N.º 36 - dezembro 2024

Sílvia Gomes
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação—revisão e edição
AFILIAÇÃO: Department of Sociology, University of Warwick. Coventry, CV4 7AL, United Kingdom
E-mail: silvia.gomes@warwick.ac.uk | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5503-0037

Susana Santos
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação—revisão e edição
AFILIAÇÃO: Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Escola de Sociologia e Políticas Públicas,
Iscte — Instituto Universitário de Lisboa & NOVA School of Law, Universidade Nova Lisboa. Portugal
E-mail: susanacsantos@iscte-iul.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5225-6671

Patrícia Branco
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação—revisão e edição
AFILIAÇÃO: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Portugal
E-mail: patriciab@ces.uc.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5425-0887

Vera Duarte
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação—revisão e edição
AFILIAÇÃO: Universidade da Maia & Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG—ISCSP-ULisboa). Portugal
E-mail: vduarte@umaia.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8093-0026

Patrícia André
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: CEDIS — NOVA School of Law, Universidade NOVA de Lisboa & DINÂMIA’CET-Iscte,
Instituto Universitário de Lisboa. Portugal
E-mail: patricia.andre@novalaw.unl.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5514-8748

Pierre Guibentif
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Dinâmia’CET-Iscte. Portugal
E-mail: pierre.guibentif@iscte-iul.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4319-9537

O número temático da SOCIOLOGIA ON LINE que aqui se apresenta reúne contributos apresentados e/ou desenvolvidos na sequência do “7th Global Meeting on Law and Society”, que teve lugar em Lisboa, no ISCTE, entre os dias 13 e 16 de julho de 2022. Este “Global Meeting” foi organizado pela Law & Society Association em parceria com o Research Committee on Sociology of Law da International Sociological Association e associações académicas de todo o mundo, incluindo a Secção Temática de Sociologia do Direito e da Justiça da Associação Portuguesa de Sociologia, que participou activamente no Local Arrangements Committee (LAC) constituído para a organização da conferência[1].

Partindo do tema geral “Rage, Reckoning & Remedy”, o “Global Meeting” pretendeu colocar em debate as desigualdades extremas da contemporaneidade e as marcas (in)visíveis do passado escravocrata e colonial, agravadas pela pandemia de COVID-19, bem como explorar as interligações entre estas desigualdades e a relação predatória e extrativista da humanidade em relação ao meio ambiente, com a destruição de ecossistemas vitais para a vida no planeta.

A escolha de Lisboa e de Portugal para a realização desta grande conferência internacional baseou-se, essencialmente, em duas ordens de razões. Uma primeira que destaca o posicionamento histórico de Portugal como antiga potência imperialista que a partir da sua experiência democrática (re)faz a sua história colonial, situando-se no centro e, simultaneamente, nas periferias de uma complexa geografia histórica, social e política, e que traz ao debate novas vozes que expõem a persistência das desigualdades e os papéis ambivalentes do Direito enquanto instrumento de reprodução e emancipação social. Uma segunda ordem de razões que decorre da vitalidade da comunidade de estudos sociojurídicos portuguesa (Branco et al., 2018) e de língua portuguesa, e que também confirma o seu crescimento nas últimas décadas (Guibentif, 2015), com o fomento de dinâmicas interdisciplinares de investigação e redes de comunicação entre os vários atores académicos e profissionais.

A persistência e aprofundamento das desigualdades tem sido um tema recorrente no âmbito da sociologia do direito e da justiça de língua portuguesa, a qual tem procurado explorar teórica e metodologicamente novos e velhos objetos de estudo.

Foi nesta esteira que “O Direito e os Direitos face às desigualdades” surgiu como o tema deste número da revista SOCIOLOGIA ON LINE, que resultou de uma chamada de artigos dirigida aos participantes de língua portuguesa que intervieram como oradores/as nos painéis organizados pelo LAC no “Global Meeting on Law and Society”[2]. Partindo dos contributos e discussões desenvolvidas na conferência internacional, pretendeu-se — agora em ligação mais direta com a sociologia portuguesa e lusófona — aprofundar o debate sobre o papel do Direito e dos direitos numa realidade social marcada por desigualdades crescentes, que se refletem no modo como o sistema de justiça opera e nos desafios que se conseguem antecipar para o direito e justiça no futuro.

