N.º 35 - agosto 2024
Alexandra Pereira
FUNÇÕES: Concetualização, Análise formal, Investigação, Metodologia, Redação do rascunho original,
Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: CECC— Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, FCH — Faculdade de Ciências Humanas,
Universidade Católica Portuguesa. Palma de Cima, 1649-023 Lisboa, Portugal
E-mail: alepereira@ucp.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8643-4878
Resumo: As fake news são uma teia diversa de informações de natureza falsa, especulativa e difamatória, espalhadas de modos estratégicos ou orgânicos. Apresento uma investigação qualitativa que combina observação participante e etnografia online (a qual se estendeu desde a primavera de 2020 até ao outono de 2022), realizada na rede social Twitter (X). Os dados recolhidos foram analisados por meio de NVivo 11. Os resultados obtidos, conjugados com a análise de grafos de outros investigadores, permitem examinar o comportamento, recursos e métodos mais frequentes tanto no campo bolsonarista quanto no campo antibolsonarista, nessa rede e durante esse período de tempo. Registei 35% de falsos perfis bolsonaristas e 32% de perfis antibolsonaristas de usuários anónimos, porém reais (estratégia para contornar a criminalização da oposição política). Em termos de conteúdo dos 200 tweets de bolsonaristas analisados, 66% apresentavam distorção de narrativa e 32% copy-paste, 40% utilizavam estratégias de desestabilização e 31% usavam expressões de ódio. Pude, ainda, analisar picos de tensão política através de trends e hashtags, bem como fenómenos de astroturfing e grassroots— além de verificar a utilização massiva do Twitter (X) para espalhar desinformação de extrema-direita, ou como campo de batalha política. Estes resultados podem ser importantes para auxiliar os debates de sociólogos que estudem as formas como os novos mídia interagem com, repercutem e criam eventos políticos.
Palavras-chave: fake news, polarização, Twitter (X), antibolsonarismo.
Abstract: “Fake news” are a diverse web of information of a false, speculative and defamatory nature, spread in strategic or organic ways. I introduce a qualitative investigation that combines participant observation and online ethnography (which extended from Spring 2020 to Autumn 2022), carried out on the social network Twitter (X). The collected data were analyzed using NVivo 11. The results obtained, combined with the graph and data analysis by other authors, allow us to examine the most frequent behavior, resources and methods in both the Bolsonaro camp and the anti-Bolsonaro camp, in this network and during that period of time. I recorded 35% of fake pro-Bolsonaro profiles and 32% of anti-Bolsonaro profiles of anonymous but real users (a strategy to circumvent the criminalization of political opposition). In terms of content of the 200 tweets from pro-Bolsonaro supporters analyzed, 66% presented narrative distortion and 32% were copy-paste, 40% used destabilization strategies and 31% used expressions of hate. I was also able to analyze peaks of political tension through trends and hashtags, as well as astroturfing and grassroots phenomena— in addition to verifying the massive use of Twitter (X) to spread far-right disinformation, or as a political battlefield. These results can be important to assist the debates of sociologists who study the ways in which new media interact with, impact and create political events.
Keywords: fake news, polarization, Twitter (X), antibolsonarism.
Introdução
Apresento aqui uma reflexão sobre fake news e polarização política no Brasil, através de uma análise dos modos de ação, força e alcance do bolsonarismo e do antibolsonarismo na rede social Twitter (atual X), desde o início da pandemia mundial ocasionada pelo vírus SARS-CoV-2 até à realização das eleições presidenciais brasileiras em 2022. O enquadramento teórico discute os desafios introduzidos pelos novos mídia sociais, bem como o estudo de caso brasileiro (Chagas, 2024; Penteado et al., 2024) e a compra/reestruturação do Twitter (X), a psicologia das fake news e possíveis soluções, com base em diferentes autores (Canavilhas & Jorge, 2022; Pennycook & Rand, 2021; Zhuravskaya et al., 2020). Discuto, adicionalmente, as diversas consequências que podem resultar da disseminação de fake news e as tentativas para identificar notícias falsas em português do Brasil (Fischer et al., 2022). Bem como as potencialidades resultantes da análise de “notícias falsas” por parte de disciplinas distintas e a inadequação dos modelos baseados em redes igualitárias, na análise de pequenos mundos e de redes sem escalas para examinar as redes sociais estabelecidas na internet (Recuero, 2005). Termino com as vantagens das etnografias online e das investigações qualitativas na análise dessas redes sociais online, ao permitirem examinar as maneiras como os novos mídia interagem, determinam e influenciam ocorrências sociopolíticas contemporâneas. Os resultados obtidos foram organizados segundo quatro grandes seções temáticas: tweets bolsonaristas vs. tweets antibolsonaristas; a pandemia COVID-19 no Brasil (2020 – 2022); a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID-19 instaurada no Senado Brasileiro (abril 2021— outubro 2021); e, por fim, as eleições presidenciais brasileiras (1ª e 2ª voltas— outono de 2022). Após sumarizar as minhas principais conclusões, finalizo com a novidade e implicações futuras associadas a este estudo.
Enquadramento teórico
Mediascapes e fake news
Appadurai (1990, como citado em Cunningham & Sinclair, 2001) descreveu “mediascapes” e “etnoscapes” (“novos padrões de fluxos de mídia e pessoas”) juntamente com “fluxos de tecnologias, capital e ideias”, todos eles “disjuntivos” ou “relacionados não-sistematicamente” na contemporaneidade. De acordo com Cunningham e Sinclair (2001), os fluxos de mídia, em particular, podem quebrar as distinções centro-periferia e incluir “regiões geolinguísticas”. Leurs e Pozanesi (2018) refletiram sobre as dinâmicas de encapsulamento e cosmopolitização nas conexões online. Mollerup (2020) também descreveu a produção de conhecimento (com e sem práticas digitais) a partir de teorias antropológicas durante experiências de mobilidade, enfatizando a colocação e a incorporação do conhecimento como pontos de partida.
O jornalismo e os novos mídia sociais desempenham um papel fulcral na criação de conexões entre comunidades, culturas e tradições distintas, além da liberdade de expressão que lhes é inerente nas sociedades democráticas contemporâneas, que se pretendem pluralistas. Porém, os novos mídia sociais aportam também uma multitude de desafios às democracias liberais representativas. Em especial, naqueles países onde a regulação dos novos mídia sociais é lacunar ou inexistente, eles constituem meios favoráveis à disseminação massiva de fake news nas opiniões e discursos públicos. Para Canavilhas e Jorge (2022, p. 52) “Quando os mídia se tornam parte da ‘textura da experiência’ (Silverstone 2014, p. 14) (…), um dos grandes fenómenos [atuais] são as chamadas ‘fake news’. Foucault (1988, p. 9) diria que o que está a ocorrer agora é ‘uma explosão discursiva’”.
Assim, poderemos considerar que as fake news abarcam toda uma teia heterogénea de informações de natureza falsa, descontextualizações, mentiras grosseiras e subtis ou difamações, calúnias, informações de caráter especulativo e/ou agressões mais ou menos subtis ou diretas, sobretudo de teor político e ideológico— embora elas também possam visar e.g. a vida pessoal de figuras públicas, ou fraudar acontecimentos e resultados específicos—, espalhadas de modo organizado, sistemático e estratégico, ou por meio de redes online orgânicas (Zhuravskaya et al., 2020).
Pennycook e Rand (2021) distinguiram fake news “conteúdo de notícias publicado na internet que esteticamente se assemelha ao conteúdo de notícias legítimo e real, mas que é fabricado ou extremamente impreciso. Também chamadas de notícias falsas, lixo ou fabricadas” (Pennycook & Rand, 2021, p. 389) de disinformation “informações falsas ou imprecisas e que foram criadas com a intenção deliberada de enganar as pessoas” (Pennycook & Rand, 2021, p. 389) e, ainda, de misinformation “informações falsas, imprecisas ou enganosas. A contrário da disinformation, não precisam necessariamente de ser criadas deliberadamente para enganar. São, por vezes, utilizadas para se referir exclusivamente a imprecisões acidentais; no entanto, como é difícil determinar as intenções dos indivíduos desconhecidos que criam falsidades que se espalham na internet, são utilizadas como um termo abrangente mais amplo (…)” (Pennycook & Rand, 2021, p. 389).
Por outro lado, Canavilhas e Jorge (2022, p. 52) acrescentariam ainda “Nielsen e Graves (2017, p. 1) (…) consideram que a expressão fake news se tornou numa forma de os políticos desacreditarem os meios de comunicação que os criticam”.
