2025, n.º 38, e2025386
Maria da Saudade Baltazar
FUNÇÕES: Concetualização, Curadoria dos dados, Investigação, Administração do projeto, Redação do rascunho original, Redação – revisão e edição
AFILIAÇÃO: Universidade de Évora, Escola de Ciências Sociais & Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA.UÉvora).
Largo dos Colegiais, 2, Apartado 94, 7002-554, Évora, Portugal
E-mail: baltazar@uevora.pt | ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2995-820X
Ana Romão
FUNÇÕES: Conceptualização, Investigação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação-revisão e edição.
AFILIAÇÃO: Academia Militar, Centro de Investigação Desenvolvimento e Inovação da Academia Militar (CINAMIL)
& Centro Interdisciplinar em Ciências Sociais (CICS.NOVA). Rua Gomes Freire, 1169-203 Lisboa, Portugal
E-mail: anaromao74@gmail.com | ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9791-5172
O presente número especial da SOCIOLOGIA ON LINE decorre de um colóquio internacional realizado na Universidade de Évora, em junho de 2022, fruto de uma parceria entre o polo do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, da Universidade de Évora (CICS.Nova,UÉvora) e a Association Internationale des Sociologues de Langue Française (AISLF). O evento contou ainda com o apoio da Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central (CIMAC) e da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), constituindo, desde modo, um exemplo de cooperação entre o campo académico e os atores centrais do território que acolheu a iniciativa.
Com o encontro, retomaram-se contatos que ficaram na memória dos cerca de mil sociólogos e sociólogas que em 1996 se juntaram em Évora, por ocasião do XV Congresso da AISLF, em cuja organização colaboraram estreitamente a AISLF, a Universidade de Évora e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH).
O tema do encontro, “Assimetrias territoriais: questões sócio ambientais e fatores de desigualdade”, desafiou a reflexões sobre as múltiplas dimensões das desigualdades que afetam a coesão e a sustentabilidade dos territórios, os quais constituem duplamente o suporte e o produto na nossa ação coletiva. Évora, cidade a que a UNESCO atribuiu a distinção de Património Mundial, constitui um lugar privilegiado para o debate em torno da temática. Por um lado, transporta as marcas das temporalidades e culturas que estão na origem da sua riqueza patrimonial e ambiental, e que fazem da cidade e da região Alentejo, lugares de exceção e de intensa procura, quer em termos turísticos, quer no que respeita a outras atividades e usos do espaço, em que se cruzam tradição e inovação. Todavia, coexistem desafios que encontramos também em outras áreas de baixa densidade e que apelam à compreensão das dinâmicas em causa e a ações estratégicas no sentido de fazer face às vulnerabilidades em matéria de desenvolvimento.
Estas estão associadas às questões da sustentabilidade e das assimetrias territoriais que são observáveis através de diferentes perspetivas e escalas de análise. Assumir esse posicionamento, significa refletir sobre as desigualdades e os efeitos destas sobre os territórios, a partir de uma análise multinível e multidisciplinar.
As assimetrias territoriais constituem uma expressão das desigualdades sociais, e são uma questão central do desenvolvimento e da coesão social, cujo debate atual assume particular relevância à luz das recentes transformações e das agendas globais de desenvolvimento humano e sustentável (Baltazar et al., 2012; Mauritti et al., 2019). Tais assimetrias traduzem desigualdades estruturais e persistentes entre diferentes regiões ou territórios, e a sua indelével multidimensionalidade é expressa em indicadores sociais, económicos, demográficos e de acesso a diversos serviços respeitantes a outras tantas dimensões que se influenciam mutuamente e são indissociáveis. Uma perspetiva multidimensional é tida como imprescindível para captar a complexidade das assimetrias territoriais, promover políticas públicas mais integradas e eficazes (Baltazar, 2018; Centro de Estudos e Desenvolvimento Regional e Urbano [CEDRU] & EY-Augusto Mateus & Associados, 2019), assim como contribuir para a coesão e inovação territorial (Cruz & Costa, 2024; Silva et al., 2021).
As abordagens teóricas em Sociologia procuram explicar esta multidimensionalidade (Mauritti et al., 2019) e a forma como se concebem estratégias integradas de intervenção territorial (Santos, 2011). Neste contexto, privilegiam-se análises integradas que consideram a historicidade, a atuação dos atores sociais e a complexidade das interações territoriais, dado que as desigualdades territoriais decorrem de múltiplos fatores que se manifestam de maneira distinta conforme as dinâmicas históricas, sociais, económicas e culturais próprias de cada território.
