2025, n.º 39, e2025394

Cirlene de Souza Christo
FUNÇÕES: Conceitualização, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Departamento de Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Pasteur, 250 — fundos Praia Vermelha — Rio de Janeiro / RJ, CEP 22290-902, Brasil
E-mail: cirlene.ufrj@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8148-9730

Muza Clara Chaves Velasques
FUNÇÕES: Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz,
Rio de Janeiro/RJ, CEP 21041-210, Brasil
E-mail: muzavelasques@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0009-0005-4838-8248

Simone Oliveira
FUNÇÕES: Investigação, Redação do rascunho original
AFILIAÇÃO: Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.
Rio de Janeiro/RJ, CEP 21041-210, Brasil
E-mail: simone.soliveira@fiocruz.br | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1477-749X

Letícia Pessoa Masson
FUNÇÕES: Aquisição de financiamento, Investigação, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.
Rio de Janeiro/RJ, CEP 21041-210, Brasil
E-mail: leticia.masson@fiocruz.br | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5422-286X

Márcia Teixeira
FUNÇÕES: Investigação, Redação do rascunho original
AFILIAÇÃO: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro/RJ, CEP 21041-210, Brasil
E-mail: txmarcia47@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9502-0789

Sarah Amaral
FUNÇÕES: Investigação, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro/RJ, CEP 21041-210, Brasil
E-mail: sarah.pmaral@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5221-6685

Resumo: O artigo examina o modo de organização e gerenciamento adotado por empresas que controlam trabalhadores sob demanda via plataformas digitais no Brasil. Abordam-se as repercussões do gerenciamento algorítmico gamificado nos processos de subjetivação do trabalho de entregadores e motoristas e formas de resistência destes a este gerenciamento. A Ergologia oferece uma contribuição teórico-metodológica importante ao abordar o trabalho como atividade humana, enfatizando os saberes e valores em jogo. Essa contribuição foi articulada com outras referências teóricas sobre o processo de trabalho. O método envolveu a realização de entrevistas semiestruturadas e Encontros Sobre o Trabalho com trabalhadores de diferentes estados do país. Os resultados indicam que a tendência ao consentimento por parte dos trabalhadores às condições e regras impostas pelas plataformas digitais deve ser compreendido no contexto do mercado de trabalho marcado por altos índices de desemprego, informalidade e precariedade. A vulnerabilidade social, somada aos efeitos individualizantes desse sistema de gerenciamento, leva os sujeitos a priorizar a busca de suportes materiais e simbólicos para garantir sua existência, mesmo que isso implique em abrir mão de seu descanso, lazer, saúde e segurança. Para suportar o sofrimento, constroem estratégias de defesa que podem também configurar-se como movimentos promotores de saúde, via ações de resistência individual e coletiva. Dentre as ações estão a observação e o estudo do funcionamento dos algoritmos, assim como a constituição de uma aliança nacional de trabalhadores que integra diversas entidades e coletivos organizados do país na luta contra a precarização do trabalho.

Palavras-chave: trabalho por plataformas digitais, gamificação do trabalho, motorista, entregador.

Abstract: The article examines the organisational and management model adopted by companies that control on-demand digital labour-platforms in Brazil. It analyses the impact of gamified algorithmic management on the processes of labour subjectivation of delivery workers and drivers, as well as their forms of resistance to this management. Ergology offers a relevant theoretical and methodological contribution by conceptualizing work as a human activity, in which knowledge and values are at stake. This contribution was articulated with other theoretical perspectives on the work process. The method involved conducting semi-structured interviews and Work Encounters with workers from different states of the country. The results indicate that workers’ tendency to consent to the conditions and rules imposed by digital platforms must be understood in the context of a labour market characterised by high levels of unemployment, informality and precariousness. The social vulnerability, coupled with the individualising effects of this management system, leads them to prioritise the search for material and symbolic support to guarantee their existence, even if this means giving up their rest, leisure, health and safety. In order to endure suffering, they develop defence strategies that can also be health-promoting movements, involving individual and collective forms of resistance. These strategies include observing and studying how the algorithm operates, as well as the formation of a national workers’ alliance that integrates various entities and collectives organized in the country in the fight against the precariousness of work.

Keywords: digital platform work, work gamification, app-based driver, courier-delivery worker.

Introdução

O trabalho, assim como outros setores da vida, vem sofrendo uma crescente dependência de mecanismos de plataformas digitais (Poell et al., 2020). As plataformas vêm produzindo mudanças significativas nos sistemas de controle dos processos de trabalho de diversas categorias profissionais, fenômeno que vem sendo denominado plataformização do trabalho (Abílio et al., 2021; Casilli & Posada, 2019; Grohmann, 2020). Ele se caracteriza pela adoção de um modo de gerenciamento algorítmico (Duggan et al., 2020) que faz uso — muitas vezes a partir da inteligência artificial — de um conjunto de regras moduladas por programas de computador, as quais se expressam ao trabalhador a partir de comandos despersonalizados (Walker et al., 2021). As regras, pouco visíveis e voláteis, impõem constrangimentos/exigências aos trabalhadores, com efeitos em sua tomada de decisão. Diferentemente do controle burocrático, esse modo de organização do trabalho e gerenciamento — viabilizado pela dataficação com a coleta e o processamento massivo de dados — permite às empresas o acesso a informações sobre demanda e oferta dos serviços e o controle do trabalho em tempo real (Grohmann, 2020; Moore & Woodcock, 2021). Assim, as empresas operam unilateralmente a distribuição do trabalho e a definição algorítmica — porém não neutra — dos valores de remuneração. Tudo isso em operações voláteis e pouco transparentes aos trabalhadores e usuários das plataformas, com a adoção de um padrão de comunicação, no qual não há espaço para contestação ou garantia de suporte no tratamento dos problemas que surgem nas situações concretas de trabalho.

Em paralelo, o modo de organização do trabalho por plataformas digitais empresta e intensifica práticas de produção, que se esperava já estarem abolidas. Como no início do século XX, em que se adotavam formas de remuneração por peça, as plataformas digitais, no lugar da remuneração por hora, pagam as pessoas pela conclusão de uma tarefa (Dubal, 2021). Substituindo o tempo como unidade de medida do valor da força de trabalho e com a qualidade sendo controlada pelo próprio produto/serviço, o empregador não necessita realizar a difícil atividade de controlar o tempo de trabalho (Teixeira, 2021). Este passa a ser objeto de controle do próprio trabalhador, em um autogerenciamento subordinado (Abílio, 2019), que intenciona o modelamento do comportamento de pessoas que são instadas à obrigação de perceber o tempo disponível, que poderia ser usado em outras atividades, como tempo potencial de trabalho para compensar os tempos não remunerados.

Faz-se, assim, necessário compreender as mudanças promovidas pela plataformização do trabalho de diferentes categorias profissionaisnas condições concretas de trabalho e de vida dos trabalhadores. Neste sentido, o foco da discussão nesse artigo é o sistema de controle e gerenciamento algorítmico adotado por plataformas digitais e, nele, especialmente, o uso da estratégia de gamificação do trabalho, tomando-se como quadro de análise a conjuntura sócio-político-econômica brasileira.

Propõe-se uma discussão acerca das formas de controle e direcionamento do trabalho constituintes do modo de organização do trabalho por plataformas digitais e de suas repercussões no processo de subjetivação do trabalho de entregadores e motoristas. A seguir, a partir de uma análise do trabalho realizada com trabalhadores de diferentes estados do Brasil, buscamos realizar um diálogo entre autores que discutem o controle do trabalho e os processos de subjetivação, sofrimento e defesas à saúde. O objetivo é contribuir para o debate sobre o tema da plataformização do trabalho em um contexto histórico de precariedade do emprego.