Esta confusão no público entre propaganda política e notícias falsas levanta algumas preocupações relacionadas com a capacidade de os indivíduos identificarem fontes fidedignas online e, por conseguinte, acederem a informações fiáveis, baseadas em conhecimentos sólidos.
O estudo de caso brasileiro e a compra/reestruturação do X
Todas as circunstâncias que rodearam a pandemia por SARS-CoV-2 (2020-2022) e a campanha e eleições para a Presidência da República realizadas no Brasil, em outubro de 2022 (marcadas por uma elevada polarização, acompanhada de violência social e política) forneceram um manancial importante de dados respeitantes a estas dinâmicas, antes descritas, de disseminação de fake news online em larga escala (e seus impactos políticos e sociais), que importará escrutinar e compreender. A este respeito, Fischer et al. (2022, p. 111) sublinharam pertinentemente que “A disseminação de fake news e desinformação pode ter muitas consequências profundas, por exemplo conflitos sociais, desconfiança em relação aos mídia, ou instabilidade política. (…) No entanto, a identificação de notícias falsas ainda representa um desafio”.
A rede social Twitter (atual X) foi criada em março de 2006 e adquirida em outubro de 2022 pelo CEO da Space X e Tesla, o bilionário norte-americano Elon Musk, que procedeu ao despedimento dos CEOs prévios e assumiu pessoalmente essas funções, até junho de 2023. Além de ter desbloqueado uma série de contas de utilizadores da extrema-direita brasileira e norte-americana, incluindo o próprio Donald Trump (em contramão às anteriores “regras mínimas” de não-propagação de discursos de ódio, desinformação, xenofobia e ofensas online, estabelecidas pela plataforma— propagandeando uma utópica “liberdade de expressão irrestrita”), o logótipo e nome do Twitter também viriam a ser alterados para “X”, em julho de 2023. Na primavera de 2024, investigado pela Justiça brasileira juntamente com a filial brasileira da plataforma, Musk entrou em “rota de colisão” com o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, insultando pessoalmente o Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o Ministro do STF Alexandre de Moraes no X. Em agosto de 2024, Musk anunciou o encerramento dos escritórios do X no Brasil e culpou Moraes pela decisão, citando “censura”.
Penteado et al. (2024) puderam analisar os conflitos discursivos entre diversos atores e a polarização patente no Twitter (X) aquando da demissão do Ministro da Educação do governo Bolsonaro, Abraham Weintraub. Estes autores destacaram três vertentes: i) a cronologia dos comportamentos sobre um tema; ii) as temáticas mobilizadas; e iii) os perfis daqueles que mais tuitavam durante as discussões. Os seus resultados demonstraram que, naqueles embates discursivos, prevaleciam: i) a replicação (retweets), ii) o cruzamento de temas envolvendo personagens e contextos e iii) a importância de perfis não-institucionais na disseminação de mensagens ligadas a posicionamentos de cariz ideológico.
Já Chagas (2024) examinou, com base nos trending topics do Twitter (X), ações políticas que pudessem ser organizadas de modo coletivo (o chamado astroturfing, ou iniciativas políticas disfarçadas de comportamentos espontâneos, por oposição a ações grassroots) e se poderíamos localizar momentos de tensão política exacerbada através deles, nomeadamente atendo-nos às ações políticas executadas por meio das chamadas hashtags.[1] Este autor concluiu que:
(…) a presença e oscilação das hashtags sobre temas políticos poderia sugerir o uso desse expediente como repertório ativista, com intensa disputa pela visibilidade evocada pelo ranking de trending topics. Essa conclusão corrobora os achados de trabalhos como os de Chagas et al. (2022) e Soares e Recuero (2021), que procuram discutir o expediente de guerras de hashtags em cenários de intensas polarização e radicalização políticas. (…) No caso específico do ambiente político, embora siga princípios similares como a constituição de janelas de oportunidade (Jasper, 2016), o ativismo de hashtags inaugura um repertório que não encontra paralelo imediato no ativismo tradicional, preformado fora do ambiente digital. (Chagas, 2024, p. 684)
Descreverei mais adiante, com minúcia, a relevância dos usuários anónimos do Twitter (X) e dessa rede social concreta na organização do ativismo e das iniciativas de oposição ao governo bolsonarista brasileiro, entre os anos de 2020 e 2022. Mas também me aterei às velozes formas e estratégias de disseminação de fake news em massa utilizadas pela própria máquina de propaganda bolsonarista. Os dados recolhidos e analisados a seguir permitirão analisar as formas típicas de atuação, naquela rede social, tanto do campo bolsonarista quanto do campo antibolsonarista, inclusive por meio de grafos concebidos por analistas de dados (entre 2020 e 2022: Barciela, s.d.; Malini, s.d.). Idealmente, aqueles dados serão também reveladores para sociólogos e outros cientistas sociais que se interessem pelos modos de influência norte-americana na política brasileira e pelas formas como os novos mídia interagem com ocorrências, fatos e eventos sociopolíticos contemporâneos.
Psicologia das Fake News e Possíveis Soluções
Para introduzirmos alguma nuance neste debate, note-se que Pennycook e Rand (2021) analisaram a psicologia das fake news e verificaram que as evidências recentes contradizem a narrativa corrente de que o partidarismo e o raciocínio politicamente motivado explicam totalmente por que razão as pessoas são fascinadas por “notícias falsas”. Segundo os seus resultados, um fraco discernimento da verdade encontrava-se mais ligado à falta de raciocínio cuidadoso e de conhecimento relevante dos usuários comuns, bem como o seu recurso frequente à familiaridade e à heurística da(s) fonte(s). Havia, igualmente, uma grande desconexão entre aquilo em que muitas das pessoas acreditavam e aquilo que elas compartilhavam nos mídia sociais— e isso era, em grande medida, impulsionado pela desatenção. Estes investigadores concluíram que algumas intervenções poderiam ser eficazes para levar os usuários dos mídia sociais a pensar sobre a precisão das notícias por eles compartilhadas: “aproveitando as classificações de veracidade de crowdsourcing para melhorar os algoritmos[2] de classificação dos próprios mídia sociais” (Pennycook & Rand, 2021, p. 388).
Assim, a disseminação de desinformação online representa tanto um “quebra-cabeças científico” quanto um desafio prático. Num mundo com rotinas aceleradas e frenéticas, além de serem enganados pelo partidarismo, os indivíduos, frequentemente, não conseguem discernir a verdade da ficção, porque não param e não refletem sobre a precisão daquilo que veem nas redes sociais, onde fazem scrollings superficiais. Para aqueles autores, prompts simples que direcionam a atenção das pessoas para a precisão das notícias aumentam a qualidade daquilo que os indivíduos compartilham nos mídia sociais. Abordagens dessa natureza, incluindo o fornecimento de dicas de alfabetização digital,[3] não são prejudicadas pelos mesmos problemas de escalabilidade relacionados com abordagens estritas de verificação de fatos— e, na realidade, “podem ser combinadas com a verificação de fatos de crowdsourcing para maximizar a sua eficiência” (Pennycook & Rand, 2021, p. 399). Mas “notícias falsas” e outras formas de desinformação online representam um campo de testes poderoso (e ecologicamente válido) para avaliar teorias da psicologia cognitiva, social e política, bem como da ciência política, comunicação, sociologia e antropologia.
Fischer et al. (2022) pesquisaram a aplicação de codificadores bidirecionais que usam modelos de linguagem mascarados— e.g. Representações de Codificador Bidirecional de Transformers (BERT)— para identificar notícias falsas em português do Brasil. Eles descobriram que os modelos de identificação de notícias falsas construídos usando algoritmos avançados de métodos e estratégias de Aprendizagem de Máquina (ML), incluindo o BERT, tinham um desempenho excelente nessa tarefa: o BERT era o modelo com melhor desempenho.
Alguns pesquisadores discutiram o problema da insuficiência dos modelos de redes igualitárias, pequenos mundos e redes sem escalas para dar conta do problema das redes sociais estabelecidas através da comunicação mediada por computador. Tal como afirma Recuero (2005, p. 20): “(…) as relações entre os indivíduos na comunicação mediada por computador não são aleatórias. As pessoas levam em conta diversos fatores (…) Os laços sociais, portanto, são estabelecidos sob prismas muito específicos de interesses comuns de cada nó”.
Esta investigadora considera que todos esses modelos apresentam falhas na aplicação às redes sociais na internet— em grande parte, devido à sua natureza matemática e pouco investigativa do teor das conexões e da não-presunção de interação para a constituição do laço social. Por exemplo: “O modelo de Barabási falha em pontos cruciais (…) Ele não leva em conta, por exemplo, o custo de manutenção dos laços sociais. (…) Assim como ele, weblogs e fotologs também demonstram algumas falhas dos modelos.” (Recuero, 2005, pp. 20-21).
