Nº 3 - junho 2011

João Arriscado Nunes, Sociólogo. Professor da FEUC – Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do CES – Centro de Estudos Sociais. Endereço electrónico: jan@ces.uc.pt

Abstract: This paper discusses the recent evolution of ethics and its codification in research areas involving human subjects. Some of the main issues addressed in the paper are the way the model for the protection of subjects participating in biomedical research is tendentially regarded as a model for all forms of research involving human subjects, and the debates it has raised. This is followed by a discussion of some of the dilemmas and challenges faced by social scientists working in the field of health, and the way they broaden the difficulties in transferring the approach to ethics of biomedical research to the social sciences. The later sections suggest some directions for the identification of new ethical challenges to social research on health and for the formulation of a situated and procedural ethics.

Keywords: ethics, health, social research, human subjects.

Resumo: Neste artigo é discutida a evolução recente da ética e da sua codificação em áreas de investigação envolvendo sujeitos humanos. É abordada, em particular, a forma como o modelo da protecção dos sujeitos envolvidos na investigação biomédica tende a ser apresentado como modelo para todas as formas de investigação envolvendo sujeitos humanos, assim como os debates que tem suscitado. A seguir, são apresentados alguns dos dilemas e desafios que a investigação em saúde suscita aos cientistas sociais, e o modo como elas amplificam as dificuldades em transferir o modelo ético da investigação biomédica para as ciências sociais. Nas secções finais, são sugeridas algumas pistas para a identificação de novos desafios éticos à investigação social em saúde e para a formulação de uma ética situada e processual.

Palavras-chave: ética; saúde; investigação social; sujeitos humanos.

 

1. Introdução

 São hoje numerosas as experiências de cientistas sociais envolvidos em estudos em domínios como o da saúde que são confrontados com descrições, por aqueles que participam na sua investigação, do seu trabalho como o estudo de questões de ética. Falar em “ética”, nestes casos, é falar do conjunto dos aspectos encontrados nesses terrenos que costumam ser “arrumados” sob os rótulos do social, do psicológico, do psicossocial, do político ou do cultural. A “ética” seria, pois, uma designação conveniente para tudo o que não tem estritamente a ver com os aspectos técnicos e científicos da actividade dos profissionais ou investigadores em saúde. Por outras palavras, a ética aparece como uma espécie de categoria residual que permite definir por exclusão de partes aquilo que os cientistas sociais fazem quando investigam as instituições, dinâmicas sociais, trajectórias e carreiras de profissionais e de doentes e práticas no domínio da saúde. Têm vindo a crescer, contudo, os sinais de que uma definição mais rigorosa e circunscrita do que são as questões éticas suscitadas pela investigação em ciências sociais, em geral, e, em particular, sobre temas ligados à saúde, começa a tomar forma, com consequências que estão longe de ser claras e com implicações que estão longe de reunir o consenso dos cientistas sociais, mas que terão certamente um impacto significativo na maneira como se desenha e realiza a investigação em ciências sociais. As associações profissionais de sociólogos, de antropólogos ou de investigadores em educação, entre outros, desde há várias décadas que adoptaram códigos de ética ou códigos deontológicos que definem os deveres e as responsabilidades dos cientistas sociais para com o seus pares e para com os sujeitos que participam nos seus projectos de investigação ou de intervenção. Mas há dois aspectos que suscitam novas interrogações e preocupações, ao ponto de se temer pela própria possibilidade de realização, no futuro, de certos tipos de investigação, em nome da protecção da integridade ou privacidade das pessoas que participam na investigação.

O primeiro desses aspectos tem a ver com a passagem de temas e questões que durante décadas foram tratados como pertencendo ao domínio do que, desde a década de 1960, sobretudo, se chamaria a política da investigação para o domínio da codificação e da definição das obrigações do cientista social; o segundo aspecto tem a ver com a tendencial extensão dos modelos de protecção dos sujeitos humanos adoptados pela medicina e pela investigação clínica ao conjunto das disciplinas que lidam com sujeitos humanos, incluindo, portanto, as ciências sociais, e, em particular, àquelas formas de investigação social de tipo etnográfico[1], que poderão ser, na prática, inviabilizadas ou colocadas “fora da lei” por essa extensão.

Esta situação exige dos cientistas sociais e das suas organizações profissionais uma atenção particular ao modo como algumas das tendências que se verificam já, neste campo, em países europeus e da América do Norte, principalmente, têm vindo a criar tensões importantes entre o dever de protecção dos sujeitos – individuais ou colectivos – da investigação e o direito a fazer investigação. Em alguns casos, verifica-se uma preocupante tendência para a invocação de princípios éticos evoluir para uma juridicização das relações entre cientistas sociais e sujeitos da investigação, criando sérias limitações à viabilidade da própria investigação social. Em sentido contrário, porém, algumas experiências de investigação apontam, antes, para a necessidade de uma interrogação crítica de alguns dos pressupostos em que assentava a obrigação expressa de protecção dos sujeitos.

Neste artigo, procura-se apresentar, em primeiro lugar, uma discussão, necessariamente breve, da evolução recente da ética e da sua codificação em áreas de investigação envolvendo sujeitos humanos. É abordada, em particular, a forma como o modelo da protecção dos sujeitos envolvidos na investigação biomédica tem sido proposto como modelo para todas as formas de investigação envolvendo sujeitos humanos, assim como os debates que tem suscitado. A seguir, são apresentados alguns dos dilemas e desafios que a investigação em saúde suscita aos cientistas sociais, e discute-se o modo como elas amplificam as dificuldades em transferir o modelo ético da investigação biomédica para as ciências sociais. Nas secções finais, são sugeridas algumas pistas para a identificação de novos desafios éticos à investigação social em saúde e para a formulação de uma ética situada e processual.

