Nº 9 - maio 2015
Bruno Oliveira, licenciado em Sociologia (ISCTE-IUL) e mestrando em Politicas de Desenvolvimento de Recursos Humanos (ISCTE-IUL). Sociólogo numa empresa de estudos de mercado na área de hábitos de consumo e estilos de vida. A atividade que exerce surge 6 meses após a conclusão da licenciatura.
Carlos Levezinho, licenciado em Sociologia (ISCTE-IUL) e em Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia (ULHT). Pós graduado em Património e Projetos Culturais (ISCTE-IUL) e mestrando em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE-IUL). Sociólogo, técnico superior numa câmara municipal, desde 2007. Quando ingressou na carreira técnica municipal detinha já licenciatura e pós-graduação. Opta pela Sociologia enquanto segunda licenciatura, três anos depois de estar a desenvolver atividade na administração local.
Resumo: Este artigo analisa experiências diversificadas de profissionalização de sociólogos que exercem atividade em contexto não académico, em organismos do setor público e privado. Por um lado, procura-se verificar até que ponto estes diplomados vinculam a sua atividade profissional, em termos de práticas e representações, ao campo formativo e científico da sociologia (Costa, 1988 e 2004). Por outro lado, analisa-se o exercício profissional da sociologia enquanto prestação de serviços à comunidade, com preocupações sociais (Burawoy, 2005).
Palavras-chave: Sociologia pública, trajetórias profissionais, cultura profissional, práticas e representações da sociologia.
Abstract: This article analyses the professional experiences of nonacademic sociologist’s, working in the public and private sector. On one hand, it intends to verify the extent to which these graduates link their professional activity, in terms of practices and representations, to the formative and scientific field of sociology (Costa, 1988 and 2004). On the other hand it intends to understand if their activities are characterized as a providing service to a community, with social concerns (Burawoy, 2005).
Keywords: public sociology, professional trajectories, professional culture, sociological practices and representations.
Introdução
Partindo da ideia que a sociologia é manifestamente pública, ou seja, orientada para a comunidade ou para o “social”, este trabalho teve como objetivo analisar as representações, práticas e experiências profissionais dos sociólogos a trabalhar no sector público e privado em Portugal[1]. O que faz um sociólogo e onde começa e acaba a sociologia? Será que os sociólogos se representam socialmente como sociólogos?
Face a questões como estas e ao facto de a sociologia estar muito associada ao meio académico, neste trabalho pretende-se analisar práticas e representações de exercício profissional da sociologia, tal como são veiculadas pelos sociólogos que exercem atividade fora da academia, em Portugal.
Será que os sociólogos que prestam serviço público (essencialmente na administração pública), nas suas práticas profissionais de servir a comunidade (o público) e nas suas próprias representações como profissionais, o fazem no sentido de uma sociologia pública? E será que algo mudaria pelo facto de esse “serviço público” ser prestado tendo por base uma gestão privada ou uma gestão pública? Para ajudar a reflexão e consequente análise, foram entrevistados sete sociólogos com diversas práticas profissionais, sempre com especial atenção às componentes do serviço e interesse público, quer a gestão seja pública ou privada.
Uma cultura profissional no sentido de uma sociologia pública?
Quando se fala em sociologia não poderemos falar de um conceito uno e indivisível. Existem diferentes formas de “olhar”, não sendo mais do que o próprio fruto da sua evolução enquanto campo do conhecimento e do seu contexto de desenvolvimento na sociedade portuguesa. Para podermos entender esse processo evolutivo da sociologia, teremos que obrigatoriamente olhá-la sobre estes três ângulos diferentes: Ciência, Formação e Profissão, que não são mais do que as suas três dimensões estruturantes. Em primeiro lugar, reconhecer o seu espaço enquanto ciência e todo o seu percurso de desenvolvimento teórico e conceptual, normalmente associado à investigação e estreitamente ligado à academia. Seguidamente, e de forma estreita também com o mundo académico, a própria formação ministrada ao nível da passagem de conhecimento e competências periciais em diversas ofertas formativas e em várias entidades universitárias. Por último, a profissão em sociologia como espaço de “multiplicidade de campos de profissionalização em que o sociólogo experiencia a prática profissional da sociologia” (Mineiro, 2012, pp.2).
Já a propósito do primeiro congresso português de sociologia em 1988, Machado assinala estas três dimensões, numa lógica de “tripla juventude: dos profissionais, da profissão e da própria disciplina” (Machado, 1996, pp.49). A formação dos profissionais na época era ainda muito recente, a profissão estava ainda muito intrincada e ligada à universidade e ao ensino, e ao mesmo tempo a disciplina no seu plano de desenvolvimento conceptual e de trabalho empírico só se desenvolvia e dava passos de “crescimento”, igualmente muito por conta da academia. Machado simplesmente identifica e assume o ponto de partida da necessidade de um percurso de maturação da sociologia em Portugal. Ainda assim, sabendo desta tripla juventude da sociologia, tanto em 1988 como mais recentemente, a sociologia contem inevitavelmente em si e simultaneamente, estas três dimensões. No seu texto “Será a sociologia profissionalizável?”, Costa defende a necessária articulação destas três dimensões: Ciência, Formação e Profissão (Costa, 2004, pp.37).
Mas e então se existe um múltiplo campo de profissionalização, teremos nós ainda hoje dificuldades de articulação? Existirá ainda atualmente uma prevalência do perfil de “dissociação”? Ou seja, uma visão da sociologia que se baseia de forma prevalecente na investigação e no ensino? (Costa, 1988, pp.110-111). Ou estaremos a caminhar a passos largos para um perfil de “associação”? Segundo Costa, o desenvolvimento e profissionalização da sociologia em Portugal passa pelo modelo da “cultura da associação entre ciência e profissão”. Este consiste numa pluralidade de papéis profissionais no campo da sociologia, proporcionando o diálogo aberto com academia, mas não de forma exclusiva (Costa, 1988, pp.120-221). Existindo um caminho feito (e a fazer) no sentido do perfil de associação dos sociólogos, quais são os seus papéis profissionais e as suas trajetórias que consubstanciam esta multiplicidade de papéis profissionais e de integração em meios não-académicos, corporizando assim o perfil “associativo” que Costa defende?