Plataformização do trabalho no Brasil

Desde a crise econômica de 2008 e com a consolidação de uma economia informacional caracterizada pela extração de dados (Srnicek, 2017), assistimos a um aprofundamento das formas de exploração dos trabalhadores no mundo, destacadamente em países do capitalismo periférico, no chamado Sul Global. Dentre seus antecedentes está o avanço da ordem econômica neoliberal que, aliançado a projetos de governos privatizantes, têm implicações nas políticas públicas de proteção social e trabalhista. No Brasil, onde as desigualdades de classe, raça e gênero se evidenciam (Costa et al., 2021), a informalidade e a precarização há tempos são dominantes nas estatísticas sobre o trabalho. Trabalho este historicamente marcado por um passado escravista, em relação ao qual reiteradas políticas sociais de exclusão e limitação da garantia de direitos seguem se atualizando. Assim, o quadro de informalidade do mercado de trabalho brasileiro vem sendo incrementado por um processo de ampliação da precariedade das relações de trabalho, em função de contra-reformas nas legislações trabalhista e previdenciária. E é importante frisar que a taxa de desocupação do primeiro trimestre de 2023, revelada pela pesquisa que acompanha a inserção da população brasileira no mercado de trabalho, não trouxe novidades: pobres, mulheres, trabalhadoras e trabalhadores negros são os mais atingidos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2023).

As principais empresas de trabalho por plataformas digitais no Brasil que atuam no ramo de transporte e mobilidade são: a Uber, pioneira no serviço de transporte por aplicativo no Brasil; a 99 (DiDi); e a InDriver, plataforma de transporte onde os usuários negociam o valor das corridas diretamente com os motoristas. No ramo de entregas de alimentos e logística, há: o iFood, maior plataforma de entrega de alimentos no Brasil; a Rappi, que oferece serviços de entrega de alimentos, mercado, farmácia e outros produtos sob demanda, a Uber Eats, um segmento de entregas da Uber que reduziu suas operações no Brasil, a recém chegada 99 food, e a Loggi, especializada em entregas rápidas e serviços logísticos para empresas e consumidores. Essas empresas, com seus instrumentos midiáticos, tentam convencer os trabalhadores de que a modalidade de contrato de trabalho sob demanda, com pagamento por tarefa realizada, traz a eles maiores ganhos financeiros e maior mobilidade entre o trabalho e outras instituições, como a família e a educação (Bastos, 2019). O objetivo delas é atrair um grande contingente de pessoas em situações de desemprego ou insuficiência de renda para ocupações que vêm sendo transformadas com suas operações no mercado de trabalho brasileiro. Assim, em um cenário de informalidade e de alteração da legislação trabalhista em direção a uma maior flexibilização nas relações de emprego (Krein, 2018), o Brasil tem assistido a uma ampla expansão das plataformas digitais de entrega de mercadorias e transporte individual de passageiros, especialmente nos grandes centros urbanos. Coincidindo com a instalação de empresas que controlam o trabalho via plataformas digitais nos mercados de trabalho de condutores de automóveis, táxis, caminhonetes, e motocicletas no Brasil, tem havido um aumento expressivo da quantidade de trabalhadores, assim como aumento da taxa de informalidade dessas categorias e queda em seus rendimentos. Segundo dados do relatório do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE, 2025), entre 2022 e 2024 houve um crescimento de 25,4% do número de trabalhadores por plataformas digitais no Brasil, passando estes a representar 1,9% da população brasileira ocupada no setor privado. Do total desses trabalhadores, 58,3% tinham os aplicativos de transporte e 29,3% os aplicativos de entrega como sua principal ocupação. Nota-se também que, ao longo dos anos, tem havido um aumento da informalidade do mercado de trabalho e queda no rendimento das categorias que têm experimentado a plataformização do trabalho. Segundo o IBGE (2015), em 2024, 71,1% dos trabalhadores por plataformas digitais estavam na informalidade e, em relação aos dados de 2022, houve uma diminuição do rendimento médio destes em relação aos demais trabalhadores. Além disso, esses trabalhadores têm diminuído a sua contribuição previdenciária e, consequentemente, a sua proteção.

Contexto sócio-político-econômico

Assim, essas injunções não podem ser analisadas sem levar em conta a conjuntura sócio-político-econômica do processo de plataformização do trabalho no Brasil. Como já argumentamos (Christo & Masson, 2023), em algumas regiões, a plataformização se configura como uma forma de ampliação exponencial da flexibilização e da precarização do trabalho. Mas, lembrando que a precariedade social e o de desemprego estrutural são históricos nesse contexto, esse processo se configura como uma importante alternativa ao desemprego. Para muitas pessoas, a que resta para a garantia da sobrevivência. Há que se considerar também o processo de desmonte das leis que garantem direitos trabalhistas no Brasil, cujo ápice foi a Reforma Trabalhista de 2017 (Druck et al., 2019).

Florestan Fernandes (1976), ao estudar o desenvolvimento do capitalismo na sociedade brasileira, nos confere a possibilidade de compreensão do jogo de interesses que permite entender a liberdade de atuação das empresas por plataformas digitais no país. Dentro da conformação histórica de um capitalismo dependente, o Estado brasileiro ao se constituir como uma autocracia burguesa, define a capacidade da burguesia nacional — que se articula de forma dependente ao capital hegemônico no mundo — de assumir as decisões políticas voltadas aos seus interesses no país em detrimento das demandas dos trabalhadores. Em seu projeto, a cooptação das representações dos trabalhadores e o domínio das diferentes instâncias de poder (legislativo, judiciário e executivo) é a regra.

Nesse contexto, em 2020, entrou em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) n.º 3.748/2020 (2020) que propõe a instituição do regime de trabalho sob demanda para os chamados aplicativos de serviços. No texto do PL, esse regime é definido como aquele “em que os clientes contratam a prestação de serviços diretamente com a plataforma de serviços sob demanda, que, por sua vez, apresenta proposta para execução dos serviços para um ou mais trabalhadores” (Projeto de Lei n.º 3.748/2020, 2020). Para além dos objetivos declarados de assegurar um patamar regulatório e condições mínimas de trabalho e de determinar um nível de proteção social, o projeto propõe a instituição de uma modalidade de assalariamento que foi denominada “remuneração por tempo efetivo de prestação de serviços”. Segundo o PL, o requisito essencial para a caracterização desse regime de trabalho seria “a plena liberdade do trabalhador em aceitar ou não a proposta para prestação do serviço”. Entretanto, sabemos que essa liberdade precisa ser analisada considerando-se as configurações concretas dos processos de trabalho, assim como os contextos locais, nacionais e da divisão internacional do trabalho.

Assim, mesmo não reconhecendo o vínculo trabalhista, o Projeto de Lei explicita a autorização às plataformas de definir o modo de organização do trabalho e impor um gerenciamento, via monitoramento da realização do serviço, imposição de regras de conduta e exigência de padrões de qualidade por elas definidos. Por outro lado, propõe vedar às empresas um conjunto de práticas. Dentre elas, i) a aplicação de penalidades aos trabalhadores pela não aceitação da demanda; ii) a influência das plataformas na avaliação do trabalhador e na quantidade de serviços a ele ofertados; iii) a vinculação de benefícios à realização de um mínimo de serviços por período; e iv) a exigência de um tempo mínimo à disposição. Mas, questionamos aqui: como as empresas abririam mão dessas práticas, se elas estão mesmo no fundamento do controle que exercem sobre o processo de trabalho?

Gamificação do trabalho

Ao contrário, a literatura aponta para o uso pelas plataformas digitais de estratégias de gamificação do trabalho, anteriores à era digital: um processo por meio do qual são usados métodos, metáforas, valores e atributos de jogos para obter o engajamento e a motivação (Fuchs, 2014) tanto de trabalhadores como de consumidores. Pontuações, níveis, competição, quantificação do comportamento, provas, classificações etc., são usados para o direcionamento do comportamento no trabalho (Woodcock & Johnson, 2018). Potencializadas com o uso de algoritmos pelas plataformas, essas estratégias conferem uma grande imprevisibilidade na remuneração dos trabalhadores. No ambiente digital, a gamificação se processa com ínfimo contato humano, de modo automatizado e com vigilância pelas empresas por meio de um complexo processo de extração e refinamento de dados (Srnicek, 2017), tornando essa vigilância mais difícil de ser identificada, questionada e combatida.