2. A investigação clínica e a sua regulação ética como modelos para a investigação com sujeitos humanos

Num ensaio recente, a propósito do debate, no seio da Associação Francesa de Sociologia, da proposta de uma carta deontológica da profissão de sociólogo, Mustapha El Miri e Philippe Masson notavam, numa nota de rodapé, que “o desenvolvimento em França de pesquisas sociológicas no domínio da saúde, a partir de contratos de investigação com hospitais, laboratórios ou agências de saúde pública, é sem dúvida um elemento que contribui para a actualidade dos debates deontológicos na profissão” (El Miri e Masson, 2010: 269, nota 10). Noutro ensaio publicado no mesmo volume, uma investigadora em sociologia médica do INSERM comentava a criação, em 2003, de uma Comissão de Qualificação Institucional naquele instituto, certificado por um organismo federal norte-americano, e que tem como objectivo a avaliação de projectos de investigadores do INSERM “em todas as disciplinas, a quem entidades financiadoras ou parceiros estrangeiros pedem a obtenção de uma validação ética do seu empregador” (Vassy, 2010: 252)[2]. A Comissão é presidida por um médico, e é composto, na sua maioria, por “médicos, investigadores em ciências da vida e responsáveis administrativos do INSERM, como juristas” (ibid). A mesma autora refere-se a essa comissão com um exemplo de como instituições desse tipo, devido à sua compreensão redutora da investigação sociológica e dos processos da sua realização, se podem tornar obstáculos à própria possibilidade de realização de certas formas de investigação, especialmente as que recorrem a abordagens etnográficas (ibid., 251-52). De facto, os critérios a que em geral recorrem essas comissões para avaliar os projectos que lhes são apresentados são os mesmos que são hoje correntes para a avaliação e autorização de investigações clínicas. Sendo a investigação sociológica e antropológica considerada como parte da categoria mais geral de investigação com seres humanos, as mesmas exigências em matéria de defesa dos direitos e da protecção dos participantes na investigação devem ser salvaguardados, recorrendo aos mesmos instrumentos, como, por exemplo, a declaração de consentimento informado dos sujeitos, que lhe é comunicada antes do início da investigação, e que deve ser por eles assinada antes do início das actividades de investigação[3].

O debate em torno da adequação às ciências sociais – ou, pelo menos, à investigação envolvendo abordagens etnográficas – desta forma de escrutínio prévio dos projectos de investigação e dos seus efeitos sobre a própria viabilidade de certos tipos de investigação não é novo. Nos Estados Unidos, no Canadá e no Reino Unido, por exemplo, esse debate dura há décadas, e não dá sinais de estar a diminuir. Em muitas universidades e instituições norte-americanas, foram criados Institutional Review Boards (IRBs), órgãos que têm como objectivo avaliar a adequação ética dos projectos realizados por investigadores da instituição, e pelo qual têm de passar todos os projectos, independentemente da disciplina ou área científica em causa (ainda que algumas instituições, como a Universidade de Harvard, a Universidade de Pensilvânia ou o MIT tenham admitido derrogações (waivers) para certos tipos de investigação e para algumas áreas (a história oral e ao jornalismo, por exemplo). Os IRBs guiam-se pelas orientações de um organismo federal, o Office for Human Research Protection, tutelado pelo Departamento de Saúde e Serviços Sociais[4]. A existência e multiplicação de IRBs é visto por algumas vozes críticas como um modo de as instituições se defenderem de processos por alegação de violação dos direitos dos participantes em investigações, e como um obstáculo, mesmo que potencial, à liberdade de investigar. Mas, para além dessas controvérsias as IRBs representam, por um lado, uma extensão do que tem vindo a ser designado de audit society, ou sociedade da avaliação (Strathern, 2000), a aspectos da actividade científica que, até há pouco tempo atrás, pareciam escapar a formas de escrutínio para além da avaliação pelos pares; e, por outro, uma extensão do modelo de regulação da investigação clínica ao conjunto da investigação com seres humanos. O caso do Canadá é especialmente significativo. Nesse pais, foi definida, em 1998, uma política nacional única com respeito à ética da investigação com seres humanos, pelos Institutos de Investigação em Saúde, pelo Conselho de Investigações em Ciências Naturais e Engenharia, e pelo Conselho de Investigações em Ciências Humanas, definindo critérios comuns a todas as disciplinas[5]. Outros países, como o Reino Unido e a África do Sul (Fassin, 2006), definiram uma regulamentação comum para todas as formas de investigação com seres humanos no domínio da saúde (Vassy, 2010: 248).

3. A especificidade da investigação em ciências sociais

O debate em torno dos temas referidos na secção anterior não é de todo novo nas ciências sociais. Mas nem sempre eles foram expressos recorrendo ao vocabulário da ética, mesmo quando o terreno aos quais se referiam era o da saúde. Alguns manuais, volumes de ensaios e publicações colectivas sobre as experiências de trabalho de terreno na sociologia publicadas até à década de 90, sugerem que as perplexidades, problemas e dilemas que hoje são “arrumados” no espaço da ética tenderam, pelo menos desde a década de 30, a ser abordados como problemas metodológicos ou de “estratégia”, ou como parte do que, nos anos 80 e 90, passou a ser descrito como a política da pesquisa de terreno[6]. Como lembra Fassin (2006: 522), a ética era considerada como uma virtude incorporada pelos investigadores, não como um conjunto de enunciados normativos ou uma forma de regulação “externa” da investigação. Não é possível, aqui, abordar em pormenor a história da emergência da ética como preocupação central de disciplinas como a sociologia ou a antropologia e o modo como questões outrora tratadas como problemas de método ou de política da pesquisa passaram a ser considerados como problemas éticos – o que constituiria, por si só, todo um programa de investigação. Mas, especialmente na antropologia, a relação com a saúde e com os usos da disciplina para fins militares e de contra-subversão foram estímulos importantes para promover em novos termos o debate sobre as condições e implicações da investigação, e especialmente da investigação de tipo etnográfico[7]. É sobre esta que irá incidir a discussão que se segue.