Recuero (2005) conclui, assim, que ao considerar apenas aquele tipo de modelos para realizar a análise de redes sociais, pode chegar-se a atitudes determinísticas, onde se assume que as relações mostradas pelos sistemas se constituem em laços sociais. É neste sentido que as etnografias online e as investigações qualitativas assumem relevância: para investigar o teor, direção, força e influência das interações sociais e laços online, assim como custos e benefícios associados à manutenção ou quebra daqueles— ponderando capitais sociais e simbólicos, além de contextos sociais particulares.
Metodologia
Apresento uma investigação qualitativa, que combina observação participante com dados recolhidos por meio de uma etnografia online extensa, levada a cabo entre março de 2020 (início da pandemia COVID-19), passando pelas sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito da COVID-19 no Senado Brasileiro (abril-outubro de 2021), até ao outono de 2022 (eleições presidenciais brasileiras, com a sua 2ª volta a 30 de outubro de 2022). Ela foi efetuada na rede social Twitter (X) (usada, à época, por ativistas, atores institucionais e partidários brasileiros, na organização e publicitação das suas ações políticas). Os dados foram examinados com recurso a NVivo 11, software de análise qualitativa (temática e de conteúdo) dos dados (tweets) recolhidos online.
Selecionei 400 dos tweets políticos que mais repercutiam e engajavam naquela rede social no Brasil, durante o período acima referido (200 tweets antibolsonaristas de 131 usuários e 200 tweets bolsonaristas de 159 usuários), à razão de 12 tweets (6 antibolsonaristas e 6 bolsonaristas) por mês (ou 3 tweets por semana) durante 32 meses (março de 2020 até outubro de 2022), com exceção de 4 meses (setembro e outubro de 2021 e setembro e outubro de 2022— correspondentes, respetivamente, aos meses das conclusões da CPI da COVID-19 e aos meses da 1ª e 2ª voltas das eleições presidenciais brasileiras), durante os quais foram analisados 16 dos tweets políticos (8 antibolsonaristas e 8 bolsonaristas) com mais engajamento por mês (ou 4 tweets por semana). Os critérios que presidiram à escolha dos perfis com atuação política no Twitter (X) Brasil foram o seu número de seguidores e, sobretudo, o alcance e engajamento (comentários e partilhas) dos seus tweets respetivos— facilmente acessíveis, a cada semana, através do separador com a hierarquia “Brazil trends” naquela rede social. Foram, assim, selecionados alguns dos usuários políticos com contas de maior engajamento no Brasil, como ativistas influentes e políticos no ativo, tendo a amostra de perfis sido diversificada para abranger todo o espetro político (da extrema-direita à extrema-esquerda).
A análise temática focou-se na identificação dos principais temas desses tweets com maior engajamento e identificou, respetivamente, 7 temas prevalecentes nos 200 tweets bolsonaristas selecionados e 10 temas prevalecentes nos 200 tweets antibolsonaristas selecionados. A análise de conteúdo desenvolvida procurou analisar as seguintes categorias e subcategorias: 1) Usuários: 1.1 usuários reais com nomes reais, 1.2 usuários anónimos/com pseudónimos, porém reais, 1.3 usuários falsos/perfis falsos, 1.4 bots; 2) Conteúdo: 2.1 uso de copy-paste de outros tweets, 2.2 uso de palavras maiúsculas, 2.3 uso de hashtags, 2.4 uso de discurso de ódio, 2.5 uso de outras estratégias de desestabilização (como fake news, propagação de medo, calúnia e difamação dos alvos); 3) Narrativa: 3.1 anti-Lula, 3.2 anti-Bolsonaro, 3.3 anti-Moro, 3.4 anti-vacinas, 3.5 anti-quarentena, 3.6 anti-cientistas, 3.7 anti-imprensa.
Descrevo a seguir, com maior minúcia, a relevância dos usuários anónimos e da rede social X na organização da oposição ao governo bolsonarista brasileiro, mas igualmente nas formas de disseminação de desinformação utilizadas pela máquina governamental.
Resultados
Esta seção subdivide-se em quatro grandes tópicos: Tweets bolsonaristas vs. tweets antibolsonaristas; A pandemia COVID-19 no Brasil (2020-2022); A CPI da COVID-19 no Senado Brasileiro (abril-outubro 2021); As eleições presidenciais brasileiras (1ª e 2ª voltas— setembro e outubro de 2022).
Tweets bolsonaristas vs. tweets antibolsonaristas
Desenhei a sua análise a partir de estudos prévios do Twitter (X) no contexto brasileiro, como aqueles de Penteado et al. (2024) e Chagas (2024) antes referidos. Sintetizo abaixo os principais resultados obtidos com base na análise temática e de conteúdo de 200 tweets bolsonaristas de 159 usuários e 200 tweets antibolsonaristas de 131 usuários daquela rede social, recorrendo a software NVIVO 11:
200 tweets bolsonaristas (159 usuários):
- Temas: tratamento precoce e cloroquina, anti-quarentena, voto impresso, armamentismo, “nove dedos”, suposta pedofilia e difamação genérica do campo antibolsonarista.
- Conteúdo: copy-paste em 32% dos casos; 66% com distorção de narrativa; anti-Lula em 19% dos casos; 35% de falsos perfis; 29% com ataques à imprensa ou cientistas; 31% com expressões de ódio; 40% com estratégias desestabilização.
200 tweets antibolsonaristas (131 usuários):
- Temas: vacinas, quarentena, urna eletrónica, ditadura, milícia, democracia, anti-armamentismo, racismo estrutural, explicitamente anti-Moro e explicitamente anti-Bolsonaro.
- Conteúdo: 32% de contas anónimas, uso de palavras maiúsculas e hashtags para captar o algoritmo; relevância do conteúdo de usuários anónimos, mas reais.
Merece uma nota especial o contraste registado entre os 35% de falsos perfis bolsonaristas e os 32% de perfis antibolsonaristas de usuários anónimos, porém reais— o que fez a diferença no ativismo, contornando a criminalização ostensiva e persecutória da oposição política por parte do governo Bolsonaro, revelando claramente o recurso a bots por parte do campo bolsonarista. O conteúdo dos 200 tweets antibolsonaristas analisados também se revelou mais propositivo, reflexivo e verdadeiro no teor da informação veiculada. O conteúdo expresso através dos 200 tweets bolsonaristas analisados (os quais distorciam narrativas em 66% dos casos e faziam copy-paste de conteúdo em 32%, utilizando expressões de ódio em 31% dos casos) apareceu com um teor mais agressivo/virulento, especulativo e difamatório.
Note-se que a generalização dos resultados para além da amostra analisada foi evitada e deve ser realizada uma reflexão sobre a representatividade da amostra, baseada sobretudo no alcance e engajamento alcançado pelos respetivos tweets a cada semana/mês, bem como no fato de ter coberto um amplo leque de usuários, da extrema-direita à extrema-esquerda do espetro político brasileiro.
A Pandemia COVID-19 (2020 – 2022)
Apresento, abaixo, uma cronologia dos principais eventos relacionados com a pandemia COVID-19 no Brasil e analisados através da etnografia online realizada na rede social Twitter (X):
i) Desde março de 2020: no Twitter (X), cientistas e comunicadores de ciência brasileiros divulgam dados sobre a pandemia em tempo real (g. Dutra, s.d.; Iamarino, s.d.; Nicolelis, s.d.; Orsi, s.d.; Pasternak, s.d.; etc.).
ii) Maio de 2020: “No Brasil, são [realizadas] de 10 a 12 milhões de publicações virtuais por semana sobre o coronavírus” (Motta, 2020).
iii) Julho de 2020: a imprensa brasileira deixa de propor o debate sobre a quarentena/lockdown. Propôs, antes, que uma suposta quarentena teria começado e já terminado. Quem definira que era “normal” morrerem um milhão e trezentas mil pessoas por dia? (Barciela, 2020a).
iv) Janeiro de 2021: no Twitter (X), grafos[4] apresentados pelos analistas de dados revelam que a ecologia de desinformação do “tratamento precoce” é uma rede que se estende por quase três mil canais Youtube (Malini, 2021a).
v) Março de 2021: O anúncio de uma vacina 100% brasileira revela-se um golpe efetivo contra o negacionismo online. O tema da “ditadura” apresenta uma correlação positiva com o debate sobre a “COVID-19″ nos tweets publicados no Twitter (X) brasileiro.