Nesse quadro, propõe-se a discussão sobre como o gerenciamento algorítmico gamificado do trabalho por plataformas digitais têm repercutido na experiência e nos processos de subjetivação de entregadores e motoristas no Brasil e tem sido objeto de resistência por parte desses trabalhadores.

Enquadramento teórico

A partir de experiência como motorista por plataformas nos Estados Unidos, Sarah Mason (2019) chama a atenção para os efeitos mobilizadores da gamificação do trabalho:

Os jogos proporcionam uma experiência instantânea e visceral de sucesso e recompensa, e são cada vez mais utilizados no local de trabalho para promover o envolvimento emocional com o processo de trabalho, para aumentar o investimento psicológico dos trabalhadores na conclusão de tarefas que de outra forma não seriam inspiradoras, e para influenciar, ou “cutucar”, o comportamento dos trabalhadores. E foi o que fizeram o meu resumo semanal de feedback, as minhas avaliações e as outras características gamificadas do aplicativo da Lyft. (Mason, 2019, para. 10)

A autora mobiliza as discussões teóricas de Burawoy sobre a natureza também ideológica e política — além de econômica — do controle do processo de trabalho. Burawoy (2012) analisou o estabelecimento de cotas de produção em uma indústria nos EUA na década de 1970. Seus achados indicaram que essa prática suscitava uma espécie de jogo social que se estabelecia entre os operários, produzindo uma cooperação com a aceleração do trabalho. Cooperação essa que indicaria um movimento no regime de extração do esforço: da coerção à organização do consentimento dos trabalhadores. Sugere, então, pensar a questão do controle em termos de um jogo, cujas regras são reguladas pela gerência, mas do qual os trabalhadores também participariam, produzindo legitimação das condições que definem essas regras, assim como dos próprios objetivos.

Faz-se necessário registrar a grande diferença de contexto sócio-político e econômico entre a plataformização do trabalho contemporâneo e o campo de estudo de construção da teoria do consentimento de Burawoy, que envolvia naquele país a emergência de políticas de proteção trabalhista, o fortalecimento do sindicalismo industrial e maior proteção social do que o atual cenário brasileiro. Pensar os processos de subjetivação no trabalho em contexto de vulnerabilidade social aliada a influências de princípios neoliberais requer considerar o quadro de incerteza e insegurança social e trabalhista. Assim, nos perguntamos: que efeitos podem ter as práticas gerenciais gamificadas em conjuntura econômica e social distinta do Norte Global em categorias de trabalhadores, que, historicamente, estão às margens do sistema econômico hegemônico?

Na direção dessa compreensão, mobilizamos Knights (1990) que aponta que, em circunstâncias de isolamento social, os sujeitos mais vulneráveis a ameaças externas à sua sobrevivência simbólica e material tendem a orientar-se ao acúmulo de suportes materiais e simbólicos para garantir a sua existência individual. Identidades vulnerabilizadas pelos efeitos individualizantes das tecnologias de poder no contexto neoliberal, somadas à maior necessidade de controle produzida pela incerteza de sobrevivência material e simbólica, geraria o enfraquecimento da resistência que costuma surgir quando o controle se dá por via coercitiva/repressiva. E isso se daria justamente pela possibilidade de as tecnologias de poder utilizadas serem percebidas como positivas. Nesse caso, com os almejados ganhos materiais e simbólicos, pela possibilidade de estes serem promotores de reconhecimento e confirmação de si. Assim, a busca — apesar das limitações — do sucesso no jogo se daria pela esperança na erradicação da incerteza da sobrevivência material, assim como simbólica. Isto é, a possibilidade de diminuir a incerteza do julgamento dos outros no vislumbre de uma identidade futura segura enquanto ser independente.

Concordamos, portanto, com o autor quando afirma a necessidade de tomar o trabalho em sua complexidade:

Para o avanço de uma práxis política, a teoria do processo de trabalho precisará ir além da análise do controle gerencial, da exploração do trabalho, da desqualificação e da intensificação da produção. Será necessário incluir a análise das contradições, incorporando aquelas em torno das preocupações com a segurança subjetiva e as tentativas de tornar o sentido não problemático. (Knights, 1990, p. 329)

Entretanto, acrescentaríamos: como a vida nunca pode ser totalmente predeterminada, essas preocupações e tentativas dos sujeitos precisam ser consideradas dentre tantas outras tendências e inclinações em sua história, mobilizadas nas dramáticas de uso do corpo-si (Schwartz & Durrive, 2021) em situações concretas de vida e trabalho. Em uma perspectiva ergológica, entendemos o trabalho como atividade, a qual envolve sempre debates de normas por onde circulam valores. Uma atividade que nunca pode ser entendida como simples execução dessas normas, que não pode ser, portanto, totalmente determinada, ou antecipada, mas que implica em uso de si — do corpo, da inteligência, da história, da sensibilidade, dos gostos, da memória de quem trabalha —, convocando o sujeito como um todo. Algo que se dá em uma tensão contraditória entre o uso de si por si e o uso de si pelos outros, visto que as prescrições e as normas antecedentes, historicamente construídas nas tensões entre os polos mercantil, político e o da atividade humana, têm também um peso grande nesses debates.

Assim, as gestões efetuadas pelos trabalhadores, concretamente situadas no tempo e no espaço das injunções contraditórias do trabalho contemporâneo, conforme sinalizam Schwartz e Durrive (2021), precisam ser consideradas também: i) diante das normas antecedentes e valores que se apresentam para o trabalhar situado, assim como do confronto entre elas; ii) diante da necessidade que os trabalhadores, individual e coletivamente, têm de retrabalhar essas normas frente às variabilidades do meio e à singularidade das pessoas e das situações de trabalho; e até mesmo iii) diante da necessidade de produzir novas normas, quando as que existem não são suficientes para a construção de seu meio de vida. O uso de si por si, esta punção da pessoa sobre ela mesma, é indicado pelo autor como também positivo, pois que, sendo também um teste de si para si, contribuiria na construção de sentidos. Mas essa positividade se daria em um sentido diferente do indicado por Knights (1990). Ela não estaria apenas nos ganhos materiais ou (inter)subjetivos, mas no exercício de saúde, na produção e recentramento de normas na construção do seu meio (Canguilhem, 2001). Trabalhar é, assim, entendido na perspectiva ergológica como uma gestão. Envolve fazer escolhas, conscientes ou não, nas permanentes confrontações com situações históricas, com dimensões singulares que ainda não foram vividas por ninguém e que precisam ser tratadas. Escolhas limitadas por inúmeros constrangimentos, mas que se dão, mesmo que no infinitesimal.

Assim, visando a localizar as potencialidades de saberes e de valores que germinam nos meios de trabalho, o objetivo da pesquisa foi, no contexto brasileiro, identificar os debates de normas e as escolhas possíveis nas atividades de trabalho de motoristas e entregadores por plataformas digitais diante dos constrangimentos impostos pelo gerenciamento algorítmico gamificado.

Método

A escolha do trabalho de motoristas, motoboys e ciclistas subordinados a plataformas digitais como campo empírico se deu pela representatividade dessas categorias de trabalhadores no processo de plataformização do trabalho no Brasil. O Brasil é o país com o maior número de usuários da Uber e o iFood detém o monopólio do ramo de entrega de alimentos, com mais de 80% dos serviços prestados (iFood, 2022)[1]. Com baixo nível de organização político-trabalhista (Amorim et al., 2022), as ocupações que hoje têm sido denominadas no Brasil como de motoristas e entregadores por aplicativos representaram as portas de entrada desse modo organizativo de exploração no mercado do trabalho brasileiro.