Quais são, então, os problemas que passaram a ser “adjudicados” à ética? Quando o tema é abordado, hoje, em manuais de métodos e na formação dos sociólogos, é nele incluída, invariavelmente, a enumeração das normas que devem orientar a investigação de terreno, como a obrigação de informação dos sujeitos sobre a investigação a realizar; o consentimento informado dos sujeitos; a garantia do direito de recusa em participar na investigação ou de suspender a participação nesta; o direito à privacidade e à imagem; a obrigação de não causar mal ou dano aos sujeitos da investigação…[8] A ética tende a aparecer associada à noção de direitos, mais precisamente, os direitos dos sujeitos da investigação, e às obrigações definidas nos códigos deontológicos ou códigos de ética das associações que representam disciplinas como a sociologia ou a antropologia. A ênfase na linguagem dos direitos e das obrigações é indissociável, por sua vez, de uma tendência para a juridicização das relações entre investigadores, instituições de investigação, sujeitos da investigação e entidades que financiam as pesquisas, recorrendo a leis de âmbito mais geral, como as que protegem a privacidade ou garantem o direito à imagem ou à propriedade intelectual. Um colóquio realizado em França em 2009 permitiu mostrar essa dupla tendência para a tentativa de regular a actividade de investigação através de códigos e de comissões de ética, por um lado, e do recurso à justiça, por outro, confrontando a actividade de investigação com desafios novos, que podem colocar sérios obstáculos à liberdade de investigação e à viabilidade de certas formas de investigação (Laurens e Neyrat, 2010).

Essa viabilidade pode ser comprometida quando são ignorados, nas normas e procedimentos de regulação da investigação, as condições específicas em que se realizam as pesquisas de tipo etnográfico e as características dos próprios processos de investigação. Em primeiro lugar, as situações de pesquisa de terreno nas ciências sociais são substancialmente diferentes das que são encontradas na investigação biomédica. Entre as características que diferenciam o “estilo” etnográfico de investigação incluem-se, em primeiro lugar, o facto de a pesquisa incidir, não sobre um conjunto delimitado de pessoas identificáveis previamente ao início da investigação, mas sobre situações, processos e relações, cuja dinâmica constitui, precisamente, o foco dessa pesquisa. Mesmo quando o trabalho de terreno implica relações próximas e continuadas com alguns actores (entre eles os que são, ainda hoje, designados por vezes de informantes privilegiados), essas relações podem mudar ao longo do tempo, novos actores podem vir a participar na investigação, outros podem deixar de participar nesta. Em geral, é difícil (senão mesmo impossível), definir as condições em que será realizada a investigação previamente à ida para o terreno. De facto, essa definição é um processo, através do qual são estabelecidas as relações com actores e com colectivos e em que são identificados os espaços, as situações ou os processos que constituem as unidades de observação. O que constitui o terreno num dado projecto de pesquisa é, em si mesmo, um processo que atravessa a duração do projecto, um going concern de quem faz pesquisa de terreno, como nos ensina a sociologia interaccionista. A noção, central à etnografia, de rapport, o forjar e cultivar de relações de proximidade e de confiança com os sujeitos que participam na investigação, e a familiaridade com os contextos em que se trabalha, corresponde a uma actividade continuada, é ela própria parte do conhecimento que o etnógrafo procura construir através da sua presença no terreno. É através dessas relações continuadas, e que se vão transformando, que se pode aceder à compreensão das diferenças e desigualdades, das contradições, tensões e conflitos que atravessam os processos que se estuda, das relações diferenciadas e por vezes conflituais dos sujeitos em relação à aceitação da investigação e/ou à desejabilidade de participar nesta, das posições diferentes sobre a exigência de anonimato ou, pelo contrário, a exigência de visibilidade e de identificação, de ver reconhecido o seu nome e a sua história pessoal. E será desnecessário, certamente, mencionar as compreensões distintas, associadas à diferença cultural ou a relações de poder e a desigualdades, do que é um indivíduo ou uma pessoa, do que significa consentir, do que conta como informação, a relação com a escrita, de quem tem autoridade para dar consentimento informado em nome de um grupo ou de outra pessoa, de quem tem poder para exercer o direito de recusar participar numa investigação, mas também de quem tem a capacidade para poder fazer valer a exigência de realização de investigações a que resistem os dominantes ou poderosos.

