Nº 4 - setembro 2011

Inês Pereira, Investigadora de pós-doutoramento, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIES-IUL;  icfp@iscte.pt

Abstract: This article aims to discuss the relationship between social movements and consumption, particularly focusing on movements that have in promoting or in reducing consumption its major social transformation project. The paper is developed around three types of dissident response to consumption: (1) the struggle for access to consumption, (2) restrictions on the consumption of certain goods or boycotting countries and specific brands and (3) the development of alternative circuits of production and consumption. The discussion is based on a set of empirical examples that illustrate the collective action developed at this level.

Keywords: consumption; alternative social movements; information society.

Resumo: O presente artigo propõe-se a discutir a relação entre movimentos sociais e consumo, centrando-se particularmente em movimentos que têm na promoção ou na redução do consumo o seu projecto de transformação sócia central. O artigo desenvolve-se em torno de três formas de contestação do consumo: (1) a luta pelo acesso ao consumo; (2) as restrições ao consumo de determinados bens ou o boicote a países e marcas específicas e (3) o desenvolvimento de circuitos de produção e consumo alternativos. A discussão processa-se com base num conjunto de exemplos empíricos que ilustram a acção colectiva desenvolvida a este nível.

Palavras-chave: consumos alternativos; movimentos sociais; sociedade de informação.

Movimentos Sociais e Consumos

Pensar a ligação entre o consumo e os movimentos sociais, eis o desafio. De que falamos quando pensamos em consumos contestados? E consumos contestatários, também os haverá? Existirão movimentos pelo consumo ou contra o consumo? Haverá formas de consumo típicas de determinados movimentos sociais? E uma política do consumo? É evidente que sim. Enquanto estratégia de distinção, marcada pela diferença e pela desigualdade, as opções de consumo surgem como um acto que é também político, para além de se inscrever em lógicas de diferenciação social e em dinâmicas sociais de gostos e estilos de vida partilhados. Por outro lado, as opções de consumo enquadram-se num campo de possibilidades mais ou menos estrito – e nesse sentido as maiores ou menos possibilidades de consumo constituem-se, também, como um campo de conflito. Parece assim legítimo pensar no consumo como palco de conflito social e contestação e, por isso mesmo, arena de acção para uma miríade de movimentos sociais.

Não é fácil definir o que é um movimento social. É verdade que facilmente nos vêm à memória exemplos de acções colectivas, dotadas de determinadas características específicas e que tendem a ser apelidadas de movimentos sociais. No entanto, as fronteiras deste conceito são obstinadamente fluidas, tanto do ponto de vista epistemológico, já que se cruzam com outros conceitos e termos próximos, quer do ponto de vista ontológico, não sendo clara a segmentação entre que acções se integram nesta categoria. Podemos todavia propor uma definição mínima, comum aos diferentes autores que estudam os movimentos sociais, definição essa que os caracteriza como uma forma de acção colectiva, concertada, com uma intenção explícita de cooperação, em que os seus participantes defendem (com convicção) determinada causa. Esta definição mínima sugere uma coexistência de um conjunto de pontos de vista sobre movimento social, como acção, como projecto social e como conjunto colectivo de actores.

A relação entre movimentos sociais e consumos pode ser organizada em dois grandes grupos. Por um lado, e central ao presente texto, temos aquilo a que podemos chamar de movimentos pelo consumo (ou contra o consumo), ou seja movimentos cuja causa partilhada, o leit motiv para a acção social, se joga precisamente no campo do consumo. Estes não se esgotam apenas nos chamados movimentos de consumidores, podendo prosseguir lógicas de acesso, restrição ou construção de consumos alternativos. A figura 1 pretende dar conta da diversidade de projectos de movimentos sociais ligados ao consumo, organizando-os em quatro categorias que promovem, poderíamos dizer de forma grosseira: mais consumo, melhor consumo, menos consumo e outro consumo:

Figura 1 – O consumo como leit motiv para a contestação social

Por outro lado, os movimentos sociais, enquanto redes de actores mais ou menos envolvidos numa determinada causa, pressupõem um forte pendor identitário, em torno de uma causa comum, mas também em torno de uma produção cultural e identitária específica, em permanente transformação, e que constitui um importante elemento agregador para a identidade comum e para a manutenção da acção colectiva. Jargões próprios, iconografia, preferências por determinados bens culturais, partilha de símbolos, todos estes aspectos decorrem de uma construção permanente das identidades colectivas, com efeitos, também, ao nível dos estilos de vida e dos consumos. Nesse sentido, poderemos assim falar de consumos próprios a determinadas camadas de activistas sociais, seja em função de escolhas éticas, seja por motivos estéticos e identitários.