A abordagem de pesquisa adotada é a qualitativa e a estratégia metodológica se deu pela realização de entrevistas e Encontros Sobre o Trabalho (EST), em formato de atividades formativas, ambos orientados pelos princípios do Dispositivo Dinâmico a Três Polos (Schwartz & Durrive, 2021). A partir de uma postura ética e de humildade epistemológica, promoveu-se a construção de um espaço de circulação dialógica não hierarquizada de saberes instituídos e saberes oriundos da experiência dos trabalhadores e trabalhadoras.

A seleção dos participantes da pesquisa incluiu tanto sujeitos que trabalhavam naquele momento pelas plataformas digitais de transporte mencionadas anteriormente, como aqueles que haviam trabalhado anteriormente por elas.

Em modalidade de pesquisa-formação, os EST foram realizados entre outubro e dezembro de 2022 com 18 trabalhadores/as ao total: 2 mulheres, 9 motociclistas, 4 ciclistas e 5 motoristas; 6 atuantes no Rio de Janeiro (RJ), 5 em São Paulo (SP), 2 na Bahia (BA), 2 em Minas Gerais (MG), 1 no Distrito Federal (DF), 1 em Santa Catarina (SC) e 1 no Rio Grande do Sul. O objetivo do recorte trazido para este artigo foi o debate acerca das formas de trabalhar e de gerir os constrangimentos impostos pelo modo de controle e gerenciamento algorítmico adotados pelas plataformas digitais de trabalho, buscando identificar como as normas antecedentes (prescrições, regulamentações, condições de realização) são interpretadas e vividas nas experiências concretas de trabalho, dando visibilidade ao recentramento e reinvenção delas nas atividades dos/as trabalhadores/as.

Vale observar que as entrevistas semiestruturadas foram utilizadas simultaneamente aos EST, permitindo que aprofundássemos o conhecimento sobre o indivíduo no seu processo de trabalho, a forma como se via nele e como o trabalho o afetava. Além disso, possibilitou descortinar o/a trabalhador/a na sua vida cotidiana, ou seja, conhecer seus valores, costumes, escolhas e dinâmicas coletivas em que estava envolvido/a. Desta forma, a entrevista foi conduzida no sentido de construir caminhos de apoio para que as pessoas conseguissem elaborar sua compreensão sobre o trabalho, formulando suas percepções, sentimentos e considerações tácitas (Gray, 2012). O objetivo era que os sujeitos expusessem suas formas de olhar o trabalho, e olhar-se no trabalho, reelaborando-o. As entrevistas, com duração de 1 hora a 1 hora e 30 minutos, foram realizadas de agosto de 2021 a fevereiro de 2023 com 22 trabalhadores/as. Dentre ele/as: 5 mulheres e 17 homens; 13 entregadores/as (6 motociclistas e 6 ciclistas) e 9 motoristas; 18 atuavam no Rio de Janeiro (RJ), 2 em São Paulo (SP), 1 no Distrito Federal (DF) e 1 na Paraíba (PB); na faixa etária entre 25 a 53 anos; ensino médio como escolaridade mínima, sendo que 8 tinham também ensino superior.

Tanto as entrevistas, quanto os EST, foram realizados de forma remota, via webconferência. O motivo inicial eram as restrições sanitárias impostas pela pandemia de COVID-19 e, posteriormente, a viabilidade de acesso aos trabalhadores em diferentes cidades, e com maior disponibilidade de participação deles por não envolver a necessidade de deslocamento geográfico. Ambos os dispositivos envolveram gravação de áudio e vídeo a partir do consentimento dos envolvidos. Vale destacar que durante os encontros surgiram por parte de trabalhadoras e trabalhadores dificuldades de acesso à internet e de manejo dos programas utilizados para os encontros online. Além disso, alguns participaram dos encontros durante a sua jornada e até mesmo durante a realização de suas atividades de trabalho.

A maioria dos sujeitos era participante de etapas anteriores da pesquisa em andamento desde 2019: conversas com entregadores/as nas ruas da cidade do Rio de Janeiro; entrevistas com presidentes de associações de motoristas; Encontros Sobre o Trabalho entre motoristas; e Encontros Sobre o Trabalho entre entregadores. A partir do retorno limitado das tentativas de aproximação de sindicatos e associações das categorias em 2019 no Rio de Janeiro, optou-se por uma abordagem direta dos trabalhadores em seus espaços de trabalho e associativo, assim como espaços online de discussão sobre o trabalho, como seminários, sessões de debates sobre projetos de lei; indicação de outros participantes da pesquisa; e indicação de outros pesquisadores. A aproximação via espaços virtuais de discussão sobre o trabalho — que se proliferaram ao longo da pandemia dado o recrudescimento das condições de trabalho por plataformas e o rebaixamento das remunerações — viabilizou a participação na pesquisa de trabalhadores de fora do estado do Rio de Janeiro, local de atuação do grupo de pesquisa.

O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Coletiva Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ), com parecer 3.273.038; CAAE: 08672919.7.1001.5240.

Resultados e discussão

A configuração dos processos de trabalho por plataformas digitais no ramo de transporte individual de passageiros e de entrega de encomendas no Brasil passa por uma desprofissionalização — ou um processo de amadorização do trabalho (Abílio, 2019) — das categorias de motoristas de transporte individual urbano e de motofretistas. Sob o argumento de que as tecnologias utilizadas modificariam a natureza das atividades profissionais, empresas como Uber, 99, iFood, Loggi e Rappi conseguem se desviar das regulamentações e normativas para o exercício dessas ocupações. Com isso, surgem denominações mais genéricas para designar os trabalhadores: motoristas por aplicativos e entregadores por aplicativos. A facilitação da adesão às plataformas faz com que essas atividades profissionais passem a ser exercidas por trabalhadores com diferentes perfis e formações, resultando em uma heterogeneização no interior dessas categorias profissionais. Ela se dá tanto no que se refere ao nível de profissionalização, quanto ao de acesso a recursos para realizar o trabalho e proteger sua saúde e segurança, como, por exemplo, a posse ou não do veículo de trabalho; o tipo de veículo — carro, motocicleta ou bicicleta — o acesso ou não à formação profissional, aos saberes-fazer do ofício e aos equipamentos de proteção individual e coletiva. Vale lembrar que instrumentos de trabalho, como o veículo e o smartphone, não são fornecidos pelas plataformas.

As empresas que atuam via plataformas digitais para controlar o trabalho nesses ramos de atuação no Brasil conseguem, inclusive, se desviar de normativas de proteção dos/as trabalhadores/as, como a Lei n.º 12.009 (2009) (“Lei do Motofrete”) que indica requisitos mínimos para o exercício da atividade nos serviços de transporte remunerado de mercadorias em motocicletas e motonetas. Dentre eles, o tempo mínimo de habilitação na categoria de condução, a realização prévia de curso de primeiros socorros e uso de equipamentos de proteção individual e coletiva. Dessa forma, o aumento da oferta de trabalhadores, somado à diminuição da disponibilidade de empregos formais no setor pelo monopólio das empresas nesses mercados, amplia a capacidade de controle gerencial exercido por elas. Ao mesmo tempo, desconstrói, no sentido da sua identidade profissional, a forma como o trabalhador se identifica com a ocupação.

Com a maior facilidade de aderir às plataformas por parte dos trabalhadores, há também uma maior facilidade de desligamento autocrático dos trabalhadores por parte das empresas. E o aumento significativo de trabalhadores a elas subordinados viabiliza a instrumentalização do medo de exclusão social. A percepção da ameaça constante de ser desligado, caso as regras das plataformas não sejam seguidas, se configura como elemento importante no controle gerencial exercido. Isto, mesmo que essas regras não estejam claras e que não sejam dados os meios para cumpri-las.

