2025, n.º 39, e2025392

Hermes Augusto Costa
FUNÇÕES: Concetualização, Análise formal, Investigação, Metodologia,
Administração do projeto, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Universidade de Coimbra, Faculdade de Economia, Centro de Estudos Sociais.
Avenida Dias da Silva, 165, 3004-512, Coimbra, Portugal
E-mail: hermes@fe.uc.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7873-4440

Raquel Rego
FUNÇÕES: Concetualização, Análise formal, Investigação, Metodologia,
Administração do projeto, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Iscte — Instituto Universitário de Lisboa, Escola de Sociologia e Políticas Públicas,
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte). Avenida Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal
E-mail: raquel.rego@iscte-iul.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7342-8695

Resumo: Tomando como ponto de partida pesquisas anteriores, ao abrigo dos projetos “Representativeness of Social Partners and the Impact of Economic Governance” e “Trade unions and right-wing populism in Europe”, neste texto pretendemos fornecer contributos adicionais para a compreensão dos fatores que concorrem para um crescimento de processos de polarização social — expressos sob a forma de populismo — no campo laboral/sindical. Em concreto, detemo-nos numa análise da perniciosa relação entre sindicalismo e populismo de extrema direita em Portugal. Argumentamos que a génese do sindicalismo e os valores democráticos em que historicamente se apoia (emancipação, solidariedade, igualdade, representação coletiva democrática) estão nos antípodas do populismo. A recomposição sociopolítica do Parlamento português desde 2019 ajuda a explicar as investidas populistas exercidas sobre o campo laboral em Portugal. Com efeito, os contornos de uma “agenda populista” — que está a ser imposta de fora para dentro, a partir das estratégias partidárias de extrema-direita e tendo como alvo o movimento sindical organizado — assume propósitos intencionais que, em nosso entender, se afiguram como enigmáticos e perigosos.

Palavras-chave: populismo, extrema-direita, sindicalismo, Portugal.

Abstract: Taking previous research under the “Representativeness of Social Partners and the Impact of Economic Governance” and “Trade unions and right-wing populism in Europe” projects as a starting point, in this text we intend to provide additional contributions to understanding the factors that contribute to the growth of social polarisation processes — expressed in the form of populism — in the labour/union field. The embryonic relationship between trade unionism and far-right populism in Portugal is briefly analysed. It is argued that the origins of trade unionism and its historically consolidated democratic values (emancipation, solidarity, equality, democratic collective representation) are at the antipodes of populism. In the Portuguese context, the populist “appeals” are recent and have to do with the recomposition of the Portuguese Parliament since 2019. A “populist agenda” — imposed from the outside in, from far-right party logics to the heart of the trade union movement — thus seems to have clear but at the same time enigmatic and dangerous purposes.

Keywords: populism, far-right, trade unionism, Portugal.

Introdução[1]

É difícil analisar a “intromissão” do populismo no sindicalismo sem, a montante, evocar o legado histórico do sindicalismo e a suas missões mais nobres. Mas a reminiscência desse passado de grandes conquistas acaba por ter de confrontar-se com os múltiplos sinais de crise do sindicalismo, desde logo em contexto europeu (por sinal o berço do sindicalismo), os quais se manifestam há várias décadas. A nosso ver, é em parte como reação às manifestações de crise de representação que atingem também o sindicalismo que os projetos populistas surgem, muitas vezes com o propósito de se constituírem como alternativa política.

De igual modo, os problemas sindicais que resultam do contexto societal atual não podem dissociar-se de uma reavaliação dos recursos de poder sindical. A força ou a fraqueza desses recursos dita, em boa medida, o grau de profundidade e oportunismo das investidas populistas.

Neste texto caracterizamos brevemente o sistema de relações laborais português e apresentamos os principais atores sindicais. Isso permite sugerir que tais atores estão historicamente sintonizados com os valores da classe trabalhadora e com o compromisso de uma agenda de esquerda.

O aparecimento do partido político Chega constitui o embrião da ideia populista mais recente em Portugal. Importa, nesse sentido, não só proceder a uma breve apresentação dos pressupostos ideológicos perfilhados pelo Chega, como assinalar as articulações entre o Chega e a emergência de um movimento de carácter informal (o “Movimento Zero”) que teve algumas aparições públicas sobretudo no quadro de manifestações de polícias e outras forças de segurança. Este movimento não tem “rosto”, nem um porta-voz que pudesse funcionar como interlocutor.

O facto sociológico central deste texto prende-se com o anúncio público (em agosto de 2022) da criação do um sindicato (“Solidariedade”) por parte do Chega, inspirado de algum modo na experiência polaca protagonizada por Lech Walesa há quatro décadas na Polónia, e incentivado igualmente numa iniciativa semelhante e relativamente mais recente do partido Vox em Espanha.

A concluir este texto, e já depois de termos elencado alguns desafios e obstáculos com que um sindicalismo de extrema-direita inevitavelmente se confrontará, tecemos alguns comentários/recomendações para a ação sindical “dominante”.

