N.º 30 - dezembro 2022

Jaime Roque
FUNÇÕES: Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra. Av. Doutor Dias da Silva, 165, 3004-512, Coimbra, Portugal
E-mail: jaime.roque99@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9119-6878

A liberalização da economia portuguesa iniciada no final da década de 1980 representou também uma transformação estrutural dos meios de comunicação social, assinalada, desde logo, pela consolidação de novos projetos na imprensa escrita e pela emergência dos canais privados de televisão. Não obstante as promessas de maior diversidade de pontos de vista de opiniões subjacente à entrada de novos atores e instituições do campo dos media, alguns estudos recentes, focando-se nos espaços de comentário que se multiplicaram nos órgãos de comunicação revelam um reduzido nível de pluralismo no espaço público. Muitos destes trabalhos têm vindo a mostrar que estes comentadores compõem uma elite — oriunda sobretudo da academia, da política e das profissões liberais — que se tem vindo a perpetuar nos espaços de opinião (Figueiras, 2018). Estes espaços são ocupados maioritariamente por comentadores pertencentes aos partidos da direita ou por comentadores que, mesmo sem filiação partidária, integram esse espaço ideológico (Cardoso et al., 2019).

Este universo de comentadores e fazedores de opinião de direita é justamente o objeto central de A bolha: uma direita antipopulista, o novo livro de Riccardo Marchi — investigador do Centro de Estudos Internacionais (Iscte — Instituto Universitário de Lisboa), professor convidado da Universidade Lusófona e autor de um extenso e polémico conjunto de obras sobre as direitas radicais portuguesas. Num contexto onde o rápido crescimento eleitoral do partido Chega suscitou uma ampla discussão no espaço público em torno do chamado fenómeno populista contemporâneo, o autor procurou perceber as razões pelas quais, em Portugal, “os ‘fazedores de opinião’ de ponta da direita se demonstram bastante impermeáveis a este fenómeno crescente no Ocidente” e “caraterizar os diferentes matizes desta impermeabilidade, fruto das respetivas formações intelectuais e escolhas de estratégia política” (p. 13). A investigação é motivada, segundo o autor, por um abaixo-assinado que cerca de meia centena destas figuras publicaram na imprensa aquando do acordo parlamentar entre a coligação PSD-CDS-PPM e o Chega nos Açores e onde se procuraram demarcar do chamado “abraço mortífero do nacional-populismo antidemocrático e iliberal” (p. 9). Perante as reações de uma certa direita tradicional ou conservadora a este manifesto, Marchi procurou entender as divergências entre uma “condenação unânime da essência do populismo e a pluralidade de posicionamentos face a temas sensíveis como o reconhecimento da legitimidade dos partidos anti-sistema e da dignidade do eleitorado populista” (p. 12).

De modo a explorar este problema de investigação, o autor selecionou duas gerações de intelectuais da direita portuguesa: os da “primeira geração” — nascidos nas décadas de 1950 e 1960 — e os da “segunda geração — nascidos nas décadas de 1970 e 1980. Nomeando apenas algumas figuras mais destacadas, encontramos analistas, comentadores, jornalistas e políticos com a relevância de Adolfo Mesquita Nunes, Alberto Gonçalves, Francisco Mendes da Silva, Henrique Raposo, João Marques de Almeida, João Miguel Tavares, Miguel Morgado, Pedro Marques Lopes, entre outros. A recolha dos dados foi feita através da análise de textos da autoria destes atores e através da realização de dez entrevistas, quatro com protagonistas da primeira geração e seis com protagonistas da segunda. São estes os dados que organizam os quatro capítulos da investigação: ”Entre o Cavaquismo e a Revolução Independente“, ”Entre a Blogoesfera e a Trincheira Atlântico“, ”Entre o Passismo e a Integração no Sistema” e “Entre os Populismos Lá Fora e Cá Dentro”.

