2025, n.º 38, e2025381
Antonio Artequilino Silva Neto
FUNÇÕES: Conceituação, Curadoria de dados, Análise formal, Redação do rascunho original, Redação—revisão e edição
AFILIAÇÃO: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Letras, Programa de Linguística
Aplicada e Estudos da Linguagem. Rua Ministro Godoy, 969, 4º. Andar, CEP 05015-901, São Paulo, Brasil
E-mail: arteqneto@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0729-4462
Paulo Costa
FUNÇÕES: Investigação, Metodologia
AFILIAÇÃO: Universidade de Évora, Escola de Ciências Sociais, Departamento de Pedagogia e Educação, Centro
de Investigação em Educação e Psicologia (CIEP). Largo dos Colegiais, Évora, Portugal
E-mail: plc@uevora.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3650-5492
Ângela Balça
FUNÇÕES: Validação
AFILIAÇÃO: Universidade de Évora, Departamento de Pedagogia e Educação & Centro de Investigação em
Estudos da Criança. Largo dos Colegiais, Évora, Portugal
E-mail: apb@uevora.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4159-7718
Resumo: A análise de aspetos que envolvem família, infância, literacia e políticas públicas de educação pode ser empreendida no estudo da espacialidade de uma escola pública. Nesse sentido, o presente estudo assume o propósito de contribuir para a compreensão de um panorama de intensa desigualdade, invisibilidade e silenciamento da comunidade escolar. A história de cada família revela a luta pela sobrevivência contra as assimetrias sociais, culturais e econômicas num quadro de precarização da infância e do ensino a partir do enfraquecimento das políticas públicas educacionais. Este artigo examina de perto a realidade da Escola Municipal de Ensino Básico — EMEB Professora Maria Leonor Alvarez e Silva, localizada na cidade de São João da Boa Vista, interior do estado de São Paulo, e propõe um diálogo aberto sobre fatores ligados ao abandono afetivo de crianças, à desestruturação familiar, ao contato família-escola, às desigualdades abissais que separam ricos e pobres e ao cotidiano de uma comunidade escolar. Os resultados revelam que a segregação socioespacial e a desvalorização dos profissionais da educação interferem decisivamente no desenvolvimento dos alunos no ambiente escolar.
Palavras-chave: educação, desigualdade, precarização, escola.
Abstract: The analysis of aspects related to family, childhood, literacy, and public education policies can be undertaken in the study of the spatiality of a public school. In this sense, the present study aims to contribute to understanding a scenario of intense inequality, invisibility, and the silencing of the school community. The drama of each family reveals the struggle for survival against social, cultural, and economic asymmetries in a context of precariousness of childhood and education, driven by the weakening of public educational policies. This article takes a closer look at the reality of the Municipal Elementary School — EMEB Professora Maria Leonor Alvarez e Silva, located in the city of São João da Boa Vista, in the interior of the state of São Paulo, and proposes an open dialogue on factors linked to the affective abandonment of children, family disintegration, family-school interaction, the profound inequalities that separate the rich and the poor, and the daily life of a school community. The results reveal that socio-spatial segregation and the devaluation of education professionals decisively interfere with students’ development in the school environment.
Keywords: education, inequality, precarisation, school.
Introdução
Para discorrer sobre a realidade de uma escola púbica, situada em uma localidade do interior do estado de São Paulo e integrante de um contexto cheio de adversidades e assimetrias, faz-se necessário mostrar criticamente o quadro da educação no contexto nacional de um país imenso, tanto em dimensões territoriais quanto em contingentes populacionais. Por isso, a educação no Brasil, mais especificamente no que diz respeito à superação do analfabetismo e ao avanço da literacia, também será analisada no presente artigo como parte do estudo em torno da segregação socioespacial quantos tantos danos pode causar às instituições escolares (Negri, 2008).
A grandeza territorial faz do Brasil um país peculiar, possui 8.516.000 km² (quinta maior extensão territorial do mundo), conta com 5.570 municípios e detém uma população estimada em 215 milhões de habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2022). Trata-se de um país que historicamente enfrenta inúmeros problemas advindos das grandes desigualdades regionais e da concentração de riquezas. Nesse contexto, o sistema educacional deveria se contrapor à lógica perversa da desigualdade excludente e das mazelas, dela resultantes, para fazer valer os ditames da Carta Magna. Destarte, a educação é uma prerrogativa essencial assegurada pela Constituição brasileira, promulgada em 1988, em seu capítulo III, artigo 205. A universalidade no acesso à educação, a formação para a cidadania e a qualificação para o trabalho constam no texto constitucional da seguinte forma:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (art.º 205.º da Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)
Deveras, segundo o texto da Carta Magna, a educação é uma prerrogativa inalienável voltada ao desenvolvimento pleno da pessoa, incluindo a capacitação para a vivência da cidadania e o desenvolvimento de competências laborais. No entanto, por que esse direito não é de facto garantido para todos? De que maneira se dá a segregação socioespacial da escola? O que poderá ser feito para democratizar e universalizar o acesso à educação? Qual é o papel da família na proteção da infância e no desenvolvimento das crianças? Quais são as políticas públicas que atualmente impulsionam a literacia? Como combater o analfabetismo funcional diante da precarização das condições de ensino e da desvalorização docente? A educação pode contribuir com a redução de assimetrias sociais verificadas na EMEB Maria Leonor Alvarez e Silva?
