2025, n.º 37, e2025372
José de São José
FUNÇÕES: Concetualização, Metodologia, Investigação, Análise formal,
Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Universidade do Algarve, Faculdade de Economia, Centro de Investigação em Turismo,
Sustentabilidade e Bem-estar — CinTurs. Campus de Gambelas, 8005-139 Faro, Portugal
E-mail: jsjose@ualg.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8657-6443
Resumo: Neste artigo, olha-se para uma sociologia especializada que tem obtido uma crescente relevância científica e social a nível global — a sociologia da velhice e do envelhecimento — procurando-se traçar o processo da sua institucionalização em Portugal, através da adoção de uma abordagem socio-histórica. Os dados recolhidos foram sujeitos a análise documental, análise estatística e análise temática de conteúdo. Os resultados dão conta do modo como diferentes dimensões deste campo científico se desenvolveram ao longo do tempo, e das diversas fases do processo da sua institucionalização. Conclui-se que o campo da sociologia da velhice e do envelhecimento em Portugal alcançou a fase da consolidação institucional, embora tardiamente, e que a sua institucionalização avançada dependerá dos desenvolvimentos, no interior e no exterior do campo, que vierem a ocorrer no futuro. Espera-se que este artigo contribua para a reflexão em torno deste campo científico em Portugal, reflexão que ainda é escassa, mas que se impõe como necessária e oportuna.
Palavras-chave: sociologia da ciência, sociologia da sociologia, análise socio-histórica, sociologia da velhice e do envelhecimento.
Abstract: In this article, we look at a specialized sociology that has gained increasing scientific and social relevance at a global level — the sociology of old age and ageing — seeking to trace the process of its institutionalization in Portugal, through the adoption of a socio-historical approach. The collected data were subjected to document analysis, statistical analysis, and thematic content analysis. The results show how different dimensions of this scientific field developed over time, and the different phases of the process of its institutionalization. It is concluded that the field of sociology of old age and ageing in Portugal has reached the stage of institutional consolidation, albeit late, and that its advanced institutionalization will depend on developments, inside and outside the field, that may occur in the future. It is hoped that this article will contribute to the reflection around this scientific field in Portugal, a reflection that is still scarce, but which is necessary and timely.
Keywords: sociology of science, sociology of sociology, socio-historical analysis, sociology of old age and ageing.
Introdução
A investigação sociológica em Portugal foi iniciada com a criação, em 1962, do Gabinete de Investigações Sociais (GIS) por Adérito Sedas Nunes, estando hoje num patamar avançado de institucionalização (Machado, 2022; Silva, 2022). Um dos indicadores da institucionalização avançada da investigação sociológica em Portugal (e da sociologia portuguesa no geral) é a sua diferenciação em domínios especializados, que ficou consagrada formalmente com a criação, a partir de 2009, de seções temáticas na Associação Portuguesa de Sociologia (APS) (Machado, 2022). Atualmente, existem 23 seções temáticas nesta associação.
O desdobramento da sociologia em diversas sociologias especializadas pode ser motivada por três tipos de fatores: fatores de ordem cognitiva (emergência de novos problemas científicos, de novas teorias, de novos métodos, e de novas interpretações); fatores sociais internos ao campo científico (escolha de temas de investigação inovadores, capacidade de atração de novos investigadores, e disponibilidade de recursos e apoio institucional); e fatores sociais externos (procura de pesquisa científica por parte de entidades externas ao campo científico, e proliferação de dispositivos de financiamento da investigação científica) (Baptista et al., 2021). Em Portugal, a formação de sociologias especializadas deveu-se, em grande parte, à expansão da oferta formativa no ensino superior, que permitiu a formação de novas gerações de sociólogos, parte destes com ingresso na carreira universitária e/ou de investigação. Prendeu-se também com o desenvolvimento do sistema científico nacional que promoveu a investigação científica em vários campos científicos, inclusivamente no campo das ciências sociais e, ainda, com o aumento das solicitações de trabalho sociológico por parte de entidades públicas (Baptista et al., 2021). Independentemente das razões, a subespecialização no campo da sociologia é hoje, tanto em Portugal como no estrangeiro, uma realidade inquestionável, embora comporte alguns riscos, como a fragmentação do campo, o surgimento de barreiras à interdisciplinaridade, e a realização de pesquisas de alcance limitado (Machado, 2022).
No seu trabalho sobre a investigação sociológica em Portugal, Machado (2022) identificou 29 domínios especializados, 16 consolidados e 13 não consolidados, com base, entre outros indicadores, numa sistematização de bibliografia publicada entre 1964 e 2019. Nesta bibliografia estão incluídos artigos de revistas científicas com sede em Portugal, livros e capítulos de livros publicados por editoras nacionais, e teses de doutoramento realizadas em instituições de ensino superior (IES) portuguesas, publicadas ou não publicadas. Enquanto no grupo dos domínios consolidados se encontra a sociologia da juventude, no grupo dos domínios não consolidados aparece a sociologia da velhice e do envelhecimento (SVE), embora esta esteja inserida no subgrupo dos domínios emergentes, dado que inclui uma “produção sociológica recente, ainda relativamente reduzida, mas em que parecem reunidas condições para um crescimento sustentado” (Machado, 2022, p. 16). Este investigador identifica várias condições favoráveis para o crescimento da produção científica no campo da SVE, tais como as idades relativamente jovens dos respetivos investigadores, a afiliação destes a diferentes instituições, e a crescente relevância social das temáticas do envelhecimento e da velhice, que poderá promover a solicitação de investigações sociológicas sobre estas temáticas por parte de autoridades públicas e de outras entidades. Daí Machado (2002) ter considerado que a SVE é um dos domínios emergentes mais perto da consolidação.
Dado que, em Portugal, as primeiras publicações e doutoramentos no campo da SVE se realizaram em finais da década de 70 do séc. XX, e que desde então muitas outras publicações e doutoramentos neste campo científico se realizaram, a relevância social e científica dos temas da velhice e do envelhecimento tem crescido nas últimas décadas, e a análise realizada por Machado (2022) se circunscreve às publicações em revistas/editoras nacionais até ao ano de 2019, justifica-se uma pesquisa mais abrangente e atualizada sobre a génese e o desenvolvimento da SVE em Portugal. Nesta ordem de ideias, pretende-se, neste artigo, traçar o processo de institucionalização da SVE em Portugal através, num primeiro momento, de uma análise diacrónica das suas bases institucionais, bem como do contingente de investigadores que integram este campo científico, e do volume e diversidade das suas publicações científicas. Num segundo momento, realiza-se uma análise por período temporal, dando-se conta das diferentes fases do processo de consolidação desta sociologia especializada. Faz-se, assim, uma sociologia da SVE, procurando-se contribuir para a reflexão em torno deste campo científico em Portugal, reflexão que ainda é escassa, mas que se impõe como necessária e oportuna.