A inadequação do modelo de regulação da investigação clínica à investigação de terreno nas ciências sociais torna-se, assim, manifesta. A imposição desse modelo a todas as formas de investigação envolvendo sujeitos humanos assenta no ignorar das condições em que se realiza a investigação de terreno nas ciências sociais e dos processos através dos quais ela toma forma. Esse modelo parte do pressuposto de que os participantes na investigação são indivíduos isolados que são sujeitos ao controlo e à acção discricionária dos que realizam a investigação, e submetidos a procedimentos susceptíveis de pôr em risco a sua saúde ou a sua vida – e que por isso devem ser informados de maneira precisa e completa sobre todos os passos da pesquisa e sobre os seus objectivos, de maneira a poderem consentir, de maneira informada, participar nela. Desta forma, atribui-se aos sujeitos que participam na investigação em ciências sociais, por um lado, uma vulnerabilidade que, podendo ser real no caso de dispositivos como os que são accionados para a investigação clínica, está longe de ser evidente em situações de pesquisa etnográfica; e, por outro, presume-se que o consentimento informado constitui uma protecção adequada e suficiente contra abusos ou violações dos direitos dos participantes numa pesquisa. Mais uma vez, são assim ignoradas as relações de obrigação mútua que se vão tecendo através da permanência mais ou menos prolongada do pesquisador no terreno, que tornam mais complexas as relações de poder entre este e os sujeitos, e menos controláveis pelo pesquisador do que o modelo do ensaio clínico sugere. E o que fazer quando o pesquisador é confrontado com situações de violência corporal ou de violência estrutural, com violações de direitos de cidadãos ou de direitos humanos, perante as quais terá de tomar decisões que podem comprometer ou transformar de maneira profunda e irreversível o seu projecto inicial?[9] E poder-se-ia também discutir se os efeitos da investigação, as suas consequências para os que nela participaram, podem ser incorporadas ex ante no desenho do projecto, de forma a garantir a protecção da privacidade, da segurança ou do direito à imagem dos sujeitos, ou se elas não serão contingentes, e por vezes, bastante diferentes do que esperavam os pesquisadores e os participantes na pesquisa[10].

Não se nega que a formalização dos deveres das pessoas que fazem pesquisa e dos direitos dos que participam na pesquisa, no formato de um código de ética ou de um código deontológico, possa ter uma função importante, que é a de estabelecer um quadro geral desses deveres e direitos. Mas é importante reconhecer os limites dessa formalização. Corre-se o risco de, através de uma especificação demasiado precisa, acabar por limitar e circunscrever o tipo de investigações que os cientistas sociais podem fazer, ou mesmo, como nota Daniel Céfaï (2009: 20), pôr “fora da lei” uma boa parte das formas de investigação qualitativa, especialmente as de tipo etnográfico.

Um código de ética inspirado nos que definem as normas para a investigação clínica tenderia a limitar as formas legítimas de investigação àquelas que fossem baseadas em inquéritos por questionário, análises documentais, entrevistas estruturadas ou semi-estruturadas, com definição prévia das pessoas a entrevistar e do guião de entrevista, ou situações experimentais. A investigação etnográfica tornar-se-ia, para todos os efeitos práticos, inviável; a própria lógica de construção de uma relação da investigadora com os participantes na investigação, que é constitutiva do estilo etnográfico, seria dificultada ou impossibilitada pela necessidade de uma formalização prévia, por escrito, das condições de realização da investigação. De facto, mesmo quando ocorre essa formalização da relação com os que participam no estudo, ela não é suficiente para lidar com as contingências do processo de investigação: é necessário ter em conta leis ou códigos gerais, os termos específicos que são incluídos nos documentos de consentimento informado ou no contrato realizado com uma instituição, por exemplo, estabelecendo os objectivos e as condições da investigação, mas também, e sobretudo, as negociações situadas do acesso ao terreno, às situações que se pretende estudar ou a certas pessoas ou colectivos.

Compreende-se, assim, as razões que levaram, durante muito tempo, a que as questões que hoje classificamos de “éticas” fossem tratadas como questões políticas e metodológicas, como problemas a resolver no terreno, em torno de relações de poder; de condições de acesso; de construção de relações de confiança; de decisões sobre o grau de precisão e de inclusão das informações a prestar aos sujeitos sobre os objectivos da pesquisa; da decisão de revelar ou não aos sujeitos a condição de investigador; do grau de participação nas actividades que se estuda ou que estão associadas à participação no contexto em que se faz pesquisa; sobre o lado em que se está, quando se trabalha em contextos marcados por desigualdades, pela violência ou por violações de direitos… Como nos lembra, muito pertinentemente, Daniel Céfaï, “a ética joga-se e volta a jogar-se na interacção, ela é questão de ethos, de apreciação e de avaliação in situ. A actividade jurídica e judiciária não pode em caso algum substituir-se ao exercício da razão prática” (Céfaï, 2009: 16-17). Os desafios à ética aparecem, assim, ligados às próprias experiências da investigação, aos dilemas que são suscitados pela prática situada da investigação, que, como observa Didier Fassin, não lida com “sujeitos humanos em experimentações clínicas, mas com seres sociais em circunstâncias históricas – incluindo o etnógrafo” (Fassin, 2006: 524)[11].

Mas estas observações valem, em geral, para a investigação de tipo etnográfico em ciências sociais. A investigação em saúde, pela importância crescente que tem assumido, nomeadamente, na pesquisa em sociologia e antropologia, é afectada, certamente, pelos problemas e dilemas que foram enumerados. Mas podemos também interrogar-nos sobre eventuais especificidades da investigação em saúde, que poderão suscitar outras interrogações e outras preocupações. Afinal, os sujeitos da investigação em saúde são, muitas vezes, os mesmos cujos direitos as novas formas de regulação ética procuram proteger. Justificar-se-á, então, criar para a investigação social em saúde um regime especial de direitos e de deveres que tenha em conta as suas especificidades? Ou não permitirão essas especificidades, precisamente, um escrutínio mais pormenorizado e preciso dos limites e dos efeitos perversos do modo com esses deveres e direitos têm sido definidos?