A 16 de julho de 2020, no decorrer de uma das semanas mais mortais da pandemia, houve mais de um milhão e trezentos mil mortos por COVID-19 no Brasil, em 24 horas. Contudo, a imprensa não deu destaque a esse fato: o volume de artigos publicados sobre essa situação cai drasticamente desde 22 de março de 2020— por que razão? (Cf. Barciela, 2020b). O gráfico na Figura 1 ilustra o número de artigos sobre a COVID-19 publicados na imprensa brasileira durante esse período.
Figura 1 Número de artigos sobre a COVID-19 na imprensa brasileira entre março e julho de 2020
Fonte: Barciela (2020b).
Este desfasamento entre a realidade objetiva da pandemia e a cobertura jornalística devia-se essencialmente a razões ideológicas, omissão de dados e censura aplicada aos mídia. O número total de mortos em decorrência da pandemia COVID-19, no Brasil, ascenderia a 713.795 óbitos acumulados para um total de 38.968.268 casos confirmados acumulados (Ministério da Saúde do Brasil, 2024). Por detrás desses números existiam muitos dramas humanos: “Só queria dizer que a dor de um pai é muito grande. É ter que conviver todo o dia com essa dor, com os pensamentos” (Côrtes, 2020, para. 3)— afirmava M. A., pai de H. (que faleceu aos 25 anos), enquanto pedia “empatia e compaixão” ao recolocar as cruzes vandalizadas no areal da praia de Copacabana (Rio de Janeiro), durante o verão de 2020. As cruzes e balões colocados por ativistas da ONG Rio de Paz homenageavam as vítimas da pandemia COVID-19, quando foi atingida a marca dos 100 mil mortos pela pandemia no Brasil (Côrtes, 2020). Nesse país, até três gerações de famílias inteiras e milhares de crianças viriam a ser vitimadas pela pandemia. Em julho de 2020, no cemitério de Vila Formosa (São Paulo) abriam-se covas em massa na terra vermelha para as vítimas do SARS-CoV-2 (Puppim, 2021), ao passo que em Manaus, capital do estado brasileiro do Amazonas, a Prefeitura local foi “forçada a abrir covas coletivas designadas por trincheiras” (Stropasolas, 2020, para. 1).
Em janeiro de 2021, a vacinação é iniciada no Brasil, nas grandes cidades capitais de São Paulo e Rio de Janeiro (via Instituto Butantan)— vacinaram-se, simbolicamente, três mulheres primeiro: uma idosa, uma indígena e uma técnica de enfermagem. No dia 14 de janeiro de 2021, Manaus passou a enfrentar um caos no seu sistema de saúde, devido à falta de oxigénio nos hospitais locais, que se encontravam sobrelotados devido aos internamentos recorde por COVID-19. Dezenas de pacientes morreram por asfixia, devido à falta de acesso a botijas de oxigénio, mais de 500 outros pacientes foram transferidos de urgência para hospitais noutros estados brasileiros e a crise do oxigénio do Amazonas e de Manaus (que se tornaria cidade-mártir) causou choque e consternação mundiais, tendo marcado um dos momentos mais tétricos do desenrolar da pandemia naquele país.
Contudo, a 26 de março de 2021, o anúncio de uma vacina 100% brasileira contra a COVID-19 abre espaço para a ciência (ao centro aqui na análise de grafos da Figura 2, que utiliza como métrica os tweets publicados nesse dia, no X brasileiro) e para especialistas que dominam o debate— o que levaria ao surgimento de uma unidade nacional contra a pandemia (Barciela, 2021a).
Figura 2 Anúncio de uma vacina 100% brasileira contra a COVID-19 é golpe efetivo no negacionismo online
Fonte: Barciela (2021a).
A 31 de março de 2021, verifica-se que o tema da “ditadura” brasileira apresenta uma correlação positiva com o debate sobre a “COVID-19″ nas publicações no Twitter (X) brasileiro durante os dias precedentes. O tema da ”ditadura” também foi identificado por mim nos 200 tweets antibolsonaristas analisados. A realidade de mais de três mil e seiscentas mortes por dia impõe-se, mas não arrefece o número de menções à “ditadura”, conforme se torna patente através da análise da Figura 3 (Barciela, 2021b).
Figura 3 Correlação positiva entre o tema da ditadura e o debate sobre COVID-19 nas publicações no Twitter (X) brasileiro — março de 2021
Fonte: Barciela (2021b).
Esta correlação positiva verificada demonstra que a pandemia tornou mais evidente para os usuários do Twitter (X) brasileiro que as políticas anti-sanitárias, ou mesmo genocidas, seguidas pelo governo de Jair Bolsonaro se enquadravam num projeto político autoritário, que aparelhou o estado e as instituições brasileiras com milhares de quadros militares ao longo dos anos, os quais não eram capacitados para os cargos e as funções que exerciam— dedicando grande parte do seu tempo a disseminar fake news e propaganda online.
A este propósito, Natalia Pasternak viria a comentar, muito mais tarde, sobre a forma como as redes sociais se vinham tornando num espaço com potencial para a disseminação rápida e alargada de teorias da conspiração (Pasternak, 2023b). Ela detalhou que a psicologia social possui dois conceitos que explicitam por que razão alguns indivíduos acreditam em teorias da conspiração: os conceitos de “bolhas epistémicas”[5] (Pasternak, 2023b, para. 4) e de “câmaras de eco”[6] (Pasternak, 2023b, para. 3). A investigadora lamentava, ainda, no Podcast: A Hora da Ciência, que esse fenómeno de natureza social tivesse consequências nas decisões pessoais, incluindo decisões sobre saúde: “Não podemos deixar que as ferramentas nos usem” (Pasternak, 2023a)— alertava a divulgadora científica, a respeito do uso das redes sociais.
A CPI da COVID-19 instaurada no Senado Brasileiro (abril – outubro 2021)
Em abril de 2021, inicia-se a Comissão Parlamentar de Inquérito à COVID-19 no Senado Brasileiro, com o Senador Renan Calheiros como Relator da CPI e o Senador Omar Aziz na posição de Presidente. Esta CPI foi detalhada e amplamente acompanhada por múltiplos perfis do Twitter (X), a cada sessão e por semanas consecutivas. Aqui, destacaram-se as seguintes observações fundamentais:
i) A grande saliência dos usuários anónimos do Twitter (X) (incluindo várias contas dos próprios Anonymous) na organização de ações de a oposição ao governo de extrema-direita brasileiro (antibolsonarismo), devido à criminalização dos opositores políticos que ocorria, no país, de forma severa e galopante.
ii) Os Senadores brasileiros na CPI da COVID-19 e seus assessores receberam informações de usuários do Twitter (X) em tempo real para afinarem as suas inquirições na CPI com detalhes, documentos, acontecimentos, vídeos, imagens, contratos e contradições nos depoimentos— g. informações coletadas pelos perfis: Camarote da Cpi, entretanto tornado Camarote da República (s.d.); Desmentindo Bolsonaro (s.d.); Tesoureiros do Jair, entretanto tornado tesoureiros (s.d.); Jair Me Arrependi, entretanto tornado Jairme (s.d.); etc. A hashtag #CPIdaCovid iniciou, assim, a hegemonia antibolsonarista que se verificaria até às eleições presidenciais de 2022: o Brasil saiu, enfim, da anomia e organizou politicamente a resistência online.
iii) A veloz disseminação de desinformação massiva (ou em grande escala) utilizada pela máquina do governo bolsonarista (com recurso a software israelita e russo, bots, redes organizadas).
iv) O domínio e alcance diferiram, no Twitter (X): havia forte coesão dos tweets bolsonaristas um vasto alcance e dispersão dos tweets do campo antibolsonarista. Note-se que as relações entre indivíduos online não são aleatórias— é necessária análise social para afinar qualquer discussão dos resultados.
Como antes referido, a CPI da Covid teve ampla cobertura e comentário, ao minuto, nos principais mídia brasileiros e também no Twitter (X) brasileiro, tanto por parte de contas anónimas quanto de usuários individuais identificados.
O progresso dos trabalhos na CPI levou à descoberta de diversos “esquemas de propina” e de inflação artificial na venda de “tratamentos precoces” não-comprovados e anti-científicos para a infeção por SARS-CoV-2 (inclusivamente lesando o Estado brasileiro), bem como a achados relativos à recusa reiterada e proposital de ofertas atempadas de vacinas seguras e de eficácia cientificamente comprovada (e.g. da Pfizer). Ou ainda à compra de vacinas duvidosas a empresas desconhecidas (e.g. na Índia) por parte de lobbies envolvendo não-especialistas como militares, polícias militares e pastores brasileiros— que tinham entrada direta no Ministério da Saúde do governo de Jair Bolsonaro.