Enquadramento teórico
Como sublinha Machado (2023), muito embora a sociologia se tenha debruçado sobre si própria em vários trabalhos, são raros aqueles em que a sociologia é abordada como um objeto de investigação empírica. A realização de uma sociologia da sociologia — pesquisa alicerçada num enquadramento teórico, numa estratégia metodológica e numa recolha e análise de dados — beneficia dos contributos teóricos da sociologia da ciência. Esta sociologia especializada dedica-se ao estudo sociológico da ciência, que se iniciou com os trabalhos de Robert K. Merton (1938/1970a, 1942/1970b), embora alguns autores (ex.: Marcovich & Shinn, 2011) defendem que se iniciou com as propostas de Karl Manheim e Ludwig Fleck. Posteriormente a Merton, outras propostas foram aparecendo no domínio da sociologia da ciência, entre as quais se destacam o programa forte da sociologia do conhecimento científico, os estudos críticos e culturais da ciência (Hess, 1997), a teoria ator-rede de Bruno Latour, os estudos de género e da ciência, e a etnometodologia e a análise do discurso (Yearley, 2005). Estas propostas surgiram como acréscimos à perspetiva mertoniana e não como suas substitutas (Armstrong & Blute, 2010). Pierre Bourdieu (1975, 1976) está também, indiscutivelmente, entre os sociólogos que deram um contributo determinante para o desenvolvimento da sociologia da ciência[1].
Na pesquisa reportada neste artigo, adotou-se, como enquadramento teórico, a abordagem socio-histórica da sociologia proposta por Machado (2022, 2023), que se sustenta, essencialmente, nos contributos de Merton (1938/1970a, 1942/1970b) e Bourdieu (1975, 1976) no domínio da sociologia da ciência. Acompanha-se a leitura realizada por Machado (2022, 2023) dos contributos destes dois sociólogos, que convergem em torno das seguintes ideias essenciais: a ciência como instituição social, isto é, como conjunto de práticas e regras/normas socialmente institucionalizadas, que estabelece relações com outras instituições sociais, relativamente às quais mantém uma autonomia relativa; e a ciência como uma instituição socialmente estratificada, marcada por desigualdades internas à comunidade ou campo científico, decorrentes de diferentes níveis de reconhecimento/capital científico.
Contudo, Merton e Bourdieu divergem no que toca à natureza das relações sociais (de natureza meso e macro) e dos relacionamentos sociais (de natureza micro) que dão existência e forma à ciência como instituição social. O primeiro vê uma natureza integradora nessas relações/relacionamentos, aspeto que está encapsulado no seu conceito de “comunidade científica”, uma comunidade autorregulada de cientistas, governada por um forte ethos assente nas normas do universalismo, comunalidade (communality), desinteresse e ceticismo organizado (Merton, 1942/1970b). Contrariamente, o segundo vê uma natureza conflituosa nessas relações/relacionamentos, concebendo-as como relações de poder, propondo o conceito de “campo científico” por oposição ao conceito de “comunidade científica”. Bourdieu (1976) define campo científico como o sistema de relações entre posições adquiridas, caracterizado por uma luta em torno da “autoridade científica”, que é um tipo de capital que pode ser acumulado, transmitido ou reconvertido em outros capitais.
A abordagem socio-histórica da sociologia desenvolvida por Machado (2022, 2023) propõe que o campo sociológico (ou outro campo científico) é constituído por cinco “bases institucionais”, nomeadamente o ensino, a investigação, a publicação, o associativismo científico, e a internacionalização. O ensino é uma das dimensões das bases institucionais do campo sociológico, dado que é por via da formação graduada, em particular da pós-graduada, que se formam as diversas gerações de especialistas que dão existência ao campo e que garantem a sua sustentabilidade. Não obstante, segundo Machado (2022, 2023), a investigação é a dimensão central do campo sociológico, pois as restantes dimensões das bases institucionais dependem, em grande parte, da existência de investigação, e além disto é a investigação que confere a especificidade do campo sociológico. Por sua vez, a dimensão institucional da publicação (ex.: existência de revistas e editoras científicas) é fundamental para a disseminação/divulgação da investigação junto de variados públicos, contribuindo também para a consolidação do campo sociológico. O associativismo científico favorece, por seu lado, a criação de uma comunidade científica com identidade própria, que se diferencia de outras comunidades científicas, e que se estabelece com um espaço de reflexão e controlo entre pares. Por último, a internacionalização é uma dimensão autónoma, mas que se interliga com as restantes, sendo importante “(…) porque a ciência é, por definição, uma realidade sem fronteiras nacionais e a plena afirmação nacional de uma disciplina não se faz sem que ela esteja ligada, a vários níveis, ao campo internacional a que pertence” (Machado, 2022, p. 37). Como referiu Bourdieu (2001), o grau de autonomia de um campo científico é evidenciado, em parte, pelo seu nível de internacionalização.
O campo sociológico, como outros campos científicos, não é constituído apenas pelas suas bases institucionais, mas também por um conjunto de investigadores, que poderão formar uma comunidade científica, e por um determinado volume de publicações, tipicamente artigos, livros, e capítulos de livros, às quais se podem acrescentar teses de doutoramento. Machado (2022, 2023) reconhece a importância destas dimensões, embora pareça dar mais ênfase às bases institucionais.
A adoção de uma perspetiva histórica, “que coloque o campo sociológico na linha do tempo” (Machado, 2023, p. 13) também é preconizada pela abordagem socio-histórica da sociologia proposta por Machado (2022, 2023). Esta perspetiva histórica é, segundo este autor, necessária para a compreensão do processo de génese e desenvolvimento do campo sociológico, rompendo-se, assim, com as falsas evidências e a naturalização dos seus objetos de estudo. Este olhar diacrónico sobre a sociologia justifica, de acordo com Machado (2022), a utilização do método da periodização, que implica a identificação de períodos ou fases no processo de institucionalização da sociologia. Todavia, este autor clarifica que não se trata de levar a cabo uma história do pensamento sociológico (dimensão cognitiva), mas antes uma “história institucional” (Machado, 2022), isto é, uma história das suas bases institucionais (dimensão institucional).