Portanto, este trabalho justifica-se pela tentativa de compreensão dos fatores que promovem assimetrias terríveis e abissais no quadro social do Brasil e pela enorme relevância das questões que envolvem a segregação socioespacial de uma escola pública brasileira. Ademais, a compreensão da sociedade em torno das etapas de elaboração e execução das políticas públicas é de crucial importância. Tais políticas poderão ser direcionadas para contribuírem para o desenvolvimento de uma cidade, região ou país de forma perene, desde que possam transcender a visão mesquinha de curto prazo (políticas de governo) para serem alçadas à monitorização permanente de todas as instituições do Estado Brasileiro (políticas de Estado) com o principal propósito de promoverem a redução das assimetrias geradoras da pobreza, do elitismo, das desigualdades e da falta de oportunidades para a vasta maioria da população.
A metodologia aqui utilizada compreendeu procedimentos relacionados a uma breve revisão bibliográfica sobre o tema abordado a partir dos estudos desenvolvidos por diversos autores que, ao logo dos últimos anos, contribuíram de forma significativa para o enriquecimento dos debates. Além disso, foram atentamente pesquisadas diversas fontes documentais e legais sobre a realidade da educação em São João da Boa Vista e no Brasil. Contudo, convém destacar que o presente artigo deve ser tomado apenas como ponto de partida para uma reflexão que revela-se muito maior e mais complexa.
Desse jeito, o presente trabalho de pesquisa encontra-se didaticamente sistematizado em três partes. A primeira parte trata da segregação socioespacial de ontem e de hoje em São João da Boa Vista, incluindo a apreciação crítica da realidade escolar da Escola Municipal de Educação Básica (EMEB) Professora Maria Leonor Alvarez e Silva. A segunda parte está relacionada mais especificamente às discussões envolvendo determinadas políticas públicas e alguns dos seus impactos no desafiador contexto educacional brasileiro. Por fim, a terceira e última parte compreende a tecitura crítica das considerações finais acerca do tema abordado.
A segregação socioespacial de ontem e hoje em São João da Boa Vista
A municipalidade de São João da Boa Vista foi fundada no dia 24 de junho de 1821, abrange área total de 516,40 km² e possui uma população de 92.315. Outrossim, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) é considerado o 28º melhor do estado de São Paulo. Além disso, o percentual de estudantes na faixa etária de 6 a 14 anos que frequentam os centros de ensino corresponde a 97,2% da referida população. Concernente à economia, os registos históricos atestam que o café chegou à região de Campinas no início do século XIX, precisamente em 1815, e nos anos seguintes começou a ser plantado no município de São João que, naquele período, já havia adotado o regime de produção latifundiário-escravista (por volta de 1830, os primeiros escravos negros começaram a chegar para trabalhar no município, sobretudo, em lavouras de cana-de-açúcar).
Assim como aconteceu no então Brasil escravocrata, os relatos da escravidão negra em São João evidenciam desumanas práticas de submissão e o uso desmedido da violência contra os escravos negros. Logo, o legado escravocrata parece persistir nos dias atuais sob as formas da exclusão, do racismo estrutural e das lutas de resistência do povo negro contra a segregação socioespacial que perdurou no sistema escravista por mais de três séculos e que permanece, desde a abolição da escravidão em 1888, em razão do abandono à própria sorte dos escravos recém libertos (Azevedo, 2010).
Como exemplo do referido abandono, pode-se ver no mapa (Figura 1), que ainda permanecia, no ano de 1901, uma segregação geográfica, pois a população negra habitava em bairros específicos, como o bairro de Cubatão, longe das pessoas brancas.
Figura 1 Mapa de São João da Boa Vista, ano de 1901
Guilherme Sandeville. Nanquim sobre papel linho.
Fonte: Acervo particular de Antonio Carlos Rodrigues Lorette.
Por oportuno, cabe salientar que as cidades brasileiras, principalmente nos séculos XIX e XX, revelaram particularidades no seu quadro de desenvolvimento urbano. As desigualdades foram determinantes para a ocupação do espaço urbano e a lógica da dominação pelo poder do capital estabeleceu sérias disparidades entre diferentes grupos socioeconômicos. Em outras palavras, as injustiças, o racismo estrutural e as desigualdades lançaram a população negra na marginalização (Oliveira, 2009). No período de 1890 a 1930, a segregação socioespacial destinou as periferias e as favelas para a vasta maioria da população negra. Historicamente, a segregação distingue as pessoas conforme critérios de classe social, nível de escolaridade, cor da pele e raça. Portanto, grande parte dessa segregação resulta do legado deixado pela escravidão e sua permanência fundamenta-se na ausência de políticas mais efetivas contra o racismo. Em suma, as sequelas da marginalização socioespacial articulam-se com as disparidades entre diferentes grupos étnico-raciais presentes na sociedade brasileira (Campos, 2007).