Os trabalhos apresentados neste número temático dão conta de parte da pluralidade de temas e abordagens que caracteriza a sociologia do direito contemporânea, destacando-se a interseção entre questões empíricas, teóricas e metodológicas. Com questões que vão desde a análise das condições de trabalho e saúde no contexto judicial até aos desafios éticos e democráticos trazidos pela inteligência artificial, passando pela descriminalização das drogas e pelo reconhecimento das emoções no exercício da magistratura, estes estudos oferecem contribuições inovadoras para o debate sobre justiça, equidade e transformação social. Abordando realidades diversas, como o Brasil, Portugal e experiências internacionais, os trabalhos apresentados revelam como as dinâmicas jurídicas e sociais moldam e são moldadas pelos desafios globais do nosso tempo.

Para além do mais, os artigos que se reuniram nesta edição integram-se em linhagens de investigação consolidadas na sociologia do direito de língua portuguesa, mas também em domínios temáticos de pesquisa emergentes, constituindo, assim, um retrato panorâmico eventual de parte da produção sociojurídica mais recente.

Com efeito, os estudos dedicados ao funcionamento dos tribunais e dos seus diversos agentes têm já uma longa tradição na sociologia jurídica (Santos et al., 1996), tendo vindo a estabelecer-se entre nós como uma linha consolidada de pesquisa ao longo dos últimos anos com a emergência de novos autores. Neste domínio, observa-se, em particular, uma crescente tendência de investigação sobre temas menos comuns entre nós, como as condições de trabalho dos magistrados, procuradores, oficiais de justiça, advogados e guardas prisionais. A emergência de estudos sobre as condições de trabalho dos profissionais da justiça coincide com o aumento significativo de publicações sobre a qualidade da justiça e com a implementação de reformas gestionárias no sistema judicial. A evolução normativa da noção de qualidade da justiça e o novo paradigma gestionário que, em conjunto, têm contribuído para o surgimento de investigações sobre as condições de trabalho nos tribunais, apontam para a conclusão de que, apesar do status legal, social e profissional elevado desses profissionais, há uma mudança na perceção social e no reconhecimento profissional de seu trabalho. Além disso, existe um reconhecimento crescente de que, sem apoio efetivo, profissionais como os  magistrados não poderão cumprir adequadamente seu papel constitucional. Magistrados insatisfeitos com suas condições de trabalho têm menor probabilidade de oferecer serviços de justiça de alta qualidade.

A relação entre tecnologia e direito, em particular a questão da inteligência artificial (IA), é hoje uma questão emergente e premente, com impacto a vários níveis (político, económico, jurídico, social), e que toca questões de privacidade, segurança, transparência nas decisões, preconceitos culturais e sociais, questões de género e de raça, entre outras ligadas a direitos fundamentais — e daí a importância da sua regulação. Os sistemas de IA começam a fazer sentir o seu impacto também ao nível do sistema judicial, acarretando desafios, virtualidades e riscos com os quais os diferentes operadores judiciais e, em particular, os magistrados começam a ser confrontados. As experiências de utilização de IA no apoio à decisão têm-se mostrado ambivalentes, por um lado, aumentando a celeridade, por outro lado, com o possível reforço dos estereótipos relativos a determinados grupos sociais. As questões sobre como “ensinar” o algoritmo e como o utilizar, em processos simples ou complexos, em matéria cível ou penal, necessitam de mais investigação e de maior articulação entre os estudos nas áreas sociojurídicas, da tecnologia e da ética (Contini, 2020). A introdução da IA nos tribunais implica capacitar os profissionais forenses, não apenas para a sua utilização como uma ferramenta pronta a usar, mas, antes de mais,  para a reflexão sobre os diferentes desafios que se colocam à  aplicação de uma justiça que promova a justiça social e possa ser compreendida pelos cidadãos. São de salientar, aliás, os colóquios e artigos que têm sido organizados e produzidos pelos próprios profissionais, revelando a pertinência e interesse do tema[3].

Numa perspetiva de interligação, o estudo das emoções no ato de julgar é um tema que reflete um longo percurso de desconstrução analítica da objetividade da lei e da imparcialidade da sua aplicação pelos tribunais. Entre a “frieza” computacional da IA e as diferentes emoções “reprimidas” ou “desvalorizadas” pelo exercício profissional assente na ideia de uma racionalidade moderna, o tema do processo de tomada de decisão ganha nova relevância para a qual são convocadas a imaginação sociológica com a criação de epistemologias que possam construir instrumentos analíticos capazes de exprimir as novas realidades sociais.