Importa acrescentar que Machado (2022, 2023) sugere, ainda, uma exploração da relação de um determinado campo científico com os contextos que o constrangem ou o possibilitam, nomeadamente os contextos externos (económicos, sociais, culturais e políticos), os contextos internos ao próprio campo científico (as instituições e as redes de relações que o constituem), e os contextos intermédios (externos ao campo científico específico em análise, mas internos ao campo científico no geral).
Dimensões de análise, dados e métodos
Decorrente do enquadramento teórico anteriormente explicitado, foram selecionadas quatro dimensões para a realização da análise sócio-histórica do campo científico da SVE em Portugal: i) bases institucionais (ensino, investigação, publicação, associação, internacionalização); ii) teses de doutoramentos; iii) investigadores; iv) publicações. Optou-se por separar as teses de doutoramento das publicações, dado que, por um lado, os doutoramentos são uma condição importante para se iniciar uma trajetória de publicações científicas (são raros os investigadores que começam a publicar, pelos menos de uma forma regular, antes da obtenção de um doutoramento) e, por outro lado, a maior parte das teses de doutoramento não estão publicados em livro, embora estejam disponíveis em repositórios institucionais. Isto quer dizer que, nesta pesquisa, se consideram não apenas as teses de doutoramento publicadas, mas também as não publicadas. A Tabela 1 esclarece os indicadores para cada dimensão e sub-dimensão de análise, bem como os respetivos indicadores e fontes dos dados. A seleção dos indicadores obedeceu à combinação de dois critérios: relevância (capacidade para avaliar/medir as dimensões e sub-dimensões de análise) e acessibilidade (facilidade/dificuldade de acesso a dados relevantes). Ficou de fora a análise da relação do campo científico da SVE com outros campos científicos, bem como a análise da relação deste campo com outros campos não científicos, pois considerou-se que estas análises, embora relevantes, não seriam viáveis de reportar dentro do limite máximo de palavras permitido para a redação deste artigo. Não obstante, são feitas algumas considerações sobre estas dimensões na seção de discussão dos resultados.
Tabela 1 Dimensões e sub-dimensões de análise, indicadores e fontes
(¹) A opção Scopus Author Profile, disponível na base de dados bibliográficos Scopus, permite pesquisar as publicações sujeitas a revisão por
pares (publicadas em revistas científicas, livros e outras fontes que o Conselho Consultivo e de Seleção de Conteúdo do Scopus selecionou para
inclusão e indexação) registadas nos nomes dos investigadores.
(²) A plataforma RENATES compila informação oficial sobre teses de doutoramento (desde 1970) e de mestrado (desde 2013) realizadas em
Portugal (ou no estrangeiro, mas reconhecidas em Portugal). Esta plataforma pode ser consultada em https://renates2.dgeec.mec.pt/
(³) Incluem-se também os doutoramentos obtidos em universidade estrangeiras, mas reconhecidos na área da sociologia por uma IES portuguesa.
Julga-se que os indicadores elencados na Tabela 1 não carecem de esclarecimentos adicionais, exceção feita ao indicador relativo à dimensão “investigadores”. Optou-se por circunscrever os investigadores ao grupo daqueles que possuem uma afiliação a uma instituição portuguesa (de ensino superior ou de investigação), porque se entende que a institucionalização da SVE em Portugal (assim como de qualquer outra especialidade) depende, em primeira instância, da capacidade instalada nas instituições portuguesas para produzir conhecimento científico sobre o seu objeto de estudo. Além disto, circunscreveram-se os investigadores ao grupo daqueles que possuem um doutoramento em sociologia, visto que a detenção deste doutoramento constitui uma garantia de que a investigação realizada pelo seu detentor faz um uso apropriado dos instrumentos teóricos e metodológicos específicos da sociologia. Poder-se-ia ter optado por uma delimitação mais abrangente, dispensando o critério do doutoramento em sociologia, mas tal decisão abriria em demasia o campo científico da SVE, para além de assumir que:
a investigação sociológica dispensa a preparação que um grau académico na área confere, sobretudo o grau de doutor, e que pode ser realizada, até de modo amador, à margem do controlo dos pares, como é norma em qualquer comunidade científica. (Machado, 2022, p. 29)
Por último, importa esclarecer o que está incluído na investigação sobre os “temas da SVE”. A definição do objeto de estudo da SVE tem sido alvo de alguma discussão, cuja explanação dos seus contornos não cabe no âmbito deste artigo. Não obstante, olhando-se para as várias propostas de definição deste objeto de estudo (ex.: Bengtson et al., 2000; Caradec, 2010; Riley et al., 1988), sobressaem os seguintes temas: a velhice como etapa do curso de vida e como categoria social, sujeita a processos de construção social; o envelhecimento individual com um processo multidimensional ao longo do curso de vida; os adultos mais velhos como grupo etário com características e questões que lhe são específicas; e a idade como base estrutural de organização social. No âmbito da pesquisa reportada neste artigo, inclui-se a investigação empírica e teórica/conceptual sobre pelo menos um destes temas, referente à realidade portuguesa (incluindo investigação que compara a realidade portuguesa com a realidade de outros países). Esta delimitação em torno da realidade portuguesa, justifica-se, por um lado, pelo entendimento de que afirmação de um campo científico num determinado país passa, inevitavelmente, pelo contributo que faz para o conhecimento da realidade desse mesmo país e, por outro lado, pelo facto de que em Portugal, assim como noutros países, os sociólogos que investigam outras realidades que não a portuguesa formarem uma minoria (Machado, 2022).
Relativamente às publicações, estas foram identificadas, como já foi referido, através da pesquisa na base de dados bibliográficos Scopus, mais especificamente na opção Scopus Author Profile. Porém, esta pesquisa implicou, a montante, a identificação prévia dos investigadores com publicações em SVE. Esta identificação foi realizada através dos seguintes procedimentos: identificação das teses de doutoramento com um foco na SVE; identificação dos investigadores dos grupos/linhas de investigação com um foco nos temas da SVE; identificação dos participantes nos números temáticos focados sobre estes temas; identificação dos investigadores que têm apresentado as suas comunicações nos congressos da APS nas áreas temáticas que se debruçam sobre os temas da velhice e do envelhecimento; e mobilização do conhecimento do autor deste artigo sobre os investigadores que pertencem ao campo científico da SVE. Reconhece-se que não se obteve uma lista exaustiva de publicações, embora se esteja confiante de que a lista obtida é uma boa amostra.