Entre os principais fatores explicativos destacam-se os de natureza estrutural, demográfica, económica, e ainda relacional e afetiva. E para uma melhor clarificação sobre os determinantes de cariz económico das assimetrias territoriais, é com frequência que se enfatiza o poder explicativo da desigual distribuição de vantagens comparativas e competitivas nos territórios (Santos, 2011). Assim, as vantagens comparativas referem-se a atributos naturais ou históricos dos territórios, como a localização geográfica, recursos naturais, clima, ou património cultural. Estes fatores, podem favorecer o desenvolvimento de determinadas atividades económicas ou atrair investimentos específicos. Por seu turno, as vantagens competitivas correspondem à capacidade dos territórios inovarem, organizarem redes de cooperação, desenvolverem clusters produtivos e promoverem a aprendizagem coletiva, como fatores diferenciadores em relação a outros territórios. De igual modo, liga-se à presença de mecanismos de governança territorial, participação comunitária e coordenação estratégica entre atores locais. Este tipo de vantagens está pois fortemente ligado à capacidade de gerar valor e diferencial sustentável, resultante da interação entre atores locais, (empresas, instituições, comunidade), ou seja, um território que investe em inovação, colaboração e gestão estratégica pode superar limitações estruturais e transformar-se num espaço dinâmico, atrativo e resiliente, aumentando as suas oportunidades de crescimento e de inclusão social.
Seguindo este enfoque, os territórios não se reduzem a uma dimensão espacial, pelo que a sua conceptualização remete para a abordagem integrada das vivências, apropriações, disputas, politizações e modelos de governação. Isto é, os territórios vão além da mera dimensão física, e carregam consigo relações de poder e práticas sociais que podem servir tanto para perpetuar quanto para desafiar as desigualdades existentes (Madeira & Vale, 2015; Storey, 2024).
A territorialidade corresponde à expressão espacial de poder (Storey, 2017), que tal como o território são formas complexas de conceber o espaço e desempenham funções políticas relevantes. Demonstra-se por esta via a criação e organização dos territórios, bem como as estratégias implementadas na territorialidade, e como estão intrinsecamente ligadas à manutenção do poder e à contestação da autoridade.
Por sua vez, Pedro Madeira e Mário Vale (2015) remetem para o conceito de justiça territorial, e sua aplicação em distintas escalas espaciais, para evidenciar como as dinâmicas socioeconómicas podem conduzir a um desenvolvimento desigual e a disparidades dentro das regiões, como se demonstra, a título de exemplo nas políticas regionais da União Europeia.
Tais configurações territoriais emergem numa variedade de escalas espaciais, que frequentemente com limites pouco nítidos, atravessam diversas questões sociais, culturais e políticas relativas à raça, classe, género e orientação sexual, e outras origens discriminatórias, resultando na formação de enclaves espaciais com distintos níveis de permanência, que são constantemente estabelecidos, mantidos e contestados (Sidaway, 2007; Storey, 2024). Tais práticas territoriais podem conduzir a situações de exclusão em determinados espaços, nomeadamente a marginalização de grupos vulneráveis, onde a exclusão não é só física, mas é também de natureza sociopolítica, ao condicionar o acesso a oportunidades e recursos.
No entanto, ao se reconhecer e compreender a complexa interação entre espaço, poder e práticas sociais, torna-se possível reimaginar esses espaços para que promovam inclusão e justiça social, através de estratégias como a democratização do acesso ao espaço público, iniciativas de desenvolvimento comunitário e o fortalecimento de redes locais para empoderamento daqueles que enfrentaram condições de desigualdade e marginalização (Baltazar, 2012; Storey, 2024).
Reimaginar territórios como espaços dinâmicos que fomentam a inclusão e desafiam as estruturas de poder existentes envolve a compreensão dos territórios como produtos das relações sociais e dinâmicas de poder, em vez de entidades estáticas centradas no Estado. Esta abordagem afasta-se da visão tradicional da territorialidade para adotar uma perspetiva mais relacional e inclusiva, onde os territórios podem transformar-se em espaços capazes de acolher distintas identidades e dinâmicas de poder (Covas, 2021; Kleinübing, 2024; Lythgoe, 2024; Schröder et al., 2016).