Ao longo destes quatro capítulos, Marchi produziu um mapeamento detalhado da história do meio político-intelectual da direita portuguesa ao longo das últimas quatro décadas. No primeiro capítulo, o autor começa a dar conta do cruzamento de percursos individuais realizados “fora do âmbito do Estado, entre imprensa, televisões e universidades privadas” (p. 29). Tendo-se destacado pela sua formação académica, os atores estudados procuraram inserir-se a partir da década de 80 num conjunto de projetos de intervenção cultural “para liberalizar a economia e para acompanhar as mudanças sociais nos valores” (p. 24) contra o chamado espaço socialista do período revolucionário. O seu principal ponto de encontro foi o semanário O Independente (1988-2006). No segundo capítulo, estas intervenções culturais decorrem na blogoesfera que emergiu no início dos anos 2000, as quais viriam a estar na origem da revista Atlântico (2005-2008), onde os debates associados ao tema do terrorismo e da criminalidade étnica assumiram, segundo Marchi, uma relevância particular. Terminada esta experiência, o terceiro capítulo é dedicado, por um lado, aos cargos que os atores estudados passam a ocupar em “jornais e revistas da primeira linha da comunicação social nacional” (p. 113) e, por outro, à sua ascensão em cargos políticos no governo PSD-CDS liderado por Pedro Passos Coelho. Esta proximidade em relação ao poder político é, aliás, algo que já vinha a ser tratado desde o primeiro capítulo, dada a circulação destes atores não só nestes partidos e na imprensa, como também em think-tanks e instituições privadas associadas ao espaço ideológico das direitas. No último capítulo, o autor procurou então mostrar como este projeto de “moldar uma direita conservadora e liberal” (p. 141) no plano político e cultural determina “a forma como estes intelectuais encaram o fenómeno do populismo de direita” (p. 141) através da análise das suas colunas de opinião.

Nas conclusões da investigação, Marchi argumenta que a explicação da postura da elite estudada em relação ao populismo — isto é, ao Chega — reside em cinco fatores: a sua identidade política (balizada pelo liberalismo na economia e pelo conservadorismo nos valores); a sua identidade sociocultural (marcada pelo cosmopolitismo das direitas anglo-saxónicas e não pelo nacionalismo); a sua relação com o sistema político-mediático daquilo a que chama de Terceira República portuguesa (marcada pelas suas posições reformistas em relação ao regime em oposição a qualquer posição anti-sistema); o seu propósito na sua intervenção no espaço público (assente no objetivo de rejeitar a identificação da direita contemporânea portuguesa com o Estado Novo e modernizar a sua imagem). Quanto ao quinto fator, relacionado com perspetiva futura destes atores em relação ao seu campo de pertença de direita e as consequentes escolhas tático-estratégicas, Marchi acaba por argumentar que o diferendo tático no meio “liberal-conservador” em relação ao Chega não tem a ver com a sua identidade mais liberal ou mais conservadora, nem com a sua pertença à esfera dos partidos ou do comentário político. O diferendo seria, então, de “ordem tática, acerca da inclusão ou da exclusão do populismo de direita, com relevância eleitoral, na estratégia do meio liberal-conservador para desalojar a esquerda do poder e do governo da nação” (p. 228).