No que concerne à análise dos dados, os que são referentes às sub-dimensões do ensino, investigação, publicação e associação foram sujeitos a uma análise documental (Bowen, 2009), ao passo que os respeitantes à sub-dimensão da internacionalização e das dimensões “teses de doutoramento”, “investigadores” e “publicações” foram analisadas através dos procedimentos básicos da estatística descritiva, nomeadamente distribuição de frequência e cálculo de percentagens (Negas, 2021). Acrescente-se, ainda, que a análise temática de conteúdo (Spencer et al., 2014) foi utilizada para categorizar os tópicos das publicações identificadas.
Resultados
Num primeiro momento, os resultados são descritos por dimensão e sub-dimensão de análise (por linha da Tabela 2), dando conta do modo como cada uma destas se desenvolveu ao longo do tempo. Num segundo momento, apresentam-se os resultados por período temporal (por coluna da Tabela 2), procurando-se salientar os principais desenvolvimentos ocorridos em todas as dimensões de análise em cada fase do processo de institucionalização da SVE. Não se realizou uma história do pensamento sociológico no campo da SVE (dimensão cognitiva), mas sim uma história do desenvolvimento institucional deste campo científico em Portugal (dimensão institucional). No que respeita à dimensão cognitiva, apenas se analisaram os tópicos das publicações.
Tabela 2 Dimensões do campo científico da SVE e períodos temporais do seu processo de consolidação
Bases institucionais
Começando pela sub-dimensão do ensino, entre 2000 e 2009 ocorre a primeira grande vaga de criação de programas de doutoramento em sociologia (a maior parte nos primeiros anos desta década[2]). Estes programas têm possibilitado a realização de um número significativo de teses com enfoque nos temas da SVE, que contribui, indiscutivelmente, para a consolidação deste campo científico. Na década seguinte, a oferta de programas de doutoramento em sociologia alargou-se a todo o território nacional, inicialmente através da Universidade de Évora (2010) e posteriormente através da Universidade do Algarve (2015), neste último caso em consórcio com a Universidade de Lisboa, a Universidade Nova de Lisboa e a Universidade de Évora. Todo o território nacional, de Norte a Sul, passou, assim, a ter uma oferta de programas de doutoramento em sociologia, facilitando-se o acesso a todos os residentes no país a um doutoramento nesta área científica. Mais recentemente, em 2021, através de uma parceria entre a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a Universidade do Porto, a Universidade da Corunha (Espanha), a Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) e a Universidade de Vigo (Espanha), foi criado o programa doutoral com o nome “Ciências Sociais e Envelhecimento”. Este é o primeiro programa doutoral em Portugal focado especificamente nos temas da velhice e do envelhecimento, a partir de uma perspetiva multidisciplinar em que a sociologia tem um papel relevante. A relevância da sociologia está evidenciada na descrição do programa, bem como nos programas das unidades curriculares, ao que se acrescenta o facto de a sua atual coordenação estar entregue a uma doutorada em sociologia (Alexandra Lopes, da Universidade do Porto).
Na sub-dimensão da investigação, a criação, em 2010, do Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa foi um marco importante no processo da institucionalização inicial da SVE em Portugal, não só pelos projetos de investigação que desenvolveu/patrocinou, mas também pelo papel que teve no incremento da visibilidade social das temáticas do envelhecimento e da velhice. Na sequência da fusão da Universidade de Lisboa com a Universidade Técnica de Lisboa, esta unidade de I&D, dirigida desde a sua criação até 2017 por Manuel Villaverde Cabral, transitou, neste mesmo ano, para o formato de observatório, passando a ter a designação de Observatório do Envelhecimento do Instituto de Ciências Sociais (OE-ICS). Desde 2017 até 2022, este observatório foi dirigido por Pedro Moura Ferreira, sendo desde este último ano até ao presente dirigido por Pedro Alcântara da Silva. Atualmente, o OE-ICS está a executar um projeto de investigação sobre as desigualdades sociais nas fases mais avançadas da vida.
O estabelecimento, dentro das unidades de I&D do campo da sociologia, de grupos/linhas de investigação focados, não apenas, mas também, nos temas da velhice e do envelhecimento é outro marco importante no processo de institucionalização da SVE em Portugal. Apesar de as primeiras unidades de I&D direcionadas explicitamente para a investigação sociológica terem surgido nos anos 80 do séc. XX, os grupos/linhas de investigação direcionadas para os temas da SVE só apareceram na década que se iniciou em 2010. O ICS estabeleceu, em 2013, o grupo científico com o nome “LIFE: Percursos de Vida, Desigualdade e Solidariedade — Práticas e Políticas”, no âmbito do qual o envelhecimento é um dos temas passíveis de investigação. A investigação e publicação no campo da SVE tem sido levada a cabo, sobretudo, por Manuel Villaverde Cabral, Karin Wall, Pedro Moura Ferreira, Pedro Alcântara da Silva e Daniela Craveiro. Em 2014, sob a coordenação de Leston Bandeira, concluiu-se, no âmbito desta unidade de I&D, o projeto de investigação intitulado “Dinâmicas demográficas e envelhecimento da população portuguesa: Evolução e perspectivas”. Dois anos mais tarde, conclui-se outro projeto acolhido por esta unidade de I&D, então coordenado por Manuel Villaverde Cabral e Pedro Alcântara da Silva, com o título “Envelhecimento em Lisboa, Portugal e Europa Numa Perspectiva Comparada — Inquérito SHARE”.
Também em 2013, foi criado, no CIES, o grupo científico com o nome “Família, Gerações e Saúde”, então coordenado por Maria das Dores Guerreiro e Graça Carapinheiro, que inclui explicitamente o tema do envelhecimento. De entre os investigadores que pertencem atualmente a este grupo, alguns têm publicado investigação sobre os temas da SVE, nomeadamente Violeta Alarcão, Luísa Pimentel e Ana Rita Coelho. Recentemente (2023), foi concluído um projeto de investigação, coordenado por Violeta Alarcão, sobre o impacto da pandemia de COVID-19 na saúde mental e no bem-estar físico, mental e social da população imigrante em Portugal, incluindo imigrantes em idades avançadas. O grupo de investigação com o nome “Desigualdades, Trabalho e Bem Estar Social”, apesar de não incluir o tema do envelhecimento nos seus temas de investigação, acolhe investigadores com produção científica sobre este tema, nomeadamente Rosário Mauritti.