As páginas que se seguem procuram aprofundar o que foi dito nesta introdução, através de exemplos concretos recolhidos ao longo de vários anos de pesquisa junto de movimentos sociais. Não podendo abordar toda a panóplia de relações entre movimentos sociais e consumo, optou-se por desenvolver uma análise focalizada em torno de três tipos de movimentos sociais que debatem e promovem questões relacionadas com o consumo. Nas três secções em que se organiza o artigo, abordar-se-á então movimentos que têm o consumo como projecto central, fornecendo-se diversos exemplos. Optou-se por, simultaneamente, fornecer um panorama geral das dinâmicas de conflito a este nível e focalizar brevemente num ou dois exemplos específicos. A exposição organiza-se numa narrativa de alguma forma circular, que parte do acesso ao consumo para a promoção de consumos alternativos, passando pelas restrições ao consumo. De fora, ficam os chamados movimentos de consumidores – por exemplo aqueles que promovem a defesa dos direitos dos consumidores, a melhor rotulagem e informação, a ajuda nas escolhas ou a resolução de conflitos. De fora também a discussão sobre as práticas de consumo identitário dos movimentos. No centro focal: o consumo como um acto político que vê em determinados movimentos sociais o motor da mudança.

O acesso

Talvez os primeiros e mais básicos movimentos sociais que se constituem em torno do consumo sejam aqueles que lutam pelo acesso a este. Num mundo claramente desigual, onde os padrões de consumo e o campo de possibilidades que se apresenta a cada consumidor são profundamente diferenciados, lutar pelo acesso mais amplo ao consumo surge como uma causa partilhada por milhares de pessoas, e, na teoria, vista com pouco polémica. A luta contra a pobreza ou pela redistribuição da riqueza ocupa, de resto, uma boa parte da acção social a este nível, e pressupõe, implícita ou explicitamente, um acesso mais adequado ao consumo, seja a produtos de primeira necessidade como a alimentação, a habitação ou os bens de saúde, seja lutando pela igualdade no acesso a produtos menos básicos, minorando a desigualdade social. A promoção da igualdade no acesso ao consumo figura na retórica discursiva de uma boa parte dos movimentos ‘estritamente sociais’, aqueles que, numa formulação clássica, Alain Touraine (1978) considera como a expressão máxima da acção conflitual, inserida numa relação estrutural de dominação, levada a cabo por um actor que reconhece a sua identidade social e a do adversário, e situa ambos num terreno social comum (por exemplo, enquanto agentes com posições distintas no campo das relações sociais de produção). Surge também numa segunda vaga de contestação social, ligada aos novos movimentos sociais, de pendor mais identitário e é recuperada mais recentemente nos chamados novíssimos movimentos sociais (Feixa, Saura e Costa, 2002) que articulam reivindicações e repertórios de acção dos seus predecessores. Por outro lado, a luta contra a pobreza – e neste sentido, por um consumo mais justo – está imbricada tanto em projectos que visam a revolução ou a reforma profunda como naqueles que preferencialmente visam colmatar lacunas da acção do poder instituído. Um bom exemplo deste tipo de práticas é a acção de uma miríade de associações e ONGDs no âmbito da cooperação, assistência e combate à pobreza. Algumas iniciativas recentes como as Campanhas Pobreza Zero, ou os Objectivos de Milénio, revêem-se neste âmbito.

