significa o trabalho social, com que ferramentas se faz e que resultados se desejam. (p. 334)

Em suma, e em tom de apreciação global, afirmamos tratar-se este livro de um contributo significativo e inovador para a literatura sociológica das artes e educação, cumprindo cabalmente os seus propósitos. Premente no quadro da recente reconfiguração das políticas sociais (Gardella & Cefaï, 2011), subscritora de abordagens mais, capacitantes, ativas e atentas à subjetividade (Ehrenberg, 2010), Sarrouy mostra, na linha das novas sociologias da arte (de la Fuente, 2007; DeNora, 1999; Hennion, 1993) como a música orquestral constitui uma experiência que equilibra a disciplina e a improvisação (Joas, 1996), abrindo espaço para que os jovens possam expressar a sua singularidade num contexto educativo nem sempre fluído.

Se alguma insuficiência apontamos ao livro é o de limitar a amplitude e a densidade da discussão teórica no quadro das perspetivas teóricas convocadas, designadamente das novas sociologias pragmáticas, sem com isso beliscar a sua abordagem indutiva. De resto, é o próprio autor que, estando disto ciente, previne o leitor que “não [insistiu] na possibilidade de uma análise sociológica ainda mais aprofundada e técnica (…) [não havendo] um real confronto de conceitos ou de teorias” (p. 332). Como contrapartida, trata-se de um livro com um público-alvo abrangente, desde sociólogos, pedagogos, cientistas da educação, psicólogos, antropólogos, artistas, mas também profissionais de intervenção junto de crianças.

Referências

de la Fuente, E. (2007). The ‘New Sociology of Art’: Putting Art Back into Social Science Approaches to the Arts. Cultural Sociology, 1(3), 409-425.

DeNora, T. (1999). Music as a technology of the self. Poetics, 27(1), 31-56.

Dewey, J. (2010). L’art comme expérience. Gallimard.

Ehrenberg, A. (2010). La Société du malaise. Odile Jacob.

Gardella, E., & Cefaï, D. (2011). La morale de l’urgence sociale: une enquête au SAMU Social de Paris. Empan, (84), 18-24.

Hennion, A. (1993). La Passion musicale. Une sociologie de la médiation. Métailié.

Joas, H. (1996). The creativity of acton. University of Chicago Press.

Shusterman, R. (1992). Pragmatic Aesthetics: Living beauty, rethinking art. Blackwell Publishers.

Data de submissão: 31/10/2023 | Data de aceitação: 07/11/2023

Notas

Por decisão pessoal, o autor do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Autores: José Maria Carvalho