Foi ainda no ano de 2013, que o IS-UP se reorganizou em dois grupos de investigação, em que o grupo com o nome “Trabalho, Família e Políticas Sociais” se desdobrou em dois subgrupos, um dos quais com a designação de “Família, Envelhecimento e Género”. Neste subgrupo, as publicações no campo da SVE são asseguradas por Isabel Dias, Rute Lemos e Eduardo Rodrigues. Recentemente foi concluído, nesta unidade de I&D, um projeto de investigação sobre o abuso de idosos, coordenado por Isabel Dias.
Em 2015 foi fundado o CICS.NOVA, que resultou da fusão de três unidades de I&D: Centro de Estudos de Sociologia (CESNOVA), Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional (GEO), ambos sediados na NOVA FCSH, e Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS), sediado na Universidade do Minho. Um dos grupos de investigação tem o nome “Saúde, População e Bem-estar”, cujas áreas de investigação incluem as dinâmicas populacionais e o envelhecimento. Os investigadores que têm investigado e publicado nesta área são José de São José, Ana Paula Gil e Tatiana Mestre. Uma outra investigadora, Rita Neves, embora pertencente a outro grupo de investigação, também tem realizado investigação sobre a área do envelhecimento. Um dos projetos inseridos neste grupo de investigação, concluído há relativamente pouco tempo (finais de 2020), debruçou-se sobre o papel das tecnologias de assistência na vida quotidiana dos adultos mais velhos, tendo sido coordenado por José de São José.
O Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, embora não possua um grupo/linha de investigação com enfoque no envelhecimento, tem investigadores ativos no campo da SVE, como destaque para Alice Delerue Matos e Patrícia da Silva. Importa salientar que a coordenação científica do projeto multinacional “SHARE — Survey of Health, Ageing and Retirement in Europe” coube ao CECS (Alice Delerue Matos) e à Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Pedro Pita Barros) entre 2009 e 2023. Portugal iniciou a sua participação no “SHARE” em 2010-2011 (4ª vaga) e, desde aí, este projeto tem contribuído significativamente para o conhecimento da realidade portuguesa no que concerne aos temas da velhice e do envelhecimento, bem como para a dinamização de publicações científicas sobres estes temas.
O Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP), sediado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, também não tem um grupo de investigação focado explicitamente nos temas da SVE. Contudo, no grupo de investigação denominado de “Sociedade, Comunicação e Cultura”, existem investigadores que publicam sobre os temas da SVE, nomeadamente Ana Alexandre Fernandes e Fausto Amaro.
Passando para a sub-dimensão da publicação, é de notar que não existe nenhuma revista ou editora com sede em Portugal especializada nos temas da SVE. Nesta sub-dimensão, é de particular importância para a institucionalização da SVE a existência de revistas científicas do campo das ciências sociais e do campo da sociologia em particular, recetivas à publicação de números temáticos sobre os temas da velhice e do envelhecimento. Duas revistas científicas do campo da sociologia têm-se mostrado particularmente recetivas à publicação destes números temáticos. Foram identificados quatro números/dossiers temáticos: o primeiro em 2005, publicado pela revista Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Vol. 15), subdividido em dois temas: “Envelhecimento e Família: Conflitos e solidariedades” e “Envelhecimento e Políticas Sociais: Novos desafios aos sistemas de políticas”, cuja coordenação ficou a cargo de Isabel Dias; o segundo em 2007, publicado pela revista Forum Sociológico (N.º 17), com o título “Envelhecimento activo. Um novo paradigma”, organizado por Ana Alexandre Fernandes, Ana Paula Gil e Inês Gomes; o terceiro em 2012, publicado pela revista Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (N.º 2), com o título “Envelhecimento demográfico: Percursos e contextos de investigação na sociologia portuguesa”, organizado por Alexandra Lopes e Rute Lemos; e o quarto em 2022, publicado pela revista Forum Sociológico (N.º 40), com o título “Envelhecimento, ciclo de vida e desafios societais”, organizado por Ana Alexandre Fernandes, António Fonseca e Maria João Bárrios[3].
No que respeita à sub-dimensão da associação, é de referir que, em Portugal, não existe nenhuma associação profissional de sociólogos da velhice e do envelhecimento. Estes sociólogos têm a oportunidade de se encontrarem, periodicamente, aquando da realização dos congressos da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), em torno da área temática com o nome “Dinâmicas Populacionais, Gerações e Envelhecimento”, cuja coordenação tem estado entregue a Maria Graça Morais (Universidade de Évora), Gilberta Rocha (Universidade dos Açores) e Alice Delerue Matos (Universidade do Minho). Entre 2008 e 2012, esta área temática teve o nome de “Populações, Gerações e Ciclos de Vida”. A mudança de nome permitiu uma melhor distinção entre esta área temática e a seção temática com o nome “Famílias e Curso de Vida”. Importa sublinhar que no quadro da APS uma área temática não tem o mesmo estatuto do que uma seção temática, pois uma área temática tem um papel meramente funcional (colaboração na organização dos trabalhos dos congressos), ao passo que uma seção temática tem reconhecimento estatutário e pode beneficiar de apoio financeiro.
Finalmente, relativamente à sub-dimensão da internacionalização, é verosímil que a SVE tenha acompanhado a tendência geral da sociologia em Portugal na direção de uma crescente internacionalização, refletida em indicadores como o aumento do número de participações em congressos internacionais, crescimento do número de publicações em revistas internacionais, aumento do número de participações em projetos de investigação internacionais, etc. (Machado, 2022). Não obstante, como anteriormente referido, neste artigo olha-se apenas para dois indicadores de internacionalização: publicações da área da SEV em revistas/editoras internacionais, e publicações da área da SEV em coautoria com investigadores estrangeiros. Começando pelo primeiro indicador, nota-se que a publicação em revistas/editoras internacionais começou a ser uma realidade desde há pouco mais de uma década, pois até ao ano de 2009 apenas se identificaram duas publicações. Contudo, entre 2010 e 2019 assistiu-se a uma verdadeira “explosão” deste tipo de publicações, tendo-se identificado 50 no total. Entre 2020 e 2023, já se registaram 42 publicações, prevendo-se um forte crescimento ao longo da década que se iniciou em 2020. Importa acrescentar que a partir de 2010 o número de publicações em revistas/editoras internacionais foi sempre maior do que o número de publicações em revistas/editoras nacionais (cerca de 4 vezes mais entre 2010 e 2019, e cerca de 5 vezes mais entre 2020 e 2023). Isto poderá ter a ver com a crescente valorização, pelo menos no mundo ocidental, da publicação em revistas/editoras internacionais por parte das instituições de ensino e de investigação.