Limitada a um problema muito específico — o da postura das direitas conservadoras em relação ao Chega — a obra de Marchi insiste, em conjunto com os seus interlocutores, numa alegada hegemonia cultural das esquerdas no espaço público e reproduz os principais argumentos da investigação que publicou sobre o Chega: o de que a emergência do partido rompe com a linha genealógica das direitas portuguesas e de que não se encontra associada a qualquer apoio das elites económicas, políticas e culturais do país (Marchi, 2020). Um maior cuidado na revisão da literatura teria ajudado seguramente não só a relativizar, como a mitigar ou até mesmo a inverter esta tese. Um enquadramento histórico e uma análise prosopográfica das direitas portuguesas teria revelado um conjunto alargado de continuidades ideológicas e organizacionais entre os vários setores das direitas portuguesas no contexto das transformações dos sistemas partidários contemporâneos (Roque, 2022). Verificar-se-ia que os “populistas” e os “antipopulistas” partilham não só diversos quadros institucionais e sociais, mas também apresentam afinidades ideológicas como a reivindicação da “flexibilização da economia e das leis laborais” (p. 68) contra o “multiculturalismo da esquerda pós-materialista” (p. 71). A trajetória ascendente das chamadas direitas radicais portuguesas em órgãos de imprensa de grande circulação e nos partidos tradicionais constitui, aliás, um padrão partilhado com os “liberais-conservadores” desde 1974 (Madeira, 2019). A trajetória do líder do Chega revela também uma circulação muito intensa junto das elites da direita na academia, nos media — através do comentário político e desportivo — e no mundo empresarial (Roque, 2022). O financiamento de iniciativas como a Atlântico — pouco trabalhado por Marchi — constitui mais um exemplo destas continuidades. Membros da família detentora do Grupo Mello — que, como mostrou Marchi, financiou a Atlântico — constituem hoje uma das principais fontes de financiamento do Chega (Malhado, 2022). Se, de facto, o termo “bolha” traduz bem um certo elitismo das direitas e sugere uma certa separação entre o mundo do jornalismo e da política em relação aos meios populares, a oposição entre “populistas” e “antipopulistas” não permite capturar as forças sociais que integram uma longa tradição de amplos sectores deste espaço político. Pelo contrário, contribui para mistificar o percurso do líder do Chega, as bases sociais e ideológicas do partido e as suas relações com amplos sectores das elites portuguesas. Na realidade, mesmo o conjunto de temas de referência identificados pelo autor — o problema da corrupção e a descredibilização de um certo sector das elites políticas no Independente, ou a relevância do problema do terrorismo e da criminalidade étnica na Atlântico, para dar apenas dois exemplos — relevam amplas linhas de continuidade entre as agendas políticas da direita conservadora e a sua radicalização pelo Chega no quadro de uma nova estrutura de oportunidades políticas.

Em suma, Riccardo Marchi afirma na introdução de A bolha: uma direita antipopulista que a melhor contribuição desta obra seria a “abertura de várias pistas de investigação que poderão ser seguidas e aprofundadas por outros interessados nos trilhos das direitas” (p. 14). Não descurando a relevância dos dados empíricos que suportam o mapeamento das direitas portuguesas realizado pelo autor e que poderão vir a ser utilizados em trabalhos futuros, as fragilidades teóricas e metodológicas desta investigação remetem para a necessidade de ir além dos sistemas classificatórios fechados que procuram explicar o crescimento da extrema-direita contemporânea. Por outras palavras, para a necessidade de alargar os argumentos teóricos e comparativos em torno deste fenómeno de modo a pensar a história e inscrição das direitas contemporâneas em vários campos de poder social e a sua respetiva reconfiguração no atual contexto de fragmentação e polarização dos sistemas partidários do continente europeu.

Referências

Cardoso, G., Couraceiro, P., & Martinho, A. P. (2019, 8 de junho). A esquerda no parlamento e a direita na televisão? European Journalism Observatory. https://pt.ejo.ch/top-stories/a-esquerda-no-parlamento-e-a-direita-na-televisao

Figueiras, R. (2018). Pluralismo ou Paralelismo? O comentário político nos noticiários do prime-time na televisão portuguesa. Estudos em Comunicação, 1(26), 323-343.

Madeira, B. (2019). “Homens entre ruínas”? Ideias, narrativas, mundividências e representações das direitas radicais portuguesas (1974-1985) [Tese de Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto]. Repositório Aberto da Universidade do Porto. https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/125823

Malhado, A. R. (2022, 22 de setembro). Champalimauds, motas e companhia. Sábado.

Marchi, R. (2020). A nova direita anti-sistema: O caso do Chega. Edições 70.

Roque, J. (2022). A repetição dos trânsitos: uma prosopografia do Chega [Dissertação de Mestrado, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra].

Data de submissão: 14/11/2022 | Data de aceitação: 13/12/2022

Notas

Por decisão pessoal, o autor do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Autores: Jaime Roque

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