Como se tem vindo a concretizar tal desígnio junto dos sociólogos que orientam a sua atividade para a intervenção social, ou mais especificamente para o serviço público? Antes de responder a esta questão, importa clarificar o conceito de “sociologia pública” (Burawoy, 2005). No sentido do binómio “academia” versus “extra-academia”, segundo Lopes (2012), Burawoy afirma que a sociologia pública se destina “a audiências extra-académicas e persegue um conhecimento reflexivo, enquanto a sociologia para políticas públicas tem igualmente destinatários fora da academia, visando um conhecimento instrumental” (Burawoy, 2005 citado em Lopes et al 2012). Ora, quando Burawoy (2005) no seu texto “For Public Sociology” afirma também: “É por isso que tornaram sociólogos: não para ganhar dinheiro mas para um mundo melhor”, questiona-se se efetivamente o sociólogo terá no seu “código genético” (ou até no seu perfil), uma “vocação” de interesse público intrinsecamente ligada a motivações de servir e mudar o “mundo“ (a sociedade).
Testemunhos de experiências de profissionalização
Rute trabalha desde a conclusão da licenciatura numa Câmara Municipal, atualmente coordena o programa “Rede Social” e vários projetos a ele associados. Paula é responsável pelos recursos humanos num grande hospital privado e desenvolve trabalho de proximidade junto de todos os profissionais da organização. Maria é analista e investigadora dos media numa entidade reguladora e a sua carreira tem sido toda na área da investigação no sector dos media, tendo também já desenvolvido investigação nesta área financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Glória trabalha numa associação de professores e já lá trabalhava quando foi estudar sociologia. Atualmente é assessora de direção e chefe de serviços. Ana é diretora técnica numa “casa de repouso”, tendo tido um percurso profissional muito variado, tendo já tido também uma pequena experiência no sector público. Na “casa de repouso” organiza todos os processos, bem como a coordenação geral. É responsável máxima na organização, logo a seguir à proprietária. Madalena é diretora do Departamento de Desenvolvimento Social e Cidadania numa Câmara Municipal, tendo já passado por outros cargos e funções dentro da autarquia, sempre muito ligada à área da saúde pública. Neste novo cargo assume funções mais gerais e de liderança no âmbito social. É também regularmente convidada como conferencista na área da Saúde Pública. Manuela trabalha numa Fundação e é coordenadora de um Programa de Desenvolvimento Comunitário, em Lisboa. Já teve várias experiências de desenvolvimento de projetos comunitários, inclusivamente intervenção em Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)[2] (ver quadro 1).
Madalena que tem um sólido percurso na administração local, hoje como diretora de departamento, coordena várias destas áreas, salientando a formação em sociologia: Eu acho que a formação em sociologia é muito importante porque nesta área temos uma área mais de serviço social, que é a área da ação social. Depois temos uma área mais da cooperação. A habitação também está muito ligada ao serviço social. Eu acho que a sociologia dá uma visão mais abrangente das questões.
Almeida (1999) refere igualmente a possibilidade de poder trabalhar no tratamento e interpretação de informação estatística, com cronistas, comentadores, jornalistas, nos media, divulgando resultados de estudos que fornecem contributos especializados sobre estas áreas. É o caso de Maria que também trabalha no sector público, numa entidade reguladora, tendo tido também uma experiência anterior num Observatório ligado à Comunicação: Eu era [também] analista e investigadora de media. E o que nós fazíamos no Observatório, era por exemplo newsletters semanais sobre o sector e, portanto, cada pessoa da equipa tinha um sector atribuído, a rádio, a televisão, etc (…) e depois tínhamos o trabalho com mais volume no Observatório que era o Anuário Estatístico em que nós fazíamos uma recolha muito vasta de dados sobre o sector em Portugal, através de outras entidades, depois compilávamos isso e fazíamos a análise e tratamento estatístico.
No entanto, refere ainda Almeida, que existem dois sectores de atividade que parecem ser estanques à participação de sociólogos, o ensino básico e secundário e as empresas privadas (Almeida, 1999, pp.4). A propósito do ensino básico e secundário, Paula diz-nos: (…) há uns anos quis ir dar aulas de sociologia e não podia. Eu, licenciada em sociologia não podia dar aulas de sociologia. Só os antropólogos é que podiam dar aulas de sociologia.
As competências e saberes dos sociólogos na sua atividade são essenciais para compreender qual o seu contributo na organização em que estão inseridos. Os sociólogos estão munidos de um conjunto de ferramentas conceptuais e metodológicas que se demonstram fundamentais na sua ação. Perceber o reconhecimento e representação que fazem das competências e saberes adquiridos em sociologia e como o representam na sua prática profissional, diz-nos parte da sua cultura profissional (Costa, 2004).
Manuela reconhece como competências principais do seu curso de sociologia no ISCSP-UL, essencialmente as da área dos recursos humanos, e que teve oportunidade de ir pondo em prática ao longo do seu percurso profissional: Fiz processo de recrutamento, organizações de equipa, portanto todas as cadeiras que tive na área [Recursos Humanos] ajudaram-me. Manuela considera que a sociologia fornece mais competências de investigação, ou seja, está em linha com o perfil “dissociativo”: Eu fugi daquilo que é a sociologia propriamente dita não é? Não faço investigação, são mais funções de gestão e de operacionalização (…) Acho que se fosse na perspetiva de outros sociólogos no âmbito da investigação sentiria dificuldade em me adaptar. Glória apesar de considerar que na sua atividade está próxima dos recursos humanos, como forma de referir as principais competências de um sociólogo, relembra uma frase do professor Costa durante uma das suas aulas: E eu lembro-me de uma resposta que ele disse [Costa], que foi ‘vocês aprendem a pensar, que é o mais importante’ e eu acho que o curso me deu isso. Eu aprendi a pensar, aprendi a organizar o meu pensamento em gavetas. (…). Reconhece a capacidade de pensar e organizar o pensamento, embora evidencie um pouco do perfil dissociativo: Porque o sociólogo faz o quê? Faz investigação. Se for sociólogo propriamente dito, a exercer aquilo para que aprendeu, faz investigação. Não tens muitas saídas profissionais. (…). Contudo, e numa certa ambivalência argumentativa acaba por reconhecer a sociologia no seu trabalho: Eu saber como me relacionar com as pessoas e como me relacionar com aquele grupo e de que forma é que o grupo interage entre si e mesmo com os funcionários (…) E isso é uma coisa que eu faço e consigo ter esse distanciamento. Eu acho que isso vem da sociologia, sim sem dúvida. Reconhece um conhecimento transversal que lhe é útil: A sociologia é a base. Dá-te um conhecimento alargado de tudo. (…) É essa a capacidade do sociólogo.