Não obstante, vale lembrar que foi o emprego da força do trabalho escravo que impulsionou a constituição de novas fazendas e enriqueceu ainda mais os fazendeiros e grandes proprietários de terras, os quais recepcionaram a mão de obra imigrante (remunerada), a partir do final do século XIX. Os arquivos do município de São João da Boa Vista guardam registos de centenas de estrangeiros, sendo a maioria constituída por italianos, seguidos de portugueses, libaneses, sírios, japoneses, turcos, argentinos, espanhóis e alemães. Vale lembrar que na ditadura do “Estado Novo” o governo Vargas promoveu a perseguição de italianos, alemães e japoneses por causa da declaração de guerra ao Eixo durante a Segunda Guerra Mundial (Koifman, 2012), além do que promoveu fortemente o anti-semitismo e o anti-comunismo (Carneiro, 1988).
Atualmente, o Produto Interno Bruto (PIB) de São João da Boa Vista alcança a cifra de R$ 3,4 bilhões de reais. O referido município possui uma condição econômica satisfatória, a qual está fundamentada nos setores de prestação de serviços, indústria e agropecuária. Não obstante, a alta concentração de riqueza nas mãos das classes econômicas mais abastadas encontra-se acima da média da unidade da federação mais rica do Brasil: São Paulo. Além do mais, a população negra, a exemplo do que acontece no Brasil como um todo, ganha consideravelmente menos em analogia com a população que se declara branca.
A segregação socioespacial de uma escola pública
A EMEB — Escola Municipal de Ensino Básico Professora Maria Leonor Alvarez e Silva, integra o conjunto de 36 escolas municipais de São João da Boa Vista. Esses estabelecimentos de ensino recepcionam e acolhem alunos de 4 meses a 5 anos de idade no âmbito da Educação Infantil, bem como estudantes na faixa etária de 06 a 10 anos nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Nesse cenário, a EMEB Maria Leonor Alvarez e Silva foi fundada em 1987, sendo que, atualmente, atende estudantes dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. No ano letivo de 2022, foram matriculadas 367 crianças.
A referida unidade escolar dispõe de 8 salas de aula, as quais são utilizadas por 15 turmas de alunos nos períodos matutino e vespertino. As instalações também dispõem de um laboratório de informática, uma biblioteca, duas salas destinadas para a realização das aulas de reforço escolar, uma cantina, três banheiros, um pátio com mesas de refeitório, uma quadra poliesportiva e uma sala destinada ao corpo docente. Cada uma das salas de aula possui condições de abrigar até 35 estudantes. Vale acrescentar que a estrutura física escolar não atende a critérios de acessibilidade para alunos com deficiência ou baixa mobilidade (dados obtidos in loco pelo autor deste artigo).
Logo, trata-se de uma escola periférica, localizada em uma comunidade carente que possui renda familiar média de até dois salários mínimos. Os alunos são provenientes de famílias pobres e vários deles são criados em estruturas familiares precarizadas, ou seja, que não detém as condições necessárias para cuidar das suas crianças. Aliás, o diretor escolar chegou a receber relatos de estudantes que presenciaram situações que envolveram violência doméstica, uso de entorpecentes e abusos sexuais dentro do próprio contexto familiar. Vale ressaltar que alguns alunos possuem pais presidiários ao passo que outros são cuidados pelos avós ou por outros familiares em razão de terem sido abandonados na tenra infância por seus genitores. Em tais situações, a escola conta com o auxílio permanente do Conselho Tutelar da Criança e Juventude.
De facto, o quadro expõe a segregação socioespacial no espaço escolar e mostra as desconformidades sociais, culturais e econômicas dentro de um contexto preocupante que abriga violência, preconceito, apartação, injustiça e miserabilidade. Diante dos graves problemas enfrentados, a comunidade escolar, constituída pelos pais, alunos, professores e demais servidores, tenta superar os obstáculos decorrentes da ausência de condições adequadas de trabalho e busca alcançar os objetivos educacionais delineados no planejamento pedagógico proposto pela escola.
Todavia, nesse contexto, pode-se observar a relação entre a segregação socioespacial e a manutenção da invisibilidade dos mais pobres, pois o bairro Jardim São Paulo, seus moradores em geral e as instituições ali instaladas, incluindo a EMEB Maria Leonor Álvarez e Silva, padecem pela falta de atenção do poder público que, paradoxalmente, prioriza o atendimento das áreas mais “nobres” e abastadas da cidade. Assim, torna-se pertinente perguntar: como se identificam os integrantes da comunidade escolar? Zygmunt Bauman (2005) apresenta a seguinte contribuição:
A identidade, só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço que visa construí-la a partir do nada ou mesmo optar entre várias alternativas. A identidade interpretada dessa forma aparece inconclusa e da sua condição de precariedade busca ocultar-se (pp. 21-22).
