N.º 34 - abril 2024
Noélia dos Reis Viegas
FUNÇÕES: Investigação, Concetualização, Metodologia, Redação do rascunho original
AFILIAÇÃO: Universidade do Algarve, Faculdade de Economia. Campus de Gambelas. 8005-139 Faro, Portugal
E-mail: noeliaviegas1@hotmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6618-4277
João Eduardo Martins
FUNÇÕES: Redação do rascunho original, Redação — revisão e edição
AFILIAÇÃO: Universidade do Algarve, Faculdade de Economia & Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH), Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA).
Campus de Gambelas. 8005-139 Faro, Portugal
E-mail: jrmartins@ualg.pt | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7839-1799
Resumo: No presente artigo procuramos compreender sociologicamente de que forma a subcultura do metal está presente na vida dos indivíduos e assume um papel crucial na construção das suas identidades pessoais e sociais e de que modo, em simultâneo, estes contribuem para a produção e reprodução deste mundo social. Privilegiando a entrevista semi-estruturada na produção dos dados, interpretámos a voz dos interlocutores, que aponta para uma necessidade de afirmação pessoal e, em simultâneo, para a necessidade de pertença grupal, enquanto estilo de vida, em torno do que consideram ser a “melhor música do mundo”.
Palavras-chave: identidade, subcultura, Sociologia da Música, metal.
Abstract: In this article we seek to understand sociologically how the metal subculture is present in the lives of individuals and plays a crucial role in the construction of their personal and social identities and how, at the same time, they contribute to the production and reproduction of this social world. Using the semi-structured interview in the production of data, we interpreted the voice of the interlocutors, which points to a need for personal affirmation and, at the same time, a need for group belonging, as a lifestyle, centered on what they consider to be the “best music of the world”.
Keywords: identity, subculture, Music Sociology, metal.
Introdução
A música pode marcar decisivamente a vida dos indivíduos, influir na sua socialização e identidade pessoal, e moldar as suas condutas sociais. Pode ainda influenciar a forma da agência coletiva e criar realidade social (DeNora, 2000).
Sabemos, com base em números já divulgados pelos media sobre a venda de discos e de bilhetes para concertos e festivais[1], que se estima existirem milhões de adeptos de metal, um género musical que está presente em todos os continentes, mesmo nos países mais “improváveis”, tais como a Malásia, o Iraque ou até a Coreia do Norte[2].
Este é um tipo musical, que criou uma subcultura ao seu redor, encarada esta como que se de uma filosofia de vida se tratasse, para aqueles que lhe são fiéis, unindo pessoas de todas as partes do mundo.
No nosso país, Portugal, é no final dos anos 1970 e depois durante os anos 1980/90 do século passado que se dá o surgimento de centenas de bandas de metal, influenciadas pelos sons e pela imagética que vinham essencialmente do Reino Unido e dos Estados Unidos da América. Num estreito espaço temporal, aparecem milhares de fãs deste género musical na sociedade portuguesa (Almeida, 2013).
Apesar do crescimento exponencial desta prática cultural e musical, contam-se pelos dedos das mãos os estudos sobre a influência do metal no nosso país a partir das ciências sociais e mais em particular, da perspectiva sociológica[3].
Desta forma, este artigo[4] tem por objetivo discutir as práticas culturais e a identidade dos adeptos de metal em Portugal com mais de quarenta anos. Esta delimitação etária prende-se com o nosso intuito de englobar intervenientes que acompanharam o desenvolvimento desta subcultura, e portanto, que sabemos que foram adolescentes nas décadas de 1980/90 do século XX e que se mantêm ainda nos dias de hoje integrados na mesma.
Assim, o estudo descrito neste artigo visa responder às seguintes questões: Quais as razões que levam à reprodução da subcultura “metálica” em Portugal, por parte de indivíduos com mais de quarenta anos? Que contextos sociais e familiares condicionaram as escolhas desses indivíduos? Quais as razões para se ser fã de uma prática musical que segundo Weinstein (2000) é “mal vista” pela grande maioria da sociedade? Quais os significados desta subcultura para estas pessoas? O que faz com que este estilo de música nunca tenha desaparecido das suas vidas?
Considerações metodológicas
Do ponto de vista metodológico, optámos claramente por uma investigação de teor qualitativo, seguindo um modelo indutivo e um caminho inspirado na sociologia compreensiva. A população-alvo foi definida como o conjunto de indivíduos de nacionalidade portuguesa e/ou residentes em Portugal, com quarenta anos de idade ou mais, que tenham aderido à subcultura do metal durante a juventude e que se tenham mantido fiéis às suas principais características definidoras. Construímos uma amostra em bola de neve e também intencional, constituída por catorze indivíduos, que remetem para as várias dimensões sociais do metal: os artistas, a audiência e a indústria (Weinstein, 2000).
Quanto às características sociodemográficas e de maneira a contribuir para a construção de uma amostra diversificada, levámos em conta os seguintes aspetos: em relação à idade, os 40 anos são o limite crescente, garantindo-se ao mesmo tempo alguma variedade, com indivíduos com idades entre 40 e 45 anos, 45 e 50 e por aí adiante; no que toca ao género dos membros da amostra, procurámos um equilíbrio na representação entre homens e mulheres, com o fim de se obterem resultados diversificados sob o ponto de vista masculino e feminino; os níveis de escolaridade e as classes sociais a que pertencem são também objeto de uma diversificação na amostra.
Da nossa amostra fazem parte 9 homens e 5 mulheres, com idades compreendidas entre os 43 anos e os 57 anos. As habilitações literárias variam desde o 9º ano até à licenciatura nas mais diversas áreas, como Arquitetura, Marketing ou Línguas. As localidades onde se encontram os membros da nossa amostra variam entre Lisboa, Porto e Algarve. No que respeita às profissões, temos desde proprietários de bar/loja, agente imobiliário, radialista, professora, técnico de eletrónica, designer gráfico, arqueólogo, entre outras[5].
Privilegiamos a entrevista semiestruturada, enquanto técnica de recolha de dados empíricos. Foram entrevistas longas, com uma duração média de uma hora e trinta minutos cada uma, o que perfaz um total de cerca de 21 horas de material sonoro transcrito. Duas entrevistas foram realizadas presencialmente, enquanto as restantes foram feitas com recurso à videochamada. As transcrições foram efetuadas manualmente, de forma integral e o mais fiel possível ao discurso dos entrevistados. Recorremos à análise de conteúdo, mais especificamente a análise temática sob a forma categorial para analisar, interpretar e compreender os dados em bruto recolhidos.
O metal como fenómeno social
Breve contextualização sóciohistórica
Não é possível, do que se conhece cientificamente, determinar com exactidão uma data e um local que possa identificar o nascimento da música metal. Segundo Ronald Byrnside, podemos dizer que existem várias fases pelas quais passam os géneros musicais[6], surgindo o heavy metal de um complexo cultural gigantesco, a que chamamos música rock, que por seu lado já tinha crescido do rock and roll dos anos 1950 (Weinstein, 2000).
De acordo com Tom Leão (1997), é na banda sonora do filme Easy Rider, de 1969, que aparece, pela primeira vez a expressão “heavy metal thunder”, na música Born to be Wild da banda Steppenwolf. Mas terá sido Lester Bangs[7] “que primeiro empregou o termo ‘heavy metal’ para definir as bandas barulhentas” (Leão, 1997, p. 17).
Quanto à génese do heavy metal, “melhor fazer dos EUA o pai, e da Inglaterra a mãe” sugere Leão (1997, p. 17). Já quando falamos do visual, constatamos que tanto os rockers e teddy boys ingleses, como os motoqueiros norte-americanos usavam uma indumentária característica, que mais tarde veio a ser utilizada pelos metálicos, de que são exemplos os casacos de cabedal, as calças justas e as t-shirts pretas. Os americanos destacam-se na parte dos instrumentos, sendo que foi nos EUA, que aparecem as primeiras “grandes” guitarras como a Fender Broadcaster.
Em Portugal, no período pós-ditadura, o país encontrava-se em profunda transformação e a década de 1980 traz com ela os primeiros espetáculos internacionais, que incluem bandas de heavy metal[8]. Concertos estes, que marcam milhares de fãs, enquadrados num novo contexto político e cultural, que permite agora um maior acesso a este género musical e impulsionam um autêntico boom do metal na sociedade portuguesa. A 15 de Dezembro de 1984, realiza-se o Festival Heavy Metal de Santo António dos Cavaleiros, o primeiro festival do género em Portugal, integrado no período da “Primeira Vaga do Metal Português” (Almeida, 2013, p. 128).