No seu trabalho diário, Maria faz tudo o que à partida se pode reconhecer como investigação: Eu faço a conceptualização dos estudos, faço a análise de conteúdo, faço o tratamento estatístico em SPSS, faço a interpretação dos dados e a produção de relatórios para publicar, faço tudo. Reconhece que a sua formação lhe deu fortes bases: O curso dá-nos muita cultura geral e isso é importante, dá-nos grandes ferramentas teóricas, mas para mim, especialmente, dá-nos grandes ferramentas metodológicas para a investigação e isto tem também a ver com o olhar que se tem sobre a realidade. Apesar de fazer investigação não se encontra no meio académico. É um perfil intermédio entre o dissociativo e o associativo. Por um lado dissociativo ao afirmar a investigação como área essencial da sociologia, e associativo ao reconhecer outras funções para os sociólogos, bem como a não necessária vinculação à academia: Os ‘puristas’ dizem que aquilo que um sociólogo faz é investigação, e é verdade. Agora o sociólogo tem a capacidade de desempenhar outras funções, mas o desempenho de um sociólogo é fazer investigação. Pode ser uma investigação pura académica ou pode ser uma investigação prática, aquilo que hoje em dia eu estou a fazer, e que tem algumas características diferentes, mas de facto fazer sociologia penso que é isso.
Ao nível dos saberes e competências, Madalena considera que a sociologia (…) foi uma formação muito abrangente que me deu a possibilidade depois de, no terreno, poder pegar em muitas coisas. Portanto, acabei por investir nesta área da promoção da saúde que também tem muito a ver com a sociologia, mas podia ter sido outra área. O percurso da Madalena esteve desde o seu início mais ligado à área da saúde, mas salienta a componente metodológica da sociologia: Intervém muito naquelas componentes mais práticas que têm a ver com diagnósticos, diagnósticos de situação, a definição de áreas estratégicas de atuação, de prioridades, muito por aí… Sobre o lado mais teórico, reconhece que é importante o enquadramento no terreno, embora seja diferente. Porque nós quando estamos na faculdade aprendemos aquelas teorias todas e depois no mundo real do trabalho, elas são importantes, até porque nos trouxeram o conhecimento, mas muitas vezes as coisas aplicam-se de uma forma mais indireta. (…) No mundo do trabalho, de facto, aquilo que a sociologia me trouxe foi realmente um abrir de horizontes, uma forma de ver as coisas muito ampla, conseguir estabelecer pontes entre áreas, entre aprendizagens, entre disciplinas, que isso é muito importante (…) As ferramentas que a sociologia nos dá de trabalharmos dados estatísticos, de diagnosticarmos, de definirmos (…) depois saber com aquele diagnóstico o que é que vamos fazer, conseguirmos definir um plano estratégico, uma intervenção. Madalena denota um perfil associativo na representação das competências da sociologia no seu trabalho.
Rute no seu trabalho diário na “Rede Social” salienta várias competências metodológicas, mas também relacionais: Dominar por outro lado as metodologias de trabalho da sociologia, a questão de toda a análise documental, as informações estatísticas, ter uma boa liderança que é essencial no trabalho em parceria, no trabalho em rede. Ser um bom líder, saber como conduzir uma reunião, como gerir os conflitos que surgem, que acontecem quando se trabalha com muita gente, quando se tem que gerir diferentes interesses. A questão dos métodos é fundamental, temos que dominar bem as análises estatísticas, as taxas de variação. Neste trabalho da rede social é importante conhecer bem o contexto, as tendências dos fenómenos e depois de alguma forma tentar em conjunto, arranjar alguma solução. Num perfil tendencialmente associativo, no seu trabalho diário, salienta e reconhece a polivalência e a pluralidade de papéis no trabalho que desenvolve na autarquia: No fundo o sociólogo, dado à formação que tem, acaba por ser um técnico que consegue abranger um grande conjunto de áreas. Não quer dizer ‘pau-para-toda-a-obra’, mas quer dizer que consegue dominar todo um conjunto de áreas dentro do social (…). No que toca às aprendizagens tidas durante o curso, reconhece que nem tudo tem aplicação imediata e “visível”, mas faz um saldo positivo: Há muita coisa que não… Há muita coisa do curso que na prática não se aplica. As próprias teorias sociológicas não se aplicam muito no dia-a-dia. Mas há muitas coisas que sim. (…) Essas questões dos métodos quantitativos, das taxas de variação, das próprias questões de quando falo com alguém do âmbito mais de entrevista, há sempre qualquer coisa que fica. Como conduzir uma entrevista, ter um guião para nós não nos perdermos, entrevista semi-diretiva… assim essas questões. É essencial para nós termos ali algumas balizas para depois conseguirmos produzir resultados com uma vertente mais profissional.
