N.º 34 - abril 2024
José Manuel Resende
FUNÇÕES: Concetualização, Análise formal, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição, Validação
AFILIAÇÃO: Universidade de Évora, Escola de Ciências Sociais, Centro de Investigação Interdisciplinar
de Ciências Sociais, Pólo de Évora. 7002-554 Évora, Portugal
E-mail: josemenator@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7233-2237
Maria Rosália Guerra
FUNÇÕES: Investigação, Concetualização, Análise formal, Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição, Validação
AFILIAÇÃO: Centro de Investigação para a Valorização de Recursos Endógenos, Instituto Politécnico
de Portalegre. Praça do Município, 11, 7300-110 Portalegre, Portugal
E-mail: rosalia.guerra@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3463-0663
Resumo: A investigação que enquadra o presente artigo tem como objetivo compreender a forma como os seres humanos, em processo de demência continuado, desenvolvem compromissos pessoais baseados na sua dependência com o ambiente de que são feitos, tomando especial atenção ao espaço da casa e às materialidades que o compõem. Metodologicamente, propomo-nos seguir oito casos de pessoas que, por razões da doença, experienciam momentos de descontinuidade do ser, de perda de capacidades, numa espécie de alteração flutuante dos limites de si. Através de uma abordagem etnográfica e de uma perspetiva emic, que tenta ver os fenómenos pelos olhos das pessoas afetadas, observámos de forma participante o seu dia a dia. Especificamente procuramos: compreender os regimes de envolvimento na ação acionados por seres em situação de grande vulnerabilidade; reconhecer a forma como os objetos e os ambientes participam na ação; atentar à forma como estes podem ser mobilizados para o compromisso possível dos atores.
Os resultados dão conta de que a personalidade dos seres em demência, se estende por meio dos objetos da vida. Os seus ambientes de vida, onde se experienciam situações de hospitalidade e de cuidados inserem-se numa ecologia sensível, que pela confortabilidade que assume, torna-se uma âncora existencial que permite levar a humanidade adiante.
Palavras-chave: demência, ambientes, materialidades, capacidade.
Abstract: The research framing this article aims to understand how humans, in a continuous process of dementia, develop personal commitments based on their dependence on the environment they are made of, with special attention to the home space and its materialities. Methodologically, we propose to follow eight cases of people who, due to the illness, experience moments of discontinuity of being, loss of abilities, in a kind of fluctuating alteration of the boundaries of the self. Through an ethnographic approach and an emic perspective, which tries to see phenomena through the eyes of the affected people, we observed their daily lives in a participatory manner. Specifically, we seek to: understand the engagement regimes in action triggered by beings in situations of great vulnerability; recognize how objects and environments participate in action; pay attention to how these can be mobilized for the possible commitment of the actors.
The results indicate that the personality of people with dementia extends through the objects of life. Their living environments, where they experience situations of hospitality and care, are part of a sensitive ecology that, through the comfort it provides, becomes an existential anchor that allows humanity to move forward.
Keywords: dementia, environments, materialities, capacity.
Puxar fios de um emaranhado de coisas[1]
Na temporalidade que perpassa pela modernidade liberal alargada (Wagner, 1996), as sociações (Simmel, 1998) que se constituem esperam dos indivíduos, iniciativa, empreendedorismo e adaptabilidade não apenas no mundo do trabalho, mas também em diversos outros domínios existenciais, tais como o cuidado com o corpo e os seus usos sociais em múltiplos domínios. E as ações e relações tornam-se ainda mais imperativas porque deslocam o pensamento para o lugar de um “eu” que avassalado por uma doença, como uma demência, põe à prova as suas próprias capacidades de agir, e, em particular, juízos e as suas operações críticas em distintos momentos e ocorrências diárias.
A partir de observações exploratórias de gestos de busca inquietante por objetos pessoais, a dificuldade no desapego em relação à casa, o apego a objetos — chaves, bonecos, santos, etc. —, aguçou a vontade de compreender os envolvimentos da pessoa com demência em seus diferentes ambientes e os gestos tangíveis que realiza com as coisas que importam para si.
Seguindo fios a partir de incursões ao ambiente doméstico e social habitado e frequentado por Etelvina, fomos acompanhando experiências de avanços, recuos e composições urdidas por esta mulher no “tear” das suas ações e envolvimentos quotidianos.
A partir de um conjunto de anotações de diário de campo, resultantes dos vários encontros que tivemos com esta mulher[2] que vive em processo de demência continuado, mergulhamos na trama de envolvimentos que tece diariamente numa convivência com o inesperado mundo da doença.
A doença não desfila num terreno virgem. Ela interrompe uma vida cheia de obrigações, esperanças, projetos, relacionamentos, momentos felizes, adversidades, infortúnios, uma vida cheia de problemas e tensões. A doença incomoda e acrescenta novos desafios aos próprios desafios da existência (Rude-Antoine, 2019). Para além de colocar o ser em vulnerabilidade e diante da sua finitude, como acontece noutras doenças, acrescenta a incurabilidade e a progressiva perda do domínio de si.
É comum, que a demência, possa perturbar o modo corporificado de estar no mundo, incluindo, precisamente, o relacionamento com os objetos materiais. Phinney e Chesla (2003) argumentam que esta síndrome envolve uma rutura do corpo habilidoso, de modo que os objetos usados habitualmente, com base no conhecimento pré-reflexivo e incorporado, tornam-se algo que exige uma paragem para repensar o seu uso. As pessoas com demência podem passar um tempo considerável a tentar usar, guardar e localizar objetos e, por isso, tantas vezes, colocam-nos em lugares que lhes parecem mais seguros ou em sítios mais visíveis.
Do ponto de vista da investigação que nos propomos realizar no âmbito de um doutoramento em Sociologia, consideramos que, as ciências sociais não podem desconsiderar atores que, não obstante a doença, são seres sociais. Que lugares de humanidade permanecem no ser humano nos diferentes arrastos da doença? A pergunta ressoa e impulsiona a ida para o campo.