As tendências populistas como pano de fundo

Este texto não tem como propósito retomar os extensos debates teóricos sobre o populismo ou, para sermos mais rigorosos, os populismos. Na verdade, o “desafio populista” (Kriesi, 2014) abarca no seu bojo uma diversidade de movimentos e de partidos políticos que se apresentam veementemente contra a elite “corrupta”. Ainda que, na aceção de Laclau (2010), o populismo possa ser pespetivado como uma forma de articução de conteúdos de vária ordem (políticos, sociais, ideológicos), neste texto pretendemos chamar a atenção para o modo como o populismo de extrema-direita se tem procurado integrar progressivamente no campo sociolaboral.

As tendências populistas de direita significam um abandono das classes populares e um aumento das desigualdades (Piketty, 2020), bem como a confirmação do desgaste das economias no quadro da globalização neoliberal (Estanque & Francisco, 2023) e dos sistemas de proteção social (Gidron & Hall, 2017; Rodrik, 2018). Tais tendências não estão, pois, isentas de produzir consequências para a atividade sindical.

Atendendo que origens do sindicalismo e os seus valores democráticos historicamente consolidados (emancipação, solidariedade, representação coletiva legitimada) estão nos antípodas do populismo (Costa & Rego, 2023), a orientação promovida pelo populismo de direita afigura-se como extremamente problemática para os sindicatos: existe o risco de a solidariedade dos trabalhadores ser corroída e de a sua fragmentação aumentar, o que, por sua vez, terá um impacto negativo na solidariedade de interesses nas empresas e fora delas. É de recear que as ameaças populistas de direita acabem por conduzir à restrição dos direitos dos trabalhadores de orientação universal e das prestações de segurança social estruturadas de acordo com as convenções coletivas. (Hoffman & Meinardus, 2023). Os partidos populistas de direita e de extrema-direita, frequentemente designados por Direita Populista Radical (DPR), têm estado no centro do debate público desde há algum tempo. A expressão “direita populista radical” sublinha o facto de estes partidos se caracterizarem essencialmente por dois aspetos: i) uma componente populista que propaga uma postura anti-elitista, anti-institucional e anti-intelectual com referência ao “verdadeiro povo” e ao “senso comum”, muitas vezes acompanhada por uma acentuada moralização e personalização da política, uma postura de “direita radical populista”, que se caracteriza por uma forte tendência para a “política de massas” (Müller 2016); ii) uma agenda política de direita que inclui orientações nacionalistas ou racistas, a rejeição da imigração e de uma sociedade multicultural, uma atitude negativa em relação a instituições supranacionais como a União Europeia e a redução da participação democrática e do Estado de direito. A limitação do Estado de direito inclui normalmente o desrespeito pela não discriminação de grupos sociais, a independência dos tribunais, a liberdade de expressão, a independência dos meios de comunicação social, a proteção das minorias, etc. (Bieling, 2023).

Os discursos e as práticas económicas, laborais e sociopolíticas de muitos partidos populistas de direita caracterizam-se por traços diversos, mas seguem geralmente um objetivo semelhante. Este consiste em identificar a “questão social” como um ponto de referência essencial na luta pelo poder político das maiorias interpretativas e políticas. Os sindicatos consideram, ainda que em graus diferentes, o populismo de direita como uma força que ameaça e põe em causa o seu próprio modo de funcionamento: por um lado, através do enfraquecimento estratégico das relações de solidariedade sindical e, por outro, através de um ataque frontal aos sindicatos (Hoffman & Meinardus, 2023). Este ataque é dirigido principalmente contra o poder institucional dos sindicatos, nos termos da abordagem dos recursos de poder (Crouch, 2017; Lehndorff et al., 2017; Lévesque & Murray, 2010).

Legado histórico e crise do sindicalismo

Para analisarmos a relevância sociológica do sindicalismo é incontornável “viajar” ao passado (às suas origens fundadoras). Na verdade, importa não esquecer a influência das lutas operárias e sindicais da primeira metade do século XIX a vários níveis: quer para a dignificação das condições de vida e de trabalho; quer para estruturação da identidade do operariado moderno. O século XX, por seu lado, reforçaria a importância do sindicalismo na emancipação da classe trabalhadora, traduzida em várias conquistas: (em especial na Europa): jornada dirária de 8 horas de trabalho (note-se que este foi o tema da primeira convenção da Organização Internacional do Trabalho. Não pode igualmente olvidar-se, sobretudo desde o pós-Segunda Guerra até ao final dos anos 70/início dos anos 80, o papel do Estado-Providência e do direito do trabalho, na criação de condições de trabalho minimamente justas e de que a estabilidade salarial, e de horários de trabalho são apenas dois exemplos. No contexto português, o despontar dessas condições de elementar justiça laboral apenas foi possível com a revolução democrática de abril de 1974. Foi nessa década que as principais estruturas sindicais — a Confederação Geral de Trabalhadores Portugueses (CGTP), defensora de um sindicalismo de classe, de massas, e a União Geral de Trabalhadores (UGT), protagonista de um sindicalismo de diálogo social e comprometida com o processo de integração europeia — ganharam uma relevância que ainda hoje conservam. Mesmo que tanto uma como outra estivessem articuladas com lógicas partidárias mais próximas do partido comunista (o caso da CGTP) e do partido socialista e do partido social democrata (o caso da UGT).