Estes primeiros testemunhos, embora com alguns ponto intermédios, reconhecem a sociologia no seu trabalho, indo de encontro maioritariamente no sentido associativo, não deixando de haver alguma “sombra” pontual de perfil dissociativo, nalgumas situações. De forma mais veemente em linha dissociativa temos Ana e Paula. Ana considera que não faz sociologia, mas reconhece alguma utilidade no curso, que ao menos a ajudou a educar o “olhar”: porque tu quando tiras um curso, seja ele qual for, ficas orientado para determinada área e isso vê-se na forma como tu vês as coisas, a forma como observas a outra pessoa, quando a outra pessoa fala aquilo que reténs da conversa com ela. Logo a forma como eu lido com as instituições tem sempre esse cunho”. Ana vai ainda mais longe, pondo em causa os quadros conceptuais da sociologia: “não há teorias, pois as teorias caem por terra se há uma situação que não esteja compreendida nelas, portanto tudo que aprendeste pode ser deitado por terra num minuto (…) chateia-me a conversa do “social” porque quando tu trabalhas diretamente com essas populações especiais, cada caso é um caso e quando veem com essa abordagem das teorias sociais (…) não serve. Paula não reconhece, ou pelo menos reconhece pouco, as competências do curso de sociologia. Aliás, considera que se pudesse voltar atrás mudaria de curso, apesar de admitir o curso de sociologia como complemento da sua atividade: Se fosse hoje, se voltasse atrás escolhia outro curso… Um curso que me dotasse de ferramentas mais práticas, mais objetivas para a minha profissão. Não deixaria nunca de tirar sociologia como complemento à minha atividade profissional. Esse curso seria Gestão de Empresas, sem dúvida!
O perfil de Ana e Paula é claramente dissociativo, descrevendo a sociologia apenas como profissão de investigação, incapaz de ser algo profissionalizável. Fazem-no diminuindo-se nos seus papéis profissionais atuais, não reconhecendo nem representado a sociologia no seu dia-a-dia.
Costa, nesta temática da cultura profissional dos sociólogos, enumera três géneros de competências: 1) as competências de base adquiridas na licenciatura e 2) os saberes adquiridos em contextos de trabalho. Existe ainda um terceiro, que abordaremos de seguida: 3) as competências adquiridas em formação complementar (Costa, 1988, pp.107-121).
No presente trabalho, a maioria das entrevistas vão de encontro à ideia da articulação dos conhecimentos de base com os saberes contextuais e a formação complementar. Rute fez pós-graduações em “Projetos em Parceria” e “Planeamento e Mediação em Contextos Multiculturais” por necessidade de ganhar novas competências ao nível da imigração e da multiculturalidade. Maria, para além do seu mestrado na área da sociologia onde se especializou em comunicação e media (mestrado em comunicação, cultura e tecnologias da informação), por trabalhar numa entidade reguladora, sentiu que lhe seria útil a pós-graduação em “Direito da Comunicação” e acabou também por frequentar formação técnica especializada em SPSS. Glória no seu percurso, devido a desempenhar funções de assessoria de direção, foi realizando formação de curta e média duração em áreas como contabilidade, comunicação e atendimento, gestão de recursos humanos e tecnologias de informação. Ana para além de ter a frequência do 1º ano de filosofia, antes mesmo de ter entrado em sociologia, fez depois da licenciatura uma pós-graduação em “Gestão de Recursos Humanos”. Madalena especializou-se no seu principal interesse dentro da sociologia, que é a área da saúde, tendo enveredado por um mestrado em “Saúde Pública”, o que reforça a sua principal área de especialização no âmbito sociológico. Manuela fez uma pós-graduação em “Estudos de Desenvolvimento” no sentido de colmatar as suas componentes e interesses do desenvolvimento comunitário, nomeadamente em contextos sociais de grande desigualdade. Apenas Paula não manifestou ter realizado qualquer formação complementar.
Quadro 1. Os entrevistados: perfis qualificacionais, práticas e representações de profissão*
l*Entrevistas realizadas no ano letivo de 2012/2013, no âmbito da unidade curricular de Laboratório e Ética e profissão em Sociologia`. Para além dos autores do texto, o trabalho de recolha de dados envolveu os colegas de turma António Canseiro, Inês Melancia, Irene Lopes, João Gama e Maria Manuel, a quem agradecemos a colaboração.
**Informação não disponíve
Sociologia pública e serviço público, uma fronteira entre público e privado?
Banha (1999) sendo um “sociólogo público” elaborou um diagnóstico e ponto de situação do exercício da sociologia no poder local, que teve como principal impulsionadora (e motivadora) Ana Nunes de Almeida (presidente da APS na época) que lhe sugeriu a aplicação de um questionário sobre os sociólogos que trabalham em Municípios. Banha refere que após a vaga das intervenções infraestruturais por parte das autarquias locais, surge então a procura de profissionais dos campos social e cultural, entre eles o sociólogo como elemento de grupos multidisciplinares e como consultor e perito. Assim, deu-se um crescimento das encomendas de análises sociais e sociológicas e a contratação de sociólogos como peritos, procurando atuar nomeadamente aos mais variados níveis: “habitação, planeamento urbano; cultural; avaliação de projetos de intervenção local, desenvolvimento local, formação; grupos específicos” (Banha, 1999: 47,48). Com este diagnóstico, Banha concluiu que os principais domínios identificados (por ordem decrescente): são “o sociocultural, a habitação/urbanismo e os recursos humanos”. Banha verificou também neste diagnóstico que cerca de um terço tem funções de direção ou coordenação, reconhecendo capacidade de dirigir os serviços públicos locais (Banha, 1999: 48). O caso de Madalena é um deles: Neste momento tenho o cargo de Diretora do Departamento de Desenvolvimento Social e Cidadania. O que eu faço é dirigir um departamento. (…) É dirigir estas pessoas em termos superiores, dar o meu feedback, um rumo, uma direção ao trabalho coletivo; fazer também avaliação de processos, coordenar as pessoas e fazer a ponte com a administração. Banha evidencia ainda que numa lógica de mandato, a partir de 1986/89, houve um crescimento bastante evidente de sociólogos na administração local, tornando-se exponencial no mandato de 1994/97.