O metal como objeto de estudo científico
“Nenhuma descrição única faz justiça à riqueza da dimensão social do heavy metal[9]” (Weinstein, 2000, p. 6). Muitas vezes socialmente desprezado, mal visto, incompreendido e subestimado pela sociedade, este género musical, remete para uma enorme complexidade do ponto de vista da análise sociológica.
De facto, há perto de duas décadas, dá-se o início de um campo de investigação nas ciências sociais que ficou conhecido como metal studies no âmbito académico. Uma das primeiras e mais conhecidas obras sobre o assunto é a obra seminal da autoria da socióloga Deena Weinstein. Em Heavy Metal: The Music and its Culture, de 1991, esta autora propõe uma perspetiva compreensiva deste fenómeno social, onde explica as suas significações, as suas funções sociais e situa a música no cerne de uma rede de relações sociais. Dando destaque ao evento estruturante deste movimento — o concerto ao vivo — a autora aborda ainda as controvérsias ligadas a este tipo de música, principalmente no final dos anos 1980, com os discursos inflamatórios de certas personalidades no Senado americano, que acusavam o heavy metal de incitar à violência e ao sexo promíscuo, de estar ligado ao satanismo, à perversão e ao sadomasoquismo. Diz-nos Weinstein (2000, p. 3) “para muitos dos seus detratores, o heavy metal representa um ataque desavergonhado aos valores centrais da civilização ocidental. Mas, para os seus adeptos, é a melhor música jamais feita”.
O musicólogo Robert Walser, dois anos depois, publica Running with the Devil, obra em que reforça a ideia de ser este um género musical que pode dar lugar a reações extremas, podendo pôr em causa certos valores sociais e morais e suscitar uma certa apreensão social. Recorrendo a métodos da análise musical, da etnografia e da crítica cultural, considera a música heavy metal como um “sistema social significativo” (Walser, 2014, p. xxiv). Segundo este autor, as especificidades harmónicas próprias do estilo resultam numa linguagem poderosa e persuasiva, provocando um impacto emocional nos seus adeptos. A música proporciona aos seus fãs “um sentido de profundidade espiritual” e de “integração social” (Walser, 2014, p. xxvi).
A música é primordial e está no centro quando se fala do metal. É ela que está na génese da formação e da legitimação de toda a subcultura. É, portanto, o motor, o motivo, sem o qual ela não funciona. Segundo Weinstein (2000), é ainda a música que injeta um orgulho inabalável nos seus adeptos, salientando que “o orgulho mais profundo de um membro da subcultura do metal é o de ser um apreciador de boa música” (Weinstein, 2000, p. 143). Pode mesmo ser tida como uma oferenda vinda dos deuses, “the metal gods”, vendo-os como os criadores de algo que tem uma dimensão surreal por ser apreciado de forma tão intensa, dando lugar a emoções extremas, a experiências de catarse e euforia. Por isso, “a obrigação, tomada de forma voluntária, do apreciador é oferecer lealdade” (Weinstein, 2000, p. 143).
Para Fabien Hein, esta busca de sensações de prazer sensorial é uma das razões fortes que leva os adeptos à prática do metal. Em Hard rock, heavy metal, metal: Histoire, cultures et pratiquants, de 2004, este autor explica os contextos sociofamiliares que levam à descoberta, à entrada e ao apego por este estilo musical, o que ele denomina por l’attachement (Hein, 2004/2019). O encontro do indivíduo com o metal pode provocar em certos casos um coup de foudre, um enamoramento à primeira vista, o tal “clique” que também encontrámos nos entrevistados portugueses da nossa amostra.
Sem esquecer, contudo, que essa paixão repentina é determinada pelo contexto social, o que faz questão de nos lembrar Deena Weinstein (2000, p. 121) “o amor por certo tipo de música não é algo inato, atemporal ou espontâneo; esse amor é nutrido pelas relações sociais”. É o engajamento, o culto, a entrega e a lealdade à música, que dá origem a uma coesão social partilhada, aqui traduzida numa subcultura.
Muito interessante também é o estudo de Harris M. Berger e o seu artigo científico “Death Metal Tonality and the Act of Listening”, em que este autor apresenta os resultados do seu trabalho de campo sobre uma comunidade de death metal de uma pequena cidade em Ohio, nos EUA (Akron). A subcultura do metal é nesta investigação evidenciada como uma saída para a apatia, uma maneira de ultrapassar sentimentos negativos e as frustrações resultantes dos duros desafios da vida quotidiana (Berger, 1999).
Principais resultados de investigação
Para compreender de que maneira os indivíduos entraram em contato com o metal e a subcultura em estudo, as entrevistas foram iniciadas com questões abertas sobre a génese e a trajetória da ligação ao metal, dando primazia à compreensão das influências que os nossos entrevistados possam ter tido, “puxando” pelos fios da sua memória, levando-os a reconstruir um historial da sua relação à subcultura. A música enquanto cerne da subcultura em análise é o segundo tema em análise; abordamos em seguida situações que nos permitem compreender nas respostas obtidas, a construção da identidade pessoal e grupal dos indivíduos entrevistados pela sua relação ao movimento musical. Questionamos ainda, os adeptos do metal em relação à exteriorização (com destaque para a indumentária e look associado ao metal), à ideologia associada a este estilo musical e às relações simbólicas inerentes a estas práticas culturais.
Por outro lado, procurámos também elementos de compreensão sociológica do lugar das mulheres na cultura do metal e descortinar qual a perspetiva dos nossos entrevistados sobre esta temática, já que é do conhecimento sociológico que este mundo social é desde os seus primórdios, fortemente masculinizado (Weinstein, 2000). Abordámos ainda questões relacionadas com os consumos de drogas, do álcool, o vandalismo e o satanismo, que são muitas vezes associados à subcultura (Walser, 2014; Weinstein, 2000).
Por último, mas não menos importante, consideramos a complexidade e diversificação que o metal enquanto género musical tem vindo a sofrer nas últimas décadas, bem como a adaptação dos nossos entrevistados à “vida adulta”, encarada esta como o assumir de responsabilidades múltiplas para além da sua pertença à subcultura, ao mesmo tempo que tentamos a compreensão da forma em que o metal pode ser “um estilo de vida na sua totalidade” (Weinstein, 2000, p. 139).
Génese e trajetória da ligação ao metal
Privilegiando no nosso estudo uma lógica da descoberta, com o nosso mergulho no terreno, uma das questões que quisemos verificar foi de que maneira o contexto familiar, as memórias da infância e/ou um eventual contato musical precoce podem estar relacionados com o género musical em questão e a imersão na respetiva subcultura.
As respostas dos nossos entrevistados[10] permitiram-nos constatar que a maior parte deles teve um contacto frequente com música na sua infância devido ao contexto familiar. Encontrámos, no entanto, casos atípicos, indivíduos em que o contexto familiar na sua infância não esteve de forma alguma em relação com a música, sendo que as primeiras sonoridades foram apreendidas, sobretudo, através dos media.
Sónia, de 45 anos, 9º ano de escolaridade, doméstica e residente na Grande Lisboa e Joel, 48 anos, 12º ano, designer gráfico, residente também na Grande Lisboa são dois exemplos do primeiro caso:
(…) em casa ouvia-se um pouco de tudo. Desde música clássica, fado, rock, sempre estive em contacto com a música, inclusive a minha mãe cantava fado. (Entrevistado 8, Sónia) (Viegas, 2022, p. 80)
O meu pai tinha uma aparelhagem com montes de discos de vinil (…) ajudou muito a ouvir música (…) aquele gosto e ânimo de estar sempre a ouvir música quase constantemente. (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 80)
Ouvia-se muita rádio durante o dia nos anos 1970, só havia quatro canais de televisão e era na rádio que íamos descobrindo as músicas que iam saindo. (Entrevistado 5, Rafael, 57 anos, Licenciatura em Gestão de empresas, executivo, residente na Grande Lisboa) (Viegas, 2022, p. 81)
A análise do material empírico permitiu-nos ainda distinguir “aqueles que sempre ouviram música em casa” daqueles, que para além disso, “aprenderam a tocar um instrumento musical na infância/pré-adolescência”.