Os resultados do segundo indicador de internacionalização mostram que a publicação em coautoria com investigadores estrangeiros começou a partir de 2010, embora entre 2010 e 2019 e entre 2020 e 2023, o número de publicações em coautoria com investigadores estrangeiros é claramente inferior ao número de publicações sem esta coautoria (cerca de 4 vezes menos no primeiro período temporal, e cerca de 5 vezes menos no segundo período temporal). Assim, enquanto os resultados referentes às publicações em revistas/editoras internacionais parecem apontar para um continuo crescimento do número destas publicações durante os próximos anos, os resultados referentes às publicações em coautoria com investigadores estrangeiros parecem apontar num sentido oposto, embora não se consigam realizar previsões seguras quanto a estes dois indicadores.
Se olharmos para o total de publicações identificadas, verifica-se que 74% foram publicadas em revistas/editoras internacionais e que 17% incluíram a coautoria com investigadores estrangeiros. Isto evidencia que a internacionalização da SVE em Portugal se tem dado, sobretudo, por via da publicação em revistas/editoras internacionais.
Teses de doutoramento e investigadores
As dimensões de análise referentes às teses de doutoramento e aos investigadores serão analisadas em conjunto, dado que estão claramente relacionadas. Até aos anos 90 surgem os primeiros sociólogos com investigação em SVE, na sequência das primeiras três teses de doutoramento em sociologia com um foco nas questões da velhice e do envelhecimento. Todas estas teses foram realizadas na Universidade Nova de Lisboa na especialização de demografia, tendo a primeira sido realizada em 1978 por José Manuel Nazareth, uma das primeiras teses de doutoramento em sociologia realizadas por portugueses (tese realizado no estrangeiro com equivalência concedida pela Universidade Nova de Lisboa), o que faz do envelhecimento um dos primeiros temas abordados pela sociologia portuguesa (Machado, 2022). Seguiram-se as teses de Maria João Valente Rosa (1993) e de Ana Alexandre Fernandes (1996).
Entre 2000 e 2009 regista-se um forte crescimento do número de sociólogos com investigação em SVE, devido sobretudo a um crescimento repentino do número de doutoramentos em sociologia com um foco nos temas do envelhecimento e da velhice (12 teses de doutoramento), cujos seus detentores estão, à exceção de poucos casos, inseridos numa IES ou numa unidade I&D com sede em Portugal. Neste período, várias IES portuguesas passaram a registar os seus primeiros doutoramentos em sociologia com um foco nos temas da SVE: Universidade dos Açores (tese defendida por Licínio Tomás em 2004), Universidade do Minho (tese defendida por Esmeraldina Veloso em 2005), Universidade de Coimbra (tese defendida por Sílvia Portugal em 2006), Universidade do Porto (tese defendida no estrangeiro por Alexandra Lopes Gunes, com equivalência atribuída pela Universidade do Porto em 2007), Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (tese defendida por Luísa Pimental em 2007), Universidade Aberta (tese defendida por Maria Ester da Silva em 2007), e Instituto de Ciências Sociais (tese defendida por José de São José em 2009). A Universidade Nova de Lisboa e a Universidade do Minho registaram mais do que um doutoramento sobre os temas da SVE durante esta década, nomeadamente Maria de Sousa Gomes (2000), Paulo Machado (2005), Isabel Amorim Ribeiro (2006, por equivalência de doutoramento realizado no estrangeiro) e Ana Paula Gil (2007), todos realizados na Universidade Nova de Lisboa, e Alice Delerue de Matos (2007, por equivalência de doutoramento realizado no estrangeiro) na Universidade do Minho. A estes doutorados acrescenta-se um número (embora reduzido) de sociólogos que passaram a realizar algumas pesquisas sobre os temas da SVE apesar de terem realizado as suas teses de doutoramento sobre outros temas (ex.: Rosário Mauritti e Maria das Dores Guerreiro).
Na década seguinte (2010-2029) mantém-se um forte crescimento do número de sociólogos com investigação em SVE, pois apesar de o número de teses de doutoramento com um foco na SVE ter diminuído ligeiramente (9 teses), esta diminuição foi compensada pela entrada no campo da SVE de um conjunto de doutorados em sociologia, cujos doutoramentos se focaram noutros temas que não os temas da SVE (ex.: Pedro Moura Ferreira, Pedro Alcântara da Silva, Fausto Amaro e Violeta Alarcão). É de referir que durante esta década se registaram as primeiras teses de doutoramento com um foco na SVE na Universidade de Évora (tese defendida por Maria Gemito em 2011) e na Universidade do Algarve (tese defendida por Patrícia Coelho em 2019).
O número de sociólogos com investigação em SVE continuou a crescer entre 2020 e 2023, muito por culpa do número de doutoramentos com um foco na SVE (5 doutoramentos). A manter-se este ritmo de crescimento, no final da década iniciada em 2020 os respetivos números serão idênticos ou mesmo superiores aos registados na década anterior. À data da redação deste artigo, registavam-se 29 teses de doutoramento sobre os temas da SVE e 32 investigadores (inseridos nas carreiras docente ou de investigação) com atividade de pesquisa e publicação sobre estas temas.
Publicações
No que toca às publicações, até aos anos 90 do séc. XX (sobretudo na década de 90) surgiram as primeiras publicações em SVE (7 publicações), a esmagadora maioria sobre questões demográficas, o que não é de estranhar, dado que os primeiros doutoramentos em SVE se inseriram na especialização da demografia. Entre 2000 e 2009, o número de publicações manteve-se reduzido (6 publicações), embora se tenha assistido a uma diversificação dos tópicos de investigação, começando a se destacar o tópico dos cuidados sociais e de saúde direcionados para os adultos mais velhos.
Contudo, na década seguinte (2010-2019) o número de publicações dispara para mais de meia centena (63 publicações), facto que se justifica, em grande parte, pelos desenvolvimentos ocorridos na década anterior (2000-2009), nomeadamente o crescimento repentino do número de doutoramentos em SVE e a criação do Instituto do Envelhecimento. O estabelecimento de vários grupos/linhas de investigação sobre os temas da velhice e do envelhecimento em várias unidades de I&D já na década em análise (2010-2019) também terá tido um papel importante no forte aumento do volume de publicações. O processo de diversificação dos tópicos de investigação manteve-se, notando-se um acentuar do predomínio do tópico dos cuidados sociais e de saúde, seguido, a uma distância considerável, pelos tópicos da violência contra adultos mais velhos, e da saúde dos adultos mais velhos.