3.1. A especificidade da investigação em saúde: lições da antropologia médica

 A investigação social em saúde abrange um conjunto amplo e diversificado de temas, desde o estudo de instituições e profissões ao das experiências e concepções dos cidadãos ou dos doentes sobre a saúde e a doença, passando pelos sistemas de saúde, a informação sobre saúde, a promoção de saúde, a saúde ambiental, os cuidados domiciliários, a vigilância sanitária e epistemológica, a indústria farmacêutica, a regulação de medicamentos, o uso de medicamentos, a investigação biomédica, as terapias alternativas ou tradicionais, as relações dos doentes com a biomedicina e dos utentes com os serviços de saúde, o direito à saúde, as políticas de saúde, as relações da saúde com o direito, a participação dos cidadãos na definição e avaliação de políticas de saúde, os movimentos sociais na saúde e as associações de doentes, a saúde do trabalhador a saúde reprodutiva e os direitos reprodutivos, as mulheres e a saúde, as desigualdades na saúde, e mesmo as comissões de ética…[12] A essa diversidade de temas corresponde uma diversidade de abordagens, de orientações teóricas e metodológicas, que não se reduzem a investigação de tipo etnográfico.

É importante notar que muita da investigação social em saúde suscita as mesmas interrogações e preocupações, nos planos do método, da política da investigação e da ética, de outros domínios da investigação social. Como mostraram diferentes tradições de investigação sociológica, do funcionalismo ao interaccionismo simbólico, da sociologia de Bourdieu à etnometodologia, da sociologia fenomenológica à teoria do actor-rede, o estudo de instituições, de profissões ou de processos de trabalho na saúde apresenta exigências e dificuldades que são, em muitos pontos, análogos às que surgem noutros domínios. Por isso, o campo da investigação social em saúde apresenta uma diferença fundamental em relação à investigação clínica: nem toda essa investigação lida com sujeitos humanos envolvidos com a biomedicina, como doentes ou como sujeitos experimentais. É certo que alguns temas podem ter uma relevância considerável para o bem-estar e a saúde de populações sem passar por uma relação directa com a experiência da doença ou das relações dos cidadãos com a medicina. Basta pensar nos estudos sobre os serviços de saúde e o acesso a estes ou sobre o direito à saúde, ou sobre a vigilância sanitária e a regulação de medicamentos. Mas as interrogações e preocupações éticas, nesses casos, assumem formas que, como foi já sugerido, não são muito diferentes das que surgem no estudo de outros tipos de instituições ou de sistemas normativos. Uma parte crescente da investigação social em saúde, contudo, implica um envolvimento directo dos investigadores e investigadoras com aqueles e aquelas que passam pela experiência da doença, do distúrbio, do trauma e do sofrimento. Trabalhar com pessoas doentes ou com deficiência ou com os seus familiares ou cuidadores, ou com grupos ou comunidades vulneráveis a diferentes tipos de ameaças à sua saúde ou à sua sobrevivência suscita interrogações, preocupações e dilemas novos, que não podem ser reduzidos aos que são contemplados nas formas de regulação inspiradas na ética biomédica, nem tratados de forma análoga aos que surgem na investigação social com outro tipo de actores e realizada noutro tipo de situações. É na antropologia médica que encontramos alguns dos exemplares de investigação que mais têm contribuído para a identificação de um conjunto de temas novos que obrigam a redefinir o leque do que conta como um problema ou dilema ético na investigação social em saúde. São discutidos, a seguir, quatro desses temas, e a sua importância para além dos contextos disciplinares e estudos específicos em que foram formulados e utilizados: o sofrimento social e a violência estrutural; o anonimato, a visibilidade e o dever de escuta; e a solidariedade pragmática.

3.2. Sofrimento social e violência estrutural

O alívio do sofrimento individual, inscrito no corpo do doente ou da pessoa que sofre, está no centro da missão das profissões que trabalham na saúde. O âmbito do que conta, hoje como sofrimento susceptível de ser objecto de intervenção médica é consideravelmente mais amplo do que o foi antes do advento da biomedicina, assim como o é o leque das profissões e especialidades, da medicina e da enfermagem à fisiatria e às profissões “psi”, passando por diferentes formas de terapias alternativas e de aconselhamento. Mais recentemente, um outro aspecto do sofrimento humano tem vindo a ganhar crescente importância, o que envolve populações ou grupos humanos atingidos por desastres, calamidades, guerras, genocídios ou perseguições. Essas situações encontram no que hoje se designa de acção humanitária uma resposta que é dirigida às consequências desses problemas, em nome do dever de ajuda a seres humanos atingidos ou afectados por eles, e que passam a ser incluídos na categoria geral de “vítimas” (Fassin, 2010). Como têm defendido vários comentadores, a resposta humanitária ignora frequentemente a importância de não esquecer que os problemas humanos “têm as suas origens e consequências nas lesões devastadoras que a força social pode infligir à experiência humana” (Kleinman et al, 2006: ix). O conceito de sofrimento social apareceu precisamente para impedir esse esquecimento. Por sofrimento social entende-se o sofrimento que “resulta do que o poder político, económico e institucional faz às pessoas e, reciprocamente, como essas mesmas formas de poder influenciam a resposta a problemas sociais”, desestabilizando “categorias estabelecidas. Por exemplo, o trauma, a dor e os distúrbios que resultam de atrocidades são problemas de saúde; mas eles são também questões políticas e culturais. Do mesmo modo, a pobreza é o risco maior associado à má saúde e à morte; mas isso é também uma maneira de dizer que a saúde é um indicador social e mesmo um processo social” (ibid.). Trata-se de questões que permitem problematizar as fronteiras entre o individual e o social, que mostram como o sofrimento é uma experiência social (ibid.). O sofrimento social está frequentemente associado a um outro fenómeno descrito pela antropologia médica, o da violência estrutural, uma forma de violência que resulta da existência de estruturas sociais, de modos de organização da economia e de relações de poder que geram desigualdades e vulnerabilidades diferenciadas (Farmer, 2010: 350-75). Embora ambos os conceitos tenham dado origem a debates por vezes bastante acesos, como refere Farmer a propósito do conceito de violência estrutural, a sua importância radica no modo como eles permitem a exploração sistemática dos efeitos das dinâmicas sociais, económicas e políticas na distribuição desigual do sofrimento, em particular daquelas formas de sofrimento que constituem o objecto da medicina, mas também daquelas a que acção humanitária procura responder. Aos investigadores sociais em saúde deve caber, por razões que são inseparavelmente científicas, políticas e éticas, a incorporação da exploração das formas de sofrimento social e de violência estrutural nas investigações que tomam como tema a experiência da doença, do trauma ou do sofrimento.