[Quando questionado sobre como lida com a possibilidade de ser punido com o desligamento]: A pior possível, eu vivo disso, né, cara? De uma firma que te explora, te explora e, no final, te trata como descartável. (…) Como vou falar para minha filha? “Teu pai fracassou”. E, às vezes, você não tem culpa. Resultado: você vive sempre com a faca nos dentes. (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2022)

E esse controle tem contornos singulares na medida em que se dá pela via do gerenciamento algorítmico gamificado.

Consentimento às regras do jogo impostas

De modo geral, os trabalhadores estão cientes de que os recursos algorítmicos são usados pelas empresas em favor dos interesses delas. Sabem que incentivos, como promoções e tarifas mais vantajosas, assim como penalidades são usados para mantê-los trabalhando por mais tempo e por locais de alta demanda: “O aplicativo sabe qual é a sua meta e para de te mandar corrida” (Entrevista com entregador motociclista, Rio de Janeiro, 2021).

Reconhecem que seus dados, incluindo comportamentos, hábitos, metas individuais de faturamento e informações de dívidas, são extraídos pelas plataformas para a predição de sua conduta futura. Sabem que a oferta de trabalho e de incentivos e a aplicação de penalidades não se dá de forma igualitária e imparcial. E que os escores de aceitação de pedidos e de cancelamento, assim como as notas dos usuários, são usados na distribuição dos serviços e no acesso a algumas condições de trabalho.

Para ter um feedback imediato do suporte da Uber, tem que cumprir 1.500 corridas em três meses com nota mínima de 4,95, com percentagem baixa de cancelamento, mas apenas os motoristas diamante. (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2022)

Porque não sei se você sabe, a promoção que vem pra mim, não vem pro outro, né? (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2022)

Há uma constante preocupação com o algoritmo, porque se ele [o trabalhador] folgar algum dia, pode ser que o aplicativo jogue menos corrida para ele. (Encontro Sobre o Trabalho, entregador motociclista, Minas Gerais, 2022)

E, ainda: não têm dúvidas de que as regras se modificam em favor da vantagem econômica das empresas.

Existem algumas modalidades, hoje mudaram algumas coisas, mas podia fixar uma região que a gente queria trabalhar, para não ir mais longe; saber o destino, que pode direcionar para a tua casa e não vai, e ficar fazendo corrida até aquele destino para evitar trânsito. Esse eterno jogo. Hoje, inclusive com mais de um aplicativo, quando termina essa função na Uber, a gente desliga esse app e liga o da 99 e você usa esse mesmo sistema. Isso agora não tá rodando porque o aplicativo sabe que você está fazendo isso. Então esse é um jogo mesmo para ver quem vence no fim do dia. (…) Porque ele te diz uma regra hoje, mas no final de semana não vale. Nesse tempo, muda a regra. (Entrevista com motorista, homem, Rio Grande do Sul, 2022)

Mesmo assim, são encorajados a seguir as opções limitadas do jogo. E mobilizam-se! Seja arriscando-se pela intensificação do trabalho, especialmente em horários de pico para tentar compensar o baixo rendimento em outros; seja ampliando a jornada, o que implica em extração de seu tempo de descanso e lazer.

Tem gente que está em cinco aplicativos para fazer 1.000 reais por semana. Mas, tipo assim, tá muito dependente daquilo. Se tu não trabalhar um dia, não vai ter seus 1.000. Aí fica meio desesperado, tenta compensar em outro dia, fica 12 horas na rua. E 12 horas em cima de uma moto é dar muita chance para o azar. (Entrevista com entregador, Rio de Janeiro, 2021)

Eu já cheguei, a não dormir na rua, mas cheguei a dar uma cochilada porque tinha promoção até 4 horas da manhã e o outro dia, 8 horas da manhã, tinha promoção novamente. (Encontro Sobre o Trabalho, entregador motociclista, Minas Gerais, 2022)

Importante lembrar que esse direcionamento do trabalho se dá, pelo uso de algoritmos, em meio a um processo de despersonalização da autoridade (Walker et al., 2021) pela sustentação em parâmetros numéricos e “objetivos”, tomados como imparciais e incontestáveis. Com a substituição da gerência por essa força impessoal, a participação no jogo e o consentimento de suas normas e condições de definição podem parecer incontornáveis.

Em um contexto em que o que vale é a “lei do mercado”, os sistemas de classificação baseados em dados numéricos e avaliações dos usuários tendem a contribuir para essa sensação de inevitabilidade. Eles pressionam pela realização de esforços extra no sentido de compreensão dos critérios usados no gerenciamento algorítmico, bem como na busca de satisfação dos usuários das plataformas.

Ter que estar bem, mesmo quando não está bem. (…) Então você, querendo também, você acaba sendo uma pessoa, digamos assim, que nem sempre verdadeiro, porque às vezes você não está bem, mas precisa estar com o sorriso no rosto. Às vezes você está cansado já, mas tem que tratar o cliente da melhor forma possível. Às vezes ele faz algo que você não gostou, mas você tem que relevar aquele momento para poder ter um bom relacionamento naquele primeiro contato, para poder ter uma boa avaliação também no aplicativo. (Entrevista com motorista, homem, Paraíba, 2021)

Eu trabalho de forma correta. Por exemplo: tem aqueles passageiros que querem que leve quatro pessoas. Aí eu tenho que falar com psicologia: “Rapaziada… eu posso ser expulso da plataforma”. Apelar para a generosidade deles. (…) Na cabeça dele é assim, “ah, eu tô avaliando o trabalho”. Ele não entende você como um pai de família. (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2021)

Assim, as estratégias gerenciais de avaliação por números, potencializadas pela volatilidade e opaciadade das normas e critérios com o uso de algoritmos, passam a ter um peso ainda maior nas dramáticas de uso de si nas situações concretas de trabalho, pressionando em direção ao consentimento com as regras do jogo. E esse peso se dá pela possibilidade e esperança de que esse consentimento repercuta positivamente em suas circunstâncias de vida e trabalho, promovendo o bem-estar material e reforçando sua identidade.

O que mais gosto: bater as metas. No início da pandemia, fazia só 150 reais e sabia que não conseguiria cobrir as despesas. Mas com as metas, consegui cumprir alguns objetivos. Pega um limão, faz uma limonada, dá um jeito para a coisa ficar boa. Não adianta ficar sempre achando a coisa ruim (…). Dá para transformar o estresse em coisas boas. (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2021)

Busca de suportes para a existência material e simbólica

Mason (2019) destaca na teoria de Burawoy a potencialidade da gamificação algorítmica no redirecionamento do conflito capital-trabalho, afastando-o dos empregadores e fazendo-o se dispersar entre os trabalhadores. Dispersão do conflito que se dá tanto na relação deles com os outros trabalhadores, como com suas ferramentas de trabalho e consigo mesmos no que se refere a capacidades e implicações na identidade. Assim, observa-se uma espécie diferente de concorrência entre os trabalhadores, menos direta, menos expressa. Por exemplo, a veiculação comum entre eles da hipótese de que o baixo rendimento de alguns se explicaria pela falta de conhecimentos sobre como funcionam as plataformas, sobre finanças etc., assim como na disposição e compromisso por parte de quem trabalha.