No último período temporal analisado (2020-2023), o número de publicações em SVE já é bastante significativo (50 publicações), sendo de esperar, dado o contínuo crescimento de doutoramentos em SVE e a pressão existente no campo académico no sentido de uma elevada produtividade científica, que no final desta década este número ultrapasse o número da década anterior. O tópico de investigação com mais expressão neste período continua a ser claramente o dos cuidados sociais e de saúde.
Descritos os resultados por dimensão e sub-dimensão de análise, passemos agora para a descrição dos resultados por período temporal, dando-se assim conta das fases de desenvolvimento da SVE em Portugal. Os construtos “institucionalização inicial”, “consolidação institucional” e “institucionalização avançada” foram pedidos de empréstimo a Machado (2022).
Período embrionário (antes de 2000)
O período antes de 2000 corresponde à fase embrionária da institucionalização do campo da SVE em Portugal, em que se criaram as condições para o início da sua institucionalização durante o período temporal seguinte. Nesta fase embrionária, as bases institucionais da SVE eram praticamente inexistentes, pois apenas se registou a publicação de um número temático de uma revista do campo das ciências sociais sobre os temas da velhice e do envelhecimento. É também nesta fase que surgem as primeiras teses de doutoramento com um foco na SVE, os primeiros sociólogos com investigação em SVE, e as primeiras publicações em SVE. Tanto as teses de doutoramento como as publicações debruçaram-se maioritariamente sobre o envelhecimento demográfico e suas implicações socais, nomeadamente em termos da proteção social dos adultos mais velhos, das relações intergeracionais, etc. Pode-se, assim, afirmar que a demografia deu um contributo importante para a gestação da SVE em Portugal.
Institucionalização inicial (2000-2009)
As bases institucionais da SVE começaram a consolidar-se durante a década com início no ano 2000, pois em todas as suas sub-dimensões se registaram desenvolvimentos relevantes. Foi durante esta década que se criaram os primeiros programas de doutoramento em sociologia, que permitiram um crescimento muito forte do número de doutoramentos em SVE nesta mesma década. Foi também nesta década que foi criado o Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa, a primeira unidade de I&D direcionada especificamente para os temas da SVE. No domínio da publicação, foram publicados dois números temáticos em revistas científicas nacionais sobre os temas da SVE, que contribuíram para a dar visibilidade social e científica a este campo, bem como para a diferenciação deste em relação a outros campos científicos. A afirmação da SVE deu-se, ainda, através da criação de uma área temática na APS focada nas questões do envelhecimento e da velhice. É ainda de salientar o aparecimento das primeiras publicações em revistas/editoras internacionais, embora o volume de publicações se tenha mantido relativamente baixo durante este período. Em acréscimo ao reforço das bases institucionais, durante este período observou-se, como já foi referido, a realização de um número significativo de teses de doutoramento com um foco na SVE. Este facto, aliado à entrada de doutorados noutras especializações da sociologia no domínio da investigação em SVE, resultou num forte crescimento do número de investigadores em SVE.
Consolidação institucional (2010-2019)
A consolidação institucional da SVE em Portugal dá-se, definitivamente, durante o período que vai desde 2010 até 2019. Todas as bases institucionais se reforçaram durante este período, com a exceção das sub-dimensões da publicação e da associação, que mantiveram os níveis de consolidação do período anterior. A sub-dimensão institucional que mais se reforçou foi a da investigação, que é central em qualquer campo científico (Machado, 2022, 2023). Apesar de o Instituto do Envelhecimento ter passado a Observatório do Envelhecimento, com a perda de visibilidade institucional que estra transformação acarretou, assistiu-se à criação de grupos/linhas de investigação em quatro grandes centros de investigação no domínio das ciências sociais, que incluíram o envelhecimento e a velhice como um dos temas a explorar. Além disto, Portugal passou a integrar o projeto multinacional “SHARE”, passo importante para o estímulo da pesquisa sobre os temas da velhice e do envelhecimento. As bases institucionais da SVE foram ainda reforçadas por via do ensino, através do alargamento da oferta de programas de doutoramento em sociologia a todo o território nacional, e por via da internacionalização, através do forte crescimento do número de publicações em revistas/editoras internacionais, e do aparecimento das primeiras publicações em coautoria com investigadores estrangeiros. Ainda no respeitante a publicações, neste período temporal o número de publicações disparou para números nunca registados, refletindo não só o contínuo crescimento do número de sociólogos com publicações em SVE, mas também, muito provavelmente, o aumento da produtividade científica destes últimos, decorrente das exigências subjacentes à avaliação de desempenho nas IES e unidades de I&D.
Institucionalização Avançada? (a partir de 2020)
Desde 2020 até 2023 nota-se uma estabilização das bases institucionais da SVE, com exceção da sub-dimensão do ensino, dado que em 2021 se criou um doutoramento interuniversitário com um foco nos temas da velhice e do envelhecimento, em que a sociologia é uma das suas áreas científicas dominantes. Esta foi, até agora, a grande novidade ao nível das bases institucionais da SVE em Portugal durante este período, que poderá dar um contributo importante para a formação pós-graduada nesta área científica. No que concerne às outras sub-dimensões das bases institucionais, é de referir a publicação de mais um número temático sobre os temas da velhice e do envelhecimento, e a manutenção da tendência anteriormente identificada da publicação em revistas/editoras internacionais, embora o número de publicações em coautoria com investigadores estrangeiros continue relativamente baixo. É também de realçar o número significativo de teses de doutoramento em SVE, o contínuo crescimento do número de sociólogos com investigação em SVE e o número significativo de publicações. Os números já alcançados nestes três últimos indicadores durante os 4 anos em análise faz antever um cenário de contínuo crescimento durante os próximos anos, que poderá ser superior ao crescimento registado durante o período anterior. A questão que fica por responder é se nos próximos anos a SVE em Portugal alcançará a institucionalização avançada. Os dados referentes a 2020-2023 parecem apontar nesse sentido, embora os futuros desenvolvimentos possam não ser suficientes para que tal institucionalização venha a acontecer.
Discussão dos resultados e considerações finais
No seu trabalho sobre investigação sociológica em Portugal, Machado (2022) considerou que a SVE estaria perto da consolidação institucional (fase anterior à institucionalização avançada). Os resultados da pesquisa reportada neste artigo evidenciam que esta sociologia especializada já atingiu esta fase, embora apenas durante a segunda década do séc. XX. Curiosamente, apesar de a fase embrionária da institucionalização da SVE se ter iniciado em finais dos anos 70 do séc. XX, as suas bases institucionais só se consolidaram efetivamente três décadas mais tarde, numa altura em que a investigação sociológica portuguesa como um todo já tinha alcançado a fase da institucionalização avançada há cerca de uma década atrás (Machado, 2022).