Apesar das suas limitações como é que os atores, nestas circunstâncias, coordenam as suas ações consigo, e com outros que as visitam em suas casas? Com as exigências capacitarias fragilizadas, titubeantes, e, por isso, refugiadas em espaços encerrados dos públicos, como orientam as suas vontades íntimas de poder (Breviglieri, 2012) estar consigo e com outros, movendo-se ainda de maneira autónoma, puxando até aos limites as crenças nessa autonomia? Perante emanações públicas sobre o envelhecimento ativo, e as suas considerações sobre o bem da autonomia das pessoas velhas, que questões sociológicas existenciais levantam estes seres perante os dilemas das suas precariedades cognitivas, reconhecidas ou não por si, e de condições sociais de vida minguadas, instáveis, e, por isso, delicadas?
O ser em demência — o caso de Etelvina
No caso da investigação[3] que enquadra o presente artigo, metodologicamente, elege-se uma abordagem de tipo qualitativo e de pendor pragmático-fenomenológico com o objetivo de compreender o objeto a partir daqueles que o vivem, na relação consigo mesmos, com os outros e com o seu entorno.
Trata-se de um estudo de carácter indutivo, ainda em processo, por isso, aberto e flexível ao curso da investigação. Os estudos qualitativos procuram dar um contributo relevante na compreensão de fenómenos menos estudados (Sampieri et al., 2010). Segundo Lahire, a investigação pode ir mais longe, ser mais audaz, no sentido em que pode construir objetos nunca antes observados (Lahire, 2005/2006).
A recolha de dados pretende ser feita a partir de um mergulho nos contextos de vida das pessoas com demência em fase inicial e moderada, procurando compreender pormenorizada e cuidadosamente aspetos das suas vidas, particularmente o lugar dos suportes materiais que povoam os seus dias.
Partimos de um conjunto de anotações de diário de campo, recolhidas numa pesquisa etnográfica, com recurso à observação direta, por vezes participante, bem como de conversas abertas e relatos de vida, que nos permitiram acompanhar pessoas em processo de demência, sobretudo no espaço da casa[4].
Etelvina vive sozinha, é viúva, tem dois filhos, uma rapariga e um rapaz. Vive numa casa de rés-do-chão, ampla e ajardinada. Sente-se a perder a memória. Há muito tempo que dizia ter demência, doença que diz conhecer por outras pessoas. Informou-nos que há umas semanas tinha ido ao médico e que o diagnóstico veio confirmar o que já suspeitava. “Eu não ´tou louca”. Etelvina diz que as pessoas podem pensar isso. “Estou esquecida e diferente, é o que ´tou” (diário de campo, 15 maio 2023).
Do assombro da perda à luta pela manutenção do ser
À medida que adentramos no campo de investigação, foram-se soltando linhas de reflexão teórica. É o terreno que nos vai, sensivelmente, afetando (Favret-Saada, 1990/2005) e informando sobre os passos a dar. A alusão aos regimes de envolvimento na ação, para a análise do caso que aqui propomos, permitirá compreender as relações não como interrelações face a face, mas num envolvimento complexo e emaranhado com o mundo circundante, o ambiente habitado por seres frágeis, com limitações cognitivas.
A confrontação da vida com os outros — a família e os serviços de apoio domiciliário, supõe o reconhecimento de uma diferenciação significativa entre as relações humanas, por um lado aquelas que ligam os humanos de forma próxima (envolvimento familiar) e, por outro, aquelas que requerem uma ordem pública. A gramática do fazer o comum torna-se possível, muitas vezes, nestas composições entre um regime e outro. Mas, por vezes as deslocações entre uns e outros ou são interrompidas, ou terminam pelas inseguranças manifestadas por quem não sente o desejo de exposição pública.
Esta compreensão pelos envolvimentos em ações no plural (Thévenot, 2006) permite apreender, no contexto de vida dos atores em processo de demência, a forma como as relações cúmplices de proximidade e familiaridade bem como os arrumos e arranjos das pessoas e das coisas contribuem para a manutenção do ser, para o reequilíbrio das suas capacidades deterioradas, para os ajustamentos em situações de crítica e dúvida, evidenciando os momentos em que a capacidade se mantém, mas também aqueles em que se esgota, se esvai, se esfuma (Breviglieri, 2008, 2010, 2016).
Objetos na ação — o que nos traz a nossa observação sociológica?
O interesse pela análise dos objetos presentes na ação vivida pelas pessoas com demência funda-se na observação de que estes são uma presença constante nas suas vidas — como objetos que suportam as capacidades cognitivas, por vezes fragilizadas, outras vezes perdidas e esquecidas. A frequência dos seus envolvimentos com as coisas que se espalham nos seus ambientes habitados não permite estabelecer permanentemente uma classificação convencionada pelos seus usos[5], pese embora, haver momentos em que os hábitos lhes abrem as possibilidades da sua utilização adequada. São envolvimentos porosos, arranjados e compósitos que escrutinam as diferentes modalidades de subjetivação com que se deparam quando se enredam com eles no seu dia a dia. E os vínculos assim estabelecidos com as coisas das mais corriqueiras às mais inesperadas garantem-lhes a continuidade da existência do ser, amplamente fragilizado na demência — da sua competência, capacidade e autonomia.
Considerar os objetos e outras materialidades que são presença no dia a dia da pessoa com demência é compreender a forma como estes são elementos integrantes da ação, tomando parte na feitura e reconstrução da identidade, na demonstração das competências (Bessy & Chateauraynault, 1993; Dodier, 1993; Thomas, 2014), como elementos que antecipam, suportam e orientam a ação (Dodier, 1993). São meios de coordenação dos humanos entre si pelas sintonias e significados que neles são investidos (Thomas, 2017). São elementos que facilitam as táticas de resistência (Breviglieri, 2016). Os objetos são ainda, por causa desta sua dimensão de coordenação entre os seres humanos, invocados em situações de disputa e desacordos, estando presentes em situações de denúncia, justificação e divergências (Boltanski & Thévenot, 1991).