Desta forma, os nossos resultados vão ao encontro das conclusões de Hein no que concerne a influência parental na aquisição das “(…) bases de determinado número de disposições favoráveis à receção musical” (Hein, 2004/2019, p. 14). No entanto, os entrevistados também fazem alusão aos media como principal meio para o contato com a música na infância/pré-adolescência, como vimos nesta última citação de Rafael.
Apenas duas pessoas tiveram uma educação musical mais formalizada: Teresa, de 45 anos, com Licenciatura em Arquitetura e Conservatório em piano e Canto, é atualmente professora de piano e de canto, vive em Lisboa e Laura, de 43 anos, com Licenciatura em Línguas, agente imobiliária e residente no Algarve que teve aulas de piano até aos 17 anos. Este fato não impediu que mais de metade dos participantes no estudo tenham feito parte e/ou façam, atualmente, parte de bandas de metal.
Quanto ao primeiro encontro com este género musical, são os amigos que são mencionados como os primeiros e os principais agentes de socialização e de transmissão da música metal. É neste primeiro encontro que se dá como que um “clique”, um enamoramento repentino, no dizer de Hein (2004/2019), o designado “coup de foudre”.
Rui, por exemplo, de 48 anos, com o 12º ano, técnico de eletrónica e residente no Algarve, conta como esse encontro se deu aos 12 anos, graças a um amigo que era o único que estudava fora da sua zona:
(…) ele teve o contacto com os sons mais pesados e trouxe para nós (…) emprestou-me e gravou-me uma cassete com Celtic Frost, Sodom e WASP (…) foi amor à primeira audição (risos), deu o clique mesmo. Quando ouvi Celtic Frost, pensei, é isto! (Entrevistado 4, Rui) (Viegas, 2022, p. 83)
Por seu turno, Laura admite que, apesar de ter tido contacto com o género e a subcultura na adolescência, através do seu irmão, o seu “enamoramento” a sério deu-se mais tarde: “(…) a partir dos 20, 21, foi quando comecei a entrar mesmo a sério na cena da música (…) ou a compreender melhor, já gostava, já ouvia, mas ainda não me tinha dado o clique.” (Entrevistada 2, Laura) (Viegas, 2022, p. 85).
Quanto às idades em que se deu o encontro com o metal, estas remetem para idades precoces de pré-adolescência, em particular nos entrevistados do sexo masculino e com idade mais avançada. Por exemplo, Rafael que com 57 anos, iniciou-se na subcultura aos nove anos; enquanto Fábio agora com 54 anos enamorou-se por este estilo musical aos dez anos de idade. Verificamos que as duas entrevistadas, mulheres, se iniciaram bastante mais tarde no metal, relativamente aos outros entrevistados: Laura aos 21 anos e Sara aos 17 anos.
Mais uma vez constatamos que estes resultados correspondem ao que nos diz Hein que situa a descoberta do metal entre os 12 e os 14 anos de idade “(…) proveniente de uma fonte geracional mais próxima, uma vez que os irmãos mais velhos, os cunhados, primos e amigos são muitas vezes mencionados como tendo iniciado este encontro” (Hein, 2004/2019, p. 14).
Outra questão a destacar é a importância da banda Iron Maiden para grande parte dos entrevistados que dizem ter-se apaixonado pelo metal através do contato com esta banda, tal como já referido também pelos entrevistados do estudo de Hein (2004/2019).
Se a música em si é referida como o principal factor de atração pela maioria dos entrevistados, à semelhança do pensamento de Weinstein (2000), e referem a “agressividade do som”, outros dizem ter sentido uma atração irresistível pelo look dos artistas e dos metálicos, neste caso, mais as raparigas, e ainda pelas ilustrações das capas dos discos, outro elemento de sedução do género.
Tendo em conta os testemunhos dos nossos entrevistados e o estudo desenvolvido por Hein, podemos concluir que não parecem existir diferenças substanciais entre o caso português e a realidade francesa, no que toca aos contextos que levaram à descoberta e ao enamoramento dos adeptos pelo género musical.
A construção da identidade pela ligação ao metal
Uma das questões em que o metal se distingue de outros géneros musicais é a marca da sua irreverência e como refere Walser (2014), o facto de provocar reações extremas, o que remete para posicionamentos polarizados, ou se ama, ou se odeia.
Num contexto político-histórico da sociedade portuguesa do final dos anos 1970, logo a seguir a uma ditadura marcada pela censura e por um conservadorismo que durou mais de quatro décadas, o contexto sociocultural da época não era convidativo à aceitação da cultura do metal. Não é de estranhar assim que os nossos entrevistados terem afirmado que se sentiram marginalizados pela sociedade da qual faziam parte.
O primeiro choque cultural acontecia desde logo, no seio da família, evidenciando um conflito geracional, em que se tornava difícil alguém afirmar-se como metálico perante os familiares mais próximos. A discriminação fazia-se sentir também por via dos pais dos amigos dos headbangers[11], do preconceito das forças policiais e da desconfiança de uma sociedade que não compreendia a subcultura musical do metal.
Ainda nos dias de hoje, mesmo depois de uma transformação societal significativa associada a cinquenta anos de democracia, alguns dos nossos entrevistados dizem sentirem-se alvo de estigmatização[12].
Deixar crescer o cabelo foi a primeira grande “luta” que Joel teve de travar, aquando do seu engajamento no mundo do metal: “(…) a guerra começava em casa, não era só na rua, era uma luta que se tinha que ir fazendo aos poucos (…).” (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 94).
Laura foi confrontada com uma educação familiar “muito tradicional e limitada” (nas suas palavras). Teresa lembra as discussões parentais diárias; Sónia e Sara (de 44 anos, com o 12º ano, técnica auxiliar de educação, residente no Porto) também se sentiram pressionadas pelas suas formas de vestir:
A minha mãe, ainda hoje, torce o nariz aos piercings, às tatuagens e às botas (…). (Entrevistada 2, Laura). (Viegas, 2022, p. 95)
(…) eram discussões permanentes, diárias com o meu pai por causa das botas da tropa, que me dizia “porque não andas com sapatinhos como as outras meninas?”. (Entrevistado 7, Teresa) (Viegas, 2022, p. 95)
(…) quem é a mãe que quer ter uma filha sempre vestida de preto? Sempre refundida? Claro que não (…) ela dizia: “tu e as caveiras, os gatos pretos…” (risos). (Entrevistado 8, Sónia) (Viegas, 2022, p. 94)
(…) o meu próprio pai, que tem uma mentalidade mais antiga, quando comecei a pintar as unhas de preto — isto é um bocadinho embaraçoso — (risos) virou-se para mim e disse-me assim: “ó filha tu sabes quem é que pinta as unhas de preto? São as meninas da rua”. (Entrevistado 9, Sara) (Viegas, 2022, p. 94)
No discurso de Sónia, também se verifica uma disparidade na “aceitação social” da diferença, em duas zonas do país distintas, simultaneamente com a discriminação dos pais dos amigos:
(…) principalmente na sociedade retrógrada do norte do país, vinha habituada de um sítio onde uma rapariga podia andar de calção ou de fato de banho na rua, porque era uma terra piscatória e de praia [Peniche] para uma terra [Peso da Régua] em que uma rapariga era muito mal vista sair sozinha, quanto mais gostar da música do demo, do diabo (risos). Desde cuspirem-me, chamarem-me nomes, drogada, lésbica, só pura e simplesmente por eu me vestir de preto e chegarem ao cúmulo de dizerem: “eu não quero que a minha filha ande com você” (…) éramos julgados somente pelo aspeto (…). (Entrevistado 8, Sónia) (Viegas, 2022, p. 96)
E Rui conta como se sentiu marginalizado pelas autoridades: “(…) juntávamo-nos à noite junto à estação dos comboios e quando vinha o jipe da GNR, estamos 15/20 amigos e o único que era revistado era eu, porque tinha cabelo comprido e usava t-shirts pretas e com desenhos (…).” (Entrevistado 4, Rui) (Viegas, 2022, p. 97).
No entanto, o repúdio da sociedade em geral tornava o género musical ainda mais atrativo aos olhos destes jovens adolescentes. Traduzia-se num “ataque desavergonhado aos valores centrais da civilização ocidental” (Weinstein, 2000, p. 3), sendo um motor gerador de tensões.