A consolidação tardia da SVE em Portugal deve-se, em grande parte, ao facto de apenas durante a primeira década do séc. XXI se ter estabelecido a primeira unidade de I&D direcionada especificamente para os temas da velhice e do envelhecimento, e de se ter assistido à primeira grande vaga de doutorados em sociologia com um foco nestes temas. Um campo científico não se consegue consolidar definitivamente sem um contingente significativo de investigadores e de estruturas de investigação que os suportem. A consolidação institucional da SVE em Portugal só ocorreu quando estes dois aspetos — unidades/grupos de investigação e contingente de investigadores — foram reforçados durante a segunda década do séc. XXI. Isto não quer dizer que outros desenvolvimentos ocorridos durante esta fase tenham sido irrelevantes para este processo de consolidação institucional, mas não terão sido tão determinantes como estes dois.
Tendo a SVE em Portugal alcançado a fase da consolidação institucional, a questão que se levanta é se nos próximos anos assistiremos à sua institucionalização avançada. Isto dependerá do que vier a acontecer no que toca às várias dimensões de análise aqui consideradas. Entre 2020 e 2023, este campo científico exibe alguns indicadores promissores. O primeiro é o contínuo crescimento do contingente de investigadores, essencialmente por via de novos doutoramentos com um foco nos temas da velhice e do envelhecimento, processo em que o novo doutoramento interuniversitário denominado por “Ciências Sociais e Envelhecimento” poderá ter um papel relevante a médio prazo. Os novos doutorados, desde que integrados em IES ou unidades de I&D, contribuem para a sustentabilidade do campo científico da SVE, pois estes estão capacitados para coordenar unidades curriculares no ensino superior, para orientar teses de mestrado e de doutoramento, e para realizar pesquisas científicas dentro dos limites deste campo. O segundo indicador promissor é o crescente aumento do número de publicações, que tendencialmente se realizam em revistas/editoras internacionais, sendo isto um reflexo do dinamismo dos investigadores deste campo científico.
Todavia, o campo científico da SVE deixa transparecer algumas fragilidades, sendo talvez a mais relevante a ausência de uma seção temática na APS sobre os seus temas privilegiados. Em face desta realidade, até que ponto é que existe uma comunidade científica de sociólogos da velhice e do envelhecimento, com uma identidade própria, distinta de outras comunidades científicas? A inexistência de uma tal seção não promoverá a circulação destes sociólogos por outras comunidades científicas bem consolidadas? Esta é uma questão a que este artigo não consegue dar uma resposta sólida, mas que seria importante explorar em futuras pesquisas.
O futuro da SVE em Portugal não depende apenas das dinâmicas internas ao seu campo científico, mas também do que se passa à volta deste. A este respeito, identificam-se algumas oportunidades, mas também algumas ameaças. As oportunidades prendem-se com a crescente relevância social dos temas da velhice e do envelhecimento, que favorecerão o aumento da procura de pesquisas sobre estes temas por parte de entidades públicas e privadas. Associado a esta crescente relevância social poderá estar uma maior oferta de dispositivos de financiamento de investigação científica. O “reverso da medalha” destes processos poderá ser uma certa ingerência das entidades compradoras/financiadoras da investigação no campo estritamente científico, que poderá comprometera a sua autonomia.
As ameaças poderão vir, por um lado, das políticas de financiamento do ensino superior e da investigação que, a entrarem numa lógica de austeridade, comprometerão o desempenho dos dois indicadores promissores acima referidos. Por outro lado, as ameaças encontrar-se-ão nas relações entre o campo científico da SVE e outros campos científicos. Se as relações com a demografia, a sociologia da família e do género, e a sociologia da saúde parecem pacíficas e de alguma complementaridade, as relações com a gerontologia social poderão enfraquecer a identidade da SVE. Por exemplo, Higgs e Gilleard (2023) sugerem que a SVE não tem verdadeiramente abordado os temas do envelhecimento e da velhice de uma forma sociológica devido ao seu entrelaçamento com a gerontologia social. Na ótica destes autores, este entrelaçamento faz com que a SVE acabe por dar primazia aos temas prediletos da gerontologia social, como por exemplo as políticas sociais e de saúde e a defesa dos direitos dos adultos mais velhos, em detrimento de temas com relevância sociológica, tais como os contextos estruturais do envelhecimento, as suas representações simbólicas, bem como a experiência vivida do envelhecimento.
Uma outra ameaça para a SVE poderá residir nos próprios tópicos que privilegia. Como vimos, os três tópicos mais investigados em Portugal no domínio da SVE são os dos cuidados sociais e de saúde, da violência contra adultos mais velhos, e da saúde destes últimos. Se, por um lado, estes tópicos estão em convergência com a agenda internacional de investigação (o que poderá ser entendido com um aspeto positivo), por outro lado, eles são também alvos privilegiados da gerontologia social (principalmente o primeiro), que adota um olhar próprio e que, em Portugal, se poderá tornar mais preponderante do que o olhar sociológico, e até exercer algumas influências sobre este último, com potenciais riscos para a identidade da SVE.
A institucionalização avançada da SVE em Portugal estará, assim, dependente do efeito conjugado destes múltiplos fatores.
Este artigo não esgota o tópico abordado, devendo ser entendido como um primeiro contributo de sistematização, a ser aprofundado em publicações futuras.
Financiamento
Este artigo é financiado por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UIDB/04020/2020 com o DOI: https://doi.org/10.54499/UIDB/04020/2020.
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Data de submissão: 22/03/2024 | Data de aceitação: 19/11/2024
Notas
Por decisão pessoal, o autor do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.
[1] Para uma revisão das diferentes correntes da sociologia da ciência, ver Restivo e Croissant (2008), e Sismondo (2008).
[2] Um programa de doutoramento integra uma parte curricular destinada ao desenvolvimento de conhecimentos e competências necessárias para a obtenção do grau. Antes dos programas de doutoramento existiam apenas as áreas de doutoramento, que não contemplavam um plano curricular.
[3] Pode-se ainda acrescentar um número temático da revista Economia e Sociologia (N.º 56, 1993) dedicado ao tema do envelhecimento, do Instituto Superior Económico e Social de Évora (Machado, 2022).
Autores: José de São José