Para Bruno Latour (2015), a separação entre sujeito e objeto é insustentável. A interação social dos humanos, segundo Latour (2015), ou a correlação entre estes, segundo Ingold (2023) parece sempre mais deslocada dum mero frente-a-frente, não é cara-a-cara, mas lado-a-lado. Ingold acrescenta,
onde a interação é transversal, a correspondência é longitudinal. A primeira é delimitada por fins, definidos antecipadamente por cada parte. Estes fins são comummente conhecidos como “interesses”, do latim inter (entre) e esse (ser). A perseguição de interesses, na interação, é como uma oscilação entre dois pontos. Mas a correspondência não é uma conexão de pontos, mas uma vinculação de linhas. Não é interativa, mas sim multilinear.[6] (Ingold, 2023, p. 301)
Latour (2015) considera que, na interação humana, não se pode encontrar simultaneidade, continuidade, nem, ainda, homogeneidade. Mais do que examinar apenas os corpos presentes numa determinada circunstância, é necessário sempre, entre os humanos, recorrer a outros elementos, a outros tempos, a outros lugares, a outros atores sociais, a fim de perceber como as interações são transições corporais rítmicas (Bidet, 2007) consigo próprio ou com outros, mediadas pelas coisas.
No âmbito da perspetiva sociológica do pragmatismo há um interesse pelos estudos que acompanham de perto a forma como os atores se envolvem corporalmente com e nos dispositivos materiais[7] que eles consideram ou que precisam dominar no curso das suas ações. Com as coisas que os cercam, tanto na vida diária dos seus envolvimentos de proximidade e de familiaridade, como nos seus envolvimentos em público, os apetrechos, isto é, os utensílios experimentados são possibilidades e oportunidades que facilitam as transações que operam individualmente ou com outros.
As possibilidades e oportunidades prestadas pelos usos dos utensílios nas ações situadas nem sempre exigem gestos de cognição apuradas. Por vezes refletem maneiras mínimas de compreensão proporcionadas pela rotina que conforta as ações do dia a dia.
Procuramos compreender como a demência (re)faz os objetos e como os objetos estão presentes nos seus espaços habitados onde dão mostras das capacidades e incapacidades, das habilidades e debilidades, dos atores que vivem este processo. Ainda que os objetos possam frequentemente manter a forma, são apreendidos, utilizados, combinados e arranjados de formas distintas, e servem, tantas vezes, como força de recordação, como garantia de continuidade e envolvimento, como guias flexíveis e ajustáveis às situações do momento, mas também como empecilhos, estorvos que dificultam a vida diária destes seres.
Envolvimentos de proximidade num mundo de fragilidades
Para compreender as formas de apreensão e de envolvimento no mundo, abrimos um parêntesis para compreender, sumariamente, aquilo a que é entendido quando falamos em memória, particularmente, aquela designada por memória corporal.
Gaete e Fuchs (2016) transportam-nos para a questão do corpo subjetivo ou vivido, que tem a sua própria história. Desde a primeira infância, as suas experiências sedimentaram-se em hábitos sensório-motores e capacidades de lidar com os objetos e com as outras pessoas. Todos estes hábitos e experiências podem ser reunidos na memória corporal e isso aponta para uma continuidade da pessoa que não está enraizada num repertório de memórias mas sim numa experiência sedimentada (Fuchs, 2020) ou numa experiência corporal emocional (Gaete & Fuchs, 2016).
A memória corporal contém o passado como experiência acumulada e atualmente efetiva, sem exigir a recordação de situações anteriores. Esta memória corporal está ligada a outros usos da memória que Fuchs apresenta:
i) A memória processual, relacionada com as capacidades sensoriomotoras do corpo:
hábitos bem praticados, o manuseio hábil de instrumentos, bem como a familiaridade com padrões de perceção, adquiridos por repetição e prática. Essa memória alivia a nossa atenção de um excesso de detalhes e possibilita as atividades não reflexivas da vida quotidiana. (Fuchs, 2020, p. 668)
Este hábito, segundo Ricoeur, permite uma apreensão das coisas porque estas tornam-se extensões habitadas do corpo que adquire um “poder de facilitação” e de “espontaneidade natural” (Ricoeur, 1998, citado em Breviglieri, 2012, p. 9).
ii) A memória corporal situacional permite-nos reconhecer situações familiares e lidar habilmente com elas. Tal diz respeito a situações espaciais particulares nas quais nos orientamos, como num espaço habitado. As experiências corporais ligam-se particularmente aos espaços interiores e, quanto mais frequentemente isso acontece, mais a sala se enche de ambiente familiar e intimista. “Habitar” e “hábito” são igualmente fundamentados na memória do corpo (Fuchs, 2020, p. 668), trata-se de uma memória ancorada no espaço habitado (Breviglieri, 2012), extensões territoriais, circunstâncias e momentos em que os seres usam-na com tranquilidade, segurança e conforto.
Quando estamos perante situações que perturbam a segurança deste ser, tornando-o ainda mais vulnerável, desconfiado e desestabilizado, a experimentar momentos de esgotamento das suas capacidades cognitivas, voltamo-nos para o questionamento de como estes atores garantem a continuidade dos seus envolvimentos no mundo. É sobretudo a partir de uma filosofia da vontade e de uma fenomenologia da perceção (Breviglieri, 2012) que podemos compreender as formas sensíveis elementares e primitivas a partir das quais os sujeitos continuam a apreender as habilidades e a orientar-se no mundo em que se reconhecem mais no plano orgânico que humano (Breviglieri, 2012). A interpenetração no ambiente envolvente dá-se a partir de uma ligação sensível do corpo, tratando-se não apenas de um ambiente que garanta a preservação da vida, mas de um lugar habitável, onde se encerra um envolvimento, que confere uma segurança íntima.
Ainda que envolvidos numa fragilidade desestruturante, há uma vontade, por vezes, pacífica de viver, uma espécie de impulso vital para a vida (Simmel, 1999) que é também uma sensibilidade orgânica que inclina os seres para o mundo (Breviglieri, 2012). É preciso atentar sobre os fenómenos corporais e afetivos para compreender como estes permitem diferentes formas de fazer e participar do comum, mesmo quando, no nível mais involuntário e mais elementar da conduta, onde não se joga a partir da capacidade, mas sim a partir de um sentimento de estar vivo sobre o qual surge um fundamento corporal que permite manter a subjetividade e manter a humanidade que se encerra em cada ser (Breviglieri, 2012). Para compreender esta ideia é preciso, como propõe Ricoeur, “regredir para a vida pura” (Ricoeur, 1998, citado em Breviglieri, 2012, p. 8) até ao involuntário absoluto para nos voltarmos para a vida que continua a partir de esquemas corporais assentes num ambiente familiar, confiável. É possível, como alude Breviglieri (2012, p. 8) “estabelecer uma antropologia do habitado atenta a esta busca primitiva de um enraizamento sólido que oferece ao homem uma segurança íntima de poder deixar- se levar na evidência do visível”. A mobilidade e o envolvimento é facilitada por um espaço benevolente sedimentado em pistas sensoriais que consolidam um apego, uma ancoragem estabilizada por coisas que não precisam ser ditas, nem explicadas e fundamentadas, um refúgio consolador que permite o descanso. É este habitado[8] construído numa arquitetura protetora e cativante que sustenta o envolvimento que é, muitas vezes, um “deixar-se ir”.