Também ligada à temática da identidade, está a importância da exteriorização da subcultura pela indumentária:
Continuo a vestir-me desta forma, sempre o fiz, à parte de uma fase em que trabalhei num hipermercado e tinha que vestir farda e à parte de ter que ir de fato e gravata para os exames orais, sempre me vesti com as t-shirts, de preto (…) é uma forma de identificação, a tal irmandade, o pertencer a um grupo, podemos não gostar das mesmas bandas, mas sabemos que estamos ali dentro da cena do metal. (Entrevistado 6, Mauro) (Viegas, 2022, p. 101)
Neste aspeto, conseguimos distinguir aqueles que adotavam o look metálico propositadamente para “chocar a sociedade”, dos indivíduos que afirmam ter sido uma forma de expressão da sua afirmação enquanto pessoa e da sua identificação com o movimento.
Nós queremos chocar e o que choca a sociedade normal? Uma das coisas que choca mais é confrontá-los com um dos maiores medos que eles têm que é o medo de morrer (…) as caveiras estão relacionadas com a aceitação da morte. (Entrevistado 2, Laura) (Viegas, 2022, p. 101)
Já Sónia tem uma opinião diferente sobre este assunto, assim como Fábio (de 54 anos, 12º ano, radialista de profissão e residente em Lisboa) que compara as bandas de metal a clubes desportivos, ou Petra (de 47 anos, com Licenciatura em Línguas, consultora de empresas internacionais, reside na Bélgica atualmente, de Lisboa) que destaca a exteriorização da cultura do metal como forma de identificação grupal em detrimento do “choque” provocado na sociedade em geral:
(…) chocar? Mais depressa choca uma imagem de uma criança em África a morrer à fome do que uma caveira no meio da testa! (Entrevistado 8, Sónia) (Viegas, 2022, p. 102)
(…) as pessoas vestiam-se assim porque estavam a imitar os seus ídolos, era a forma como se identificavam em termos de personalidade, é como tu tens a malta que gosta do Benfica, do Sporting ou do Porto, que vestem e têm os cortes de cabelo parecidos com os ídolos deles porque são jogadores que eles apreciam; na música é a mesma coisa. (Entrevistado 10, Fábio) (Viegas, 2022, p. 102)
(…) é uma espécie de identificação da tribo. [vestia-me] obviamente com o ténis bota e com aquelas coisas que se usava preto, aquelas coisas de ginástica [pulseiras para o suor] (…) Os elementos de união da tribo são muito importantes, porque até, quando vais a andar, e vês alguém “o quê? Tem uma t-shirt de Judas Priest?” viras logo a cabeça, só pode ser boa pessoa! (Entrevistado 11, Petra) (Viegas, 2022, p. 102)
A fabricação social da diferença é vincada pela união de grupo gerada pela subcultura. A música é a linguagem, ligada ao look, remetendo para uma certa forma de estar e para as maneiras reproduzidas pela própria linguagem corporal dos headbangers (Weinstein, 2000). A t-shirt, é tida como um símbolo de homenagem às bandas preferidas, gerando, ao mesmo tempo, um flash produtor de fortes relações interpessoais. O metal existe, enquanto gerador de coesão social, e é percebido como interclassista, indo para além das classes sociais, da etnicidade, das preferências políticas e das crenças religiosas.
Era a cena de não querer ser igual ao resto do pessoal. (Entrevistado 7, Teresa) (Viegas, 2022, p. 103)
Ouvíamos aquela música e olhávamos para as capas e também queríamos ser assim, mas não era só os artistas, os amigos também se vestiam assim e era aquela coisa de estar de acordo (risos). (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 105)
Estar com pessoas que se vestiam da mesma maneira fazia-nos sentir mais à vontade (…) Nos anos 1990, não era tão habitual [ver-se tanta gente na rua com t-shirts de bandas], quando vias alguém, metias conversa ou acenava-se, era uma coisa que acontecia muito mais do que acontece hoje em dia. (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 105)
O metal, principalmente nessa altura, era o motor social da construção de relações profundas:
(…) era o elo de ligação, tanto na escola com gente que gostava de metal e fora da escola aos fins de semana (…) tenho amigos de muitos anos que vêm daí. (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 106)
É uma forma de identificação, mesmo que não conheçamos a pessoa, podemos ir a qualquer parte do mundo (…) se nós nos cruzarmos com alguém, podemos nem falar a mesma língua, mas se tem uma t-shirt, identificamo-nos com a pessoa, há ali logo uma afinidade. (Entrevistado 6, Mauro) (Viegas, 2022, p. 106)
No mesmo sentido vão os discursos de Fábio e de Rito (43 anos, 12º ano, proprietário de bar e residente no Algarve):
(…) se tu vires uma pessoa no supermercado com uma t-shirt de metal, tu percebes que tens ali um irmão e, se o abordares, ele de certeza que é simpático para ti, mesmo que não tenhas nenhuma t-shirt, mas se tiveres ele, eventualmente, te receberá de braços abertos por assim dizer. É uma autêntica irmandade. (Entrevistado 10, Fábio) (Viegas, 2022, p. 107)
Ainda hoje em dia, estás todo contente quando vês um metaleiro na rua, não é preciso que a malta se dê beijinhos, mas dão de vaia, há sempre um olharzinho, uma simpatia. (Entrevistado 1, Rito) (Viegas, 2022, p. 107)
Percebemos, ainda, que todos os entrevistados não têm dúvidas em relação ao papel que o metal teve e continua a ter nas suas vidas, enquanto instrumento de socialização e na sua construção identitária.
Acreditam, que tem algo que os outros géneros musicais não têm, enfatizando a sua importância ao compará-lo com os demais, quase como que “idolatrando” as suas características, que influenciaram fortemente os seus percursos de vida. Há quem destaque o ato de rebeldia que lhe está associado, mas também a força que daí advém. Os entrevistados reforçam a diferença, usando a palavra militância, distinguindo-se dos demais fãs de música e traçando uma ponte geracional:
(…) é uma das características do pessoal do metal, que nos distingue de outros fãs: a militância de quem ouve heavy metal. Não é só uma questão de moda, é questão de gostar-se e mostrar que se gosta (…) O pessoal do metal ainda é um dos poucos fãs de música que se mantêm hoje em dia fiéis à compra do formato original, seja o vinil, a cassete, o CD, seja o merchandising (…) o rock e o metal sempre foram coisas que nos distinguiram das gerações anteriores, portanto, esse ato rebelde era para marcar a diferença das gerações mais velhas, não quer dizer que eu com cinquenta anos, aparece na loja um jovem de 17/ 18 anos e temos o mesmo espírito (…) somos ambos fãs de música. (Entrevistado 6, Mauro) (Viegas, 2022, p. 108-109)
Por outro lado, o metal tem um papel fulcral na afirmação do adepto enquanto pessoa, ganhando contornos que extravasam para a sua vida em sociedade:
(…) o metal transformou-me numa pessoa que tem que lutar, que é guerreira, que consegue ir para a frente, que não desiste (…) Não me vejo de maneira diferente. Às vezes, estou num concerto, paro para pensar e digo: “ainda bem que eu gosto disto!”, não me estou a ver noutro estilo, é o meu mundo. (Entrevistado 9, Sara) (Viegas, 2022, p. 108-109)
No que concerne aos valores e ideologia associados ao movimento, na visão dos participantes no estudo, têm a ver com contestação social, preocupações ambientais, proteção dos animais, antidiscriminação, liberdade, rebeldia, sentimento de pertença e solidariedade:
(…) ter uma atitude mais crítica e mais contestatária (…) há muita malta que deixou de comer carne, uma propensão mais ativista em relação aos direitos dos animais, por exemplo, os Carcass ou outras bandas que podiam ter imagens sanguinárias, mas depois eram vegetarianos e com essas preocupações ambientais. (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 112)
Diferença, tolerância, observar o próximo, proteger os que mais precisam e coisas desse género. Foi por aí que eu aprendi; quer dizer, eu já tinha esses valores incutidos pela minha mãe, mas aí encontrei mensagens contra o racismo, antinazismo, a famosa dor de corno e de separação (…) é [também] uma afirmação de rebeldia, sem dúvida nenhuma (…) eu tanto sou capaz de me rir com uns Kiss e o visual deles, como já não me rio tanto, eventualmente, com certas bandas de black metal. (Entrevistado 10, Fábio) (Viegas, 2022, p. 112)
Embora o metal tenha caminhado, ao longo do tempo, também na sociedade portuguesa, de tal forma diversificado, que está marcado por diferentes posições ideológicas e sistemas de valores, os nossos entrevistados, adeptos da subcultura desde os seus primórdios em Portugal, revelam semelhanças nas suas formas de estar e nas suas mundividências. Desta forma, mesmo sem lhe podermos atribuir uma ideologia concreta, entendemos, com base nos testemunhos obtidos, que, para os nossos entrevistados, o metal está centrado no anti-autoritarismo e prima pelo hedonismo. Estas ideologias estão bem presentes na literatura consultada, tanto em Weinstein (2000), como em Hein (2004/2019), embora os autores também concordem que o motor, sem o qual a “máquina” não funciona é a música, como veremos de seguida.