Em paralelo a esse regresso ao passado mais distante (e promissor), a história das últimas quatro décadas do sindicalismo na Europa foi abrindo caminho a cenários de vulnerabilidade que nos conduzem a um presente com tons de pessimismo. A ideia de crise (ou melhor, de crises, pois os seus contornos são variados) tornou-se recorrente. Por um lado, é inevitável aludir a dinâmicas exercidas de “fora para dentro” — acentuada globalização, intensificação dos processos de financeirização e mercantilização laboral, políticas de austeridade — geraram, em especial na Europa do Sul, formas de “exclusão precarizadora” (Costa et al., 2020, p. 24). A realidade portuguesa pode constituir-se como um bom exemplo disso mesmo, em resultado da presença, entre abril de 2011 e maio de 2014, da Troika (Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia). Além disso e como corolário dessas dinâmicas externas, as políticas de austeridade implementadas pelo XIX Governo Constitucional contribuíram para que o sindicalismo a tornasse mais visíveis as suas vulnerabilidades (Silva et al., 2020).

De igual modo, é crucial não esquecer sinais de crise interna do próprio sindicalismo: as dificuldades em agregar interesses e construir identidades coletivas; a limitada eficácia da ação sindical; o débil rejuvenescimento de quadros; a baixa presença de mulheres nas direções dos sindicatos; a limitada abertura a outros temas e estruturas não sindicais, etc. (Costa, 2021).

Como também assinalou Jelle Visser (2019), a contínua tendência de declínio sindical (pois o número de filiados estabilizou “em baixa”), um persistente cenário de dualização (entre setor público e privado, entre estáveis e precários), assim como a necessidade de “dar a mão” a outras organizações representativas de trabalhadores são algumas das preocupações estruturais inerentes à lógica interna de atuação sindical. Ainda que os sindicatos possam estar predispostos a adotar boas práticas tendentes defender os trabalhadores em evidentes situações de precariedade, há também evidências de que estão a perder cada vez mais a sua capacidade de defender uma identidade coletiva coesa. O que é sobretudo evidente diante de crescentes formas de atomização dos trabalhadores, que reclamam uma conceção de representação sindical mais alargada (Rego & Costa, 2022).

Recursos de poder sindical à prova

Do ponto de vista estrutural, o poder do sindicalismo remete quer para traços de posicionamento distintivo no mercado de trabalho (o marketplace bargaining power, aferido, por exemplo, pela posse de qualificações), quer para a capacidade de negociação no local de trabalho, evidenciado, por exemplo, pela capacidade dos trabalhadores, através de uma ação direta, poderem causar interrupções no processo de produção: trata-se de um workplace bargaining power, cujo poder “resulta da localização estratégica de um determinado grupo de trabalhadores dentro de um sector industrial chave” (Silver, 2003, p. 13). Nos últimos anos, sobretudo em resultado da pandemia, a capacidade de negociação dos trabalhadores em contexto laboral revelou-se diminuta ou mesmo inexistente. O fenómeno do desemprego, por um lado, assim como a multiplicação de ameaças de despedimento coletivo foram uma realidade, em especial em setores vulneráveis (onde atuam empresas de trabalho temporário, por exemplo) e mais expostos (como o da hotelaria e turismo).

O número de trabalhadores inscritos em sindicatos é, por sua vez, o que melhor permite aferir o poder organizacional do sindicalismo. Grosso modo, poderia dizer-se que o poder de associação (associativo) é uma forma de poder organizacional. Em todo o caso, numa leitura mais fina, o primeiro tende a considerar os membros de um sindicato como elementos que “contam”, isto é, como importantes recursos do ponto de vista financeiro. Por outro lado, o que sobressai do poder organizacional dos sindicatos é o seu “dinamismo”, isto é, a capacidade de alguém que é membro de um sindicato ir além dessa condição. Ou seja, é um tipo de poder que é indissociável da capacidade de identificação e envolvimento dos membros nas ações da organização (Gumbrell-McCormick & Hyman, 2013). Nesse sentido, o número de trabalhadores inscritos em sindicatos evidencia o poder associativo, mas não necessariamente o organizacional. E, como alertam Lehndorff et al. (2017), a densidade sindical e a capacidade de mobilização (um aspeto inerente ao poder organizacional) nem sempre estão correlacionadas.