A continuidade da pessoa assenta, assim, numa capacidade distribuída. A personalidade é distribuída pelo seu meio envolvente (Thévenot, 1994). O ambiente e as coisas assumem um uso personalizado que alarga a superfície da pessoa, permitindo a sua continuidade. A partir de uma convivência prolongada há uma acomodação e um ajustamento entre pessoas e coisas que, desligadas de funções meramente cognitivas, mas mais corpóreas, físicas e de toques sensíveis, contribuem para assegurar a manutenção da pessoa (Thévenot, 1994). Para Breviglieri (2006 p. 1) “Os seres e as coisas que nos habitam inscrevem, no seio da nossa personalidade, um pano de fundo de história partilhada que se sente sob a dimensão afetiva da vinculação”.
É das situações limites que mergulhamos ao observar Etelvina a deambular nos seus mundos. É um vaguear em momentos em que os seus lados habitados se encontram enfraquecidos, dando mostras que a segurança mínima de poder se encontra debilitada. A sua vitalidade diária é agora transferida para as forças orgânicas do seu corpo, e não mais para atos que envolvem esforços cognitivos e avaliadores. Daí o seu cansaço e os seus receios em entrar em territórios públicos, nos quais não se sente à vontade. Os seus apegos são agora circunscritos à memória corporal da sua existência na casa com as coisas que ali estão espalhadas que nunca a abandonaram em nenhuma circunstância.
As âncoras do ser: da hospitalidade, ao “cuidado com”
Quando visitámos Etelvina pela primeira vez, fizemo-lo acompanhados pela profissional de apoio domiciliário da instituição que cuida dela. Esta primeira visita, serve de impulso à reflexão em torno do caso de estudo.
A porta da rua estava entreaberta. A profissional empurrou-a, chamando Etelvina que responde de imediato, informando que já estava à sua espera.
A profissional de apoio entra para a cozinha e vai abrindo uma mala que traz com marmitas lá dentro. Coloca-a em cima da bancada e vai perguntando a Etelvina como se sente, avisando-a que a sua persistência em querer manter- se em casa sozinha só lhe faz mal. Etelvina olha para a profissional com uma expressão de desconforto e avança com um “até que eu possa, é aqui que eu quero estar”, afirmação que é acolhida com uma mão na mão entre ambas.
“Eu sei que que já não sou a mesma Etelvina mas enquanto eu puder…”
Etelvina vai acompanhando a profissional para onde esta vai, percorrendo as divisões da casa com o objetivo de ver se há lixo para despejar ou roupa suja para lavar, sob o comando da voz da profissional que vai apelando a que a acompanhe para, juntas, identificarem o que precisa de ser arranjado. Etelvina vai atrás da profissional, os seus passos e as suas expressões imitam as da prestadora de apoio. À medida que esta se espanta com as coisas sujas, Etelvina faz o mesmo, olhando para as coisas como se não tivesse sido ela quem as deixou assim. (diário de campo, 15 maio 2023)
Apelando às suas capacitações mínimas e vitais, responde logo que é chamada pela profissional que visita em casa. Informa que estava à sua espera, mas esse aguardar não denota o cumprimento de um plano, de um agendamento assentado. Para Etelvina os intervalos de tempo entre estar só ou acompanhada por quem a visita não é a consumação de uma previsão. É a voz da profissional que lhe assegura que esta vem como combinado.
A observação feita que já é tempo de abalar de sua casa não é devolvida por uma resposta que denota reconhecer estar a ser repreendida por esta profissional. Manifesta um desejo de estender o tempo, e não uma recusa em sair quando o momento chegar. Mas como não há a noção de plano, de validade de prazo, ensaia deixar-se estar. O encontro das mãos dita o resto, o sossego corporal que regista a compreensão mútua de natureza corpórea e já não ingrediente cognoscível.
Esta intervenção da profissional do apoio domiciliário faz puxar o fio do debate em torno do conceito de hospitalidade, compreendendo a efervescência que tal conceito tem tido no debate sociológico nos últimos anos, sobretudo para pensar os seres humanos, em situação de vulnerabilidade, que necessitam de apoio às suas capacidades em esgotamento. Para Jean-Louis Genard, o conceito tem vindo a assumir um significado moral superior face aos seus sentidos políticos e jurídicos imediatos ou trabalhados reflexivamente. Problematizá-lo e discuti-lo desagua na discussão em torno da ideia de “moralização” da crítica social (Genard, 2011, 2015). Através desta dimensão moral,
a pertinência do conceito de hospitalidade reside na sua capacidade de traçar, de redesenhar ou de repensar o horizonte de obrigações perante aqueles a quem se dirige ou melhor e, mais ainda, no seu potencial de reescrever a questões da relação com o Outro na sua vulnerabilidade, em particular o Outro “distante” quando este “distante” chega a “mais perto”, ou pensar nas condições a oferecer para ele se chegar mais perto, para se aproximar. (Genard, 2018, p. 3)
Como se extrai do uso da categoria, mais do que a dimensão moral do termo, a hospitalidade deve assumir a ação de ir ao encontro, de estar com o outro, que neste caso é Etelvina, que não obstante as fragilidades cognitivas retribui em uma mutualidade expressa organicamente: estende a mão para corresponder ao gesto da senhora que está ali ao seu cuidado. Mostra-se atenciosa no seu gesto, num ritmo à mercê das suas debilidades. E a prestadora de cuidado e de apoio social responde num vai e vem entre declarações que estão sustentadas em suportes convencionais — indo ao encontro daquilo que dita a oficialidade da visita e os seus efeitos — e outros arranjos mais sensíveis tendo em conta as circunstâncias desta experiência profissional.