A música no coração do mundo metálico
Independentemente de haver ou não haver preferências por parte dos nossos entrevistados por um subgénero do metal em específico, a lealdade a esta prática cultural advém sobretudo de um enamoramento musical, que já dura há décadas.
De acordo com os excertos de entrevista recolhidos, podemos assinalar diversos aspetos, que levam a esse “amor pelo metal”: as sensações de prazer que despertam, uma sensação de poder que lhe está associada e ainda, a mitigação de sentimentos de raiva e frustração.
É muita complicado. Não dá para viver sem música, ponto. É a maneira que tu tens para te exprimires, sei lá, faz-te sentir viva! (Entrevistado 7, Teresa) (Viegas, 2022, p. 115)
Para mim, é terapêutico, faz-me esquecer de tudo. Qualquer problema que tenha, chego a casa, ouço sempre aqui no meu covil [Rui tem uma sala dedicada ao metal com milhares de LPs, cassetes e CDs]. Só o pegar no disco é terapêutico (risos). (Entrevistado 4, Rui) (Viegas, 2022, p. 115)
Há, até, quem chegue a atribuir-lhe uma função de dissuasão em relação a pensamentos suicidas:
Sempre fui bastante introvertido e a música também ajudou nesse aspeto (…) a música sempre teve esse efeito aconchegador, protegia, eu até costumo, e não o digo de forma displicente: talvez me tenha salvo a vida muitas vezes. (Entrevistado 6, Mauro) (Viegas, 2022, p. 116)
(…) eu não consigo imaginar a vida sem eletricidade e sem música; se não fosse por isso, eventualmente já não estaria por cá (…) efetivamente, abstenho-me de uma data de pensamentos eventualmente menos positivos, faz-me sentir celebrar a vida (…). (Entrevistado 10, Fábio) (Viegas, 2022, p. 116)
Já para Petra é mesmo possível comparar um concerto de grind core[13] a um spa de cinco estrelas e segundo Carlos “só eles sabiam que esta era a melhor música do mundo”.
Os discursos dos nossos entrevistados vão ao encontro das conclusões de Weinstein (2000, p. 143: “o orgulho mais profundo de um membro da subcultura do metal é o de ser um apreciador de boa música”. O metal pode ser tido como uma oferenda vinda dos deuses, “the metal gods”. Algo que leva a experiências emocionais extremas, de catarse e euforia.
As mulheres e o metal
No que respeita à relação das mulheres com o mundo do metal, temos duas questões fundamentais: as mulheres estão em minoria na subcultura, e o sexismo que é associado ao movimento, por autores como Deena Weinstein (2000). Esta autora considera que a cultura do heavy metal é masculinizada e esmagadoramente constituída por grupos masculinos, com uma ideologia heterossexual extrema (Weinstein, 2000).
De fato, o que a mulher representava, principalmente no início do movimento, não se coadunava de todo com o espírito metálico. Ela é considerada uma ameaça do coletivo masculino (Walser, 2014). É na interação entre homens que se fabricam as relações sociais “saudáveis”, que não põem em causa a masculinidade. É aí que se dão os excessos, a inversão das regras, a recusa de imposição de quaisquer limites (Walser, 2014). No sentido oposto, o relacionamento amoroso com uma mulher põe em causa a independência do homem. A mulher é sedutora e leva o homem à perdição e esse temor latente faz com que elas sejam subjugadas[14]. Esta representação social da mulher por parte dos homens leva também, segundo Walser (2014), a justificar a necessidade de um controlo patriarcal.
Todavia, não são as diferenças biológicas que parecem estar aqui em causa, mas sim o puro culto da masculinidade, uma vez que as mulheres que não exaltam a sua feminilidade na aparência, que nutrem amor pelo metal e são conhecedoras do género musical são tratadas de igual para igual (Weinstein, 2000).
A partir do discurso dos nossos entrevistados, podemos verificar que as opiniões divergem, tendo em conta também o espaço temporal a que se referem. As visões dos homens não são idênticas, tal como se pode constatar uma heterogeneidade social das experiências sociais vividas do lado das mulheres.
Na sua grande maioria, o testemunho dos nossos entrevistados não concorda com a visão de que as mulheres são objeto de discriminação de género. Apesar disso, alguns participantes no estudo, principalmente, os que estão na faixa etária acima dos cinquenta anos, confessam que a mulher é extremamente sexualizada no mundo do metal. Podemos constatar também que as próprias mulheres se discriminam entre si, diferenciando-se das demais, o que nos leva mais uma vez à ideia de que a diferença é cultural e não biológica.
No final da década de 1980 e no início dos anos 1990, a maioria de homens no mundo do metal era esmagadora. O que não quer dizer que elas não existissem e não marcassem a sua presença nesta subcultura no nosso país:
Havia muitos mais homens, podias ter mil gajos num concerto e no meio deles 200 mulheres. Haviam muitas mesmo assim e na altura geralmente nem se distinguiam muito dos metálicos na indumentária, também usavam as t-shirts de bandas, calças elásticas (…) Havia várias miúdas que encontrava em concertos, algumas até tocavam (…). (Entrevistado 12, Carlos) (Viegas, 2022, p. 124)
(…) da minha parte e em relação às pessoas com quem eu me dava mais, nunca houve aquela coisa de, por ser mulher, ter um tratamento diferente, era só não serem tantas, mas de resto estavam tão à vontade como nós. (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 124)
Manas sempre, completamente integradas (…) da minha parte, se há esse tipo de comentários perto de mim, não têm muita sorte, porque eu não fui educado assim (…) as pessoas são o que são, independentemente do sexo. (Entrevistado 1, Rito) (Viegas, 2022, p. 124)
Dos cinco indivíduos do sexo feminino entrevistados, três referem ter sentido algum tipo de discriminação, por motivos diferenciados. Teresa, por exemplo, realça de que forma as mulheres não eram bem vistas enquanto músicas; Petra denuncia a discriminação de que foi alvo no início, em termos de acesso à subcultura; e Sónia refere um certo preconceito nos dias atuais, quando as mulheres se querem afirmar enquanto especialistas no género musical.
(…) havia muito essa coisa super machista dentro do metal; eu conheci isso a tocar, ir com o resto do pessoal que eram todos gajos e o organizador cumprimentava todos menos a mim (eu tocava teclas) “Ah, és a namorada que vem ajudar a trazer material?” (…) a sério, nota-se bué! (Entrevistado 7, Teresa) (Viegas, 2022, p. 124)
Tendo em conta este último testemunho de Teresa, quando abordamos os artistas “mulheres no metal”, é de referir um estudo de 2018, que vem exatamente confirmar essa tendência. Em Gender Inequality in Metal Music Production (Beckers & Schaap, 2018), os autores confirmam que as mulheres são uma minoria na produção deste género musical. Segundo eles, apenas 3 por cento dos artistas de metal são mulheres (Beckers & Schaap, 2018). Por outro lado, neste estudo também se confirma que as mulheres desempenham os papéis femininos “expectados” nas bandas de metal, ou seja, são maioritariamente vocalistas (44 por cento), de seguida tocam instrumentos “não metálicos” como o violino e a harpa (19 por cento), segue-se o baixo com 12 por cento e as teclas (10 por cento), sendo que apenas 8 por cento das mulheres em bandas de metal são guitarristas e 6 por cento bateristas (Beckers & Schaap, 2018). Segundo os autores, esta proeminência das mulheres remetidas para a voz evidencia um encapsulamento do papel feminino, o que permite à música metal permanecer masculina (Beckers & Schaap, 2018). Elas apenas oferecem suporte aos “verdadeiros” músicos (Beckers & Schaap, 2018).