No campo público das autarquias locais encontramos ainda no livro “Experiências e Papéis Profissionais de Sociólogos”, também editado pela APS e organizada por Valente et al., em 1995, a presença de testemunhos importantes e exemplificativos de experiências profissionais autárquicas, como a de Adriano Zilhão, Manuel João Ribeiro, Luís Capucha, Isabel Toscano e a própria Isabel Valente que abordou o “sociólogo, a autarquia e o trabalho de campo” (Valente et al, 1995).
Constatamos assim que existiu grande empregabilidade dos sociólogos na administração pública. É isto uma sociologia pública? Quando falamos nos conceitos de “sociologia” e “público”, mais uma vez surge Burawoy e o texto For Public Sociology. O sociólogo norte-americano criou um modelo holístico da prática sociológica, definindo-o em quatro tipos: sociologia profissional, política, crítica e pública. O conceito de “sociologia pública” interessa-nos pois dá-nos conta do “diálogo estabelecido entre sociólogos e o público em geral acerca do conhecimento sociológico” (Casa-Nova, 2012). Indo mais longe, o próprio conhecimento sociológico da sociedade. Este conhecimento e proximidade que surge na sociedade civil releva-se pelo impacto que o papel profissional de sociólogo emana no dia-a-dia da sua comunidade. Rute no seu trabalho da Rede Social da câmara municipal considera que existe um grande impacto: penso que tenho conseguido criar respostas que se adequam às necessidades da população de uma forma muito direta (…) o sociólogo é justamente isto, estar sempre interessado. Interessado em perceber e tentar responder às necessidades (…). A realidade está sempre a mudar. É sempre uma mutação constante, há sempre problemas novos a surgir, há outros que deixam de fazer sentido e portanto, temos que estar muito despertos nessas situações. Igualmente na administração local, Madalena vai no mesmo sentido de corroborar esse diálogo entre sociólogo e sociedade civil, salientando o forte impacto que o seu trabalho como socióloga tem na comunidade: (…) no fundo eu estou a dirigir e é uma área que tem um grande impacto na comunidade, a área social. Todos os apoios que a Câmara dá, e não só, todo o trabalho que faz junto das instituições que estão no terreno, quer sejam do social, quer sejam da saúde, quer sejam associações de imigrantes. Acho que é importante haver uma liderança, é importante haver alguém que tem a visão do todo e que possibilita com que a Câmara, no exterior, se comunique de uma só forma, ou seja, duma forma coerente. Num sentido mais lato, mas num instituto público, temos Maria que ainda considerando que o impacto do seu trabalho não é visível para o público em geral, tem impacto no sector da comunicação social: (…) aquilo que eu faço tem consequências práticas no sector da comunicação. (…) A maior parte das pessoas que não são da minha área ou afins, não faz a mínima ideia do que é o meu trabalho, porque é um trabalho muito invisível, o trabalho do sociólogo em geral.
Existem também situações onde embora a gestão seja privada, se está a prestar serviço público e o próprio sociólogo sente isso. Vejamos o caso de Glória que considera ter igualmente impacto na comunidade, nomeadamente através de um projeto que a própria implementou e que acolhe estágios de jovens com percursos de insucesso escolar: Tem, sem dúvida. Este projeto que eu faço que é como eu costumo dizer: “salvo um, estou feliz”. E eu acho que já salvei muitos, felizmente. E mesmo a nível da associação eu acho que é importante (…) se eu não fosse socióloga se calhar não a faria tão bem. Manuela apesar de também trabalhar numa organização privada, esta desenvolve fins comunitários (Capucha, 1995). É uma Fundação que tem um programa de desenvolvimento comunitário em Lisboa, onde Manuela foi técnica e é há cerca de um ano coordenadora um programa. Manuela assume várias responsabilidades nesta qualidade e considera que tem um natural impacto na comunidade: O trabalho comunitário é feito na rua e com pessoas e como coordenadora tenho muitos papéis a fazer (…). O seu perfil de terreno evidenciou um perfil de socióloga “todo o terreno” (Garcia, 1999), e com grande capacidade relacional: procuravam uma pessoa que tivesse experiências de trabalhar no terreno, portanto que tivesse outros contactos com as organizações e que tivesse experiência de trabalho de rua e gerir uma organização.
Ana que é diretora técnica numa “casa de repouso” considera que estando numa organização totalmente privada, a natureza do serviço que presta é de influência direta junto dos utentes: O meu trabalho está ligado com o dia-a-dia deles [idosos] e todas as tarefas inerentes ao seu dia-a-dia (…) tudo aquilo que se consegue fazer pelos nossos idosos, ou porque não têm família ou a família não quer saber, somos nós lar que fazemos. Paula desenvolve a sua atividade num grande hospital privado e quando se refere ao impacto na comunidade envolvente, cinge-se a um ponto de vista de mero desenvolvimento organizacional, ou seja, à sua relação com os profissionais que lidam consigo na qualidade de responsável na área de recursos humanos do hospital: quero acreditar que sim, senão vou-me embora. (…) Acho que notam que ele [o seu trabalho] existe. Há muitas coisas invisíveis e que fazem com as coisas corram bem. Aqui nos Recursos Humanos se passarmos despercebidos é sinal que tudo está a correr bem.
Se o “serviço público” está associado a um conjunto de atividades e serviços ligadas à administração pública através dos seus agentes e representantes, quando é exercida por outras entidades, mesmo que privadas, persegue na mesma o “interesse público”, procurando o bem-estar da população? (Tavares et al, 2007). Ou apenas é possível sendo uma gestão pública? As opiniões dividem-se entre os entrevistados. Paula que trabalha no sector privado considera que seria diferente se trabalhasse no público. Manifesta uma opinião negativa: Acho que sim. Nunca trabalhei numa empresa pública, mas a imagem que tenho não é muito agradável. Mas o que fizemos [no Hospital] em sete anos, se calhar precisaria de 50 anos (risos…). Sinceramente, não me vejo a trabalhar numa empresa pública. Glória embora trabalhe oficialmente numa entidade privada tem uma visão diferente. Sente-se como se estivesse no público também devido ao tipo de fins da organização em que se insere. Eu acho que se estivesse a trabalhar no privado, numa empresa, se calhar era diferente. Embora a associação seja privada, há uma proximidade muito grande com o público. Estou ligada a professores, portanto os métodos de trabalho são muito próximos do público. (…) Nunca trabalhei no privado, mas não sei se uma grande empresa, uma multinacional por exemplo, se eu me adaptaria com muita facilidade. Não tenho isso. (…) Acho que isso tem mais a ver com a pessoa. Se calhar por isso é que eu fui para sociologia. Glória deixa a ideia de que a sociologia tem uma necessariamente uma “natural” dimensão de serviço público.