Simultaneamente, diversos médicos e profissionais de saúde apareceram ligados a projetos anti-éticos e experimentais de “tratamento precoce” (questionados pelos próprios Senadores com formação médica que faziam parte da CPI), bem como a ações criminosas, no caso de Manaus e noutras prefeituras. O tema do “tratamento precoce e cloroquina” foi igualmente identificado por mim nos 200 tweets bolsonaristas analisados. Note-se que esses tratamentos ineficazes eram publicitados pelo próprio Presidente da República (e seus familiares diretos, ou assessores e amigos próximos), ao mesmo tempo que Jair Bolsonaro reiteradamente debochava dos doentes e mortos pela pandemia e das suas famílias, tanto em rede nacional quanto nas redes sociais.
A 12, 13 e 26 de maio de 2021, o perfil Nós e Conexões (s.d.) analisava a centralidade fulgurante que o debate sobre a CPI da COVID assumira nos tweets publicados no Twitter (X) brasileiro, aparecendo a CPI mencionada em tempo real, incluindo os principais envolvidos e os perfis de usuários em destaque nesses dias. Para alguns desses grafos, chegaram a ser analisados um total de 578.699 nós e 1.366.068 conexões (Nós e Conexões, 2021).
Ainda durante maio de 2021, houve um pedido de prisão em flagrante de Fabio Wajngarten, por parte de diversos Senadores e pelo Relator durante a CPI da COVID— que acabou por não ser aceite pelo Presidente da CPI. Uma manchete no jornal DN— Diário de Notícias, de Portugal, a 17 de maio de 2021, dava conta dos desenvolvimentos do outro lado do Atlântico: “Bolsonaro encurralado pela CPI da pandemia” (Moreira, 2021). Mas a 07 de julho de 2021 viria a consumar-se uma detenção em flagrante de Roberto Dias, em depoimento na #CPIdaCOVID— porém, o perfil do Exército brasileiro aparecia em destaque nas trends do Twitter (X) brasileiro, em resultado da ligação de oficiais das Forças Armadas brasileiras nas múltiplas denúncias de corrupção relativas ao governo Bolsonaro (Barciela, 2021e).
A 06 de julho de 2021, os analistas de dados verificam que o alto volume proporcional de antibolsonaristas não era observado tanto noutros temas das publicações no Twitter (X) brasileiro quanto na #CPIdaCovid: apenas 45% dos usuários usando essa hashtag no Twitter (X) estavam ligados ao bolsonarismo enquanto, nas menções a Bolsonaro após novas acusações de peculato, apenas 27% dos usuários eram bolsonaristas (Barciela, 2021c). Nas 24 horas anteriores ao dia 06 de julho de 2021, o tema do “voto impresso” apresentava um volume de menções 30% maior do que a #CPIdaCOVID mas, “ainda assim, engajara 26% menos usuários e 87% dos usuários do Twitter (X) brasileiro que abordavam o tema estavam diretamente ligados ao bolsonarismo” (Barciela, 2021d). O tema do “voto impresso” também foi identificado por mim nos 200 tweets bolsonaristas analisados.
A 20 de outubro de 2021 e após seis meses de depoimentos, o relatório final da CPI da COVID (um documento com mais de mil páginas entregue pelo Relator, Senador Renan Calheiros) apontava pelo menos nove crimes e uma tragédia, pedindo o indiciamento criminal de Jair Bolsonaro. Apesar das conclusões incisivas constantes no relatório, as consequências da CPI não avançaram por bloqueio do Procurador-Geral da República do Brasil, Augusto Aras, e também devido a outras decisões mais recentes, como o arquivamento em favor do deputado Ricardo Barros pelo juiz Nunes Marques do STF— Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Um ano após a entrega do relatório final da CPI, em outubro de 2022, os ex-Senadores da CPI Randolfe Rodrigues e Humberto Costa lançariam o livro intitulado A Política Contra o Vírus: Bastidores da CPI da Covid, no qual analisavam a excecional articulação pró-democrática ocorrida: a participação ativa de lideranças da sociedade civil, o papel fulcral dos mídia e dos influenciadores mais proeminentes nas redes sociais, ou as ligações produtivas estabelecidas entre deputados e senadores brasileiros, mesmo entre aqueles que pouco compartilhavam ao nível das ideologias partidárias. E propuseram seguir enfrentando as novas variantes dos terríveis vírus que assolavam o país— fossem eles o SARS-CoV-2 ou o bolsonarismo (Rodrigues & Costa, 2022).
As eleições presidenciais (1ª e 2ª voltas— setembro e outubro de 2022)
Quanto às eleições presidenciais brasileiras de 2022 no Twitter (X) brasileiro, destaca-se um sumário dos seguintes resultados relevantes:
i) A disputa comunicacional nas redes refletiu a polarização política, eclipsando a chamada “terceira via” e a campanha do candidato Ciro Gomes. Novos atores ganharam protagonismo: agências de fact-checking, o deputado André Janones (1ª volta) e o influencer Felipe Neto (2ª volta), que produziram conteúdos através de vídeos desmentindo fake news, amplamente partilhados, são alguns exemplos. Esses novos atores tinham em comum um elevado nível de literacia digital. Alguns usuários anónimos transitaram diretamente da campanha de Guilherme Boulos— 2020— à Prefeitura de São Paulo (que já havia introduzido o chamado “gabinete do amor”, constituído por designers, ilustradores e técnicos de audiovisual voluntários, para fazer frente ao “gabinete do ódio”, gerido online por Carlos Bolsonaro) para o ativismo na CPI da COVID-19 em 2021 e, depois, para a campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, o ano de 2022.
ii) O TSE— Tribunal Superior Eleitoral do Brasil estabeleceu o “Portal da Frente de Enfrentamento à Desinformação Eleitoral”, que coordenava o programa de combate às fake news e o “Sistema de Alerta contra a Desinformação em Relação ao Processo Eleitoral” (os perfis @TSEjusbr, @STF_oficial, @alexandre e outros foram diretamente contatados pelos usuários e eleitores no Twitter (X) brasileiro: com queixas, questões, denúncias e pedidos de informação).
iii) Continuou a veloz disseminação de desinformação em larga-escala contra os antibolsonaristas (com uso de software específico, bots, redes organizadas). A rede do negacionismo anti-vacinas 2020 também transitou diretamente para a causa do “voto impresso” em 2021 e, depois disso, para a campanha presidencial de Jair Messias Bolsonaro, em 2022.
iv) As diferenças ao nível da polarização grupal, influência e domínio no Twitter (X) brasileiro, através do espetro político: esquerda direita (confirmadas por Interian & Rodrigues, 2023).
v) Alguns perfis utilizaram o boato enquanto instrumento de propaganda política (de ambos os lados, porém só um desses campos— o bolsonarista— fez uso massivo da calúnia, mentira, agressão sistemática, fake news, violência física e simbólica contra os seus adversários políticos).
vi) A campanha de Guilherme Boulos (verão-outono de 2020 na Europa, inverno-primavera de 2020 no Brasil) apareceu como um tubo-de-ensaio do uso das redes sociais, por parte do campo antibolsonarista: ela enfrentou a hegemonia online do “gabinete do ódio” graças à dedicação de um conjunto de criativos, designers, artistas e músicos engajados e com uma postura construtiva-propositiva contrastante. O deputado federal André Janones— 2022— veio radicalizar a oposição a Jair Bolsonaro, introduzindo a especulação e o enfrentamento direto dos bullies políticos online no Twitter (X) brasileiro, como estratégias prediletas.
vii) A polarização social foi favorecida pelos novos mídia sociais, pelas suas relações e laços não-aleatórios, bem como pela simplificação dos fenómenos sociais que eles promovem. Apesar disso, a polarização política foi necessária e é normal— o que já não terá sido tão “normal” foi encarar adversários políticos como “inimigos a abater”, i.e., o discurso de ódio anti-democrata e armamentista. O “armamentismo” foi por mim identificado como um dos principais temas nos 200 tweets bolsonaristas analisados, ao passo que o “anti-armamentismo” surgiu como um dos principais temas nos 200 tweets antibolsonaristas examinados.
Já em novembro de 2020, haviam surgido agrupamentos de tweets comemorando e/ou ironizando o bolsonarismo pela derrota de Donald Trump nos Estados Unidos e 15% do universo então analisado— bolsonarista— começara acusações especulativas de uma suposta fraude que “afligiria” as eleições brasileiras, em 2022 (Barciela, 2020c). Em novembro de 2021, o ex-juiz Sérgio Moro lançara-se às eleições de 2022: esse ex-ministro de Bolsonaro mobilizou 11 mil usuários do Twitter (X) brasileiro numa semana e era a terceira força política nessa rede social, mostrando-se como candidato do MBL— Movimento Brasil Livre, de João Amoêdo e do Portal Antagonista (Malini, 2021b).