Apesar de existirem mulheres completamente integradas no mundo do metal, a verdade é que a mulher “não metálica” era tida como uma ameaça à preservação desta subcultura, uma vez que poderia desviar o adepto da sua lealdade. Alguns testemunhos estão direcionados nesse sentido:
Normalmente, as namoradas dos metaleiros eram pessoas que não gostavam da sonoridade. Eram muito adversas e aconselhavam os namorados para que deixassem de gostar do som (…) agora metaleiras que tinham casacos com patches e que usavam t-shirts e que gostavam, elas normalmente eram acarinhadas porque eram raríssimas e eram super protegidas pelos grupos de amigos (…) (Entrevistado 10, Fábio) (Viegas, 2022, p. 126)
As mulheres eram vistas como um símbolo sexual, tanto que pelo menos em 90% dos telediscos dos anos 1980/90 e, se calhar, ainda em 2000 das bandas de heavy metal e hard rock, as mulheres são sempre um símbolo sexual (…) infelizmente, era esse o estereótipo das mulheres, como elas não ouviam metal, iam ao café, (…) ficavam ali à porta com o nosso blusão pendurado às costas à nossa espera. (Entrevistado 5, Rafael) (Viegas, 2022, p. 127)
Há, também, quem defenda que o movimento em si não tinha qualquer tipo de misoginia associado e que as temáticas em volta da mulher perigosa e subalterna não passavam de uma sátira, ligadas ao hedonismo, aos “prazeres da vida”. De facto, nos subgéneros que sucedem ao hard rock e ao heavy metal tradicional, como o thrash ou o death metal abordam-se questões de maior seriedade:
(…) em grande medida, é um bocado satírico, não é para levar a sério. O pessoal queria divertir-se e estava-se um bocado nas tintas (…) no thrash metal, não tinhas muito essa coisa das gajas; hard rock, glam é que era mais a cena das gajas, do dinheiro, dos carros. Havia vários tipos de letras: as hedonistas, dos prazeres e do estilo sex, drugs and rock n’ roll, depois tinhas as letras de consciência social, com características políticas, do medo da guerra atómica, que nos anos 1980 era uma coisa muito comum (…). (Entrevistado 12, Carlos) (Viegas, 2022, p. 127)
Do lado dos homens, apenas três dizem convictamente que existia uma discriminação de género assumida na subcultura do metal. Dito isto, para a maioria dos entrevistados homens, as mulheres são consideradas em situação de igualdade com os homens, apesar da diferença da representação numérica ser assinalável. Reconhecem que pudesse existir misoginia por parte de alguns membros deste mundo social, mas não a associam à subcultura em si, os protagonistas dessa discriminação são uma minoria que não representaria a comunidade metálica em Portugal.
Sabemos, de fato, que os papéis de género nas sociedades são construções sociais e culturais em constante mutação. A masculinidade hegemónica das sociedades capitalistas ocidentais, que remetia as mulheres para as funções expressivas e do cuidar estava bem mais presente há 40 anos atrás, numa herança do Estado Novo em que ao homem era atribuído o papel de chefe da família.
As enormes transformações societais, nestas últimas décadas, levaram a uma mutação profunda dos papéis de género numa multiplicidade de aspectos da vida em sociedade. Neste novo contexto social, terão exercido as suas influências na estratificação de género e portanto, também no lugar das mulheres no seio da subcultura metálica.
Álcool, drogas, vandalismo, satanismo?
O cerne da cultura do metal parece estar no culto da música o que acaba por secundar tudo o resto à sua volta. Todavia, o álcool e as drogas estão fortemente associados a esta subcultura e são considerados como objetos simbólicos (Weinstein, 2000).
Estas substâncias psicoativas têm a função essencial de potenciar ao máximo as sensações de prazer provocadas pela música (Weinstein, 2000). Daí que todos os entrevistados afirmem nunca terem enveredado por drogas mais pesadas, embora a maioria afirme beber álcool, em situações de socialização, e ter experimentado alguma vez as chamadas drogas leves, como a cannabis. “Era um trampolim para a juventude, para um rebelde, para ganhar coragem, para se sentir impulsionado, para a extroversão, abanar a cabeça, sentir-se alienado, perder a vergonha.” (Entrevistado 1, Rito) (Viegas, 2022, p. 131).
Desta forma, o álcool e as drogas tal como nos explicava Weinstein (2000), são vistas como uma forma de alcançar uma catarse física e emocional aliadas à dimensão festiva da subcultura[15], que ganham vida especialmente nos concertos ao vivo, onde se dá a consecução plena da prática metálica.
Também a euforia com que foram recebidos os primeiros concertos de heavy metal em Portugal, depois de um longo período de censura e ditadura, fazia extravasar os ânimos, em certas circunstâncias, em que havia uma subversão abrupta da ordem social. Daí, que esses primeiros eventos em Portugal estejam associados a atos de vandalismo por parte dos adeptos.
Éramos marginalizados, mas também éramos mais marginais (…). (Entrevistado 6, Mauro) (Viegas, 2022, p. 133)
(…) uma vez portaram-se mal (…) vandalizaram o comboio[16]. (Entrevistado 1, Rito) (Viegas, 2022, p. 133)
(…) ver magotes de gajos de cabelos compridos cheios de picos, só a fazer merda, a partir tudo, a meterem-se com as pessoas, irem para o café (…), a beber cervejas e a deitar as garrafas para o meio da estrada, gajos à pera, gajos com facas (…) quando as pessoas diziam que era uma cambada de putos bêbedos e drogados, em grande maioria, isso aplicava-se, ou seja, muitos eram assim! (Entrevistado 12, Carlos) (Viegas, 2022, p. 133)
A euforia dessas primeiras experiências de jovens adolescentes, saídos de um sistema ditatorial, cedeu lugar a comportamentos bem menos agressivos nos dias atuais. Laura, por exemplo, talvez, também, por ter começado a vivenciar o mundo do metal mais tarde (com 21 anos), retrata a conduta metálica de forma muito mais pacífica, tanto em festivais como nos bares em que trabalhou:
(…) os velhotes lá na estação começaram a olhar e disseram: “ena, tanto cangalheiro!” (risos) (…) e depois ficaram admirados do pessoal vestido de preto não ter destruído a aldeia, não ter feito mal nenhum e ter deixado lá muito dinheiro em bebida![17] (…) eu criei amor à comunidade metaleira por ver o respeito com que tratam toda a gente (…) o metaleiro tem um respeito pela casa que frequenta, pelas pessoas que trabalham, pelo sítio em si e são incapazes de fazerem distúrbios lá dentro (…). (Entrevistado 2, Laura) (Viegas, 2022, p. 134)
(…) a maior parte deles são exemplos de pessoas dentro da sociedade, cumpridores da lei, respeitadores da vida alheia, gostam e protegem os animais, preocupam-se com os mais frágeis, ajudam as velhinhas a atravessar a rua, mesmo que elas não queiram por vezes (risos). (Entrevistado 10, Fábio) (Viegas, 2022, p. 134)
Visto do exterior, o mundo social do metal desde sempre teve a reputação de estar ligado ao satanismo (Weinstein, 2000). Para além da simbólica das caveiras, dos monstros e das cenas de horror, as ilustrações das capas e, portanto, da vestimenta dos headbangers fazem, muitas das vezes alusão ao diabo, com o desenho das cruzes invertidas e de pentagramas. Seguindo o discurso dos nossos entrevistados podemos constatar, no que diz respeito à religião, o ateísmo é a “posição” mais referida. O “satanismo” aparece desta forma como um “anticristianismo” ligado à indignação dos adeptos, em relação às conceções da igreja católica, que eliminam o hedonismo e o antiautoritarismo, que o metal põe em jogo.