Eu mesmo constatei, você não tem, hoje, muitas das vezes, o ensino básico, uma estrutura para você aprender a lidar com finanças, com os números, saber controlar dinheiro, investir dinheiro. A gente infelizmente não tem uma base para isso. E muitas das vezes a grande maioria da população acaba não sabendo lidar da forma correta com o dinheiro. (…) O controle financeiro eu acho que é a base de todo o crescimento que a gente precisa ter e desenvolver junto ao motorista de aplicativo. (Encontro Sobre o Trabalho, motorista, homem, Minas Gerais, 2022)

Então, tipo, cara, sinceramente, os ganhos são promissores. E é muito atrativo, se não fosse não teria 200.000 entregadores aí pelo Brasil, essa é a realidade. (…) Realmente, quem tem compromisso, faz dinheiro. Quem não tem, quer comer lanche, quer ficar escolhendo as entregas que vai fazer e aí entra os algoritmos prejudicando essas pessoas, entendeu? Os algoritmos… É isso que a gente luta, a gente luta contra a subordinação dos algoritmos, que já que a gente tem que ter a liberdade, a flexibilidade de escolher as entregas que quer, a gente tem que lutar contra isso. Vocês não podem nos obrigar a ir em uma área de risco, por exemplo, vocês não podem. Então é isso que a gente está tentando trazer. Pô, se somos autônomos, temos o direito de escolher quando queremos e para onde a gente vai aceitar a entrega. A gente não tem que ser prejudicado por um algoritmo programado a prejudicar a gente se a gente rejeita a entrega. [Em outro encontro, ele relata que mudou a forma como vê essa questão]. (Encontro Sobre o Trabalho, entregador motociclista, Bahia, 2022)

A vulnerabilidade, somada aos efeitos individualizantes desse sistema de gerenciamento, toma corpo nesse contexto de trabalho, levando os sujeitos a priorizar a busca de suportes materiais e simbólicos para garantir sua existência, mesmo que isso implique em abrir mão de seu descanso e lazer.

(…) Quando tira uma semana de folga, o score cai. Aí recebe menos corridas. (…) Muito relato de motoboy que termina relacionamento porque as pessoas estão o tempo todo na rua, só trabalhando. (Encontro Sobre o Trabalho, entregador motociclista, Minas Gerais, 2022)

Mas não se pode afirmar que os trabalhadores ficam passivos frente aos constrangimentos organizacionais. Assim, parece-nos que uma forma de colocar a questão seria: como fazem os trabalhadores para resistir a essas pressões psíquicas? Como não adoecer diante desses constrangimentos?

Estudos em psicodinâmica do trabalho (Dejours & Abdoucheli, 1994) apontam que os trabalhadores sempre tentam se proteger, mesmo que pela via de defesas simbólicas.

Defesas contra o sofrimento

Há que se considerar a hipótese de que os trabalhadores se protegem pela adoção de estratégias defensivas, que operariam pelo distanciamento mental das condições de dominação que contradizem seu senso de controle sobre o destino. Por exemplo, a negação do sofrimento frente aos riscos à saúde e segurança, via hipervalorização da remuneração e do status social que ela possibilita.

Eu acho que o trabalho, ele, sim, ele traz uma possibilidade em relação de juntar um capital de certa forma melhor do que a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], digamos que sim, devido ao valor da CLT hoje, o piso salarial, o piso mínimo. Eu posso dizer para você realmente, tirando a falta da seguridade social, dos benefícios que a gente geralmente tem, o descanso remunerado, as férias remuneradas, realmente isso às vezes a gente sente até a falta. Mas para uma pessoa que ela tem uma educação econômica, tipo assim, ela tem uma educação, sabe lidar com o dinheiro dela, eu acho que ela não sente tanta falta assim de férias remuneradas, de seguro-desemprego. É uma questão de a pessoa saber lidar com dinheiro, o que praticamente, eu acho que 90% da população de baixa renda não sabe lidar com o dinheiro, não sabe poupar seu dinheiro. Talvez é isso que prejudica muito o trabalho autônomo, digamos assim, dos entregadores. (Encontro sobre o Trabalho, entregador motociclista, Bahia, 2022)

Acompanha um dia meu ou de um outro “motorista de alto rendimento” da minha cidade, você não vai ver a gente falando em grupo [de redes sociais]. Na hora que você ver eu sentar no carro para trabalhar, você vai me ver dentro do carro até bater minha meta. (Entrevista com motorista, homem, Minas Gerais, 2022)

Assim, não raro, os trabalhadores incorporam o discurso de mercado que os empurra para o status de autônomos e empreendedores de si, isto é, para um sentido de total autoresponsabilização pelas condições de trabalho e pelos resultados alcançados com o trabalho, mesmo que na prática ele se dê em subordinação às plataformas.

Quanto que é o carnê, além do MEI[2]? E como que é essa situação de você se aposentar, que nem você falou (…). Cara, o valor é absurdo do carnê. Quanto que está? 200 pau? Mais? Não sei. 300? Você é doido. Vale muito mais a pena fazer aportes em investimento em fundo imobiliário, muito melhor, que seja investimento no Tesouro Selic, IPCA+ e até umas ações. É muito melhor todo mês fazer isso daí, você vai ter muito mais rendimento no período que você colocar valor e você já vai ter retorno. Então dá uma olhada aí em vídeos falando sobre esse assunto e não paga a carnê, cara. Na boa, se já tiver o MEI, não é? Então o MEI é mais para garantir ali e a preocupação do futuro é com investimento, gente. É besteira hoje, do jeito que esse governo…, o que eles fizeram com os aposentados, estão fazendo com os aposentados ou quem vai se aposentar é um absurdo. Entendeu? Então, quem já está pagando há muitos anos, não adianta querer parar agora. Mas se alguém aí for pensar em pagar agora, não faz não, não vale a pena. (Encontro Sobre o Trabalho, entregador motociclista, São Paulo, 2022)

Ao se afastar defensivamente da compreensão de que a remuneração por tarefa e o direcionamento algorítmico estimulam a intensificação do trabalho e a ampliação da jornada, ainda se percebem discursos dos trabalhadores, mesmo que com reservas, baseados na ideia de que têm controle sobre seu tempo, liberdade de fazer o seu próprio horário, assim como autonomia no trabalho.

O entregador precisa ter lucro, e isso não é opcional. Precisa ter lucro para compensar o que se gasta. Ao saber tudo isso, a pessoa tem todos os dados na mão para poder decidir como organizar o dia a dia dela. (Encontro Sobre o Trabalho, entregador motociclista, São Paulo, 2022)

Todavia, é importante lembrar que o equilíbrio psíquico entre o sofrimento e as defesas contra ele tem como característica ser instável, precário.

Eu acompanho [minha avaliação no aplicativo] para saber se vou ter algum benefício e me manter daquele jeito (…), se eu acho que minha conduta de trabalho… ela tá certa, sabe? (…) E procuro saber disso, e, assim, é… o que eu deixei a desejar? Pera aí, pra nota cair… aí eu vou lembrando daquela corrida. (…) Se eu falar que não inflama teu ego, estou mentindo… É muito prazeroso… É como se você não fosse invisível, sabe? É… “Olha, meu amigo… eu reconheço o seu trabalho”. (…) Não vou mentir pra você não.. todo dia que vira, eu dou uma olhada. “Será que eu ganhei um elogio? Será que eu tô indo certo? Será que o meu carro…” Sempre estou lavando o meu carro… Só que não dá. (…) Você fala, caramba, cara… devia ter tratado melhor. É assim… eu sou uma pessoa que me cobro muito. (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2021)

Por mais que seja viciante, você pode ter um dinheiro todo dia ali… Você fica preso. É viciante. É um vício que você tem… por exemplo, eu tenho um vício… pô, tô aqui dentro de casa… já vou olhar o aplicativo para ver como é que está a pista… Se tá [preço] dinâmico [corridas em horários e locais, em que os valores das corridas são acentuados, em função de maior demanda], se não está… como é que está, entendeu? Então você… você não desliga… eu não desligo. (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2021)

Na medida em que o sistema de métricas adotado pelas plataformas não lhes dá a certeza de cumprir os padrões, nem de garantir seu bom desempenho nas avaliações e, consequentemente, sua performance nos ganhos, essas estratégias defensivas são postas à prova. E muitas vezes falham, fazendo com que o sentido construído com elas passe a não ser mais dado como certo.