Pensando em bens de consumo mais intangíveis, um exemplo particularmente interessante e actual, é aquele que se relaciona como os combates à infoexclusão e o acesso às novas tecnologias de informação. Num mundo profundamente globalizado, e fortemente baseado na sociedade de informação, na chamada ‘sociedade em rede’, o acesso a esta constitui-se como peça fundamental para a participação plena na sociedade. No entanto, o acesso à internet – e a outras infra-estruturas tecnológicas – é fortemente desigual, condicionado por questões espaciais, financeiras e sociais. Termos como infoexclusão ou fosso digital dão conta destas profundas assimetrias que alargam profundamente quer o fosso Norte-Sul, quer as assimetrias sociais internas a cada país, quer ainda as desigualdades geracionais, Castells (2001). A bibliografia nesta área chama assim a atenção para a emergência de novos palcos de conflito: o acesso às tecnologias e o combate à infoexclusão; a defesa da liberdade de expressão e de acesso aos mecanismos de produção da informação; a partilha de conteúdos (informação, música, software) com recurso à internet; a própria produção do software e finalmente, a produção de hardware e o ritmo de desenvolvimento a este associado, todas estas questões surgem como palco de acção para um conjunto de ‘movimentos tecnológicos’, emergentes da sociedade civil. Um grupo considerável de autores tem-se dedicado ao estudo dos projectos tecnológicos dos movimentos sociais que promovem o acesso ao consumo dos bens e serviços relacionados com a sociedade de informação, com destaque para o combate à infoexclusão, Sáez (2004) que se pode consubstanciar quer em promoção de infraestruturas (disponibilização de computadores, comunidades wireless, etc…) que nas ferramentas de utilização dessas mesmas infra-estruturas (capacitação tecnológica e literacia digital).

As restrições

Num pólo aparentemente oposto, surgem os movimentos que apelam às restrições ao consumo. Podemos aqui agrupá-los de duas formas: por um lado, a diminuição generalizada das práticas de consumo (um anti-consumismo); e, por outro, as restrições específicas em função de diversas motivações. No primeiro caso é destacada a insustentabilidade dos padrões de consumo vigentes, principalmente por motivos ecológicos. Por outro lado, o próprio sistema capitalista de produção e consumo é posta em causa. Neste sentido serão os movimentos ambientalistas e anti-capitalistas a liderar este domínio de acção, numa lógica discursiva que salienta a necessidade de redução e abrandamento dos ciclos de produção, consumo e obsolescência dos objectos. Uma acção simbólica interessante a este nível é o Buy Nothing Day, convocado anualmente para o fim-de-semana onde estatisticamente mais compras são feitas – o último fim-de-semana de Novembro.

As restrições ao consumo são também frequentemente colocadas a um nível particular que salienta a injustiça ou a insustentabilidade de determinados objectos de consumo. Aqui, salientam-se também as motivações ecológicas. Os movimentos pelos direitos dos animais protagonizam algumas das acções mais relevantes neste âmbito, defendendo, por exemplo as restrições ao uso de peles de animais, o próprio consumo de carne animal ou o consumo de determinados produtos cuja forma de produção é particularmente contestada (do foie-gras ao frango de aviário, com particular destaque para os produtos que são testados em animais). Igualmente relevante, a este nível, e palco de acesa polémica, é a discussão em torno dos organismos geneticamente modificados, que tem sido alvo de intensa contestação.

Igualmente relevante a este nível são os apelos ao boicote, uma arma que tem vindo a ser amplamente utilizada em campanhas conduzidas, frequentemente, de forma mundial. Subjacente à ideia do boicote está a noção de que consumir, para além de um acto de gosto e de estilo, é um acto político, pautado por processos de escolha: sustentar a comercialização de bens e serviços vistos como oriundos de marcas e países marcados pela injustiça ou o ataque aos Direitos Humanos ou, ao invés, recusar esse pacto silencioso, através da procura de alternativas e da recusa a determinados consumos? Consumir é apenas uma das extremidades de um sistema de produção e comercialização mundial, ancorado em relações laborais e políticas. O consumidor é parte desse todo, e esse facto confere-lhe poder. É esse poder que o boicote procura potenciar, seja através da recusa em consumir determinadas marcas, seja na total recusa de bens oriundos de determinado país.

No primeiro caso, são vastíssimos os exemplos de companhias e marcas que têm sido alvo de apelos ao boicote, geralmente por críticas a questões dos direitos dos trabalhadores, envolvimento em processos conflituosos pouco claros ou tomadas de posição públicas duvidosas. Empresas como a Nike, a Nestlé, a Coca-Cola ou o McDonalds lideram as listas de apelos ao boicote, tendo de resto, vindo a proceder a reajustamentos – efectivos ou discursivos – no sentido de se aproximarem das reivindicações vigentes.

Outro tipo de boicote, de alguma forma mais polémico, diz respeito a determinados países, cujo sistema político é procurado atingir através de um ataque ao seu sistema económico de exportações. Destacam-se aqui países como Israel, China, Indonésia ou África do Sul que, mercê das suas políticas internas e externas são, ou foram em determinados períodos históricos, profundamente criticados.