A filiação sindical (pagamento de uma quota enquanto associado) e a taxa de sindicalização (relação entre o número de sindicalizados e de sindicalizáveis) são indicadores centrais na avaliação da representatividade e na perceção da viabilidade e efetividade da negociação coletiva, diálogo social e participação nas relações coletivas de trabalho (Costa & Rego, 2021; Sousa, 2011). O individualismo contemporâneo (reforçado pelo confinamento pandémico), o clima de incerteza económica (reforçado pela guerra na Ucrânia e por outras guerras depois dessa, como a guerra com epicentro em Gaza), ou os “novos” modos de trabalhar da era digital (que reavivaram o teletrabalho) favorecem o enfraquecimento do poder associativo.

Por sua vez, o poder institucional do sindicalismo abre caminho a compromissos tendentes a influenciar a via legislativa. A legislação laboral ocupa um lugar importante e, em si mesma, condensa resultados de processos de conflito e de negociação. Na verdade, trata-se de duas vias complementares e ambas importantes: a primeira, porque busca legitimar descontentamentos sob formas de protesto devidamente regulamentados; a segunda, porque coloca em destaque, por exemplo, a posição do sindicalismo na negociação coletiva. Dir-se-á que esta forma de poder pode ser, em simultâneo, reveladora da capacidade de os trabalhadores se organizarem e representarem.

A quarta forma de poder invocada recorrentemente pela literatura (Lehndorff et al., 2017) reúne-se em torno do poder societal. Nos termos deste, trata-se de estimular uma vertente de cooperação (de construção de redes e coligações com outras organizações da sociedade civil que partilhem problemas comuns) e uma vertente discursiva, suscetível de influenciar o discurso público e falar ao “coração da sociedade”, abrindo também espaço para a adoção de estratégias sindicais inovadoras (que possam, quiçá, aumentar outras formas de poder, como o poder organizacional).

As dificuldades em fazer vingar qualquer destas formas de poder autonomamente (ou todas elas no seu conjunto) constituem um dos pretextos para que os projetos populistas proliferem no movimento sindical, posicionando-se como uma alterativa radical para as múltiplas incapacidades do sindicalismo tradicional fazer cumprir aquelas formas de poder.

O sistema de relações laborais e a estruturação do sindicalismo português

O sistema de relações laborais português caracteriza-se por: um modelo pluralista, competitivo e fragmentado de relacionamento intra e inter organizações de interesses do trabalho e do capital; uma forte politização dos processos de negociação das condições de trabalho; uma ligação das organizações sindicais ao sistema partidário; uma centralidade do Estado na relação capital-trabalho; um bloqueamento persistente da negociação coletiva. Em complemento, o sistema de emprego é caracterizado por baixos salários, um perfil de especialização produtiva em setores de baixo valor acrescentado e intensivo em mão-de-obra, o que, por sua vez, acaba por ter reflexos em empregos que se caracterizam, entre outras coisas, por baixos salários, baixo nível de instrução, de habilitações e de qualificações, défices de qualidade do emprego e peso elevado de diferentes modalidades de emprego atípico. Este é o caso dos “recibos verdes” (trabalhadores independentes, autónomos, que trabalham por conta própria, mas por vezes economicamente dependentes da mesma organização), contratos a prazo, trabalho temporário, trabalho a tempo parcial, trabalho na economia informal, etc.

No campo sindical, tem prevalecido desde o final dos anos 1970s uma “bipolarização de topo”. Por um lado, a Intersindical, futura Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical (CGTP-IN), fundada na clandestinidade, em 1970, ainda em contexto de plena ditadura. Na sua génese, a CGTP é a primeira estrutura supra-associativa criada à revelia do quadro normativo da ditadura, afirmando-se como uma “organização sindical de classe, unitária, democrática, independente e de massas” (Confederação Geral de Trabalhadores Portugueses  [CGTP], 2020, p. 20), que tem as suas raízes e assenta os seus princípios nas tradições de organização e de luta da classe operária e dos trabalhadores portugueses. Parafraseando Richard Hyman (2001), pode afirmar-se que a CGTP representa um sindicalismo de classe, que faz da mobilização anticapitalista e da luta de classes a sua força. Historicamente, trata-se, pois, de uma organização sindical de trabalhadores blue-collar, dotados de baixas qualificações escolares, não obstante nos últimos anos a CGTP ter vindo a reforçar a sua influência na Administração Pública e, consequentemente, o número de sindicalizados com formação superior.

Por sua vez, a UGT foi criada em 1978 precisamente como reação à hegemonia que o PCP tinha na CGTP. Composta essencialmente por sindicatos de Escritórios, Bancários e Seguros, a UGT foi, desde o início, apoiada internamente pelos partidos Socialista e Social Democrata e internacionalmente pelas confederações sindicais da Europa central e da escandinávia, pelo SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands) alemão e pelas Fundações Ébert e Nauman (Eisfeld, 1983). Rivalizando política e ideologicamente com a CGTP, a UGT construiu-se e consolidou-se em torno de uma coligação de sindicatos de serviços, de trabalhadores white-collar. E apropriando de novo a tipologia de Hyman (2001), poderemos afirmar que UGT é a representante de um sindicalismo de sociedade, sobretudo porque os sindicatos nela filiados são essencialmente defensores da integração social e da promoção do diálogo social.