Etelvina vive nesta ambivalência entre “o saber que já não é a mesma” e o “enquanto eu puder”, ficando hesitantemente permeável à ajuda da profissional de apoio. Há um gesto repetido, uma imitação de reações, um caminho trilhado em conjunto que marca um “fazer com”, um “fazer junto”, não deixando, contudo, de expressar as suas inquietações relativamente suavizadas com o encontro sensível das mãos, que se sobrepõem uma sob a outra, selando um assentimento tácito, corporal, mas vital para Etelvina.
E do registo apurado, a prestadora de apoio e cuidado usa a cumplicidade para adentrar nos cómodos mais íntimos onde Etelvina circula. Não demos nota de um pedido de autorização para o fazer, não obstante a inexistência de reprovação da outra parte. Em face da experiência limite e das circunstâncias frágeis de como resiste a humanidade de Etelvina, estar-se em cuidado requer de quem cuida atenções em diversas linhas, sejam linhas de atuação sequencial ou sobrepostas. E uma delas reside no estabelecimento de uma linha frouxa, mole no seu formato, entre a intervenção profissional e a não invasão deliberada e não autorizada nos espaços mais íntimos do ser objeto de cuidado.
Ambiências — A casa como lugar privilegiado para estar e ser
Voltamos ao momento da chegada à cozinha para descrever o ambiente,
Entrámos em sua casa, através de um pequeno hall que dá acesso às várias divisões da casa. À esquerda a cozinha, lugar onde Etelvina estava sentada. O seu semblante parecia estar em modo “espera”, fixada na janela que figura em frente do seu sofá. Etelvina estava parada, envolvida num mundo cheio de coisas, circunscritas, aparentemente, às paredes daquele espaço. (diário de campo, 15 maio 2023)
Foi para aí que a profissional nos dirigiu. Encontrámos um lugar onde demorámos tempo. Ao adentrar no espaço da cozinha, encontrámos marcas de uma atmosfera peculiar (Breviglieri, 2013). Naquele espaço que há minutos era apenas ocupado por Etelvina, com a nossa chegada, introduziu uma dinâmica diferente que a retirou da atitude de espera para uma atitude de encontro.
Etelvina apresenta-nos a sua casa, falando apenas daquela divisão, apresenta-a como o lugar onde passa a maior parte dos seus dias, “é aqui que estou sempre e que faço as minhas coisas. Faço aaaaaa… muitas coisas. Ainda faço muitas coisas. Veja como ainda faço muitas coisas”. (diário de campo, 15 maio 2023)
Etelvina convive, diariamente, com a perda da sua memória, situação que inaugura, nela própria, uma nova forma de comunicação — fragmentada, repetida e povoada de palavras e gestos de busca. “A profissional de apoio diz que foi necessário passar a entregar as refeições já feitas, dado que havia o risco de se esquecer do fogão acesso” (diário de campo, 15 maio 2023).
Em primeiro lugar, detivemo-nos na descrição, inicial, do espaço, por um lado com objetos estabilizados, aparentemente não mexidos há anos e com outros com ar de baralhados, com convivências improváveis e usos imprevisíveis,
O relógio na parede está parado, marca três horas antes das horas do momento. A cozinha é um lugar pequeno com janela para o jardim exterior da casa. Nesta janela figuram dois vasos com flores com aspeto de que secaram por falta de rega. Há múltiplos objetos, de várias cores e texturas e cheiros a alimentos estragados. Entre estes objetos há vários que denunciam as preferências e as escolhas de Etelvina outros que parecem esquecidos e intocados.
Quando se entra tem uma bancada que suporta o lava-loiças. Aí podemos ver talheres sujos e pedaços de pão com uma forma rígida que podemos tocar, sentindo que estavam duros. No centro da cozinha há uma mesa de sala, redonda, cheia de objetos, variados, que Etelvina foi puxando para perto de si (segundo nos informou a profissional de apoio). Aí, pudemos encontrar mais pedaços de pão duro. Imagens de santos em estampas outras em figuras pequenas. Um recipiente cheio de amêndoas sem pele e papéis, alguns deles com inscrições religiosas outros com números de telefone escritos. Tesouras. Colheres. Uma taça com fruta com um cheiro a estragado. Um cancioneiro de músicas. Um fogão que está fechado com uma tampa, no qual figuram caixas de medicamentos e papéis com informações em letras grandes com as horas a que devem ser tomados. No frigorifico estão papéis-lembretes onde se pode ler “apagar a luz”, “apagar o aquecedor”, “fechar a porta”, “Chave-Mala-Telemóvel”. Um papel com marcação de análises, um outro com a data de uma consulta. Papéis escritos e afixados pela filha de Etelvina que coloca, num lugar visível, estes auxílios à memória da mãe. Há um armário cheio de fotografias de pessoas de várias idades. (diário de campo, 15 maio 2023)
Após entrar naquele espaço, deixamos para trás o espaço da rua, o espaço público, cada vez mais distante de Etelvina que na maior parte das vezes, mostra-se mais fechada sobre o seu espaço da casa – segundo nos informa a profissional de apoio. (diário de campo, 15 maio 2023)
Para entrar no espaço interior de casa de Etelvina tivemos que passar pelo jardim de sua casa. Um local arranjado, repleto de hortênsias que viemos a saber, pela profissional de apoio, serem cuidadas pela sua filha, depois de longos períodos de abandono, ao qual Etelvina as vetou. (diário de campo, 15 maio 2023)
Etelvina passava por elas como passa pelos objetos que endureceram com o tempo. Não os toca, não lhes presta atenção. Este jardim, informa desde logo, que o espaço de casa desta mulher é um lugar intervencionado por terceiros, a presença da filha e da profissional do apoio, cujas idas são, agora, motivadas pelas circunstâncias da doença.
A profissional de apoio coloca uma cadeira para mim em frente a Etelvina e fica na nossa retaguarda, em pano de fundo, a ouvir a nossa conversa. Vai interrompendo o nosso diálogo para ir espicaçando Etelvina para se dar a conhecer e falar das suas angústias.