(…) nós estamos numa sociedade marcada pelos valores católicos (…) a forma como a religião manipula as pessoas e condiciona muita coisa e, aqui, a música também contribui: o anticristianismo, anti religião; não com a cena de rituais ou missas negras, mas ser um bocado contra (…). (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 136)
Eu acho que é mais para chocar, é mesmo a irreverência, a não conformidade com o sistema como ele existe ou com a sociedade como ela se apresenta (…) para mim, é mais esse sentido de irreverência, descontentamento com aquilo que existe e o extravasar desse sentimento. (Entrevistado 7, Teresa) (Viegas, 2022, p. 136)
Existem exceções, como o caso dos acontecimentos trágicos ligados à cena de black metal norueguesa[18], e embora a contestação social ligada à subcultura metal faça com que exista um posicionamento negativo em relação à igreja católica e à hipocrisia que esta simboliza para os adeptos do metal, o que conseguimos constatar, é que as letras dedicadas ao diabo, as cruzes invertidas e os pentagramas têm o sentido de uma provocação e não propriamente, de seitas satânicas. Nenhum dos entrevistados se assume como satânico ou amante do diabo, dizem-se maioritariamente agnósticos ou ateus, havendo mesmo um deles que se assume como professando a religião cristã.
Tal como vimos anteriormente, trata-se sobretudo de desafiar a ordem estabelecida. Perante as sociedades ocidentais de forte cariz católico, onde o género musical nasceu, a melhor maneira de o fazer será, sem dúvida, exprimindo essa adoração ao diabo, empunhando a blasfémia como arma de provocação. Todavia, as sociedades de consumo atuais incorporaram o “satanismo” e os seus avatares, que se transformaram em produtos geradores de lucro, como explica Hein (2004/2019, p. 28): “Eles são utilizados para fins lúdicos (jogos de vídeo) e comerciais (indústria do cinema e do disco) tal como o horror e a violência, transformaram-se em fatores económicos”.
Complexidade e fragmentação do mundo social do metal
Os nossos entrevistados dizem manter um contacto assíduo com jovens metálicos do século XXI e a maioria acredita que a subcultura se irá manter, embora tendo em conta um contexto bem diferente, sobretudo devido às novas tecnologias a que os jovens de hoje em dia têm acesso.
(…) há cada vez mais malta [jovem] a gostar de metal. (Entrevistado 9, Sara) (Viegas, 2022, p. 140)
(…) eu vejo esse fervilhar do pessoal que é incrível! (…) há uma nova geração: 18, 19, 20 anos que são muito, muito ativos: têm bandas, criam editoras (…). (Entrevistado 6, Mauro) (Viegas, 2022, p. 140)
Há muitas bandas, o que é ótimo! O que significa que há muita criatividade. (Entrevistado 11, Petra) (Viegas, 2022, p. 140)
Nos anos 80, 90, a música era tudo para nós e era um dos segredos, era uma das fontes mais preciosas que nós tínhamos para tudo: de boas sensações, de momentos para chorar, para rir, para fazer amor, (…) Agora, as novas gerações, o que eu sinto é que não há attachment (…). (Entrevistado 10, Fábio) (Viegas, 2022, p. 141)
As coisas hoje estão mais fáceis: para descobrir bandas basta ir ao Youtube, enquanto que antigamente tinha que se procurar, falar com pessoas, escavar até chegar a elas; (…) não haver esse esforço, esse trabalho para chegar às coisas, acabam por ser mais banais (…). (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 142)
O advento da sociedade em rede e as novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC) tornaram-se veículos poderosos de propagação do metal, mas podem, ao mesmo tempo, tornar-se o seu principal inimigo. Os membros da subcultura metal prezam a música “ao vivo” e os formatos físicos, e fazem parte dos fãs que continuam a comprar discos, estando inclusivamente associados, ao retorno da “histórica” cassete[19].
Em relação à entrada na vida adulta e à consequente adaptação às responsabilidades profissionais e familiares, para uns, não significou uma mudança substancial do seu estilo de vida, enquanto para outros, teve um efeito de afastamento social, mesmo que temporário. Para ilustrar o primeiro caso, temos, por exemplo, Joel e Rui. Por seu turno, Rafael confessa que as responsabilidades profissionais e familiares passaram a ocupar muito do tempo que anteriormente era dedicado à música:
Na carreira que tive não podia andar de blusão negro, nem de cabelo comprido e durante a semana tenho que andar de fato e gravata (…) sem dúvida, influencia, a pessoa tem outra postura, ter as crianças, a esposa, o nosso tempo é muito mais reduzido. (Entrevistado 5, Rafael) (Viegas, 2022, p. 145)
Todavia, todos eles dizem nunca terem deixado de ouvir as suas bandas favoritas. Dedicam-se com maior ou menor intensidade à “causa” e todos continuam “apaixonados” pela música metal. Alguns dizem mesmo que “nunca mais foram os mesmos” depois do primeiro coup de foudre que aconteceu há largos anos atrás. Daí, que muitos o considerem um estilo de vida, ao invés de um escape.
É um estilo de vida, transformou-se num estilo de vida (…) Os livros para mim são um escape, a literatura, a arte, a pintura sim; a música é uma parte da minha vida, não é um escape, é algo que está sempre ali, como comer, beber, é uma necessidade fisiológica (…). (Entrevistado 2, Laura) (Viegas, 2022, p. 147)
(…) há que metalizar o máximo possível! Qualquer dia estamos mortos e já não dá para fazer mais nada!. (Entrevistado 12, Carlos) (Viegas, 2022, p. 147)
Falamos de um género musical que já completou quatro décadas de existência, cujos primórdios remontam à década de 1970 do século passado. De facto, o heavy metal desenvolveu-se a partir do rock que, por sua vez, tem as suas origens no rock n’ roll dos anos 1950. A complexidade do género é tal, que é motivo de polémica entre os seus adeptos que passam horas a fio a discutir as distinções entre subgéneros e subsubgéneros, que foram surgindo ao longo dos anos[20].
Da primeira forma de heavy metal, que, normalmente, se refere ao heavy metal tradicional ou clássico (da qual a corrente NWOBHM — New Wave of Bristish Heavy Metal — faz parte), uma panóplia de subgéneros desenvolveu-se, contando, ainda, com as suas próprias divisões internas como o thrash metal, o death metal, o black metal, o power metal, o gothic metal, o folk metal, o metal core, o doom metal, o metal progressivo, o metal industrial, o grind core, etc. Estas diferenciações acabam por traçar fronteiras entre os adeptos, uma vez que cada subgénero acaba por ter a sua própria ideologia, em termos de assuntos tratados e indumentária associada.
Além disso a própria música e o estilo associado vão ter as suas particularidades em diferentes locais pelo globo, que se influenciam mutuamente. Há fenómenos de incorporação de tradições locais, e as letras e as ideologias variam consoante os contextos sócio históricos, em que estas comunidades se desenvolvem[21]. Na crítica político-social e religiosa, vão ser refletidas as realidades que os fãs e as bandas vivem no momento, naquele local geográfico, mas também preocupações de ordem mundial.
Por outro lado, existe um código de autenticidade, criando-se críticas ferozes em relação aos artistas, que devem, acima de tudo, ser dedicados à música e ser completamente leais à subcultura que os sustenta[22].
As críticas também se direcionam para o facilitismo associado ao século XXI, sobretudo com o advento da Internet. Todavia, as novas tecnologias também trouxeram com elas uma forma dos metálicos do mundo inteiro estarem conectados, partilhando as suas experiências, opiniões e desabafos (Silva, 2010).
A crescente complexidade e fragmentação a que o género musical está sujeito trouxe alguma separação por um lado, pela necessidade dos adeptos de determinado subgénero se distinguirem dos demais, mas, simultaneamente, não significa um afastamento por completo, sendo disso exemplo a maioria dos festivais de metal em Portugal, que reúne adeptos das mais variadas faixas etárias, localizações geográficas e subgéneros de metal.
Principais conclusões
Para fechar o nosso artigo, oferece-nos dizer que o metal é um género musical que está na génese de uma subcultura com quatro décadas de existência, cuja complexidade está intrinsecamente ligada, não apenas a essa temporalidade, mas também a uma multiplicidade de elementos socioculturais que a constitui.
Essa complexidade reflete-se nos caminhos que percorremos para responder à nossa principal questão de investigação, na medida em que na origem da reprodução e da manutenção desta subcultura, pelos seus membros com mais de quarenta anos, estão diversas ordens de razões.
Do ponto de vista macro, é fundamental levar em conta o contexto histórico e cultural que levou à consagração deste género musical na sociedade portuguesa, influenciado pelo contexto internacional, imprescindível para explicar o desabrochar e a continuidade desta subcultura em Portugal.