3.3. O anonimato, a visibilidade e o dever de escuta

É comum, na investigação social em geral e na investigação na saúde em particular, a ideia de que proteger os que participam numa pesquisa passa por garantir a anonimização dos seus testemunhos e de toda a informação que possa levar à sua identificação. Embora essa ideia seja justificada e haja boas razões para ela ser em, geral, adoptada quando não existe um pedido ou decisão expressa dos participantes em sentido contrário, são conhecidos casos – como os de investigação com figuras públicas ou com titulares de certos cargos – que podem inviabilizar, de facto, essa opção. Em certas situações, mesmo a anonimização não impede o reconhecimento de pessoas e de acontecimentos que anulam, para todos os efeitos práticos, essa opção, como aconteceu com o famoso caso da investigação de Arthur Vidich e de Joseph Bensman em Springdale, uma pequena cidade dos Estados Unidos, na década de 50 (Vidich e Bensman, 1968). Noutros casos, ainda, são os próprios participantes que podem solicitar a revelação dos seus nomes e das suas histórias. As razões para tal podem ser diversas, como o desejo de apresentar a experiência própria como um testemunho que se quer partilhar e tornar público, ou a vontade de denunciar o que se entende ser uma situação de injustiça, por exemplo.

Mas a investigação em antropologia médica tem dado a conhecer uma outra situação em que o anonimato é preterido, e em que ao investigador é pedido, pelos participantes na pesquisa, que ajude a dar visibilidade e publicidade a um nome, a uma cara, a uma história de vida ou a uma experiência, enquanto modo de afirmar uma condição de sujeito e protagonista de uma vida e de uma presença no mundo que circunstâncias ligadas à pobreza, à vulnerabilidade, à exclusão, ao abandono, ao trauma ou à violência tendem a fazer esquecer, a deixar perder na categoria geral de “vítima”, de entidade objectificada, sem vontade e sem capacidade de responder a circunstâncias adversas.

Perante estes casos, o investigador tem um dever principal, o de escutar e o de se tornar co-produtor de testemunhos, escritos, orais ou visuais, através dos quais é resgatada, de forma colaborativa, essa experiência. Os trabalhos recentes de Arthur Kleinman (2006), sobre a experiência da incerteza e do perigo, ou de João Biehl, sobre a situação dos que são abandonados pelo Estado, pela família e pelas redes de solidariedade por serem portadores de HIV ou doentes com SIDA, ou por terem sido diagnosticados com uma doença mental e colocados em instituições e depois abandonados, por essas instituições ou pelas suas famílias, são de especial relevância. São exemplos de como essa função de escuta e de co-produção de testemunhos e de relatos pode ser não só uma via para a produção de conhecimentos sobre fenómenos que escapam às formas mais comuns de investigação de terreno, mas também uma forma importante de intervenção dos investigadores, de trabalho com os que não têm voz e perderam a visibilidade, no sentido de os voltar a colocar no mapa da sociedade, de impedir que os lugares em que vão sobrevivendo e as suas experiências sejam definitivamente declarados como lugares e experiências de não-existência. Biehl mostrou como o trabalho prolongado com uma mulher, Catarina, deixada pela sua família numa das “zonas de abandono” que existem nas cidades brasileiras, depois de ter sido diagnosticada com uma doença mental, permitiu não só reconstituir a sua história – incluindo a sua história médica – e mostrar que o diagnóstico que a havia atirado para o abandono estava errado – ela sofria, de facto, de uma doença neurodegenerativa -, como tornou possível ir construindo, de maneira dialogada e partilhada, uma experiência autobiográfica registada através de um documento escrito, um “dicionário”, como lhe chamava Catarina, tantas vezes considerado como mais um sintoma da doença que a havia levado ao abandono, mas que, ao longo de um processo longo de escuta e de conversas repetidas e prolongadas, durante vários anos, pôde ser relido como um testemunho, como um modo de conversar o sentido de uma vida que outros haviam considerado como interrompida pela doença mental (Biehl, 2005, 2007), Mas também como um modo de, ao mesmo tempo, conservar a singularidade de uma experiência e convertê-la em exemplo de como se produz socialmente o abandono, a exclusão e a morte social.