Como assinalaram Estanque et al. (2015), a influência comunista na CGTP, por vir de um partido vinculado a uma estratégia de contrapoder, privilegiou exageradamente um sindicalismo de contestação. Por sua vez, a influência socialista e social-democrata sobre a UGT privilegiou um sindicalismo de negociação. As posições extremadas de um sindicalismo de contestação (que, muitas vezes, não produz resultados palpáveis) e de um sindicalismo de negociação (que muitas vezes confunde participação com submissão aos critérios da gestão) contribuíram para criar um vazio onde prosperou o sindicalismo defensivo, num quadro de progressiva dessindicalização.

O fenómeno Chega e o “Movimento Zero”

Enquanto forma organizativa, o sindicato não é historicamente alheio a correntes políticas de extrema-direita. Os projetos políticos de extrema-direita sempre procuraram construir organizações de massas sem enjeitar a forma sindicato, como é o caso de correntes próximas do fascismo italiano. Não será por acaso, como reforçáramos adiante, que o Vox espanhol — que poderá ter ainda a memória do Falangismo — retoma esta ideia, que poderá ter inspirado o Chega. Podemos mesmo dizer que em Portugal existem referências semelhantes, como o Integralismo Lusitano e o seu Nacional-Sindicalismo. Depois, estas formações políticas, assumindo o poder de Estado, constroem modelos corporativos, em que o sindicatos não estão ausentes, embora sejam totalmente tutelados.

No contexto português, a origem do populismo contemporâneo de extrema direita está muito diretamente referenciada ao partido político Chega. Formalmente fundado em abril de 2019, o Chega é um partido radical de direita, onde o nacionalismo e o conservadorismo se combinam com a valorização de uma economia liberal. Como sucede em partidos radicais, a mensagem do partido confunde-se frequentemente com a da sua liderança. Neste caso, uma progressiva mediatização em torno da figura do seu líder, André Ventura, ocorreu quando, ainda na condição de militante do Partido Social Democrata (PSD) — por sinal o segundo maior partido português que liderou uma coligação parlamentar que governou o país entre 2011 e 2015, anos que coincidiram com a intervenção da Troika em Portugal (2011-2014) —, começou a usar os meios de comunicação social, nomeadamente através da participação em programas de índole desportiva, para acusar as comunidades ciganas de viverem de subsídios e de nada fazerem.

Ainda que já tivesse concorrido às eleições para o Parlamento Europeu em maio de 2019 (inserido na coligação “Basta”), o primeiro “choque de realidade”, de visibilidade acrescida no sistema político português, ocorreu em outubro de 2019, em resultado das eleições legislativas que permitiram a eleição de André Ventura para o Parlamento português, uma eleição inédita no quadro parlamentar. Um novo “choque” aconteceu nas eleições de 2022, quando o Chega conseguiu 12 lugares no Parlamento, de um total de 230 deputados que compõem a casa da democracia, tornando-se o terceiro partido político mais representativo. De acordo com os resultados finais da Comissão Nacional de Eleições, o Chega passou de 1,4% de votos (em outubro de 2019) para 7,4% dos votos (em janeiro de 2022), o que significa que 399.659 pessoas escolheram este partido nas últimas eleições legislativas. Nas eleições legislativas de 2024, a sua consolidação era já esperada e o Chega atinge os 50 deputados, fortalecendo-se como terceiro partido.

A ligação do Chega à família política europeia da extrema-direita consumou-se, logo em setembro de 2019, com a assinatura de um protocolo com o “vizinho” partido Vox espanhol, orientado para o combate ao socialismo e aos regimes totalitários de influência comunista. Este alinhamento ideológico internacional (concretizado em julho de 2020 com a filiação na associação de extrema direita Identidade e Democracia) vai ao encontro de um discurso tendencialmente xenófobo onde a imigração descontrolada deve ser sustida pelo Estado, advogando, assim, a criação de cotas para a seleção de imigrantes. A oposição ao feminismo e à ideologia de género, aos movimentos LGBT — Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero, etc., por contraposição à defesa dos valores da família, são outras das marcas distintivas do Chega.

Embora não seja propriamente notório no discurso do Chega uma reflexão sustentada sobre o mundo do trabalho, um mês depois de ser eleito para o Parlamento português, o então recém-eleito deputado não deixou de procurar capitalizar esse facto ao participar de uma manifestação de polícias realizada em novembro de 2019. Com efeito, nessa manifestação convocada por forças policiais no início da governação socialista iniciada em outubro de 2019, as principais reivindicações das organizações sindicais da polícia aí presentes estavam relacionadas com a necessidade de exigir da tutela: aumentos de salários, pois desde a presença da Troika em Portugal a situação da Política de Segurança Pública (PSP) e da Guarda Nacional Republicada (GNR) não fora revista; atualização de suplementos remuneratórios; atribuição de um subsídio de risco; e garantia de mais e melhor proteção pessoal para as forças de segurança.