Desta maneira, a comunidade escolar da escola Maria Leonor Álvarez e Silva parece construir para si a identidade dos menos favorecidos, injustiçados e que, silenciados pela lógica opressora, assumem um certo conformismo. No entanto, a partir da organização e do diálogo construtivo, são reavivados os sentimentos coletivos de indignação e revolta, os quais reivindicam uma educação de qualidade. Portanto, persiste uma resistência capaz de enfrentar as grandes contradições impostas pela segregação socioespacial. A própria comunidade escolar, ao reconhecer que não é homogênea, entende que as assimetrias sociais evidenciam o esquecimento e a invisibilidade das famílias, alunos e professores. A Figura 2 mostra o lado humano que congrega comunidade escolar.
Figura 2 Ambiente escolar: alunos, famílias e professores reunidos na quadra de esportes da Escola Maria
Leonor Álvarez e Silva
Fonte: Departamento Municipal de Ensino SJBV.
À vista disso, a análise da situação da escola Professora Maria Leonor Alvarez e Silva requer atenção e cuidado. As críticas devem ser feitas de forma construtiva e propositiva, considerando a precariedade das instalações físicas, o excesso de burocracia, a inoperância do poder público e a vulnerabilidade social da maior parte do corpo discente. Por exemplo, contrariando as recomendas emanadas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a referida escola possui alunos matriculados no 4º. Ano que ainda não foram sequer alfabetizados. No entanto, a BNCC estabelece que a criança deve aprender a decodificar (ler) e a codificar (escrever) nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental (Ministério da Educação [MEC], 2018).
Brasil: contrastes, disparidades e assimetrias territoriais
O processo de urbanização do Brasil foi marcado pelas disparidades regionais, de maneira que houve, ao longo do tempo, uma significativa concentração de investimentos em algumas regiões do país (Villaça, 2001). Por conseguinte, hoje em dia, verifica-se a precariedade em muitos espaços onde concentram-se as camadas mais paupérrimas da população: as periferias urbanas e rurais das cidades brasileiras. Em outras palavras, a rápida e desordenada urbanização no Brasil gerou sérias consequências, as quais exigem do poder público uma atenção maior, principalmente no que diz respeito aos sérios problemas de ordem social e ambiental.
A urbanização no território brasileiro foi impulsionada pelo início do processo de industrialização no país a partir da segunda metade do século XIX, o qual seguiu adiante e ganhou notoriedade a partir dos anos de 1930. Em meados dos anos de 1950, o êxodo rural foi ampliado pela mecanização das atividades produtivas no meio rural, fato que provocou desemprego no campo e impulsionou o deslocamento de migrantes rumo aos grandes centros urbanos. A partir daí, a área urbana cresceu vertiginosamente, com ênfase para a concentração populacional em torno das cidades do Sudeste do país, sendo que, hoje em dia, o estado de São Paulo tem uma população de 44.420.459 de habitantes, o equivalente a um quinto dos habitantes do Brasil, segundo dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (IBGE, 2022).
Vale destacar que o estado de São Paulo avançou, ao longo do tempo, na industrialização e atualmente detém um terço da economia do país. Tornou-se um poderoso produtor de manufatura, com aproximadamente 30% do parque industrial do Brasil. Para mais, detém a maior produção agropecuária do Brasil, sendo também detentor da mais ampla rede de comércio e serviços. Concernente à educação superior, mantém centros universitários de excelência, com destaque para a Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ademais, São Paulo abriga o maior centro financeiro e empresarial brasileiro (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] et al., 2014).
Não obstante, o estado de São Paulo, a exemplo de outras unidades da federação, ostenta nas periferias das suas cidades a realidade de pobreza, invisibilidade e ausência do poder público, ou seja, a segregação socioespacial persiste nas periferias das cidades de todo o Brasil e também no estado de São Paulo que, apesar de ter obtido inúmeros avanços, não é uma exceção a essa lógica de apartação, desigualdade, pobreza e subdesenvolvimento. Em suma, o Brasil (incluindo São Paulo) é um país repleto de contradições, disparidades e assimetrias territoriais (Corrêa, 2004).
À vista disso, a realidade brasileira expõe a fragilidade das escolas num contexto repleto de contradições e disparidades. Nesse sentido, dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019) por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) reforçam a percepção de que a manutenção das desigualdades existentes no Brasil afeta diretamente a situação dos trabalhadores no mercado de trabalho, as características demográficas e, como não poderia deixar de ser, a educação. Convém lembrar que a PNAD Contínua tem o propósito de produzir informações básicas para a análise do desenvolvimento socioeconômico do país. Com efeito, no campo educacional, apesar da ampliação do nível de escolaridade da população nos anos 2000, a referida pesquisa apontou problemas no acesso e na permanência dos alunos no ambiente escolar, principalmente entre estudantes pertencentes às famílias mais pobres (IBGE, 2019).