Em março de 2022, verificou-se o seguinte: nas eleições de 2020 nos EUA, os movimentos focados em incentivar a participação de eleitores historicamente marginalizados pelo sistema foram decisivos e no Brasil ocorria um movimento semelhante, começando por um setor específico: os jovens (Barciela, 2022a).
Em abril de 2022, foram analisados os nós que tinham o maior número de seguidores no Twitter (X) brasileiro— i.e., quem tinha capacidade de espalhar o conteúdo para mais gente? Os resultados demonstraram que a imprensa influenciava-se mais a si própria e a setores do PT— Partido dos Trabalhadores, mas não aos atores periféricos do Twitter (X) brasileiro (Malini, 2022a). No mesmo mês, foi lançada a fake news de que Lula iria despenalizar completamente o aborto e o boato correu solto no Twitter (X): 79 mil usuários retweetam imediatamente a notícia, 29% dos quais declaradamente contra (campos do bolsonarismo e Deltan Dalagnol, juntamente com a sua micro rede evangélica). Formara-se claramente uma bolha pseudoinformativa no Twitter (X) brasileiro.
Em agosto de 2022, Malini revelava os grafos com os perfis de usuários dominantes no Twitter (X) brasileiro: no campo progressista destacavam-se @guilhermeboulos, @reinaldoazevedo, @lulaoficial, @veramagalhaes, @bernardomf, @gduvivier, @almotchellis e, no campo bolsonarista e MBL, salientavam-se @kimpaim, @rconstantino, @taoquei1, @brazilfight, @nikolas_dm ou @leandroruschel (Cf. Malini, 2022b). A 05 de setembro de 2022, é resumido o processamento de 3.404.268 tweets gerados sobre Lula da Silva num só dia, após a sua entrevista no Jornal Nacional brasileiro: 40% dos retweets provinham do agrupamento azul (antibolsonarista), como mostra a Figura 4 (Malini, 2022c).
Figura 4 Processamento de 3.404.268 tweets gerados sobre Lula da Silva a 05 de setembro de 2022
Fonte: Malini (2022c).
Em outubro de 2022, Barciela produz grafos revelando quais os maiores portais de notícias na cobertura histórica das eleições presidenciais de 2022 no Twitter (X) brasileiro: destacava-se a nova visibilidade e grande influência de perfis generalistas como @choquei e @POPtime (Barciela, 2022b).
A ida às urnas para as eleições presidenciais de 2022 ditou os resultados de 48,43% dos votos para Lula da Silva e 43,20% para Jair Bolsonaro na 1ª volta (ou “1º turno”) das eleições, ocorrida a 02 de outubro de 2022, e de 50,90% (com 60.345.999 votos) para Lula da Silva e 49,10% (com 58.206.354 votos) para Jair Bolsonaro na 2ª volta (ou “2º turno”), realizada a 31 de outubro de 2022 (Tribunal Superior Eleitoral Brasileiro [TSE], 2022). Apesar da disputa acirrada e de diversos episódios irregulares de compra local de votos com dinheiro e cestas básicas, ou da interferência da PRF— Polícia Rodoviária Federal com operações Stop sobre autocarros de eleitores, sobretudo no Nordeste do país, registou-se uma vitória histórica da frente ampla formada por Lula da Silva e seus aliados.
Os perdedores das eleições presidenciais viriam a ocupar, por meses e em acampamentos financiados por empresários privados, a frente dos quartéis militares em diversos estados brasileiros, exigindo uma intervenção militar e, na prática, um golpe de estado contra os resultados das eleições democráticas. Após a cerimónia de diplomação de Lula da Silva no TSE a 12 de dezembro de 2022, e ainda antes da sua tomada de posse como novo Presidente da República Federativa do Brasil, o ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro e diversos familiares seus embarcam rumo ao estado norte-americano da Flórida. Jair Bolsonaro só retornaria ao Brasil a 30 de março de 2023, para ser ouvido pela Polícia Federal e pelo STF.
No dia 01 de janeiro de 2023, Lula da Silva tomou posse, numa cerimónia inclusiva que levou indígenas, negros, “catadoras”, “ativistas capacitistas”, pessoas lgbt, artesãos e até animais a subir a rampa situada diante do Palácio do Planalto e a fazer a entrega simbólica da sua faixa presidencial, coisa que o seu antecessor recusara. Nesse dia, houve 3.3 milhões de tweets sobre o tema, com novos atores e radicalização atenuada.
Mas a radicalização persiste e “cada tempo tem os seus hubs” (Malini, 2023). A 08 de janeiro de 2023, dá-se a invasão, vandalização e destruição parcial dos edifícios do Congresso Nacional brasileiro, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal em Brasília, numa tentativa de golpe de estado que fora arquitetada durante meses ou anos (decorre atualmente também a CPI dos Atos Antidemocráticos no Senado Brasileiro).
Em março de 2023, uma análise da polarização grupal, influência e domínio em redes de interação online verificou que os disseminadores de informação de esquerda tinham conseguido dominar o Twitter (X) brasileiro durante as eleições presidenciais, alcançando uma fração substancial de usuários com menos spreaders. Contudo, os spreaders de direita dominavam as suas comunidades usando poucos nós, como se torna patente através da Figura 5 (Interian & Rodrigues, 2023).
Figura 5 Polarização grupal, influência e domínio em redes de interação online: Twitter (X) brasileiro
Fonte: Interian e Rodrigues (2023, p. 8).
Tal como sucedera desde 2020, também durante a renhida campanha para as eleições presidenciais brasileiras do outono de 2022 na Europa (primavera de 2022 no Brasil), inúmeros usuários do Twitter (X) brasileiro engajaram-se diretamente no ativismo antibolsonarista e/ou pró-Lula da Silva ou nas campanhas do “vira-voto”. Estes perfis incluíam centenas de usuários, desde figuras públicas, influencers digitais com milhões de seguidores (como Felipe Neto), atores, comediantes e guionistas (como Marcelo Adnet, Alessandra Orofino, Gregório Duvivier, Fábio Porchat, Antonio Tabet, ou o perfil Porta dos Fundos), intelectuais (como o advogado e professor Sílvio Almeida, João Jorge Rodrigues, Augusto de Arruda Botelho, Anielle Franco, a filósofa Márcia Tiburi ou o professor universitário e cientista político Jean Wyllys— ambos a partir do seu exílio europeu), cantores reconhecidos e profissionais da cultura (como Margareth Menezes, Daniela Mercury, Caetano Veloso, Tom Zé, Zélia Duncan ou Gilberto Gil).
Ou, ainda, jornalistas (como Jamil Chade, César Calejon, Guga Noblat, Leandro Demori, Xico Sá, Luís Nassif, René Silva, a Revista Piauí, Octávio Guedes, Bernardo Mello Franco, Malu Gaspar ou Reinaldo Azevedo, entre muitos outros), cientistas (como Ricardo Galvão, Átila Iamarino, Mellanie Fontes-Dutra, Miguel Nicolelis, Christian Lynch, Luana Araújo, Natália Pasternak ou Pedro Hallal), inúmeros atores políticos, movimentos sociais (como MTST— Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto e MST— Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e movimentos sindicais. Juntando-se a esses, associações nacionais de estudantes (como UNE— União Nacional dos Estudantes e UBES— União Brasileira das/dos Estudantes Secundaristas), ONGs e grupos ambientalistas, grupos indígenas, grupos negros ligados à herança afro-brasileira, coletivos artísticos e grupos das comunidades, ou agências de fact-checking. Bem como usuários individuais anónimos (incluindo vários perfis humorísticos e os chamados “navegadores médios”, ou usuários portugueses). A Figura 6 apresenta as fotos de perfil de alguns dos principais usuários antibolsonaristas mais ativos no Twitter (X) brasileiro entre 2020-2022, e sobretudo durante as eleições presidenciais decisivas de 2022.
Figura 6 Fotos de perfil de alguns dos principais perfis antibolsonaristas ativos no Twitter (X), 2020-2022
Fonte: Pela autora, 2024.
Revelou-se, portanto, fundamental para o desfecho eleitoral brasileiro essa atuação vigilante e informativa dos perfis de Twitter (X) de diferentes atores da sociedade civil. E, até, de alguns atores das sociedades lusófonas, anglo-saxónicas ou francófonas — como foi o caso da congressista americana Alessandria Ocasio Cortez, de Bernie Sanders, do Presidente Emmanuel Macron, do Presidente Joe Biden, dos atores norte-americanos envolvidos nos filmes “Os Vingadores” ou, ainda, de ambientalistas como Leonardo DiCaprio, Jane Fonda e Greta Thunberg. Todos tendo chamado a atenção das opiniões públicas respetivas para a importância das eleições presidenciais brasileiras que decorreram em 2022.