No âmbito dos movimentos sociais, as propostas de restrição ao consumo enquadram-se em distintos estilos contestatários e pressupõem diferentes repertórios de acção. Enquadram-se geralmente em movimentos e preocupações de alguma forma de segunda geração, como sejam os ecologistas, pelos Direitos dos Animais ou pelos Direitos Humanos. Podem emanar destes como uma forma de resistência articulada, enquadrada numa narrativa alternativa que se desdobra em diferentes formas de acção ou podem surgir de forma mais parcial, em campanhas muito específicas, sem grande reflexão teórica envolvente e sem se pressupor um modelo alternativo de sociedade.

Do ponto de vista dos repertórios de acção escolhidos, o apelo às restrições ao consumo é claramente uma forma de acção transnacional, que funciona particularmente bem numa sociedade em rede onde a informação circula de forma acelerada e onde há uma consciência da necessidade de intervenções globais e tem, como força e fraqueza, um potencial de acolher ‘membros’ cuja acção se circunscreve a uma negação de consumo de determinados produtos. Neste sentido tem um potencial de propagação enorme, envolvendo indivíduos que não são propriamente activistas, mas também se arrisca a esvaziar-se em propostas parcelares e reactivas, sugerindo que a participação social se pode esgotar nas acções de boicote ou redução do consumo. Por outro lado, são abertos caminhos para a promoção de consumos alternativos, como veremos de seguida.

As alternativas

Um terceiro tipo de movimento social construído em torno do consumo promove alternativas concretas que permitam responder às questões colocadas anteriormente. Ou seja, se é preciso mais consumo e menos consumo, subentende-se, é preciso um melhor consumo, que possa responder à falta de acesso e à necessidade de recusar determinadas formas e tipos de consumo. E aqui se inscrevem um conjunto de acções que visam quer a promoção, quer a oferta de outros padrões e outros bens de consumo. Falamos de movimentos que procuram criar modelos de produção e comercialização baseados em pautas diferenciadas das que regem o sistema hegemónico, assentando em soluções consideradas mais justas, democráticas, livres e respeitadoras do meio ambiente. Entre estas redes alternativas encontram-se modelos de gestão dos meios de produção (por exemplo, o sector cooperativo), de difusão da informação (como é o caso das agências noticiosas alternativas), de produção e desenvolvimento tecnológico aberto e livre (como o software livre); de condições de produção respeitadoras do ambiente (como é o caso da agricultura biológica) ou de estabelecimento de parcerias comerciais alternativas (como é o caso do movimento pelo Comércio Justo).

Mais do que em qualquer outro caso, estes movimentos concebem o consumo como uma extremidade de uma cadeia que engloba produção e comercialização, e intervêm nestes diferentes níveis. Com efeito, promover um novo tipo de consumo exige novos tipos de produção – e de comercialização ou distribuição. Estamos assim perante movimentos que prosseguem aquela que tem sido uma relevante discussão teórica interna aos próprios movimentos sociais, defendendo a necessidade destes serem a própria mudança que querem ver na sociedade, ou seja, construírem-se quotidianamente em torno de práticas que são, elas próprias, alternativas e que simultaneamente provam a possibilidade teórica de alternativas, numa dupla lógica de construção e promoção de alternativas. Foquemos em dois casos concretos.

O movimento pelo Comércio Justo visa promover uma alternativa ao comércio internacional, e especificamente ao modelo de transacções Norte-Sul, centrando-se particularmente – mas não exclusivamente – em bens como o café, o chá ou o chocolate, produzidos em países do chamado Sul e largamente consumidos nos países do Norte. O conceito do Comércio Justo pressupõe a existência de uma parceria entre (1) os produtores dos países do Sul, organizados em cooperativas que funcionam segundo princípios de equidade e justiça social; (2) as importadoras/distribuidoras e (3) as chamadas lojas do mundo onde estes produtos são comercializados. A estas três instâncias promovem-se (1) condições de trabalho dignas e o respeito pelos direitos humanos, nomeadamente combatendo a exploração do trabalho infantil, os direitos dos trabalhadores e a igualdade entre homens e mulheres no local de trabalho; (2) o pagamento de um preço justo pelo trabalho realizado e a promoção da segurança económica através do estabelecimento de relações comerciais a longo prazo; (3) a protecção ambiental e o desenvolvimento sustentável; (4) a transparência e (5) a gestão democrática e o envolvimento de todos os agentes da rede na tomada de decisões. Ao promover um circuito comercial completo, este movimento promove uma verdadeira alternativa, baseada na ideia da justiça como base da relação comercial.