Certamente, a concretude de um projeto de educação pública inclusiva, emancipatória, laica e de acesso universal não pode acontecer apenas num dado momento histórico, deve ser política permanente de estado. Em outras palavras, a educação não pode ser mera política de governos transitórios que promovem avanços e retrocessos ao sabor dos ventos ideológicos que são soprados pelas agremiações político-partidárias que, em sua maioria, subordinam-se ao poder do capital e aos ditames do mercado. Consequentemente, a sociedade brasileira depara-se com um círculo vicioso de oscilação entre populismo e autoritarismo, o qual é sustentado por uma lógica discriminatória que subtrai direitos, nega oportunidades e condena milhões de pessoas à opressão causada pela miséria, falta de oportunidades, violência e, consequentemente, ausência da esperança (Prado Júnior, 2011). Assim, no campo educacional, o Brasil lida com problemas complexos e urgentes:
O Brasil possui um elevado número de pessoas com idade acima de 15 anos que não sabem ler e escrever. Utilizando dados (IBGE, 2015) da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima-se que em 2015 cerca de 8% da população seja analfabeta (12,9 milhões de pessoas). Esse índice de analfabetismo varia bastante conforme a região geográfica, indo de 16,2% no Nordeste para cerca de 4% no Sudeste e no Sul, e também por idade, com uma taxa de 0,8% entre jovens de 15 a 19 anos e de 22,3% entre pessoas com 60 anos ou mais. Também há diferença significativa entre brancos (5% de analfabetos) e pretos (11,2%). Os dados indicam uma evidente correlação entre as taxas de analfabetismo e as situações de pobreza, exclusão e baixo desenvolvimento econômico. (Braga & Mazzeu, 2017, p. 25)
Ainda nesse sentido, a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) constatou que o nível de proficiência em Língua Portuguesa está relacionado com o nível socioeconômico dos alunos. Os resultados referentes à leitura e escrita dos alunos recomendam mudanças nos processos educacionais que envolvem a literacia desde o começo da alfabetização. Dessa forma, o Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (RENABE) revelou o que segue:
Com esse gravíssimo quadro educacional, nega-se, mesmo àqueles que frequentam escolas regularmente, o direito à aprendizagem em seu nível mais básico, o qual se constitui na compreensão do que se lê e do que se escreve de forma efetiva. O letramento consiste num dos direitos humanos mais elementares e dele depende a democracia, o Estado Democrático de Direitos e o bem comum. (Ministério da Educação [MEC], 2021, p. 8)
Os dados do RENABE denunciam a precariedade do ensino, as graves deficiências no processo de letramento infantil, o despreparo docente e a má gestão dos recursos que financiam a educação. Tais problemas contribuem de forma decisiva para afastar a criança do texto que deveria ser lido, discutido, refletido e compreendido em seus aspectos mais elementares. Ademais, as escolas públicas de Ensino Básico no Brasil precisam lidar com suas próprias contradições num cenário de recessão econômica, polarização política (promovedora de sucessivas crises institucionais), aumento da miséria, desvalorização do magistério e precarização do trabalho docente.
Além disso, constata-se a falta de efetividade das políticas educacionais de alcance nacional, as quais deveriam promover a melhoria do ensino no Brasil (Smarjassi & Arzani, 2021). Convém esclarecer que o desenvolvimento social e econômico alcançado pelo Brasil nas últimas décadas havia estagnado e retrocedido antes mesmo do estabelecimento da crise da COVID-19. Conquanto, a pandemia agravou a situação econômica, atingiu os menos favorecidos e evidenciou as inúmeras contradições que colocam o Brasil no grupo dos países mais desiguais do planeta, ao mesmo tempo em que detém uma das dez maiores economias do mundo (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2021).
Do mesmo modo, causa perplexidade a constatação de que metade dos jovens estudantes brasileiros, dentro da faixa etária de 15 anos, não detém sequer o nível básico de proficiência em leitura, em comparação com a média de um em cada cinco nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Outrossim, o sistema educacional brasileiro ainda não é suficientemente inclusivo, de forma que, aos estudantes provenientes de famílias menos favorecidas, não são oferecidas as mesmas oportunidades educacionais dos seus colegas oriundos de famílias mais abastadas. Os alunos pobres frequentam escolas que oferecem um ensino mais precário e de menor qualidade (Silva, 2009).
Deveras, os problemas acima citados prejudicam os alunos no sentido de diminuir suas chances de crescimento pessoal e profissional. Afinal, a entrada no mercado de trabalho depende de determinadas qualificações, as quais serão decisivas também para a obtenção de maiores rendimentos, fato que agrava as desigualdades já existentes. Os efeitos da pandemia de COVID-19 ainda são sentidos nas escolas por causa das perdas de aprendizagem provocadas pela ineficácia dos modelos de ensino remoto para o Ensino Básico, incluindo o fato de que houve a exclusão das famílias dos alunos mais vulneráveis que não possuíam acesso às redes digitais de internet (OCDE, 2021).