Quanto aos atores sociais brasileiros presentes no Twitter (X), fossem eles individuais ou organizados, exilados, anónimos ou nem tanto, alimentando pontes com outros países e continentes: as suas diferentes preferências ideológicas desembocaram, por interesses coletivos maiores que se levantavam e ameaças crescentes ao sistema democrático e liberdades associadas, no antibolsonarismo de frente ampla pró-Lula da Silva.
Conclusões
Em primeiro lugar, concluo sobre o papel fulcral da análise de dados em tempo real para o combate às fake news e definição estratégica das ações do antibolsonarismo no Twitter (X) e fora dele. A rede social Twitter (X) apareceu como grande organizadora do ativismo político brasileiro dentro e fora do país, antes do Telegram e para lá do Whatsapp. As redes são dinâmicas: evoluem e mudam com o tempo (Watts, 2004). Atualmente, com a aquisição do Twitter (X) pelo empresário Elon Musk, muitos dos perfis por mim antes analisados migraram para redes sociais descentralizadas, do tipo Mastodon, Bluesky e Threads. Este fato e as questões de representatividade da amostra baseada nas trends, no engajamento e repercussão dos tweets e na diversificação do espetro político dos usuários pode introduzir algumas limitações quanto à possibilidade de generalização dos dados recolhidos. Simultaneamente, pude confirmar algumas conclusões de Penteado et al. (2024), analisar picos de tensão política através de trends e hashtags, bem como fenómenos de astroturfing e grassroots, tal como Chagas (2024). Alguns dos temas por mim identificados durante a análise dos 400 tweets, no decurso de 32 meses, correspondem a temas igualmente identificados por Barciela (s.d.) e Malini (s.d.).
A pandemia COVID-19 foi campo de batalha decisivo e preparatório do enfrentamento político direto nas eleições presidenciais brasileiras de 2022. Em relação especificamente à rede social Twitter (X), o pequeno número de carateres envolvido e as caraterísticas do algoritmo nos novos mídia sociais potenciaram formas de polarização política e social (Bello, 2023; Machado & Miskolci, 2019; Ortellado et al., 2022). Muito embora os aspetos cognitivos imediatistas e baseados na recompensa dos usuários da plataforma, a sua atenção flutuante e dispersa, ou o modo superficial como muitas informações eram apresentadas e automaticamente partilhadas, também tivessem desempenhado um papel (Pennycook & Rand, 2021). Os disseminadores de informação do campo ideológico da esquerda tiveram maior alcance, porém os spreaders ligados às ideologias conservadoras e ultraliberais de direita obtiveram maior domínio com menos nós (Interian & Rodrigues, 2023).
No entanto, é possível afirmar que a pandemia do SARS-CoV-2 auxiliou a viragem política brasileira a partir de uma situação sanitária— através da mobilização da sociedade civil brasileira, com grande proeminência adquirida pelas redes sociais no embate político. O fato de muitos usuários individuais antibolsonaristas do X e as próprias agências de fact-checking presentes no X terem feito verificações e investigações rigorosas de notícias falsas, vídeos e documentos (inclusivamente auxiliando processos judiciais) é um elemento positivo, além de que o grande alcance das suas conexões ajudou a quebrar as chamadas “bolhas epistémicas” e as “câmaras de ressonância” dos mídia sociais (Pasternak, 2023b).
Em segundo lugar, o caso brasileiro do Twitter (X) ensina-nos que, afinal, dentro das próprias redes sociais podem existir meios para combater os enviesamentos dessas mesmas redes sociais, através de um engajamento consciente e de uma cidadania participativa articulada e estratégica. Esse envolvimento tem de ser reflexivo e também horizontal, não podendo estar somente dependente de mecanismos legais e do “policiamento online”, sobretudo quando e onde as plataformas digitais não se encontrem formalmente reguladas. Assim, a “explosão discursiva” que os novos mídia operam (Foucault, 1988, citado em Canavilhas & Jorge, 2022, p. 52) pode ser, nalgumas circunstâncias, “domada”— já que o caso brasileiro nos ensina:
i) Que as redes orgânicas online possuem uma maleabilidade e inteligência próprias, até por aumentarem a riqueza e imprevisibilidade das interações estabelecidas, que os bots e softwares de desinformação ou espionagem não têm (Zhuravskaya et al., 2020). Essas redes orgânicas formadas por cidadãos participativos e auxiliadas pelo engajamento de figuras públicas podem ajudar a combater as consequências profundas da disseminação de fake news e desinformação online (instabilidade política, desconfiança em relação aos mídia, conflitos sociais). Sobretudo através de narrativas progressistas e propositivas, focadas na esperança de um futuro melhor, na cultura, saúde, educação, literacia digital e pensamento crítico— alicerçando a confiança no futuro da democracia e proporcionando uma experiência de conexão mais segura aos usuários online (Fischer et al., 2022).
ii) Que as redes sociais de natureza autoritária e as “ecologias de desinformação” são mais coesas e rígidas, menos criativas, com menor número de nós e menor alcance nas suas conexões online. Revelam-se, portanto, incapazes de quebrar a homogeneidade compacta dos seus laços sociais, grupos monolíticos e discursos de ódio para alcançar e incluir novos públicos, ou para acolher a diversidade social. Daí que recorram ao spam, fake news e aos tweets em massa para exercer a sua hegemonia.
iii) O uso de modelos das chamadas redes igualitárias, modelos de pequenos mundos e modelos de redes sem escalas é inadequado, insuficiente e demasiado determinístico para examinar redes sociais online, já que as ligações que se estabelecem não são aleatórias, mas baseadas em diversos fatores, como interesses comuns— i.e., os laços criados supõem interações (Recuero, 2005). Assim, as investigações qualitativas assumem relevância para investigar o conteúdo, direção, alcance, força e influência das interações e dos laços sociais estabelecidos online em plataformas como o Twitter (X).
Em terceiro lugar, os dados recolhidos permitem avaliar e determinar o modus operandi típico, no Twitter (X), do bolsonarismo e do antibolsonarismo (e.g. via análise temática e de conteúdo, seu cruzamento com análises de grafos, interações, laços e uso seletivo das ferramentas do algoritmo). O conjunto de dados aqui recolhido e analisado revela-se particularmente relevante para os sociólogos que procurem examinar o impacto da política norte-americana na política brasileira e determinar de que forma os novos mídia interagem com eventos políticos a nível global, permitindo afinar instrumentos e definir estratégias preventivas relativamente à disseminação de fake news, propaganda e desinformação online. Sobretudo, num tempo em que a Europa se confronta com o ressurgimento de partidos e grupos de extrema-direita, através de eleições e das guerras do pós-pandemia (2022-2024).
Novidade e Implicações Futuras
Estes resultados sublinham a possível predição de eventos, movimentos e picos de polarização política, com base numa análise de trends e hashtags no Twitter (X) brasileiro e na influência central da política norte-americana sobre o Brasil. Além disso, os resultados apresentados contribuem para a presente discussão sobre a regulação dos novos mídia, combate às fake news e ao discurso de ódio online— Secretaria de Comunicação Social— Gov.br (s.d.) e sua plataforma #BrasilContraFake, lançada em março de 2023—, que permanece na ordem do dia no caso brasileiro e começa a ser discutida em Portugal, embora segundo o seu enquadramento europeu próprio. Verificamos, ainda, que a rede social Twitter (X) emergiu como ferramenta centralizadora de ativismos cidadãos dispersos no caso brasileiro, como campo de batalha política e de confronto de narrativas sociais e ideológicas polarizadas. Todas estas constatações permitirão, desejavelmente, retirar algumas lições para as sociedades europeias no presente e num futuro próximo.
Referências
Appadurai, A. (1990). Disjuncture and difference in the global cultural economy. Theory, culture & society, 7(2-3), 295-310.