Ainda estávamos na presença da profissional de apoio, quando chega a filha de Etelvina. Entra pela porta entreaberta, sem avisar que vai chegando.
Etelvina começa, impulsionada pela profissional de apoio que lhe sugere que se apresente, a nomear alguns dos objetos que tem em cima da mesa, seguindo a proposta que lhe foi lançada. “Tenho tudo aqui à mão”, apontando para as coisas que tem na mesa. Etelvina começa, ali mesmo, a procurar objetos. Remexe pelo meio destes, numa atitude de busca, tira uns para cima dos outros, olha-os com um tempo demorado, até que encontra uma fotografia sua com uma aparência de mais nova. A filha, ao mesmo tempo que a mãe procura os objetos, sussurra baixinho sobre o estado em que a mãe tem as coisas, voltando-se para mim e para a profissional, informando-nos que desde que surgiram os primeiros sinais da doença, que a casa assumiu este estado, de que todas as coisas saíram dos armários e estão quase em cima da mãe”. (diário de campo, 15 maio 2023)
A cozinha denuncia uma atmosfera mais “interior” (Breviglieri, 2013), com uma luz baixa, intimamente vivida e que deixa evidente, nos contactos que fomos tendo, neste espaço, a existência de ritmos e movimentações ambivalentes, ora de desligamento, ora de aproximação. À medida que entro neste espaço, sinto como se mergulhasse num ambiente com temporalidades, cores, luminosidade e cheiros inesperados.
Etelvina está sentada naquele sofá junto à mesa da cozinha. Segura o seu corpo contra a mesa, numa proximidade que lhe permite um fácil acesso a tudo aquilo que exibe e que está sobre o móvel. É um ambiente arranjado que esta mulher foi compondo para apoio à sua atual condição, em que as suas capacitações menores inauguram uma outra estética do lugar, que denuncia uma ligação única e menos convencional entre si e os seus objetos. Trata-se de uma personalidade distribuída. Como informa Thévenot,
A personalização das coisas é uma operação interessante porque associa as exigências práticas do controlo da atividade às condições de manutenção da pessoa. Não se trata apenas da distribuição de uma pessoa sobre as coisas, mas também, inversamente, da constituição de uma personalidade com base em laços familiares. A distribuição aos que o rodeiam dá ao ser humano uma consistência com uma personalidade própria. As coisas personalizadas não se desligam da pessoa que delas se apropriou, mas alargam a sua superfície e garantem a sua continuidade. (Thévenot, 1994, p. 95)
Comida, objetos religiosos, livro de canções, papéis… que, ao longo do nosso encontro, vai tocando e chamando para si, para falar daqueles que seleciona para se apresentar. Mexe nos objetos em gestos de busca inquietante, não encontra facilmente o que quer, mas não desiste da procura. A cada objeto que pega, olha-o com uma atitude de leitura do mesmo, mexendo com as mãos, revirando-os em todos os seus lados, como que à procura do seu significado e possibilidades descritíveis, mas que por incapacidades já não decifra os seus sentidos plenos.
A sensação que nos preenche quando entramos naquele espaço traz um sentimento de intimidade, de lugar de convívio íntimo entre esta mulher e as coisas. Este lugar parece estar revestido de uma organização nova, pensada a partir da necessidade de ter uma relação próxima, mais primitiva e orgânica com os objetos. Etelvina quer tê-los por perto, dá uma maior atenção a uns e outros não são mais alvo das suas ponderações. É, contudo, uma atenção alheada dos seus manejos em conformidade com os seus usos. São objetos vitais do ponto de vista da sensibilidade corpórea, orgânica, e já não para a funcionalidade a que se destinam como coisas com que operava outrora.
Sendo vitais para si, para a sua agilidade habitual, rotineira, que naquele espaço dá mostras expressivas aos outros que a visitam em casa, então aquele ambiente, é como refere Thévenot (2004) um lugar equipado por objetos que são por si reconhecidos, mesmo que não sejam identificados de modo apropriado, de acordo com aquilo que está convencionado para o seu uso. E em contextos apetrechados os objetos servem de dispositivos, não só para a ação entre Etelvina e o outro com quem está a transacionar gestos, mas também para se coordenar consigo própria.
É possível captar a nomeação dos objetos comuns (nem sempre em conformidade com as suas caraterísticas), e percebê-la transformada, pelo toque e pelos cheiros com os quais fomos captando a sinalização que dá daquele espaço. Embora a forma aparente dos objetos se mantenha, estes são usados para novos fins, como o frigorifico que se transforma em painel de lembretes, tática que auxilia a memória enfraquecida. Alguns objetos estão acumulados e retirados dos armários, todos acessíveis ao olhar, ao contacto de proximidade, à convivência lado-a-lado, em uma simetria não retilínea, isto é, em que há divergências entre formas e seus conteúdos (Simmel, 1999).
O espaço da cozinha, dá conta de um ambiente transformado por um ser em mudança, que vem vindo a mexer nos objetos da casa, rearranjando-os a partir de uma nova afetividade e sensibilidade face ao seu mundo, seja por afastamento, apatia, aperto de possibilidades, seja por aproximação aos suportes que a ligam à vida. É um ambiente que põem em foco capacidades e incapacidades, apegos e desapegos, uma autonomia relacional e a necessidade de apoio.
Objetos-identidade: A fotografia
Voltando a este momento, em que a profissional impulsiona Etelvina para falar de si, esta começa a fazê-lo por meio de objetos. A profissional vai ajeitando o espaço da cozinha, e, enquanto lava a loiça, vai pontuando esta nossa interação, com frases para que Etelvina continue a falar. A sua filha que também estava em casa, vai estando na cozinha e outras vezes sai para o jardim.