Portanto, parece ser muito evidente a relação que vincula a pobreza e a discriminação aos índices de analfabetismo e letramento precário. Isto posto, além do analfabetismo absoluto, o Brasil também enfrenta a incapacidade de muitos brasileiros de compreenderem integralmente o conteúdo de textos simples por meio da leitura. Por oportuno, o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) constatou o seguinte:
Ao longo dos anos, houve ainda uma redução da proporção de brasileiros que conseguem fazer uso da leitura da escrita e das operações matemáticas em suas tarefas do cotidiano apenas em nível Rudimentar (de 27% em 2001-2002 para um patamar estabilizado de pouco mais de 20% desde 2009). Indivíduos classificados nesses dois níveis de Alfabetismo compõem um grupo denominado pelo INAF como Analfabetos Funcionais. Os Analfabetos Funcionais — equivalentes, em 2018, a cerca de 3 em cada 10 brasileiros — têm muita dificuldade para fazer uso da leitura e da escrita e das operações matemáticas em situações da vida cotidiana, como reconhecer informações em um cartaz ou folheto ou ainda fazer operações aritméticas simples com valores de grandeza superior às centenas. (Lima & Catelli, 2018, p. 8)
Diante dessas drásticas estatísticas torna-se imprescindível a união de esforços para o estabelecimento de estratégias que poderão ser impulsionadas pela vinculação de políticas públicas com iniciativas da sociedade civil organizada. A inclusão de um crescente número de brasileiros na cultura letrada deve ser vista como um imperativo civilizatório, pois a educação tem o poder de contribuir decisivamente para o exercício pleno da cidadania, com ênfase para a participação social, consciência política e realização de trabalhos dignos, criativos, construtivos e profícuos (Caldas, 2008).
Em vista disso, torna-se pertinente enfatizar a importância das políticas públicas de Estado para garantir aos cidadãos os direitos estabelecidos na Constituição Federal. Nessa direção, deve-se reconhecer que a interdependência e a harmonia entre os poderes da república contribuem para o avanço das etapas de planejamento, elaboração e execução de políticas em áreas essenciais como a educação. Afinal de contas, “(…) a consolidação da democracia, justiça social, manutenção do poder, felicidade das pessoas — constitui elemento orientador geral das inúmeras ações que compõem determinada política” (Saraiva, 2006, p. 29).
Deveras, a educação deve ser considerada essencial para alavancar o crescimento econômico e promover o desenvolvimento humano. Contudo, seu papel não pode se restringir à tarefa de instrumentalizar o capital com mão-de-obra qualificada. A fúria neoliberal insiste na conversão de direitos públicos em serviços privados e tenta reduzir a educação à condição de mera mercadoria. Nesse cenário, o mercado educacional consolidou-se como um modelo de negócios, suscetível às demandas do mercado e submetido aos interesses do grande capital. Em contrapartida, a educação pública brasileira padece em razão da débil atuação do poder público estatal e, consequentemente, as escolas sofrem com a desvalorização do quadro de magistério e precarização do ensino.
No presente artigo analisamos de perto a escola Professora Maria Leonor Álvarez e Silva, situada numa região periférica de uma cidade do interior, possuidora de um Índice de Desenvolvimento Humano considerado elevado, quando comparado com os padrões brasileiros, porém, mesmo assim, o referido município enfrenta em suas periferias, os problemas da pobreza, do abandono e das injustiças sociais.
Ordenamento legal do Ensino Básico brasileiro
Além dos princípios estabelecidos na Carta Magna brasileira concernente ao dever do Estado de assegurar o direito dos cidadãos à educação, foi formulada a Lei n.º 9.394 (1996), que criou as Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e organizou o sistema educacional no país. As crianças podem ingressar na Educação Infantil (pré-escola) a partir dos 4 anos de idade e seguir o percurso da Educação Básica que terá a duração de 14 anos até a conclusão do ensino médio. Após a conclusão dessa importante etapa, o estudante poderá ingressar na Educação Superior (Lei n.º 9.394, 1996).
Considerando a diversidade cultural no Brasil, foi instituída a Lei Federal n.º 10.639 (2003), que tornou obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira” nas escolas públicas e privadas da Educação Básica. Por conseguinte, além da continuidade do ensino da história e cultura afro-brasileira, foi instituída a Lei Federal n.º 11.645 (2008), a qual tornou obrigatório o ensino da “história e cultura indígena” no currículo oficial da rede de ensino. Desse modo, foram estabelecidas as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo em 2010, e dois anos depois, em 2012, foram criadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena.
Mais adiante, precisamente em 2018, foi homologada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que é um documento normativo que orienta os currículos escolares em todo o território nacional brasileiro (MEC, 2018). Por exemplo, a BNCC recomenda que o aluno seja alfabetizado no 1º. e 2º. Ano do Ensino Fundamental. Portanto, pode-se afirmar que a BNCC:
É um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. (MEC, 2018, p. 7)
Decerto, a observância normativa das aprendizagens essenciais preconizadas pela BNCC poderá contribuir para a melhoria dos níveis de alfabetização na educação escolar. Não obstante, de acordo com dados do censo escolar realizado em 2018, foram realizadas mais de 48 milhões de matrículas na Educação Básica, sendo que 27,2 milhões dessas matrículas correspondem a estudantes do Ensino Fundamental. Outro dado que corrobora a importância da padronização dos currículos escolares diz respeito ao contingente de mais de 109 milhões de estudantes que permanecem na escola pelo período de nove a onze anos (IBGE, 2019). Sendo assim, mais da metade da população do país participa da educação formal nesse período e a qualidade do Ensino Básico ganha contornos ainda maiores de relevância para a vida das pessoas.