(…) a gente fala que se chama “os noiados de aplicativos”, que a gente acaba ficando igual uns drogados no meio da rua caçando corridas. Não pode melhorar porque tem que bater meta, e as corridas cada vez com um valor mais baixo, então você fica num looping, que você fica ali o tempo todo. Igualzinho, igualzinho um vício, você fica em loopng, cada vez [o aplicativo] está pagando menos, e cada vez você está ali mais, porque você precisa de dinheiro, você precisa pagar as contas, você precisa bancar a moto, a sua alimentação. Então hoje em dia eu sei muito o que é o desgaste físico e emocional agora… afetando muito o emocional da gente. (Encontro Sobre o Trabalho, entregador motociclista, Minas Gerais, 2022)

A experiência cotidiana das longas jornadas de trabalho com o mínimo de repouso, a incerteza dos seus ganhos no que diz respeito às taxas de remuneração inconstantes; a insegurança em relação à violência urbana das vias públicas e outras formas de violência, como, o racismo, o machismo e a homofobia, a violência policial; a incerteza sobre o seu futuro — próximo ou longínquo — no que tange ao desejo de uma vida materialmente estável; a ausência do tempo de lazer; a alimentação precária durante a jornada de trabalho; o autopoliciamento de suas emoções diante de uma variedade de situações na relação com aqueles que recebem a mercadoria ou são transportados; a preocupação com as avaliações externas; o impulso sistemático, acelerado e preocupado, do olhar para as informações do aplicativo; esses e muitos outros fatores se articulam ou são propiciados direta ou indiretamente pela lógica gamificada de controle das empresas. Por outro lado, constroem estratégias de defesa que vão além da adaptação aos constrangimentos impostos pela organização do trabalho plataformizado e pelo gerenciamento algorítmico, criando formas de trabalhar que visam também fazer frente a eles.

Jogar o jogo e reconhecer-se ativo como sinônimo de saúde

Observa-se que o estreitamento da liberdade pelo gerenciamento algorítmico tanto é reconhecido, como pode ser enfrentado nos debates de normas dos sujeitos nas atividades concretas de trabalho:

Então, dessas seis horas [em que consegue rodar com um tanque de gasolina], se eu não bater a meta… eu vou ter que abastecer… Aí, se eu abastecer, eu vou ter que rodar mais seis horas. (…) Mas se eu chegar já em oito horas, aí mesmo que eu não bato a minha meta… já que não vale mais a pena… Já abasteci e esse dinheiro vou ter que gastar de novo abastecendo novamente. Aí não vale a pena… Aí é um dia perdido para mim (…). (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2021)

Sobre se as promoções mobilizam o seu comportamento (como, “faça tantas corridas e ganhe 30 reais”):

Pô… para eu fazer 27 ou 30 corridas no dia, não tem como, é impossível. (…) Vou ficar igual maluco… Se fizer tá bom, se não fizer… entende? (…) O benefício [de ser motorista ouro] é você comprar alguma coisa na farmácia… Vou ficar me matando por esse benefício? (…) É a minha meta, não é a meta do Uber. (…) Só que ao longo dos anos, minha meta teve que aumentar. (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2021)

Assim, podemos tomar o jogar o jogo como atividade no sentido da gestão indicada por Schwartz e Durrive (2021), que requer uso de si, engenhosidade, astúcia, podendo também se configurar como um movimento de saúde via resistência individual e coletiva. Dentre as estratégias individuais de resistência identificadas estão a recusa de regras do jogo, por exemplo, via negociação direta com os clientes recrutados no trabalho por plataformas, acordo com os usuários de avaliação recíproca e até mesmo o uso de placa no carro indicando os efeitos em sua vida de uma avaliação ruim. Mais precisamente na relação com o controle algorítmico, as estratégias envolvem ignorar as normas relativas a promoções, pontuações e notas dos clientes, escolhendo as demandas de trabalho que lhes sejam mais favoráveis em termos de rendimentos ou preservação da saúde e segurança.

Eu não fazia qualquer promoção. Eu só fazia aquelas que considerava que elas eram boas para mim (…). A maioria das promoções da Uber eu não batia. Da 99 eram poucas as que eu batia. Agora, quando eu batia, eu ganhava dinheiro. (Entrevista com motorista, homem, Minas Gerais, 2022)

[pergunta sobre nota de avaliações]: Eu não acompanho. (…) Eu vejo minha nota quando vou lá no aplicativo, quando eu saio, né? [pergunta sobre desligamento]: Eu nem penso nisso sabia? Mas se a Uber me desligar, eu vou para a 99. (Entrevista com motorista, homem, Rio de Janeiro, 2021)

Eu me desgasto menos, ganho menos. Mas eu prefiro me desgastar menos, e toda vez que, aparecer promoção, aparecer alguma coisa a mais que dê para sair para fazer, eu estar com disposição para estar indo fazer isso. E eu prefiro muito mais estar saindo para fazer um aplicativo quando está em promoção, igual o iFood, do que sair para fazer ele seco, eu já nem faço, entendeu? Porque para mim não compensa. Então, qual que é o desgaste físico que eu vou ter com isso? É muito alto, então isso depois vai me acarretar dois dias de descanso, entendeu? Aí tipo é uma perda para mim. Então, aí existe quem faz a lógica dele dentro de cálculo e tudo, e quem faz a lógica dele dentro do que você consegue trabalhar para se manter e você ter uma vida social, que aí entra a parte da vida social. Eu posso estar trabalhando, me sustentando, entendeu, e consigo ter uma vida social. Se você não quiser ter vida social, ok, no final do mês você vai ter lá um dinheirinho sobrando, se você não tem vida social, e seu corpo também vai desgastando, desgastando, desgastando, porque você vai ter que começar a ter uma jornada de trabalho gigante, para cima de 12, 14 horas. (Encontro sobre o Trabalho, entregador motociclista, Minas Gerais, 2022)

A prática da observação e estudo do algoritmo, com fins de sua manipulação e, quem sabe, de inversão do direcionamento, merece ser analisada com cuidado. Além de representar os conflitos e contradições dos trabalhadores na relação com as regras do jogo, pode revelar outras leituras possíveis, quando analisados na complexidade das situações concretas de trabalho.

Até que um dia eu percebi que estava andando com o carro vazio. Eu tô fazendo papel de bobo. Se eu ficar aqui embaixo, sem [corrida] dinâmica [em horários e locais, em que os valores das corridas são acentuados, em função de maior demanda], eu vou ganhar a mesma coisa. Cheguei a me acidentar, bater em um poste. Daí eu preciso entender os ganhos, quanto me pagavam por quilometro. Comecei a entender a cidade, onde e em qual horário davam as corridas boas. Comecei a trocar ideia com motoristas que tinham um bom rendimento. (…) Meu aplicativo da Uber mesmo, ele toca umas 50 corridas para eu aceitar uma. Por quê? Quando a corrida bate ali, eu consegui desenvolver e saber se aquela corrida é boa ou ruim, rentável ou não. Rapidinho eu faço essa conta de cabeça. (…) eu procurei entender as plataformas. Eu procurei saber o que realmente levava a excluir, o que dava pane branco [falta de envio de corridas pelo aplicativo, um tipo de bloqueio não formal da conta] (…). Eu nunca recebi uma punição das plataformas. Eu tenho certeza de que era um motorista odiado por elas… Ela tenta nos direcionar, mas eu não aceitava os direcionamentos dela. Por exemplo: eu gostava muito de pegar corrida do centro para a zona norte. E eu pus para ela me dar essas corridas. Porque ela sabia que eu gostava de lá. Então, ela me dava essas corridas. Porque ela via que quando caía uma corrida para mim para a zona norte, eu aceitava direto. E ela tem algoritmo. Não fica uma pessoa ali atrás te monitorando, é o robô. Então ele entendeu que eu gostava de ir para lá. (…) Então teve um dia que eu fiz um teste com um amigo aqui. Eu falei assim, “véio, eu vou treinar ele a não me mandar corrida para a zona norte”. (…) Mas aí é que está a diferença. Eu fiz ela trabalhar para mim, não eu trabalhar para ela. (…) É aí que vem outra coisa importante: as plataformas sabem através de seus algoritmos que eu estou com os dois aplicativos ligados, escolhendo corrida. (…) Então, ela vai mandar uma corrida mais interessante para mim. Forçar uma a ficar concorrendo com a outra para mandar a melhor corrida para mim. (Entrevista com motorista, Minas Gerais, 2023)