3.4. A solidariedade pragmática

Na investigação de tipo etnográfico, o envolvimento pessoal da investigadora no terreno e com os participantes nas situações que estuda obriga, frequentemente, a intervenções e tomadas de posição que, segundo versões mais tradicionais dos cânones epistemológicos e metodológicos, seriam susceptíveis de comprometer a posição de distância crítica que a pesquisa exige. Embora hoje a posição da pesquisadora e as relações que esta mantém com os participantes seja entendida, em geral, de uma forma mais flexível, e exista uma capacidade maior de lidar com os dilemas suscitados pela presença no terreno em situações problemáticas ou de perigo, estamos longe ainda de considerar que a pessoa que foi recebida no terreno para actividades de pesquisa pode ter, senão um dever, pelo menos uma obrigação de disponibilidade para intervir em situações desse tipo. Mais precisamente, a questão pode pôr-se nos seguintes termos: quem faz investigação social em saúde deve estar preparado para intervir em circunstâncias em que existe perigo ou ameaça para a saúde ou risco de vida para participantes nas situações ou nos lugares que estuda? O problema tem sido colocado, reiteradamente, por antropólogos que são também médicos, e que consideram ser seu dever intervir, enquanto médicos, na vida, na saúde ou na segurança de pessoas que podem assistir estejam ameaçadas, e essa ameaça possa ser ameaçada ou eliminada por essa intervenção. Por outras palavras, deve o antropólogo (ou o sociólogo) que também é médico, intervir enquanto tal para responder ao sofrimento dos que lhe estão próximos, mesmo quando a sua intervenção possa entrar em colisão ou em contradição com a pesquisa social em que está envolvido? A esse tipo de intervenção chama Paul Farmer, ele próprio médico e antropólogo, solidariedade pragmática (Farmer, 2005, 2010: 242-245). A solidariedade pragmática vai para além da escuta e do tornar público de histórias de sofrimento ou de experiências traumáticas. Ela implica a possibilidade de intervir sobre os problemas com os meios de que se dispõe. Se pode parecer claro o que isso significa para profissionais de medicina ou de enfermagem, já é menos claro o que possa estar ao alcance de cientistas sociais que não têm essa formação. Há um universo de coisas que podem ser feitas, porém, desde ajudar a redigir documentos dirigidos a entidades publicas, apoiar a organização de uma associação, mediar a relação entre profissionais de saúde, investigadores e organizações de doentes, colaborar em acções de alfabetização ou de educação de adultos, organizar ou facilitar acções de pesquisa-acção colaborativa ou participativa, dependendo do contexto. A solidariedade pragmática é uma maneira de dar forma ao que Michael Burawoy (2008) chama de sociologia pública. Não sendo uma obrigação, ela é, muitas vezes, uma condição para confirmar a confiança e a proximidade que o investigador e os participantes na pesquisa foram construindo durante a realização desta. E ela é também uma forma de fazer pesquisa, que obriga a um tipo de envolvimento que as ciências sociais nem sempre tiveram capacidade para teorizar de maneira adequada.

 

4. Ética e experiência: para uma ética situada e processual

De que ética precisamos, então, para a investigação social em saúde? A palavra é usada, hoje, para designar um conjunto de enunciados normativos, que devem servir para regular a actividade de investigação, de modo a definir os deveres dos investigadores e os direitos dos que participam na investigação. Para além dos documentos que inscrevem esses enunciados, o universo da regulação ética inclui igualmente instituições às quais é conferido o poder de debater e de deliberar sobre a adequação de projectos ou de produtos da investigação às normas estabelecidas. A discussão anterior procurou mover-se num terreno difícil, em que não só não existe acordo sobre se deve ou não haver alguma regulação ética formalizada para a investigação em ciências sociais, como, para aqueles que defendem a necessidade de definição de normas, sobre quais as formas que estas devem assumir – minimalistas ou maximalistas, inspiradas na ética biomédica ou dando forma a uma ética própria das ciências sociais, códigos de ética ou códigos deontológicos. Parece estar a desenhar-se, contudo, um acordo sobre a necessidade de, independentemente da posição que se assuma nesse debate, ter em conta a especificidade das ciências sociais e, em particular, de formas de investigação como as de tipo etnográfico.

Duas contribuições, uma de inícios do século passado, outra mais recente, podem ajudar-nos a procurar um caminho por entre as posições em debate, que tenham em conta essa especificidade. A primeira é a do filósofo pragmatista norte-americano John Dewey (Dewey e Tufts, 1938). As posições de Dewey assumem um interesse particular, se nos lembrarmos de que foi ele um dos inspiradores e uma das referências filosóficas centrais da Escola de sociologia de Chicago e da corrente que veio a ser conhecida por interaccionismo simbólico, e cujo papel no desenvolvimento de abordagens etnográficas na sociologia foi crucial. Embora Dewey nunca tenha elaborado uma concepção da ética com o mesmo fôlego e a mesma densidade das suas contribuições para o conhecimento, a educação ou a democracia, é possível, a partir de reflexões que foram feitas, principalmente, em ensaios curtos, manuais e programas de ensino, identificar os principais fios condutores da sua abordagem da ética (Pappas, 1998, 2008). A ética, em Dewey, refere-se ao modo como se lida com situações que envolvem dilemas ou problemas morais, e é inseparável das experiências em que emergem essas situações problemáticas. Na obra de Dewey, a ética aparece sob três formas: como uma reflexão metateórica sobre as condições e os limites da investigação sobre a experiência moral; uma abordagem descritiva da experiência moral e, finalmente uma abordagem normativa, que nunca chegou a ser formulada, sobre como lidar com situações que suscitam problemas morais. A reflexão e a deliberação éticas ocorrem em situações problemáticas, em presença de dilemas morais, sendo que essas decisões não podem ser deduzidas de princípios deduzidos sem referência à experiência. Não é difícil aproximar essa concepção de uma relação entre ética e experiência daquelas que são defendidas, a partir de justificações filosóficas nem sempre explicitadas, em muita da literatura sociológica recente sobre a investigação de tipo etnográfico. Poderíamos descrever este tipo de ética como uma ética situada e processual, vinculada às situações específicas em que são suscitados dilemas ou problemas morais ou confrontos entre orientações normativas, e que respondem às transformações nas situações ao longo do tempo e às mudanças nos contextos da investigação.