Ao mesmo tempo que as forças sindicais policiais se manifestavam nas ruas, emergia nessa manifestação de novembro de 2019 — misturada com as organizações sindicais, ainda que com representantes identificados por t-shirts próprias — o “Movimento Zero”. Este movimento foi criado através de uma página do Facebook em maio de 2019, por sinal na sequência de um caso de condenação de agentes da PSP da esquadra de Alfragide (Amadora, perto de Lisboa) por agressões a jovens da Cova da Moura (um dos maiores e mais antigos bairros da área metropolitana de Lisboa que concentra população imigrante). Caracterizava-se, em resumo, como “um movimento informal de protesto que proclama defender os interesses dos profissionais da PSP e da Guarda Nacional Republicana e reivindica o orgulho de ser polícia” (Rego et al., 2021, p. 130).

Tratando-se de um movimento não institucionalizado, que 10 meses após a sua criação (em março de 2021) tinha cerca de 60.000 seguidores, o Movimento Zero mostrou-se aparentemente pouco disposto a dialogar com a tutela, e desde cedo evidenciou sinais de proximidade com o partido Chega. Essa proximidade — testemunhada pela presença de elementos do Movimento Zero nas listas do Chega — funcionou também como uma forma de criticar a atuação do sindicalismo tradicional pela sua incapacidade de dar resposta às reivindicações dos polícias enunciadas acima e ainda pelo facto de, num contexto de pulverização sindical (só corrigido em parte pela Lei n.º 49/2019, 2019), a ausência de processos de negociação efetivos entre os sindicatos e a tutela limitarem consideravelmente as possibilidades de melhoria das condições de trabalho daqueles profissionais. Mais do que aliadas dos sindicatos (ou pelo menos de alguns deles), as ações do Movimento Zero tenderam a ser vistas pelos sindicatos de polícia (mormente pelos mais antigos) de forma muito crítica: “é mais um movimento contra os sindicatos do que outra coisa”; “O Movimento Zero são os polícias e aparece simplesmente porque chegamos a um ponto em que os próprios sindicatos não têm instrumentos para fazer recuar o Governo nalgumas questões ou ter respostas para certos problemas” (depoimentos de sindicalistas de polícia, extraídas de Rego et al., 2021, p. 131).

No rescaldo dessa manifestação de forças policiais de novembro de 2019, e porventura pelo temor suscitado pelo Movimento Zero, o Ministério da Administração Interna voltou a ter a preocupação de reunir periodicamente com as associações sindicais, por sinal as que “representam legal e formalmente os interesses dos trabalhadores” (Rego et al., 2021, p. 131). Mas a lógica do Movimento Zero acabou por continuar a revelar-se sintonizada com a do Chega, partido que tem defendido de forma veemente um reforço da autoridade da polícia portuguesa, advogando que o código penal preveja penas de prisão de 2 a 5 anos a quem captar imagens das forças de segurança.

Em junho de 2021, o mesmo Movimento Zero manifestou-se em frente ao Ministério da Administração Interna, exigindo a demissão do ministro Eduardo Cabrita. Embora inicialmente estivesse prevista uma concentração diante da Assembleia da República, a manifestação extravasou os limites comunicados às autoridades, gerando caos no trânsito e levando a própria PSP a apresentar o caso junto do Ministério Público. Ainda que a insatisfação sócio-profissional desse mote aos protestos — e nesse aspeto ia ao encontro das preocupações expressas pelos principais sindicatos de polícia (tais como: melhores salários ou atribuição do subsídio de risco para todos os polícias) —, na prática as reivindicações foram acompanhadas, em plena pandemia, de cânticos negacionistas e de apelos à desobediência civil. Como então afirmava o líder da maior associação sindical de polícia — a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP) — tratava-se de “um aproveitamento da insatisfação dos polícias com propósitos políticos (…) pois há um setor da política portuguesa que se está a aproveitar desta situação, desta insatisfação, disso não tenho quaisquer dúvidas” (Santos, 2021, para. 4), receando que o movimento pudesse tornar-se mais perigoso. De resto, também os responsáveis de outros sindicatos da polícia (do Sindicato dos Profissionais de Polícia ou da Associação Profissional da Guarda) não se fizeram representar oficialmente na manifestação “para não dar voz a movimentos inorgânicos ou sem rosto” (Neto, 2021, p. 11).

Em agosto de 2022, ao mesmo tempo que deixava críticas a alguns sindicatos pelo facto de terem apoiado os protestos das forças policiais supostamente procurando um protagonismo “à boleia” do sucesso mediático que o Movimento Zero foi tendo, este Movimento declarou-se extinto, como se atesta nos seguintes extratos de um comunicado à imprensa:

a entrega deste Movimento não foi correspondida pelos profissionais da PSP e GNR, determinando assim o encerramento [de toda a] atividade operacional/reivindicativa, mantendo-se única e exclusivamente como meio de divulgação e de apoio solidário através da Associação Núcleo de Amigos do Movimento Zero; o fim do M0 acontece devido a todos aqueles que o atacaram, ignoraram e o foram esvaziando. (extratos de depoimento recolhido de Franco, 2022)

Rumo à criação de uma organização sindical de extrema-direita?