Retomemos a discussão anteriormente encetada sobre o acesso à sociedade de informação. Se as possibilidades de acesso à tecnologia constituem uma arena privilegiada para os movimentos sociais da sociedade de informação, por outro lado, a própria produção de software tem sido alvo de contestação. Exemplo paradigmático desta realidade encontra-se no movimento do software livre que construiu um sistema alternativo de produção e distribuição de software, uma alternativa total ao consumo, tal como o movimento do Comércio Justo.

Muito resumidamente, o software livre pode ser definido como aquele cujo código-fonte (o programa na linguagem original em que ele foi escrito) está disponível, sendo portanto possível modificá-lo e distribuí-lo livremente, sem necessidade de autorizações adicionais. Uma aplicação que circule como software livre pode ser corrigida ou modificada por qualquer utilizador ou programador que não o inicial, de acordo com as quatro grandes liberdades que o regem: (1) A liberdade de executar o software para qualquer uso; (2) A liberdade de estudar o funcionamento de um programa e de adaptá-lo às suas necessidades; (3) A liberdade de redistribuir cópias; (4) A liberdade de melhorar o programa e de tornar as modificações públicas de modo que a comunidade inteira beneficie da melhoria.

O desenvolvimento do software livre lançou as bases para uma interacção intensa em torno do desenvolvimento de um sistema operativo. Interacção essa que se veio a transformar numa ampla rede de desenvolvimento, que se foi alargando consideravelmente e, não muito tempo depois, dezenas de programadores contribuíam para a melhoria do sistema. Uma vez criado um sistema operativo livre, assiste-se a uma crescente expansão. As aplicações de software livre são constantemente melhoradas, através das contribuições de dezenas, centenas, milhares de indivíduos, que, em cantos diferentes do mundo, acedem ao sistema, testam as suas funcionalidades, lêem o código-fonte e inserem melhorias e modificações.

 Se, por um lado, o software livre desafia o modelo organizacional convencional de produção tecnológica (somando modelos alternativos de negócios com participações individuais muitas vezes expressão de uma prazer criativo), por outro desafia também o modelo de comercialização do software, e o modelo económico que lhe é associado, assumindo, desta forma, um papel na corrente discussão sobre a mais ampla alteração dos modelos de negócio face à internet.

Os dois exemplos aqui desenvolvidos constituem casos emblemáticos da construção de um modelo alternativo de produção e consumo, sendo protagonizados quer pelos próprios produtores, quer – no caso do Comercio Justo, mas também, por exemplo, na Agricultura Biológica – pelos distribuidores e retalhistas, quer pelos consumidores e movimentos de promoção do consumo. De alguma forma, este tipo de movimentos reconstrói as propostas anteriormente mencionadas, apelando simultaneamente a menos e mais consumo.

Consumindo e em movimento

A relação entre movimentos sociais e consumos move-se assim numa tensão entre o individual e o colectivo, no sentido em que sendo o consumo um acto individual – ainda que, obviamente fortemente condicionado de forma social e estrutural por possibilidades de escolha e por escolhas identitárias – os consumos contestados apenas fazem sentido quando (1) coerentemente articulados, possibilitados e promovidos por um colectivo unido em torno de uma causa comum: um movimento social, e quando; (2) transbordem para lá do âmbito exclusivo da acção dos movimentos sociais difundindo-se enquanto causa e enquanto prática, pela sociedade em geral. Os movimentos sociais actuantes na área do consumo devolvem assim, a questão à sociedade no seio da qual agem. As alternativas estão aí. Compete a cada um repensar o seu consumo, à luz das reflexões e alternativas propostas.

Referências

CASTELLS, Manuel (2001), The Internet Galaxy, reflections on the Internet, business and Society, Oxford, Oxford University Press.

FEIXA, Carles, SAURA, Joan and COSTA, Carmen (2002) Movimientos juveniles: de la globalizacion a la antiglobalizacion, Barcelona, Ariel.

SÁEZ, Victor Mari (2004), La red es de todos, cuando los movimientos sociales se aproprian de la red, Madrid, Editorial Popular.

TOURAINE,  Alain  (1978), La voix et le regard, Sociologie des mouvement  sociaux ,  Paris, Édition du Seuil .

Autores: Inês Pereira