Esta transição apoia-se numa diversidade de propostas que se estruturam nos seguintes aspetos: relações sociais e dinâmicas de poder; descolonização e inclusão; e estratégias territoriais e resistências. Deste modo, os territórios são idealizados como espaços dinâmicos e como produtos de ações sociais.
Embora a reimaginação dos territórios como espaços dinâmicos crie oportunidades para a inclusão e para o questionar das estruturas de poder, também comporta desafios. A sobreposição de reivindicações e a necessidade de mecanismos de governação eficientes podem tornar mais complexos os esforços para construir ambientes inclusivos. Por outro lado, a resistência de estruturas de poder profundamente enraizadas pode dificultar a aplicação de práticas territoriais mais equitativas. Não obstante, esses desafios destacam a relevância do diálogo contínuo e da busca pela inovação na governação territorial, assim como o foco na construção de futuro(s) possíveis e desejáveis. Covas (2021) propõe uma triangulação virtuosa entre: a base ecológica e o metabolismo dos recursos vivos; o dispositivo técnico e tecnológico de comando e controlo; e a modelação dinâmica do sistema de política urbana e seu território envolvente (as cidades do futuro e a inteligência coletiva territorial). O apelo à convergência entre os três tipos de inteligência: racional, emocional e artificial remete para o desafio do território ser objeto de conhecimento, mas também que se construa um “território – desejado” que inspire a adesão e entusiasmo em prol da construção de projetos voltados para o futuro.
Neste âmbito, os artigos que compõem este número temático, intitulado “Desigualdades e Espaços Vividos: Territórios, Exclusão e Resistência” dão nota de uma pluralidade de olhares e escalas de análise, enquanto ilustram os limites das políticas tradicionais de convergência e a necessidade de apostar em estratégias territorializadas e integradas.
O artigo de Manuel Carlos Silva e Luiz Bessa, revisita o projeto de Brasília, idealizado como cidade-modelo, mas marcado por desigualdades socioespaciais. Analisa a exclusão de indígenas, quilombolas e migrantes operários, empurrados para zonas periféricas e sem infraestruturas. Com base em dados socioeconómicos, demonstra-se que, apesar dos progressos efetivos, persistem disparidades de classe, de género e de âmbito étnico-racial. Conclui-se que a cidade, além de espaço de especulação imobiliária, também pode ser um polo de participação cidadã para a mudança social.
No seu artigo, Maryse Bresson questiona a eficácia das políticas de combate às desigualdades quando desconsideram as dinâmicas dos territórios vividos. A análise, centrada no envelhecimento na França e no Quebec, demonstra que as políticas públicas baseadas em modelos abstratos e parciais ignoram vulnerabilidades e relações sociais concretas. Com base em entrevistas realizadas entre 2016 e 2018, o estudo evidencia tensões entre a centralização dos serviços, as visões dos diferentes atores e a necessidade de adaptação às realidades locais.
Por sua vez, António da Silva Neto, Paulo Costa e Ângela Balça, analisam a segregação socioespacial de uma escola pública no Brasil (São Paulo), revelando como as desigualdades estruturais se repercutem nas organizações de ensino e nas trajetórias escolares dos alunos, num ciclo de reprodução social de desvantagens. Deste modo, através da análise de uma escola municipal, expõe a precaridade na educação, o abandono escolar e a falta de políticas eficazes para reduzir disparidades entre ricos e pobres. O estudo reforça que a segregação socioespacial e a desvalorização dos profissionais da educação são determinantes no desempenho escolar, num contexto da precarização da infância e do ensino, que as políticas públicas não têm conseguido inverter.
O artigo de Djrou Déného Adeline e Konan Akissi Amandine, analisa a apropriação do espaço social pelos “leprosos” de Duquesne-Crémone, na Costa do Marfim, enquanto estratégia para inverter a dominação e a exclusão a que foram sujeitos nas suas comunidades de origem. Através de uma abordagem qualitativa, os autores identificam três mecanismos sociais para contrariar a inversão do estatuto de leproso, nomeadamente: a “morte social”; o seu reconhecimento social; e a (re)definição do estigma da lepra como estratégia de acesso e controlo do espaço comunitário. O estudo revela como a vulnerabilidade pode ser reconfigurada para resistir à desigualdade e exclusão social.