Etelvina afasta com as mãos os outros objetos, à procura daquele que lhe interessa, pega na sua fotografia de quando era mais nova, aquela que procurou no meio dos outros objetos que tinha em cima da mesa. Ao encontrá-la, suspira, para se olhar, ao ver-se começa a descrever a fotografia — “os meus cabelos, que negros, anda cá oh Etelvina, como tu eras. Que bonita. Toda a gente dizia que eu era bonita. Esta sim, esta é a Etelvina, toda bonita, de lábios e olhos pintados, colares e brincos, ihhhh que linda!” (suspira e assume um olhar terno). Continua a olhar-se, cerra os olhos, afasta e aproxima o retrato, uma e outra vez para exclamar: “tem alguma coisa a ver com este farrapo” (apontando para si mesma). (diário de campo, 15 maio 2023)
Etelvina permanece uns dez minutos, neste olhar demorado, afastando e aproximando a fotografia, num ajeitar de gestos, dizendo baixinho “como eu era e como eu estou” (diário de campo, 15 maio 2023). Etelvina vai demonstrando um olhar que se foca, cerrando-o, para ver com detalhe cada pormenor da sua cara, dos cabelos, dos olhos. Fala sobre si, como se vê e como os outros a viam. Ao descrever-se, olhando a foto, aparenta querer repousar a sua identidade naquela que está projetada na imagem. Compara a imagem da fotografia com a ideia que tem agora de si. Vê o si mesmo como um outro que lhe está distante, objetivando-se em uma imagem tão longínqua no tempo, que no momento se aponta como um farrapo. Reconhece-se numa lembrança distorcida de si.
O questionamento sobre si, remete imediatamente à questão da identidade: Quem é a pessoa da fotografia, quem a observa, como se vê, quem são os outros que são relatados na descrição? Essas interrogações sobre a identidade levam a renovar a antiga dialética entre o Mesmo e o Outro, pois o outro pode ser dito de várias maneiras, e o si também pode ser considerado como outro (Ricoeur, 1990). No caso presente, estamos perante uma composição de um outro com o qual não se reconhece como si mesma. Há traços de si, mas o seu rosto encontra-se desgastado pelos desdobramentos de um outro tempo que já não é o mesmo.
Etelvina, nesta procura pela sua fotografia, demonstra uma busca pelos seus lugares seguros e de realização, numa busca tateante de um sentido e de uma imagem de si mesma para apresentá-la aos outros. Há um jogo de cumplicidade entre ela e as coisas que ajudam a falar de si. A fotografia é agora mais que um papel, parecendo ganhar a vida que Etelvina lhe quer dar. É um objeto que lhe serve de dispositivo, através do qual se dá a conhecer aos outros, coordenando gestos desajeitados, por intermédio de esgares, que lhe fazem lembrar um outro rosto, que apesar de já não existir permiti-lhe apresentar-se como está naquele momento.
Por outro lado, nota-se uma espúria reciprocidade, na interação como transação rítmica de si para com quem está a presenciar esta cena. A natureza espúria não significa que a permuta signifique adulteração de si, que não haja gestos genuínos. O que lhe acontece nesta ocasião é dar-se conta que a fotografia lhe mostra a ausência de caraterísticas que já não lhe são habituais.
Há, agora, um rosto deformado. Mas o reconhecimento que já não é bela como outrora não a impede que pressuponha que está ali num estado de igualdade (Simmel, 1999) com os outros que escutam esta apresentação de si através da conversa sociável como experiência gratificante. Não obstante a transfiguração do seu rosto Etelvina reconhece- se como semelhante ao outro que está naquele momento consigo. É uma figuração de si que face a face (Goffman, 1974) não obscurece a sua humanidade análoga a qualquer outro que também a reivindica como sua.
Conclusão
No contexto de modernidade liberal alargada (Wagner, 1996) em que as políticas públicas sobre o envelhecimento apontam o seu centro nevrálgico para a autonomia na velhice, o prolongamento da vida tem estado a ser desafiado por distintas situações e condições em que estão envolvidos os seres humanos mais envelhecidos. Com a visibilidade pública de um maior número de doenças crónicas, a perda de si, marcada pela gradual privação da memória e de outras funcionalidades corporais, tem trazido outras instigações às Ciências Sociais, e, no caso presente à Sociologia.
Na verdade, o esquecimento acentuado tende a reduzir as capacitações da ação dos seres acometidos pela demência. Restringida a capacidade em conservar e em avocar informação vital para as suas existências as promessas em se manterem autónomas vão-se tornando cada vez mais exíguas.
Com o foco na escassez de autonomia, a demência que se atravessa na vida de muitos destes atores faz reduzir as suas capacidades em se responsabilizarem pelos seus atos. Não obstante os condicionalismos da cronicidade da demência, a quem lhe é diagnosticada a doença nem sempre está disposta a prescindir, quer repentinamente, quer de vez, das suas experiências corporais primitivas (Breviglieri, 2012). É o que acontece com Etelvina.
A partir do encontro com esta mulher, conseguimos dar conta da forma como a doença projeta Etelvina contra a imprevisibilidade dos seus dias. À medida que vai perdendo o controlo e o domínio sobre as relações e a gestão da sua vida, entrega-se, progressivamente, nem sempre de forma voluntária, aos cuidados e às vontades de terceiros e, ao mesmo tempo, aos imponderáveis fluxos e movimentos da doença.
A vivência da doença envolve Etelvina numa dinâmica única marcada pelas mudanças na perceção de si, dos outros e das coisas. As alterações cognitivas e relacionais arrastadas para a vida de Etelvina ao sabor dos avanços trazidos pelo próprio fluxo da doença, impulsionam envolvimentos e acomodamentos novos com os ambientes de vida desta mulher.
Etelvina sente que já não é a mesma, que a sua memória se esvai, sem possibilidade de contenção. Quanto mais sente que a sua memória cai para o vazio, mais se agarra aos objetos-identidade. Vive uma condição de fronteira, entre memórias que estão seguras e outras que são leves, entre traços de identidade sólidos e outros líquidos. É no quadro destes objetos presentes nos espaços por si habitualmente reconhecidos que estes dispositivos (Silva-Castañeda, 2012; Thévenot, 2004) por um lado, dão-lhe a garantia para que estes habitem em si (Breviglieri, 2006), e, por outro lado, proporcionam a avocação das suas experiências existenciais orgânicas primitivas que são expressas pelas ações de envolvimento no seu dia a dia.
É por esta linhagem sociológica, a abordagem pragmatista e fenomenológica que se compreende porque é que Etelvina, todos os dias, inaugura uma relação física vital e de contacto sensorial, com os seus objetos. Há uma outra convivência com objetos velhos, de uma vida. Etelvina assume uma atitude primitiva de exploradora, como se escavasse do fundo dos lugares, à procura de coisas novas, de detalhes nunca antes vistos, mas sem ser possível fundamentar os seus juízos de modo escorreito e lógico.