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (s.d.). Tweets [Perfil do Twitter]. Twitter. Consultado em 20 de outubro de 2024, de https://x.com/Pedro_Barciela
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2020a, 16 de julho). O que seria o “novo normal”? Quem definiu que tem algo de normal em morrerem 1.3 mil pessoas por dia em decorrência de uma pandemia? Pois é. Nenhuma resposta óbvia. Mas a imprensa se esforça, diariamente, para garantir que você não seja pautado por esse debate. (+) [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1283877132251389957
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2020b, 16 de julho). Mais 1.3 mil mortos pela COVID-19 no Brasil em 24 horas. Uma das semanas mais mortais da pandemia. Deveria ser o destaque da imprensa, certo? Mas não é. O volume de matérias sobre o tema cai drasticamente desde a semana do dia 22/03 de março. Qual o papel da imprensa nisso tudo? (+) [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1283877129629949955
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2020c, 7 de novembro). Diversos agrupamentos comemoram e/ou ironizam o bolsonarismo pela derrota de Donald Trump. No meio disso tudo, o bolsonarismo resiste em 15% do universo analisado, pautado agora pelas acusações de uma suposta fraude que afligirá as eleições brasileiras em 2022. Tsc tsc. [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1325158299755442181
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2021a, 26 de março). O anúncio de uma vacina 100% brasileira contra a covid-19 é um efetivo golpe no negacionismo: execrado do debate ele dá espaço para a ciência (aqui ao centro), especialistas pautando o debate e uma unidade nacional contra a pandemia. Viva a ciência! Viva o SUS! [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1375489386196963333
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2021b, 31 de março). Outro ponto interessantíssimo é: o tema apresenta um correlação positiva com o debate sobre COVID-19 nos últimos dias, isto é: o debate sobre a pandemia não arrefeceu com o aumento no número de menções sobre a ditadura. A realidade de + 3.6 mil mortes por dia se impõe. (+) [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1377366414432985088
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2021c, 6 de julho). O alto volume proporcional de apoiadores não é observado em outros temas, como na #CPIdaCovid – apenas 45% dos usuários se conectam ao bolsonarismo – e nas menções ao Bolsonaro após novas acusações de peculato, onde 27% dos usuários se propõe a defender os Bolsonaros. (+) [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1412408923144003591
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2021d, 6 de julho). Sobre “voto impresso”: nas últimas 24 horas o tema teve um volume 30% maior de menções se comparado à #CPIdaCovid e, ainda assim, engajou 26% de usuários a menos que a CPI. E mais: 87% dos usuários que abordam o tema “voto impresso” estão ligados diretamente ao bolsonarismo.(+) [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1412408919465529351
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2021e, 7 de julho). A catarse com a prisão na #CPIdaCOVID esconde um elemento óbvio mas, não por isso, menos lamentável: o perfil do Exército aparece em destaque, resultado do envolvimento de oficiais das forças armadas nas inúmeras denúncias de corrupção no governo Bolsonaro. (+) [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1412902715374583808
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2022a, 24 de março). Nas eleições de 2020 (EUA), movimentos focados em incentivar eleitores historicamente marginalizados pelo sistema a participarem foram decisivos. No (BR), movimento semelhante começa a tomar forma com atores mirando em um segmento bem específico: jovens. http://olhaobarulhinho.com [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1507138636470538251
Barciela, P. [@Pedro_Barciela]. (2022b, 30 de outubro). De todos os grafos, de todas as análises, a que menos tenho o que dizer e, ao mesmo tempo, a que mais tem a dizer sobre o Brasil: 30 de outubro, Lula eleito presidente do Brasil. [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/Pedro_Barciela/status/1586861787366019072
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Malini, F. [@fabiomalini]. (2021a, 17 de janeiro). Daí você pode pensar que esses vídeos só são recomendados por aqueles 490 canais. Não, definitivamente. Porque analisando para quem esses 490 canais são recomendados, a rede do tratamento precoce se expande para quase 3 mil canais [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/fabiomalini/status/1350628709548617728
Malini, F. [@fabiomalini]. (2021b, 19 de novembro). Sérgio Moro se lançou nas eleições 2022 na última semana. Então resolvi coletar hashtags e menções ao ex-ministro de Bolsonaro. Mobilizou 11 mil usuários e já é a terceira força política da plataforma no BR. No grafo, Moro mostra-se como candidato do MBL, Amoedo e Antagonista [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/fabiomalini/status/1461516188119351297
Malini, F. [@fabiomalini]. (2022a, 8 de abril). Agora, visualizando os nós que têm o maior número de seguidores no Twitter. Ou seja, quem tem capacidade de espalhar para + gente o conteúdo no TW. Reparem q a imprensa influencia + ela própria e setores do PT, mas não os atores da periferia da imagem (+ fortes no grafo anterior) [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/fabiomalini/status/1512438727984959499
Malini, F. [@fabiomalini]. (2022b, 29 de agosto). Para quem precisa dos grafos. Brota [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/fabiomalini/status/1564363159456124928
Malini, F. [@fabiomalini]. (2022c, 5 de setembro). Só hoje, por curiosidade, processei os 3.404.286 tuítes gerados sobre o Lula durante e após a entrevista no Jornal Nacional. E visualizei os agrupamentos, representados pelas cores no grafo. Um dado me chama atenção: 40% dos Rts vêm dos azuis (antibolsonaros) [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/fabiomalini/status/1566582417850335233
Malini, F. [@fabiomalini]. (2023, 4 de janeiro). Lula toma posse no dia 1/1/23. No dia, 3.3 milhões de tuítes. Com novos atores e radicalização atenuada. Mas ela segue ali, firme e forte. Cada tempo com seus hubs. A história passa também pelas conexões que criamos e valorizamos em cada um desses momentos históricos [Imagem anexada] [Tweet]. Twitter. https://x.com/fabiomalini/status/1610466291659194372
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Data de submissão: 30/06/2023 | Data de aceitação: 18/06/2024
Notas
Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.
[1] De acordo com Bruns et al. (2016, como citado em Chagas, 2024), a recolha dados com base em hashtags do Twitter (X) tornou-se corrente para planear metodologicamente investigações que usam dados dos mídia sociais.
[2] Pennycook e Rand (2021, p. 389) definiram ”algoritmo” como: “etapas ou cálculos realizados por um computador (dado um conjunto de regras) para resolver um problema ou completar uma tarefa. No contexto dos mídias sociais, algoritmos são usados para determinar qual conteúdo os usuários veem”.
[3] Segundo Justin (2019, p. 41):
(…) a alfabetização não é “uma forma restrita de aprendizagem do sistema da língua […]” (Ribeiro, 2013, p. 37) e pode ser impregnada no âmbito tecnológico, na medida que se considera como aprendizagem necessária e básica para realizar tarefas com destreza e criticidade acerca do uso das tecnologias digitais. Neste contexto, considera-se a evolução das TD um catalisador para as novas perspetivas acerca da alfabetização digital. Desta forma, o conceito de alfabetização digital distancia-se do alfabeto como base e revela a essência de uma nova linguagem, que não se restringe unicamente à escrita e “[…] envolve outros tipos de aprendizagens: a manipulação de símbolos, a colaboração, a utilização da informação, a resolução de problemas, enfim, envolve aprender a aprender” (Gomes, 2006, p. 37).
[4] A teoria dos grafos debruça-se sobre as ligações entre indivíduos no interior de uma rede, através de estruturas assim denominadas: grafos. Um grafo é um conjunto de pontos (no caso em apreço, vídeos em canais Youtube— mas podem ser usuários ou tweets, por exemplo) que contenham relações entre si.
[5] Segundo Medeiros (2023), uma ”bolha epistémica” é:
uma estrutura epistémica social em que se adquire informação por meio de uma variedade de recursos limitados, excluindo, por omissão no seu ambiente, agentes epistémicos relevantes, tendo a sua constituição por processos orgânicos de seletividade social e formação de comunidade. (…) As crenças mantidas nesses grupos [bolhas epistémicas e câmaras de eco] (…) são fortes entre os seus integrantes, porém de baixa confiabilidade contrastada com informações relevantes acerca do conteúdo da crença desses agentes, tornando esse conjunto de agentes epistémicos grupos epistemicamente perniciosos (Boyd, 2018). (Medeiros, 2023, p. 504)
[6] Segundo da Silva Ferreira (2022), uma ”câmara de eco” é:
uma estrutura epistémica social na qual vozes dissidentes relevantes são ativamente excluídas e desacreditadas criando ambiências de homofilia. Essa homofilia mostra-se quando os usuários de plataformas de redes sociais interagem e se associam apenas a outros semelhantes com exposição seletiva a conteúdos. A homofilia associa-se a processos de evasão a questionamentos e busca constante de reforço, traduzindo-se na tendência de consumir informações alinhadas às ideologias previamente constituídas apenas com viés de confirmação e na propensão a buscar, escolher e interpretar informações alinhadas com o próprio sistema de crenças, incluindo aí notícias que não condizem com a realidade. (da Silva Ferreira, 2022, p. 1)
Autores: Alexandra Pereira