Finalmente, os estudos sobre o impacto das alterações legislativas como instrumentos de política pública e a análise de boas práticas são um tema em crescendo na sociologia do direito. O caso da Lei n.º 30/2000 (2000) é um bom exemplo de uma política de redução de danos com impacto na saúde pública e nas taxas de reclusão por consumo de estupefacientes. Portugal aderiu à Guerra às Drogas na década de 1970, embora o consumo de drogas não fosse na altura um problema social relevante no país (Rêgo et al., 2021). No final da década de 1990, observámos um grande aumento do consumo de heroína injetável, o que levou a problemas de saúde e sociais significativos, como uma epidemia de VIH. Como tal, a vulnerabilidade dos utilizadores de alto risco suscitou preocupações na sociedade em geral, bem como nas prisões onde estes problemas eram mais intensos em escala e natureza (Torres & Gomes, 2002). Foi neste quadro que foi implementada a Estratégia Nacional da Droga portuguesa no final do século XX, culminando em 2001 com a vulgarmente designada lei de descriminalização das drogas. A Lei n.º 30/2000 (2000) descriminalizou o consumo, aquisição e posse pessoal de drogas e manteve o tráfico de drogas (produção, fabrico e comércio de drogas ilícitas) legalmente enquadrado pelo Decreto-Lei n.º 15/93 (1993). O consumo de drogas foi colocado sob a jurisdição das Comissões de Dissuasão da Toxicodependência, organismo não penal, que dispõe de equipas multidisciplinares responsáveis pelo apoio psicológico e encaminhamento de apoio à saúde (Rêgo et al., 2021). Ao longo destas duas décadas de implementação da lei de descriminalização das drogas em Portugal, esta nova abordagem jurídica e política às drogas suscitou um grande debate nacional e internacional, e muitas opiniões divergentes.

Apresentamos nesta edição um conjunto de trabalhos que, no âmbito destas temáticas, esperamos contribuam para o desenvolvimento de uma comunidade sociojurídica dinâmica, produtiva e colaborativa.

O primeiro artigo, “Estudo de caso da síndrome do esgotamento profissional (burnout) nas decisões do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRTSP) no Brasil”, assinado por Mariana dos Anjos Ramos Carvalho e Silva, pretende fazer uma análise do burnout no período pós-COVID a partir de dados quantitativos e de um estudo de caso. O artigo discute o reconhecimento do burnout como doença profissional e a dificuldade probatória, especialmente pelo ónus probatório recair sobre o empregado para provar o nexo causal entre a atividade exercida e o aparecimento do burnout, e defende a atribuição do ónus ao empregador quando a situação já apresenta robusta prova documental produzida.

No segundo artigo, intitulado “Entre a objetividade e as emoções: uma análise das exigências cognitivas e emocionais na magistratura judicial portuguesa a partir das contribuições da law and emotion”, da autoria de Madalena Cid Teles, reflete-se sobre dados recolhidos num inquérito online sobre as perceções dos juízes portugueses a exercer funções nos tribunais de primeira instância quanto às exigências cognitivas e emocionais do seu trabalho. Sendo um trabalho pioneiro em contexto nacional, a autora defende que reconhecer as emoções como uma dimensão intrínseca do trabalho judicial representa um avanço crucial para o entendimento das dinâmicas que estruturam a atuação dos juízes, as interações entre os diversos atores do sistema e, de forma mais ampla, a própria legitimidade das instituições judiciais. No limite, é essencial para compreender como as emoções influenciam a perceção de justiça, imparcialidade, autoridade e equidade nos processos judiciais e moldam a tomada de decisões judiciais.

No terceiro artigo, “IA e Justiça: contributo para uma Sociologia Política do Direito, Justiça e Inteligência Artificial”, dos autores João Pedroso, Wanda Capeller e Andreia Santos, reflete-se teoricamente sobre o impacto da Inteligência Artificial em dois campos: o ontológico-ético-jurídico e o da democracia, Estado de Direito e direitos fundamentais. Os autores evidenciam como a nova gramática jurídica é criada com a aplicação de novas tecnologias, com novas racionalidades e temporalidades, e os impactos que esta pode ter no robustecimento da democracia, do Estado de      Direito e da realização  dos direitos fundamentais.