Um olhar mais detido sobre o trabalho, reconhecendo-o enquanto atividade humana, permite reconhecer a gestação de reservas de alternativas de resistência no jogo de poder sobre o controle do trabalho. Essas resistências se mostram em situações como a acima descrita, onde a observação e o estudo do funcionamento do algoritmo orientam a escolha ou recusa das regras — apresentadas pelas empresas na forma de sugestões, promoções e pontuações —, chegando mesmo à estratégia de uso das plataformas digitais como meio de acesso a novos clientes para posterior negociação direta com eles na prestação dos serviços.

Considerações finais

A subordinação dos trabalhadores por plataformas digitais de trabalho requer investigações capazes de revelar as características da intensificação do trabalho sob demanda com o uso de tecnologias digitais na configuração do processo de trabalho, considerando-se as especificidades de cada formação social. Nesse artigo realiza-se uma análise de como empresas fazem uso do gerenciamento algorítmico e, especialmente, da gamificação do trabalho para controlar o trabalho de motoristas e entregadores na conjuntura político-econômico-social brasileira. Conjuntura esta que vem sendo marcada por alto índice de desemprego, informalidade do mercado de trabalho e precariedade social e onde o trabalho por plataformas se apresenta para muitos como uma das poucas alternativas de sobrevivência.

O diálogo com os trabalhadores em uma construção compartilhada de conhecimento na pesquisa-formação, nos ajuda a melhor compreender o uso dessas tecnologias no direcionamento e controle do trabalho por plataformas, assim como os constrangimentos impostos por esse modo de organização do trabalho e as implicações na saúde do jogo desigual entre capital e trabalho, que toma contornos dramáticos a depender do contexto sócio-político-econômico em que se vive. Permite também vislumbrar as resistências dos trabalhadores, mesmo que no infinitesimal das gestões concretas das situações de trabalho.

Se, em uma perspectiva mais imediata, observamos que as condições e regras impostas — mesmo de forma velada — pelas plataformas digitais são aceitas no processo de trabalho pela falta de alternativas frente à impossibilidade de emprego formal na crise econômica enfrentada pelo país; em um segundo momento, percebe-se que os trabalhadores e trabalhadoras, diante da realidade material a que são submetidos, recusam a total predeterminação de suas atividades.

Há que se destacar, para além da baixa adesão sindical nessas categorias de trabalhadores, movimentos de organização coletiva e de luta política. Dentre elas, além da organização de associações e inciativas de sua formalização como sindicatos, a emergência de iniciativas de construção de cooperativas de trabalho — algumas com base em princípios da economia solidária —, assim como de redes de apoio mútuo, com uso de estratégias de compartilhamento de serviços por grupos de aplicativos de mensagens como alternativas de trabalho fora das plataformas digitais. Esses movimentos também se expressam na construção de redes de solidariedade frente a situações adversas enfrentadas no cotidiano de trabalho; assim como na luta política, exigindo das empresas e do Estado o estabelecimento de melhores condições de trabalho e de vida. Destaque deve ser dado à constituição, em dezembro de 2022, da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (ANEA), entidade que reivindicou e conseguiu alguns assentos no grupo de trabalho tripartite (com representações de trabalhadores, empresas e governo federal) instituído em 2023, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, com fins de discussão acerca da regulamentação do trabalho por plataformas digitais.

Infelizmente, ao final dos trabalhos dessa mesa de negociações, permanece a ausência de qualquer regulação dentro das leis trabalhistas do país que beneficie tais trabalhadores e as trabalhadoras. Em fins do primeiro trimestre de 2024, o governo federal apresentou um Projeto de Lei Complementar (PLP) n.º 12/2024 (2024)[3] para ser votado pelo parlamento, cujo objetivo é regular as atividades de transporte de passageiros por aplicativos, isentando as empresas-plataforma ou qualquer outra entidade — de qualquer relação de vínculo empregatício com os trabalhadores e trabalhadoras.

Conclui-se que não se pode abordar a questão da plataformização do trabalho de modo uniforme nos diferentes mundos do trabalho (Hobsbawm, 1987). As injunções do sistema econômico neoliberal, assim como as estratégias de controle gerencial, produzem efeitos distintos, a depender da situação social e trabalhista, e do nível de vulnerabilidade de cada formação social.

Financiamento

Programa de Fomento ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico Aplicado à Saúde ENSP/FIOCRUZ.

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Data de submissão: 14/05/2024 | Data de aceitação: 16/12/2024

Notas

Por decisão pessoal, as autoras do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.

[1]Notícia extraída do site institucional da empresa iFood.

[2]O MEI é um tipo de natureza jurídica (micro empresário individual) que se refere a uma pessoa que trabalha por conta própria e que se formalizou para ter acesso a benefícios previdenciários e empresariais. Pela Lei Complementar n.º 123 (2006), o faturamento anual dessa pessoa jurídica não pode ultrapassar R$ 81 mil; não pode empregar mais de um funcionário; e não pode ser sócio em outras empresas. As empresas-plataforma incentivam que os trabalhadores por aplicativos se cadastrem como MEI a fim de reforçar seu argumento de que não existe vínculo empregatício entre ela e os trabalhadores e de jogar para o estado a responsabilidade pela cobertura previdência desse tipo de trabalho.

[3]No Brasil os tribunais da Justiça do Trabalho são um dos palcos da luta dos trabalhadores na tentativa de afirmação do vínculo trabalhista. Trabalhadores, sindicalizados ou não, têm na Justiça do Trabalho a possibilidade de mitigar o processo de exploração a que estão submetidos, quando da não efetivação dos direitos trabalhistas. A proposta do PLP, ao tratar do vínculo do trabalhador uberizado, propõe o reconhecimento do motorista por plataforma como um trabalhador juridicamente subordinado — já que a empresa deve repassar ao estado valores de contribuição previdenciária — e, ao mesmo tempo, autônomo. Ao nosso ver, legaliza uma contradição: formaliza a subordinação, e, portanto, o controle do trabalho, ao mesmo tempo em que não garante o reconhecimento dos direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho — CLT (Decreto-Lei n.º 5.452, 1943). Esta contradição beneficia as empresas, já que os art.º 2.° e 3.° da CLT — que tratam da definição de empregador e empregado — estarão ameaçados na sua função de reconhecimento do vínculo empregatício quando os elementos que configuram uma subordinação jurídica estão apresentados. No que tange à jornada de trabalho, ao estabelecer que: “O período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias, na forma do regulamento” (art.º 2.º do Projeto de Lei Complementar n.º 12/2024 (2024), o projeto de lei destrói a jornada de 44 horas semanais estabelecidas pela CLT. Direitos como férias, 13.°, descanso semanal e fundo de garantia também não estariam garantidos. O projeto ficou conhecido como aquele que cria a figura do “autônomo com direitos”, entretanto, os direitos citados resumem-se a direitos previdenciários que já existem na legislação brasileira.

Autores: Cirlene de Souza Christo, Muza Clara Chaves Velasques, Simone Oliveira, Letícia Pessoa Masson, Márcia Teixeira e Sarah Amaral