Nas suas mãos, estes não são objetos parados, nem têm somente a forma ou a função previsível. São objetos arranjados, compósitos, porosos, texturados.
Perceber os lugares de humanidade que se alojam nesta mulher permite-nos seguir uma série de envolvimentos e capacidades de agir em ambientes compósitos, onde fluem outros seres e objetos com os quais se partilham a coabitação irregular e não continuada ou a convivência com alguma frequência. Mergulhar nos seus quotidianos é também um convite a observar afetividades, disputas, momentos de dúvida e de re-identificação. Na demência esses processos movimentam-se muitas vezes de forma labiríntica e porosa, em virtude das condições fronteiriças que se apresentam os atores.
Financiamento
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da Fundação para a Ciência e Tecnologia com o projeto referência UI/BD/151561/2021 integrado no Centro Valoriza — Centro de Investigação para a Valorização de Recursos Endógenos do Instituto Politécnico de Portalegre.
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Data de submissão: 16/07/2023 | Data de aceitação: 09/04/2024
Notas
Por decisão pessoal, os/as autores/as do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.
[1]Todas as traduções ao longo do texto foram realizadas pelos/as autores/as.
[2]O nome desta mulher é fictício. A importância de envolver os atores em processo de demência continuado, constitui-se comoumaopção na qual importa dar voz aos atores frágeis, cujas experiências tantas vezes não são relatadas a partir da primeira pessoa. Elegemos pessoas que têm momentos de lucidez e que compreenderam a importância de que, acedendo à participação nesta investigação, estariam a contribuir cientificamente para a melhor compreensão sobre as suas experiências. Foram tidos em conta os princípios éticos, a partir da expressa autorização dos intervenientes, na participação do presente estudo.
[3]Este artigo insere-se numa investigação integrada no curso de doutoramento em Sociologia (Universidade de Évora). A investigadora é filiada no Centro de Investigação para a Valorização de Recursos Endógenos—Valoriza do Instituto Politécnico de Portalegre. O projeto de investigação é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia com a referência UI/BD/151561/2021 e intitula- se “Dilemas do corpo e da Identidade nos cuidados à Pessoa com Doença Incurável—uma abordagem sociológica”. Esta investigação tem por fito compreender de que forma se processam os envolvimentos, quer no plano mais íntimo e familiar, quer no plano da ação pública, da pessoa em processo de demência.
[4]No caso desta mulher, pudemos acompanhá-la noutros contextos de sociabilidades fora da casa, situação da qual podemos extrair dados que apresentaremos num próximo artigo.
[5]As interações possíveis com os objetos são múltiplas, e dão conta, precisamente, do seu lugar de coordenadores da ação. Sem os objetos, os atos mais insignificantes seriam às vezes muito mais difíceis.Aação humana é, portanto, realizada em e através da coordenação com mundos de objetos. Aquestão dos modos de coordenação (Thévenot, 2004) entre pessoas, coisas e ambientes é central na medida de um fazer com no qual o ator é chamado a coordenar o seu próprio comportamento, consigo mesmo e com o seu entorno. Também as formas gerais de julgamento mobilizadas em momentos de crítica e justificação aproximam pessoas e coisas em certo aspeto, apreendendo-as segundo modos comuns de qualificação que vinculam figuras do coletivo a objetos comumente identificados (Boltanski & Thévenot, 1991).
[6]O conceito de correspondência de Ingold (2023), traz à reflexão muito mais do que aquilo que, pela teoria Ator-Rede poderíamos justificar do ponto de vista da interação. Podemos aproximar o conceito de correspondência a uma noção transacional, não no sentido de trocas materiais puras e duras, mas no sentido em que o organismo e o ambiente vivemumatravés do outro, de um “viver com”, à luz daquilo que Dewey aclara sobre o conceito de transação (Dewey, 1925 citado em Quéré, 2019). Correspondência, neste sentido, consiste mais em juntar-se com, do que em juntar o (Ingold, 2023). A interação, na vida de Etelvina, acontece numa atmosfera do habitar (Breviglieri, 2006) que supera qualquer noção de interação linear, mas que é densa, dinâmica, ecológica, atmosférica, esférica, com volume. As interações são no plano do próximo, do que ela própria colocou do seu lado. As coisas também seguem em demência. Não na sua composição física, porque estas muitas vezes mantêm a sua forma, mesmo para além da vida humana, mas na sua vivência conjunta, numa caminhada “lado a lado” com o ser.
[7]Para Foucault, “dispositivo” é um termo utilizado para descrever um conjunto de dimensões: “discursos, instituições, decisões normativas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, propostas filosóficas, morais, filantrópicas” (Foucault, 1992, citado em Silva-Castañeda, 2012, p. 92). Na sociologia pragmática, o dispositivo pode ser visto de uma forma mais ampla,
podendo ser compreendido comoumconstrangimento externo que rege a ação dos indivíduos, mas também como uma rede, um todo complexo e móvel que abarca as múltiplas formas de envolvimento entre pessoas e coisas.
A noção de dispositivo de Foucault evoluiu para tudo o que tinha a ver com a capacidade de captar, orientar, determinar, modelar, controlar os gestos, os comportamentos, as opiniões e falas dos seres vivos, numa visão que sendo inicialmente marcadamente determinista do social, foi-se abrindo a abordagem subjetivistas do ser e do cuidado, abrindo espaço para a compreensão do lugar dos objetos na coordenação das ações, enquanto suportes e referenciais e nos seus usos centrais na dinâmica do testar as situações de crítica, de procura de justiça, mas também em situações imprevistas, onde, por vezes pontuam as vulnerabilidades visíveis e invisíveis.
[8]Segundo Breviglieri: “Habitar constitui-se como uma forma de permanêncianummundo possível que, a cadamomento, vai manifestando a necessidade de ajustamento (…) não se habita assim que se entra no interior de uma casa: é o uso familiar das coisas habituais que, progressivamente, mobila e funda um núcleo de habitar que, a princípio, é um núcleo de estabilidade e confiança para a pessoa”. (Breviglieri, 2006, p. 1)
Autores: José Manuel Resende e Maria Rosália Guerra