Rute no seu trabalho na “Rede” considera que também seria diferente se estivesse no privado, na medida em que os interesses a defender são outros: Acho que seria muito diferente tendo em conta as funções que desempenho aqui no público, onde tenho que trabalhar com várias entidades. Se fosse no privado tinha que defender acima de tudo o interesse da empresa. Não é que na minha instituição não tenha que defender os interesses da organização a que estou ligada, os interesses da minha organização é que são precisamente servir e garantir o bem-estar da comunidade. Madalena segue exatamente a mesma linha que Rute, provavelmente também por trabalhar numa câmara municipal: Sim. Claramente (…) Porque eu trabalho numa autarquia que (…) é trabalho público, é serviço público. Eu orgulho-me de fazer serviço público. Acho que é muito importante. E o serviço público tem coisas que o serviço privado não tem. (…) Aqui, sem desprimor nem para um nem para outro, mas nós trabalhamos para as pessoas, para dar resposta às necessidades das pessoas. Não trabalhamos nem para o lucro (… ) e isso é muito importante. E, de facto, procuramos, no dia-a-dia dar o melhor para responder àquilo que são as necessidades de quem está no terreno. E um trabalho que uma autarquia faz é necessariamente muito diferente de um trabalho que uma instituição privada faz. Rege-se por outros valores. Maria está num instituto público e também considera que existiriam diferenças se estivesse no privado: Sim, isso claramente, porque estando numa entidade reguladora o impacto do meu trabalho é muito diferente do que aquele que tinha quando trabalhava no Observatório ou se estivesse a trabalhar numa entidade privada. Até porque tem consequências práticas. Aquilo que eu faço tem consequências no sector da comunicação.
Ana salienta a diferença mais de um ponto de vista de compensação pessoal, e menos no que diz respeito ao serviço à comunidade. Isto indica outro tipo de preocupação: É diferente no sentido em que a valorização numa empresa pública é feita, nem que não seja pela carreira profissional, o que não existe no privado. Eu por exemplo entrei há dez anos para a minha função e eu não vou ser mais do que isto ali, não há. E a remuneração no público é feita por escalões, o que não acontece no privado. Apesar de não sentir essa compensação pessoal no privado, reconhece-se algum serviço público no que faz, embora demonstre estar claramente desmotivada: (…) Aqui tenho a noção que até nem sou bem paga, mas estou a ajudar aqui umas pessoas que estão sozinhas, quase. Neste momento estou farta disto tudo, porque não tenho outra razão para ir trabalhar a não ser o meu ordenado. Apesar das contrariedades, ela considera que no privado tem mais liberdade para fazer as suas tarefas: (…) Se tenho dez coisas para fazer hoje, mas se cinco são importantes eu até posso só fazer as cinco amanhã e até posso estar um dia inteiro para fazer aquilo (…). No ponto de vista de Ana, a “liberdade” do privado surge em contraponto da hierarquia e burocracia do “público”.
Sociologia e representações do sociólogo
Em todas as profissões existe uma autoperceção e uma autodefinição. A sociologia não é exceção. Como se autodefinem os sociólogos? Como se representam os próprios e como o fazem perante outros? As questões da representação dos sociólogos está intimamente ligada com algo já falado anteriormente neste texto, que são os modelos de “cultura profissional dos sociólogos”, definidos por Costa (1988).
Para cada um dos entrevistados já foi definida uma proximidade de perfil a cada modelo, essencialmente na forma como viam a sociologia como ciência, e nomeadamente como a viam na profissão, ou seja, nas suas práticas profissionais. Agora, como se autodefinem, como é feita a sua representação profissional?
De forma inequívoca Madalena e Maria apresentam-se como sociólogas. Eu digo sempre que sou socióloga (…) digo sempre que sou licenciada em sociologia no ISCTE e se for preciso digo, que tenho o mestrado em saúde pública. Porque se tiver no contexto de uma área da saúde, faz sentido. Mas refiro sempre que sou socióloga (Madalena). Como socióloga (…) Tenho um cartão da entidade, mas aquilo que vem no cartão não é definido por nós, é definido superiormente, e o que vem no cartão não tem a ver com a profissão, tem a ver com a categoria profissional. Portanto, não aparece socióloga, aparece técnico superior (Maria). Apesar de ter um cartão que a define como “técnico superior”, Maria é bastante perentória na sua representação como socióloga. Já Rute, por exemplo, afirma-se numa primeira fase como socióloga, mas tem alguma tendência a usar a designação que a câmara municipal lhe atribuiu: Técnica superior de sociologia (…) Normalmente fala-se muito do cargo. Quando tenho que me apresentar em contexto de reuniões, digo técnica superior de sociologia. Ainda hoje tive uma reunião sobre violência doméstica. Mas sim, quando não há necessidade de mencionar o cargo, sim como socióloga. Entre pares apresenta-se como socióloga. Glória embora refira que não trabalha como socióloga, acaba por se representar como tal: Eu digo sempre que sou socióloga (…) não tenho no recibo de vencimento a dizer que sou socióloga. Ali não há carreiras profissionais. Eu sou chefe de serviço. Nem sei se existe essa designação. (…) Sou socióloga, faço questão de dizer isso. (…). Considera que os outros também a reconhecem como tal, embora sem uma ideia exata do que é a sociologia: ‘Glória é socióloga, se calhar ela pode dar uma ajuda’ (…). Eles confundem um bocadinho, às vezes, a sociologia com a psicologia. (…) Para os alunos sou a assistente social. Eles acham que eu tenho de fazer o papel de quem os apoia. (…). Manuela assume uma postura um pouco insegura: Normalmente nos formulários digo sempre que sou socióloga, é mais fácil e para os meus colegas também. Porque o outro nome é muito comprido [Gestora de Organizações da Área Comunitária]. Acho que os meus colegas não me veem como socióloga, acho que me percecionam como uma pessoa que trabalha com outras pessoas, na lógica da proximidade, do terreno e da relação e da construção de qualquer coisa.