Não parece ser uma mera coincidência que a anunciada extinção do Movimento Zero (em agosto de 2022, como se disse, mas por pouco tempo) tenha ocorrido, quase em simultâneo, com a pretensão do Chega em criar a sua própria estrutura sindical. De resto, essa pretensão terá mesmo ganho força na sequência da eleição de 12 deputados para o Parlamento português em resultado das eleições legislativas de janeiro de 2022, momento em que se converteu na terceira força política nacional, superando partidos de esquerda consolidados e que até então ocupavam esse espaço, tais como o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP).

A proposta de criação de um sindicato (ou federação de sindicatos) foi anunciada publicamente em meados de agosto de 2022 e mais recentemente (17/10/2022) foi mencionada uma designação: o Solidariedade. Trata-se de designação que não é propriamente inovadora, vai ao encontro da inspiração identitária internacional do Chega e do agrupamento de partidos filiados no grupo “Identidade e Democracia”, replica o que sucede em Espanha com o “braço social” do Vox com a mesma designação (cuja criação ocorreu em 2020), e sobretudo, do ponto de vista sindical, a marca identitária é inspirada (copiada) no Solidarnosc de Lech Walesa, que no início dos anos 80 do século XX combateu a influência comunista na Polónia.

O foco nas forças policiais e de segurança como principal aposta do futuro sindicato pode ser vista porventura como uma forma de fortalecer o Movimento Zero, enquadrado agora numa estrutura organizada em torno de um sindicato e não enquanto movimento informal. Talvez estejamos igualmente diante de uma aposta simbólica do Chega que coloca, assim, a tónica na ordem, nação e segurança. Os quadros da administração pública, os professores e os profissionais da saúde são outros setores onde o sindicato pretenderá ter uma intervenção, mas em todos os setores profissionais com um propósito político claro, definido pelo líder do Chega, de representação de trabalhadores que não se reveem nas centrais sindicais de esquerda (CGTP e UGT), classificadas como “afetas ao PCP, Bloco de Esquerda e PS”, criando-se, assim, condições para “promover contestação social que seja visível nas ruas” (Santos, 2022, p. 83).

A concretização de uma organização sindical em estreita articulação com partidos políticos, mesmo não sendo inédita (como referimos acima, a criação da UGT no final dos anos 70 do século XX, assumiu, também ela, contornos políticos pois foi uma reação à crescente hegemonia comunista na CGTP e esta própria continua ainda hoje a ser muitas vezes acusada de ser “correia de transmissão” do PCP, embora comporte formalmente uma Corrente Sindical Socialista), adquire neste caso uma proeminência reforçada e um propósito de “cima para baixo” (induzido pelo partido) e não numa lógica de “baixo para cima”, a partir da sociedade, de movimentos sociais organizados e/ou de formas organizativas mais consolidadas e pensadas nessa base.

Importa lembrar ainda que, no caso português, há experiências do chamado sindicalismo “independente”, ou seja, de sindicatos que se formaram, em parte como, reação à “politização” da CGTP e da UGT. Essas experiências são minoritárias e estão concentradas sobretudo em redor da União de Sindicatos Independentes (USI). A USI é uma central sindical que reclama há muito integração na concertação social e que tem como filiados, por exemplo, no setor da Banca, o Sindicato Nacional dos Quadros Técnicos Bancários.

São vários os obstáculos potenciais que podem associar-se à criação da versão portuguesa do “Solidariedade”. Um deles prende-se com o facto de o projeto, além de (como se disse) não ser original mas uma réplica do modelo de Espanha usado pelo Vox para o movimento sindical, portanto não ter “raízes” que o sustentem, não ter sido unânime ou, pelo menos, não ter sido amplamente consensual. Com efeito, a perceção de que o Chega seria compatível com uma “linha sindical” nunca foi vista com entusiasmo pelo próprio partido, mas sim de forma defensiva, não só numa fase inicial como mais recentemente. Como afirmava um ex-vice presidente do Chega e um dos seus fundadores e presidente do Sindicato do Pessoal Técnico da PSP (SPT/PT), a criação de uma federação sindical “é apenas bazófia para criar manchetes nas revistas e nos jornais”, “será um falhanço total”, algo que “vai acabar ainda antes de começar, porque nenhum sindicato vai aderir” pois “não está a ser levado a sério pelos polícias” (Santos, 2022, pp. 81-82).

Por outro lado, nos termos da lei em vigor, o sindicalismo de polícia tem de ter associados e não basta a criação de uma estrutura representativa. A aferição da representatividade foi alterada com a Lei n.º 49/2019 (2019). Nos termos desta, o trabalho sindical só é recompensado (em termos de horas pagas) se houver pelo menos 10% de polícias filiados no sindicato e para existir um delegado sindical é necessário que existam pelo menos 10 sócios no local de trabalho. De igual modo, a participação em negociações com a tutela está condicionada à existência de sindicatos que representem pelo menos 20% dos trabalhadores, ou de sindicatos que representem apenas uma categoria desde que tenham pelo menos 5% dos sócios dessa categoria. Ora, não há evidência de haver massa crítica suficiente para a constituição de uma tal organização sindical.