Por tudo isso, a BNCC deve ser valorizada na sua condição de referência para a formulação dos currículos escolares do país como um todo. Existe, portanto, a necessidade de compreensão de tais currículos por parte dos professores e alunos no contexto escolar, pois a premissa mais relevante consiste na garantia de que todos os estudantes brasileiros deverão ter acesso aos mesmos conhecimentos e conteúdos. Dessa maneira, a BNCC “está estruturada de modo a explicitar as competências que devem ser desenvolvidas ao longo de toda a Educação Básica e em cada etapa da escolaridade, como expressão dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento de todos os estudantes” (MEC, 2018, p. 23).
A Figura 3 mostra a BNCC com suas respectivas unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades definidas para cada ano (ou bloco de anos). Mostra também que as habilidades são identificadas por códigos alfanuméricos. Por exemplo, o código EF67EF01 está relacionado com a habilidade proposta na disciplina de Educação Física no bloco referente aos 6º. e 7º. Anos do Ensino Fundamental. Sendo assim, pode-se depreender com clareza que:
A progressão das aprendizagens, que se explicita na comparação entre os quadros relativos a cada ano (ou bloco de anos), pode tanto estar relacionada aos processos cognitivos em jogo — sendo expressa por verbos que indicam processos cada vez mais ativos ou exigentes — quanto aos objetos de conhecimento — que podem apresentar crescente sofisticação ou complexidade —, ou, ainda, aos modificadores — que, por exemplo, podem fazer referência a contextos mais familiares aos alunos e, aos poucos, expandir-se para contextos mais amplos. (MEC, 2018, p. 31)
Figura 3 Quadro explicativo do Código Alfanumérico
Fonte: Construir Notícias. (s.d.).
Sendo a base para implementação de currículos, o documento BNCC instituiu 10 competências gerais para serem integradas e desenvolvidas juntamente com os componentes curriculares (MEC, 2018). As referidas competências são apresentadas na Figura 4.
Figura 4 Competências Gerais da BNCC
Fonte: Benedetti (2021).
De facto, foram definidas as aprendizagens essenciais no documento, sendo que o desenvolvimento das dez competências deve acontecer no percurso do Ensino Fundamental e Médio (Educação Básica). Entretanto, segue um alerta importante:
A BNCC por si só não alterará o quadro de desigualdade ainda presente na Educação Básica do Brasil, mas é essencial para que a mudança tenha início porque, além dos currículos, influenciará a formação inicial e continuada dos educadores, a produção de materiais didáticos, as matrizes de avaliações e os exames nacionais que serão revistos à luz do texto homologado da Base. (MEC, 2018, p. 5)
Portanto, é possível concluir que a legislação brasileira valoriza a educação e estabelece leis e normativos que procuram sistematizar procedimentos e padronizar orientações. Todavia, ainda há muito para ser feito com o intuito de concretizar e dar maior alcance às políticas públicas direcionadas para a educação. No que toca às recomendações da BNCC, é necessário compreender sua aplicabilidade teórica e prática. Por exemplo, no componente curricular “Língua Portuguesa” a BNCC prevê o desenvolvimento de diversas habilidades, dentre elas a capacidade de escuta, compreensão de textos por meio da leitura, produção da escrita, desenvolvimento da oralidade e muito mais (MEC, 2018).
Considerações finais
Destarte, não são poucos os desafios da escola Professora Maria Leonor Álvarez e Silva frente ao contexto em que encontra inserida. Diante das dificuldades dos alunos que levam para o ambiente escolar os problemas enfrentados por suas famílias, da escassez de recursos logísticos e das exigências estabelecidas pelas leis vigentes, ainda é preciso persistir na formação de cidadãos conscientes, leitores críticos e pessoas capazes de compreender a realidade com o propósito de transformá-la. Afinal, a formação integral dos estudantes é um imperativo que requer a articulação entre educação, autonomia de pensamento e polifonia da cultura (Bourdieu, 2014).
Os problemas enfrentados são complexos e as contradições fazem morada no ambiente escolar. Ora, a escola reflete o que acontece no cotidiano social dos estudantes e dos professores. A própria escolha dos conteúdos é feita sem a participação das escolas e os conteúdos são impostos sem que a realidade escolar de cada localidade seja levada em consideração. Por conseguinte, a segregação socioespacial de uma determinada escola pública pode acontecer a partir do esquecimento das suas rotinas, conflitos, demandas educacionais e divergência de interesses (Castells, 1983).
Desse jeito, a alienação dos alunos explica em parte a sua passividade e conformismo. Para despertar o interesse dos estudantes pela aprendizagem, a escola precisa envolvê-los em processos criativos, dinâmicos, coletivos e participativos. Além do mais, o aluno deve exercer seu protagonismo na construção de um espaço democrático dentro da escola que, por sua vez, não pode ser compreendida como sendo tão somente um locus de preparação de mão-de-obra qualificada para instrumentalizar o capital. O envolvimento dos estudantes e professores na escolha de conteúdos é de vital importância para o estabelecimento de uma educação de qualidade (Freire, 1987).