Paula e Ana não se representam de todo como sociólogas. Inclusivamente, como já constatamos um pouco atrás, Paula afirma que se pudesse teria escolhido o curso de Gestão de Empresas. Apresento-me como responsável de recursos de humanos, não como socióloga. (…) Do mesmo modo, olham [colegas de trabalho] para mim como responsável de Recursos Humanos e nunca como socióloga (Paula). Não. Quando me perguntam digo sempre que sou diretora técnica de um lar, não só porque não sou socióloga como tenho um afastamento bastante grande mesmo a nível de estudo. Não continuei, por isso não me considero socióloga de modo algum. (…) Os meus colegas sabem que eu sou socióloga, mas sou socióloga como podia ser psicóloga, podia ser assistente social, médica. No meu trabalho o que interessa é a posição que ocupo na hierarquia, que é a ‘doutora’ (Ana). Particularmente. Estes dois últimos casos, de Ana e Paula, são exemplos claros de um modelo dissociativo do ponto de vista da cultura profissional. Nos outros casos pode existir algumas ambiguidades na forma como veem ciência e profissão, mas consideram a presença da sociologia nas suas práticas e papéis profissionais e representam-se como tal. Ou seja, são muito mais próximos do perfil associativo. Esse modelo que se está a construir como relação constante entre ciência e profissão em sociologia, tornando-a cada vez mais, como um campo múltiplo de papéis e práticas profissionais.
Mais uma vez, Costa (1988) salienta a importância do modelo cultural de associação entre ciência e profissão, ponto do qual nos detivemos mais tempo, interrelacionando com uma visão pública da sociologia (Burawoy, 2005). Mas Costa não fica por aqui. Podemos igualmente constatar ao longo dos diferentes testemunhos, a presença nestes perfis da relação entre problemas sociais e problemas sociológicos, a capacidade autorreflexiva da sociologia e as diferentes formas de conceber o próprio trabalho sociológico nos vários contextos profissionais.
Prática profissional, ética e deontologia
O código deontológico foi criado no âmbito da APS, de modo dar uma série de garantias à profissão em sociologia (Costa, 1993). Segundo Mineiro: “Os princípios deste código residiram assim na responsabilidade social do sociólogo, na exigência da competência do trabalho sociológico, na autonomia da conceção e planeamento e na adesão ao código” (2012: 11). Quando falamos em conhecimento deontológico, Paula afirma claramente que tem conhecimento e que nunca teve de lidar com nenhuma situação difícil de um ponto de vista ético e deontológico durante a sua prática profissional. Rute manifesta conhecimento do código deontológico e embora não considere que tenha tido alguma situação especial ao nível da deontologia profissional, chama a atenção para o cuidado com a questão da confidencialidade dos dados: Difícil, difícil não. (…) Temos que ter sempre presente a confidencialidade, o respeito, pelos dados e as pessoas têm que confiar em nós e saber que não a vamos usar em proveito de mais ninguém. Madalena afirma ter lido o código deontológico, mas há muito tempo atrás: Eu li. É verdade que eu tenho que dizer que sim. Mas já foi há muitos, muitos anos. Foi assim na pré-história para mim. Já passaram muitos anos (…) Sim, eu li. Claro que sim. Mas depois não li mais. Não voltei a pegar. Afirma que nunca teve de lidar com nenhuma situação difícil de um ponto de vista deontológico. Glória afirma igualmente nunca ter tido nenhuma situação a assinalar, embora reconheça do ponto de vista do conhecimento o código de ética, tê-lo presente, mas tendo um conhecimento apenas superficial: Eu tenho-o guardadinho. Tenho-o aí. Devo dizer que não o estudei muito.
Ana assume o seu total desconhecimento em relação ao código deontológico da sociologia. Acabou por assumir uma situação que viveu numa das suas experiências profissionais passadas, nomeadamente numa empresa pública: Houve uma situação em que eu acreditava naquilo que estava a fazer e dei ‘a volta’ (…) Nessa situação fui chamada à sede, porque houve uma situação com uma família em que eu sabia que eles eram gente séria. Eles trabalhavam, faziam um esforço e eu disse à minha coordenadora que ia omitir determinados aspetos do relatório e ela não me disse nada. A seguir fez um relatório a dizer que eu não respeitava as diretrizes essenciais da filosofia da empresa. Mas eu disse tudo como eu queria e dormia todos os dias descansada. Manuela afirma que não conhece mesmo, mas apesar de tudo tem uma ideia de princípios de orientação: Não, não tenho, nada, mas acho que há duas coisas no código deontológico que é: respeitar o outro e ter bom senso. Isso é um código de toda gente acho eu. Mas no que diz respeito ao sociólogo acho que é muito respeitar o outro e valorizar. Ao nível da atividade mais de “terreno” de Manuela, esta refere algumas situações éticas e deontológicas que vivencia: (…) Situações que não são legais, que não sabes se denuncias, se não denuncias. No exercício da profissão isso acontece muito, principalmente no contexto em que trabalho, há situações de tráfico de drogas e uma pessoa pensa ‘denuncio ou não denuncio?’. De facto não podes abrir a boca. Violência doméstica, são essas situações mais. Na forma de lidar, Manuela afirma seguir o bom senso: É uma questão de bom senso. É mais o que o nosso coração nos diz para fazermos. Cada situação é uma situação. Uma coisa que ajuda, muitas vezes, é falar com outras pessoas, com alguém que nos ajude a pensar o que é melhor fazer. Maria nunca teve nenhuma situação complicada a nível ético ou deontológico e assume não conhecer o código: Não, não faço a mínima ideia.