Além do necessário efeito de “prova” de uma representatividade de jure e de facto — que certamente teria de rivalizar com as estruturas sindicais já consolidadas —, seria sempre necessário colocar em marcha um esforço efetivo para desmontar a “máquina oleada” do sindicalismo tradicional/dominante, comprometido historicamente com os valores típicos da classe trabalhadora, corporizados em lutas históricas que culminaram na consolidação do direito do trabalho enquanto garante de proteção laboral. Mesmo sabendo, como já deixámos antever no início deste texto, que o sindicalismo tradicional não está (nem podia estar) imune a críticas, uma estratégia de organização sindical excessivamente dependente do orientações partidárias, estaria condenada ao fracasso. Sobretudo se dela emanarem mais focos de desunião do que de integração solidária.

Conclusão: algumas recomendações

As eleições legislativas de 10 de março de 2024 permitiram ao Chega eleger 50 deputados para a Assembleia da República (mais do que quadruplicando os 12 de 2022). Por si só, este “terramoto político” (que confirma, todavia, o peso crescente das tendências populistas na Europa) poderá provavelmente constituir um impulso para o (re)despertar do seu projeto sindical. O futuro dirá se o Chega persiste em pôr em marcha um esforço ativo que visa desmantelar o compromisso histórico do sindicalismo com os valores da classe trabalhadora e a consolidação do direito do trabalho.

Independentemente disso, queremos aqui reafirmar que o sindicalismo não é compatível com valores anti-democráticos — ainda que o sindicalismo dominante possa carecer de reforma(s), como muitas instituições democráticas. Mesmo que o sindicato proposto pelo partido Chega se chame “Solidariedade”, a sua postura declaradamente anti-sistema, ou seja, visando a exclusão, afasta-se assim do espírito fundacional do sindicalismo.

Em novembro de 2022, o Acórdão n.º 751/2022 (2022) do Tribunal Constitucional (TC) considerou inconstitucionais os estatutos que o partido Chega aprovara em congresso, em novembro de 2021. Além da constatação de “uma significativa concentração de poderes na figura do presidente do partido”, os juízes do TC falam num “aumento notável da complexidade da organização interna, o que põe problemas de articulação e e transparência” (ponto 15 do Acórdão n.º 751/2022, 2022). Além disso, ainda nos termos do mesmo ponto do acórdão, os juízes condenam o que chamam de “ampliação da proibição de inscrição em associações e organismos associados direta ou indiretamente a outro partido ou dele dependentes”, o que poderia impedir que militantes do Chega integrassem sindicatos relacionados com outros partidos, mas também outro tipo de associações. Estas dúvidas de constitucionalidade, lançam, pois a incerteza sobre os propósitos do partido para o movimento sindical num quadro democrático.

Enquanto “escola de democracia”, “espada de justiça”, veículo de emancipação e integração social, o sindicalismo — que tem vindo a enfrentar múltiplas crises e precisa de se reinventar para lidar com elas — deve ser veemente na resposta a investidas populistas que tolham a sua atuação em contexto democrático. Mas além de assumir uma postura reativa a tais investidas, o sindicalismo terá também de jogar “em antecipação”. O facto de poder/dever recusar fazer alianças com forças desconhecidas ou mesmo com sindicatos que resultem de agenciamentos partidários não impede que o sindicalismo seja um veículo para a construção de pontes quer entre estruturas sindicais do mesmo setor profissional, quer inclusive com organizações sindicais de outros setores, em forma de solidariedade ou estimulando mecanismos de reciprocidade. Ao fazê-lo, o sindicalismo estará ao fazer jus ao poder societal, um poder emergente e desafiador, de abertura a novos cenários, nos termos anteriormente assinalados.

O poder institucional do sindicalismo — veiculado quer pelos valores do conflito, quer da negociação — constrói-se tendo por base formas organizativas com legitimidade de representação, que atem de acordo com os critérios definidos por lei. À luz da realidade portuguesa, o caso da polícia (através da Lei n.º 49/2019, 2019) acaba por apresentar-se com contornos de singularidade, colocando ênfase na ideia de que só com essa legitimidade de representação as organizações estarão mandatadas para negociar com a tutela.

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Data de submissão: 05/02/2024 | Data de aceitação: 16/12/2024

Notas

Por decisão pessoal, os/as autores/as do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.

[1] Este texto beneficia da pesquisa realizada ao abrigo dos projetos “Representativeness of Social Partners and the Impact of Economic Governance” (PTDC/SOC-SOC/29207/2017) e Trade unions and right-wing populism in Europe” (Friedrich Ebert Stiftung).

Autores: Hermes Augusto Costa e Raquel Rego