No seu artigo, Effoué Dominique Adjé e Prisca Justine Ehui, evocam a participação feminina no exercício do poder, através do papel da Rainha-mãe na estrutura política dos agni ndénié, na Costa do Marfim. A pesquisa, baseada em entrevistas com líderes locais, destaca as funções políticas, religiosas e judiciais destas mulheres no território, e na gestão quotidiana do espaço comunitário. Conclui que a Rainha-mãe é uma figura central na escolha e legitimação dos chefes, além de manter a estabilidade social e cultural da comunidade, desempenhando um papel essencial na transmissão de saberes e rituais.
Referências
Baltazar, M. S. (2018). Desigualdades Territoriais em Portugal: da conceptualização às políticas públicas de desenvolvimento regional. In S. Gomes, V. Duarte, F. B. Ribeiro, L. Cunha, A. M. Brandão, & A. Jorge (Orgs.), Desigualdades Sociais e Políticas Públicas – Homenagem a Manuel Carlos Silva (pp. 233-258). Húmus Editora.
Baltazar, M. S., Santos, M. O., & Sabino, F. (2012). Empreendedorismo, Igualdade de Género e Desenvolvimento Regional e Local – Contributos da Parceria Institucional do WINNET 8. Editora Caleidoscópio.
CEDRU, Centro de Estudos e Desenvolvimento Regional e Urbano., & EY-Augusto Mateus & Associados. (2019). A Avaliação da Operacionalização da Abordagem Territorial do Portugal 2020, no Contexto da Convergência e Coesão Territorial (Relatório Final). Agência para o Desenvolvimento e Coesão, IP (AD&C).
Covas, A. (2021). Transição Digital e Inteligência Coletiva Territorial. Edições Sílabo.
Cruz, B. M., & Costa, P. (2024). O desenvolvimento local em contextos territoriais de contração: contributos para um modelo de análise. Cidades, Comunidades e Territórios. Publicação on-line antecipada. https://doi.org/10.15847/cct.35792
Kleinübing, T. (2024). Territories in transformation: challenges and perspectives in sustainable space planning and planning. Revista foco, 17(2), e4410. https://doi.org/10.54751/revistafoco.v17n2-049
Lythgoe, G. (2024). Re-imagining the Concept of Territory. In G. Lythgoe, The Rebirth of Territory (pp. 143–189). Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/9781009377874.006
Madeira, P. M., & Vale, M. (2015). Desigualdade e espaço no capitalismo contemporâneo: uma questão de (in)justiça territorial?. GEOUSP Espaço e Tempo, 19(2), 196–211.https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2015.102771
Mauritti, R., Nunes, N., Alves, J. E., & Diogo, F. (2019). Desigualdades sociais e desenvolvimento em Portugal: Um olhar à escala regional e aos territórios de baixa densidade. SOCIOLOGIA ON LINE, (19), 102-126, https://doi.org/10.30553/sociologiaonline.2019.19.5
Santos, M. O. (2011). Assimetrias territoriais: contributo teórico de carácter prospectivo e âmbito genérico. https://home.uevora.pt/~mosantos/download/AssimetriasTerritoriais_ContributoTeorico.pdf
Schröder, J., Carta, M., Ferretti, M., & Lino, B. (Eds.) (2016). Territories. Rural-Urban strategies. JOVIS.
Sidaway, J. D. (2007). Spaces of postdevelopment. Progress in Human Geography, 31(3), 345-361. https://doi.org/10.1177/0309132507077405
Silva, P., Pires, S., & Teles, F. (2021). Explanatory models of regional innovation performance in Europe: Policy implications for regions. Innovation: The European Journal of Social Science Research, 34(4), 609–631. https://doi.org/10.1080/13511610.2021.1909462
Storey, D. (2017). Territory and territoriality. In B. Warf (Ed.), Oxford Bibliographies in Geography [on-line]. Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/obo/9780199874002-0076
Storey, D. (2024). Territories: The Claiming of Space (3ª ed.). Routledge. https://doi.org/10.4324/9781003501794
Notas
Por decisão pessoal, as autoras do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.
Autores: Maria da Saudade Baltazar e Ana Romão