Jorge Quintas e Ximene Rêgo escrevem o quarto artigo, “Is Decriminalising drugs enough? Navigating alternatives to prohibitionism”. Os autores refletem sobre a política de descriminalização de drogas em Portugal, mostrando como, não obstante a implementação da descriminalização do consumo de todas as drogas ilegais, certos fatores indiciam a ambivalência da abordagem tida em relação aos consumidores de drogas. Por fim, de forma a iniciar uma discussão mais ampla sobre a potencial regulação do mercado de drogas, os autores discutem as experiências internacionais com a legalização da canábis.

O último artigo é da autoria de Paula Casaleiro, Fernanda Jesus e João Paulo Dias. No artigo, “Judicial working conditions as a field of mixed-methods research: looking at Portuguese courts”, os autores refletem sobre os desafios do estudo empírico das condições de trabalho judicial e o seu impacto na saúde e bem-estar dos profissionais judiciais. Em particular, discutem dois desafios metodológicos neste estudo: a seleção e construção dos métodos de recolha de dados, questionário e entrevistas e a análise dos resultados dos dados mistos. O artigo realça a importância da adequação dos instrumentos às especificidades e interesses dos profissionais judiciais e abre a discussão sobre o aparente desfasamento dos resultados do instrumento utilizado, levantando interessantes e pertinentes questões metodológicas.

Referências

Branco, P., Casaleiro, P., & Pedroso, J. (2018). A sociologia do Direito made in Portugal: o contributo do CES no panorama nacional. e-cadernos CES, (29), 237-252. https://doi.org/10.4000/eces.3529

Contini, F. (2020). Artificial Intelligence and the Transformation of Humans, Law and Technology Interactions in Judicial Proceedings. Law, Technology and Humans, 2(1), 4-18.

Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, do Ministério da Justiça. (1993). Revê a legislação de combate à droga. Diário da República, 1.ª série-A, 18, 234-252.

Guibentif, P. (2015). O direito na semi-periferia: uma teoria ambiciosa revisitada à luz da investigação jurissociológica recentemente realizada em Portugal. Revista Brasileira de Sociologia do Direito — ABraSD, 2(1), 50-73.

Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, da Assembleia da República. (2000). Regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica. Diário da República, 1.ª série-A, 276, 6829-6832.

Lona, P. (2023, 2 de maio). SMMP na Imprensa — Inteligência Artificial na justiça. SMMP. https://smmp.pt/smmp-na-imprensa/inteligencia-artificial-na-justica/

Rêgo, X., Oliveira, M. J., Lameira, C., & Cruz, O. S. (2021). 20 years of Portuguese drug policy — developments, challenges and the quest for human rights. Substance Abuse Treatment, Prevention, and Policy, 16(59), 1-11. https://doi.org/10.1186/s13011-021-00394-7

Santos, B. S., Marques, M. M. L., Pedroso, J., & Ferreira, P. L. (1996). Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso português. Afrontamento.

STJ, Supremo Tribunal de Justiça. (2023). Tribunais e Inteligência Artificial: uma odisseia no século XXI. https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/05/Livrodigital-Inteligencia-Artificial-2023-4.pdf

Torres, A., & Gomes, M. do C. (2002). Drogas e Prisões em Portugal. CIES/ISCTE.

Notas

Por decisão pessoal, os/as autores/as do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico

[1] Para mais informações, consultar o site do evento em https://www.lawandsociety.org/lisbon-2022-homepage/.

[2] A chamada para artigos pode ser consultada aqui: https://aps.pt/chamada-para-artigos-revista- sociologia-on-line-numero-especial-sociologia-online-o-direito-e-os-direitos-face-as-desigualdades-extremas/.

[3] Cf. artigo de Paulo Lona (2023), Secretário-Geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Ver, ainda, o livro digital com o título Tribunais e Inteligência Artificial: uma odisseia no século XXI (Supremo Tribunal de Justiça [STJ], 2023), resultado do colóquio com o mesmo nome, organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Autores: Silvia Gomes, Susana Santos, Patrícia Branco, Vera Duarte, Patrícia André e Pierre Guibentif