Porém, a escolha de alguns conteúdos obedece regras que priorizam o poder hierárquico da estrutura escolar. Apesar dos esforços realizados em prol do ordenamento legal do Ensino Básico no Brasil, inúmeras escolas ainda insistem na defesa local de um currículo que valoriza a memorização e, ao não valorizar as práticas sociais dos alunos, cometem o equívoco de não promover a problematização da realidade no ambiente escolar. Por conseguinte, a segregação socioespacial influencia a atuação de cada escola e está presente nos seus afazeres cotidianos (Dayrell, 1996).
A escola pública no Brasil, de uma maneira geral, está inserida numa realidade caracterizada pela falta de condições razoáveis de trabalho, infraestrutura, estímulo ao aluno, diálogo com as famílias, apoio às atividades docentes e remuneração digna dos profissionais da educação (Ribeiro et al., 2010). Nessas condições, a escola contribui para a reprodução das condições de exploração, vilipêndio e perpetuação das injustiças sociais na sociedade que, sistematicamente, segrega e aparta. Em outras palavras, a escola, ao atuar como expressão dessa sociedade segregadora assume-se como elemento que reproduz e multiplica o processo de segregação socioespacial (Seabra, 2009).
Torna-se importante ressaltar que, nos últimos anos, a conjuntura sócio-política-econômica no Brasil foi agravada pelo projeto político do bolsonarismo. A defesa inconsequente de um estado totalitário naturalizou o uso da violência e instigou o fanatismo populista de índole protofascista. A aceleração das políticas ultraconservadoras e neoliberais revelou a expressão aguda de uma “necropolítica” que não combateu adequadamente a pandemia de COVID-19, disseminou o ódio, ampliou a distância que separa ricos e pobres em um dos países mais desiguais do planeta, e, como se não bastasse, promoveu retrocessos inimagináveis, com sucessivos cortes orçamentários, em áreas essenciais como saúde, educação, habitação, saneamento básico e assistência social. Como exemplo, é pertinente citar que o referido ex-presidente colocou-se contra o livro e a leitura, senão vejamos:
Além disso, são incontáveis as vezes em que o atual primeiro mandatário da nação desprezou publicamente o livro e a leitura, assim como a formação escolar e as melhores expressões de nossa cultura, atitude que diz muito das intenções deste período governamental. (Failla, 2021, p. 151)
Todavia, nas últimas eleições o povo brasileiro decidiu por uma mudança de rumos e, apesar dos grandes desafios a serem superados, persiste a esperança na permanência de um regime democrático sólido e coerente. Para tanto, devem ser defendidos os pressupostos humanistas e civilizatórios que concebem o ambiente escolar como um importante locus de atividades integradas e promovedoras do desenvolvimento humano. Ora, compete à instituição escolar envolver professores e alunos na dinâmica de um processo de interação humana seja capaz de aproximar os conteúdos advindos do conhecimento científico dos elementos constitutivos da realidade e da cultura. Dessa forma, a educação pode preparar o aluno não somente para o exercício profissional, mas para trabalhar em prol do bem comum (Freire, 1983).
Outrossim, a escola pode ser concebida como sendo uma importante instituição promovedora, dentre outras possibilidades, de acolhimento, socialização, desenvolvimento humano e construção de saberes, razão pela qual precisa compreender o seu papel e sua relação com o território para construir alternativas aos problemas cotidianos que enfrenta. As relações conflituais e as disputas pelos espaços dentro da própria escola devem ser compreendidas como sendo constitutivas das relações de poder que são orquestradas no cotidiano escolar. Por conseguinte, o enquadramento político da educação e do planejamento do território envolvem problemas da apropriação e do uso do espaço, facto que ressalta a importância da análise socioterritorial para a compreensão da desigualdade educativa e da segregação territorial.
Em conclusão, neste artigo, foram apresentadas algumas contribuições para o tratamento da questão que envolve o espaço físico, simbólico e social de uma escola pública na complexidade do arcabouço legal da educação brasileira e do contexto sóciohistórico da sua localização geográfica (São João da Boa Vista). A segregação socioespacial não pode ser concebida de forma reducionista, pois transcende a territorialidade e a instância temporal do momento presente. Desse jeito, a escola deve oferecer condições para a formação da criticidade, da independência intelectual e precisa incentivar a leitura. Nunca é demais asseverar que o exercício pleno da cidadania poderá superar os efeitos da periferização da comunidade escolar e prevenir a exclusão por fatores sociais, econômicos, culturais, históricos, étnicos e raciais no espaço citadino.
Referências
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Data de submissão: 31/01/2023 | Data de aceitação: 05/02/2024
Nota
Por decisão pessoal, os/as autores/as do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.
Autores: Antonio Artequilino Silva Neto, Paulo Costa e Ângela Balça