De um ponto de vista do associativismo profissional, vinculado à sociologia, o cenário é tendencialmente desanimador. Nenhuma das entrevistadas é participante ativa da APS ou de qualquer outra associação profissional, e a grande maioria não tem conhecimento das atividades associativas, nem se interessa em procurar informação. Apenas o caso de Rute que é “sócia não pagante”, recebe informações regulares. Glória teve de desistir por não conseguir manter as “quotas muito elevadas”, mantendo-se na condição de Rute. Paula e Ana desistiram por falta de interesse na associação. As restantes não integram por opção ou falta de informação e mobilização. Denota-se pois um elo muito fraco com este pilar de constituição de uma comunidade profissional, que é o associativismo, por parte de todas estas sociólogas. Do ponto de vista deontológico, a falta de associativismo parece-nos influenciar negativamente e de forma reciproca. Também ao nível das publicações existe uma fraca participação no exercício reflexivo da própria sociologia. Só Maria na época dos projetos da FCT publicou cientificamente, individualmente e em grupo, e Madalena, no âmbito da Revista Nacional de Saúde Pública.
Este pode ser um problema, pois quando se pretende evoluir para uma cultura associativa, deve haver “uma consciência reflexiva e crítica capaz de pensar os fenómenos na totalidade” (Mineiro, 2012: 14). Baixos índices associativos, de consciência deontológica e de prática de publicação científica (reflexividade sociológica), podem estagnar a mudança de cultura profissional que Costa defende (Costa, 1988; 2004).
Considerações finais
Partindo reflexivamente do modelo conceptual de Costa, verificamos que no conjunto de entrevistados o modelo de dissociação, que remete a sociologia para “um papel meramente de investigação/ensino” (Costa, 1988: 120) embora mantenha ainda alguns resquícios, é hoje atenuado face à presença de um crescente número de sociólogos que exercem a sua atividade fora da academia. No conjunto de sete sociólogas que foram entrevistadas neste trabalho, duas têm alguma dificuldade em identificar a sociologia na sua profissão, a diretora adjunta de uma “casa de repouso” e a diretora adjunta no departamento de recursos humanos num hospital privado. Quanto à formação académica, as duas diferenciam-se no seguinte aspeto: a primeira diplomou-se em sociologia pela Universidade Autónoma, uma instituição do setor privado; a segunda diplomou-se na FLUP, Universidade do Porto. As entrevistadas que conciliam melhor a sociologia na sua representação profissional atual, quatro diplomaram-se pelo ISCTE-IUL e uma pelo ISCSP-UL, que tal como a FLUP é uma instituição pública mas localizada em Lisboa. Até que ponto estes contextos são relevantes? Fica a questão como proposta de pesquisa futura a aprofundar pelos colegas que depois de nós irão também ser desafiados a desenvolver pesquisas sobre experiências de profissionalização em sociologia.
As cinco sociólogas que associam a sociologia à sua profissão atual exercem atividade na gestão pública. Entre elas parece existir uma maior compreensão e consciencialização do interesse público, remetendo para uma situação de contexto laboral que beneficia a comunicação do trabalho e conhecimento sociológico com a própria comunidade/público. Isso foi visível nas entrevistas da socióloga da entidade reguladora, da socióloga da câmara municipal, da socióloga e Diretora do Departamento de Desenvolvimento Social e Cidadania doutra câmara municipal e na socióloga da associação de professores.
Outro dos fatores que pode estar por detrás desta questão é o facto de nas suas experiências pessoais e na forma como reinterpretam e se relacionam com os seus contextos, a sociologia ser interpretada como pública, ou seja, serve a comunidade, o público, e o Estado com as suas funções sociais e prossecução do interesse público (Mozzicafreddo, 2007), facilita essa representação pública da sociologia. Há aqui uma prática de sociologia pública que compreende este lado da relação da sociologia e do conhecimento sociológico com os vários públicos (Burawoy, 2007), para além da consciência de prestação de um serviço à comunidade e por uma procura incessante pelo “social” (Capucha, 1995).
Nas relações, formação-ciência-profissão, a sociologia em Portugal teve sempre prevalecente um forte pendor académico. A sociologia foi uma ciência e uma oferta educativa consagrada antes de ser uma campo alargado de profissionalização, e mantém ainda algum deste pendor, senão nas práticas, pelo menos da apresentações e representações dos/sobre os sociólogos. Na conclusão deste trabalho, podemos também afirmar que a sociologia é manifestamente pública, na medida em que no seu exercício profissional é representada e materializada como uma prestação de serviços à comunidade, no exercício de funções com preocupações sociais. Aliás, todos os entrevistados identificaram as suas funções como tendo uma influência direta na comunidade envolvente, quer fosse do privado, quer fosse no público. Contudo, quando questionados acerca de exercerem serviço público, caso trabalhassem no privado, apenas Ana, tendo a perspetiva dos dois lados (público e privado) conseguiu identificar a componente de serviço público prestada no desempenho das suas funções, que exerce num hospital privado. Paula defende também a perspetiva do privado a exercer serviço público, mas ela própria, como vimos atrás, tal como a Ana, com um perfil desistente face à sociologia, não tem a perspetiva da gestão pública no exercício da sua atividade profissional. As sociólogas que se reconhecem mais nesse papel de prestação de serviço público, da entidade reguladora, nas câmaras municipais e na associação de professores desconfiam da gestão privada, e que nesse enquadramento a defesa de interesses privados (sobretudo económicos) tende a sobrepor-se ao interesse (social) da comunidade.
Referências bibliográficas
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Valente, Isabel, Fernando Luís Machado e António Firmino da Costa (orgs.) (1995, 1990), Experiências e Papéis Profissionais de Sociólogos, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia.
[1]Agradecemos à professora Rosário Mauritti a revisão e toda a ajuda prestada na realização do presente artigo.
[2]Os nomes dos entrevistados são fictícios.
Autores: Bruno Oliveira e Carlos Levezinho