A segunda contribuição vem de Michael Fischer, um antropólogo que tem vindo a explorar a emergência do que designa de novas formas de vida nas sociedades contemporâneas e o modo como elas obrigam a repensar o próprio território abrangido pela procura de novos quadros normativos e de novos dilemas morais. Fischer propõe o termo “planaltos éticos” para designar os “horizontes de problemas éticos colocados pela intersecção de várias tecnologias, as suas formatações institucionais, e os seus desenvolvimentos através de mercados e outros mecanismos” (Fischer, 2003: 146; 2009). A saúde é hoje um espaço em que novos planaltos éticos estão a emergir, ligados a questões tão diversas como as implicações dos desenvolvimentos na biomedicina sobre a capacidade de intervir na vida humana e de transformar as características dos organismos humanos, os efeitos da privatização da saúde e da sua transformação num mercado no acesso à saúde e no direito à saúde, as desigualdades na saúde entre Norte e Sul e no interior das sociedades do Norte e do Sul, as novas formas de governar os corpos e a vida, as constituição de novas formas de subjectividade, de cidadania e de acção colectiva no campo da saúde, as relações entre a biomedicina e as “outras” medicinas e terapias, mas também as formas sempre em transformação de sofrimento social e de violência estrutural.

Entre Dewey e Fischer, é possível procurar uma outra forma de entender a ética e de lidar com os dilemas éticos, de vincular o debate e a deliberação ética às situações e aos processos de investigação, de identificar os novos desafios associados aos “planaltos éticos” que vão (re)desenhando a topologia da sociedade e da saúde.

Estes são alguns dos marcos de um debate que está longe do seu fim, e que provavelmente não terá fim… Para além da reflexão sobre como se deve regular a investigação, e se necessitamos, para isso, de algo mais do que o actual Código Deontológico da Associação Portuguesa de Sociologia, será importante pensar como incorporar a discussão dos dilemas éticos e políticos da investigação, especialmente de tipo etnográfico, na formação dos estudantes que serão os investigadores de amanhã.

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[1]As expressões “investigação (ou pesquisa) etnográfica” e “investigação (ou pesquisa) de terreno” são utilizadas, ao longo do artigo, de maneira intermutável. Apoiando-me em Hammersley e Atkinson (2007: 3), considero que a etnografia é um estilo de investigação em que a pessoa que investiga se envolve, de maneira continuada e durante um período mais ou menos longo, em contextos que não foram “criados” por ela, recolhendo informação a partir de diferentes fontes e materiais, através de procedimentos que vão sendo adequados ao desenrolar do próprio processo de investigação e às mudanças no terreno, com ênfase no estudo aprofundado de um número circunscrito de lugares ou de casos, e produzindo relatos da investigação com ênfase na interpretação e compreensão dos processos observados e dos sentidos e significados que lhes são atribuídos pelos participantes. Embora as principais técnicas de pesquisa utilizadas sejam a observação participante e/ou directa e as entrevistas não-estruturadas, outras técnicas, como a entrevista estruturada ou o inquérito por questionário, podem ser utilizadas, como parte de uma configuração de procedimentos ancorada nas primeiras e “comandada” por uma orientação interpretativa/compreensiva.

[2]http://www.ethique.inserm.fr

[3]Sobre o tema do consentimento informado, veja-se Boulton e Parker, 2007, assim como as restantes contribuições incluídas no mesmo número da revista Social Science and Medicine.

[4]http://www.hhs.gov/ohrp/humansubjects/guidance/45cfr46.htm

[5]http://www..ger.ethique.gc.ca/fra/policy-politique/tcps-eptc/

[6]Para alguns exemplos, incluindo diferentes géneros, do ensaio ao manual de pesquisa de terreno, veja-se Hughes, 1969; Becker, 1970; Schatzman e Strauss, 1973; Whyte, 1984; Silverman, 1985; Gubrium e Silverman, 1989; Shaffir e Stebbins, 1991.

[7]Fischer (2003, 2009) propõe uma abordagem da antropologia a partir da sua centralidade para a identificação do que designa de novos “planaltos éticos”. Esta noção será discutida na secção final.

[8]Veja-se, por exemplo, a edição mais recente do manual de etnografia de Hammersley e Atkinson (2007), que dedica um capítulo ao tema da ética. Seria interessante comparar sistematicamente, desde o início do século XX, os manuais de métodos de investigação social, em particular os de métodos de pesquisa qualitativa, em termos da inclusão de referências a temas relacionados com a ética da pesquisa e da ampliação do espaço dedicado a esses temas, até ao seu tratamento em capítulos ou secções específicos.

[9]Para uma pertinente discussão destes aspectos, a partir da experiência de investigação antropológica em situações de acentuada desigualdade, de guerra civil e de genocídio na América Central, veja-se Bourgois, 1990.

[10]O conceito de política ontológica, desenvolvido por Annemarie Mol, obriga a considerar as formas como qualquer processo de produção de conhecimento ou qualquer intervenção profissional ou técnica gera efeitos que dependem de decisões ou escolhas que são feitas em momentos diversos ao longo desse processo (Mol, 2008).

[11]Tem sido observado por muitos comentadores que, actualmente, e especialmente em algumas universidades americanas, são feitas exigências aos cientistas sociais que não existem, por exemplo, para actividades como o jornalismo.

[12]Para algumas amostras dessa diversidade, veja-se Pescosolido et al. (2010), Good et al. (2010), Nunes (2006), ITEMS (2005), Minayo et al. (2005); e Carapinheiro (2006) e Leandro et al. (2009) para a investigação realizada em Portugal.

Autores: João Arriscado Nunes