Mudando o angulo de análise, se colocarmos o foco no indivíduo, podemos afirmar que existe uma verdadeira aprendizagem musical, subjacente à adesão à subcultura e à socialização que a mesma leva a incorporar. O elemento primordial, e sem o qual ela deixa de fazer sentido, é a própria música. É esta que leva ao êxtase e ao prazer sensorial dos seus praticantes. É esta “admiração” e “homenagem” à música que faz a produção da subcultura.
É também inegável a estreita relação que existe entre uma necessidade de afirmação de si pelos indivíduos, aliada a uma vontade de pertença ao grupo, a uma “comunidade”, funcionando o género musical do metal como gerador de profundas relações sociais. A “receita para a felicidade” dá-se pelo prazer que proporciona quer individual quer colectivamente aos seus membros.
Por outro lado, podemos dizer ainda que esta subcultura do metal é um mundo social que partilha a sua própria linguagem, com sistemas de valores, códigos culturais, normas e práticas sociais, ao mesmo tempo que a ideia de “liberdade” lhe está subjacente. É uma linguagem que é apreendida de forma “intuitiva”, “natural”, onde existe também uma experiência social, individual e de grupo, que se afasta de certos valores da sociedade ocidental judaico-cristã e procura ser um veículo de contestação, utilizando, por vezes, a “afronta” à ordem social instituída, como arma de arremesso.
A música por si só, a agressividade do som, os solos de guitarras, o criar uma “atmosfera obscura”, são algumas das passagens discursivas referidas pelos nossos entrevistados para caracterizar essa “atração fatal”. Há também, embora em menor número na nossa amostra, quem ponha em destaque o visual, a imagética dos metálicos, esta muito ligada às ilustrações das capas dos discos, através das t-shirts, funcionando estas, como um marcador cultural de exteriorização desta subcultura. A imagem e o look têm, ainda hoje, uma função de identificação de grupo e a música é representada nessa exteriorização como um gerador de relações sociais intensas, havendo uma crítica negativa em relação aos que “vestem a camisola” de forma ligeira, mas não fazem ideia do significado profundo deste objecto simbólico de culto, pondo assim em causa a possibilidade de uma “verdadeira” identificação com o grupo. Da mesma maneira, pudemos constatar que o concerto ao vivo está no cerne da cultura do metal, pois este é o contexto e momento ritual que permite vivenciar na sua totalidade a experiência metálica.
Constatámos ainda que a maior parte dos nossos entrevistados têm ocupações profissionais que não estão ligadas directamente à subcultura, embora, em algum momento das suas vidas, quase todos eles queiram ter sido músicos. Encontrámos arqueólogos, gestores de empresas, executivos, consultores, agentes imobiliários, muitos deles com vida familiar plenamente constituída. Apesar de nunca terem deixado de estar em ligação com o mundo social do metal, cada um destes indivíduos teve uma trajectória de vida que envolve uma multiplicidade de outros contextos socioculturais (Lahire, 2005) e envolvidos com as responsabilidades associadas aos papéis sociais inerentes à vida adulta.
O metal que como hipótese primária poderíamos supor ser uma prática cultural típica de uma cultura juvenil deixou de o ser, uma vez, que acompanha o trajeto de vida de cada um dos nossos entrevistados, agora já enquanto adultos, numa idade muito distante da adolescência. O que quer dizer que a famosa frase: “isso é uma fase, isso passa!” não se aplica neste caso do metal, que passa a ser uma subcultura multigeracional (Bennet & Hodkinson, 2012).
Constatámos ainda que o principal veículo de ligação entre os membros do metal é sobretudo a música, daí considerarem a subcultura globalmente apolítica, atravessando as diversas classes sociais, grupos “étnicos” ou crenças religiosas, o que nos parece estar por comprovar cientificamente e que se constituiria como uma hipótese de trabalho a verificar que em nosso entender remeteria para outro objeto de estudo sociológico. O mesmo acontece em relação às mulheres. Estas são aceites socialmente, da mesma maneira que os homens, se demonstrarem a sua paixão e dedicação à subcultura metálica.
Todos os nossos entrevistados continuam “apaixonados”, o que se reflete nas expressões que usam para descrever a sua relação com a música metal: “(…) é como o sangue que corre nas veias (…).” (Entrevistado 3, Joel) (Viegas, 2022, p. 148); “(…) é como comer, beber (…).” (Entrevistado 2, Laura) (Viegas, 2022, p. 148); “(…) quando se gosta mesmo, é para a vida.” (Entrevistado 4, Rui) (Viegas, 2022, p. 148); “É uma sensação única e é uma honra fazer parte deste universo.” (Entrevista exploratória 2, Carlos, 48 anos) (Viegas, 2022, p. 156).
O metal transformou as suas vidas, levando-os por caminhos que nunca teriam percorrido, se não tivessem entrado em contacto com este culto musical, assumindo um papel fundamental na fabricação de si enquanto indivíduos e manifestando-se como uma produção societal incontornável no fazer a sociedade e produzir e reproduzir a cultura.
Referências
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Weinstein, D. (2000). Heavy Metal: The Music and Its Culture (2ª ed.). Da Capo Press.
Data de submissão: 08/03/2023 | Data de aceitação: 15/02/2024
Notas
Por decisão pessoal, os/as autores/as do texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.
[1] Segundo a revista Pollstar, se tivermos em conta apenas a banda Metallica, esta vendeu cerca de 22.1 milhões de bilhetes desde o ano de 1982 (Borba, 2019). Em 2014, a banda chegou aos 16 milhões de cópias vendidas, apenas de um álbum — o Black Album (Caulfield, 2014).
[2] Pelos seus percursos sócio históricos e por serem estados onde a censura ainda exerce um papel predominante nos dias de hoje.
[3] Num trabalho de pesquisa em alguns dos principais sites académicos (Research Gate, SciELO, JSTOR e Google Académico) pudemos concluir que são escassos os estudos efectuados em Portugal ou sobre a sociedade portuguesa.
[4] Surge na sequência da realização de uma dissertação de mestrado em Sociologia, na Faculdade de Economia da Universidade do Algarve: Identidades e Culturas do Mundo do Metal: 40 anos e Metálico — Um estudo Sociológico a partir da Situação Portuguesa (Viegas, 2022).
[5] Aquando da apresentação dos resultados, os indivíduos pertencentes à amostra serão identificados com as suas principais características sócio demográficas relevantes para a análise científica.
[6] Uma primeira fase de formação, depois a fase da cristalização e posteriormente a fase da decadência (Weinstein, 2000).
[7] Crítico musical que publicou um artigo, empregando pela primeira vez o termo na revista Rolling Stone em 1971 de acordo com Leão (1997)
[8] Nomeadamente os Rainbow em 1983 ou os Iron Maiden em 1984 (Almeida, 2013).
[9] Otermo “heavy metal” difere do termo “metal”,umavez que este último engloba vários subgéneros que foram surgindo, ao longo dos anos, a partir do heavy metal e do hard rock (Hein, 2004/2019).
[10] Todos os nomes utilizados são fictícios para garantir a confidencialidade dos entrevistados.
[11] Headbangers do inglês que significa aquele que “agita a cabeça”. Segundo o dicionário da Porto Editora online: metaleiro, fã de heavy metal (Porto Editora, s.d.).
[12] Otermo estigma é aqui utilizado na conceção de Goffman (2004). Para este autor, a sociedade estabelece de que forma se categorizam as pessoas e os atributos considerados “normais” para cada categoria e enquanto seres sociais “avaliamos” o indivíduo desconhecido de acordo com preconceções que transformamos em “expectativas normativas (…)” (Goffman, 2004, p. 5).
[13] Subgénero de metal, que resulta da fusão entre o death metal e o hardcore punk.Oprimeiro álbum a ser considerado grind core foi o Scum de Napalm Death, editado em 1987.
[14] A mulher sedutora e tida como “perigosa”, e desta forma, subjugada, é retratada em inúmeras músicas no metal, maisemparticular no hard rockenoheavy metal sob a forma mais tradicional.
[15] Oque difere da forma como outras subculturas encaram as drogas. Os hippies, por exemplo, tendem a associar-lhes uma forma de se viajar ao interior da mente, levando ao auto-conhecimento e traduzindo-se numa experiência exótica.
[16] Refere-se às viagens de comboio para Lisboa, a partir do Algarve, com o objetivo de assistir aos concertos de metal.
[17] A entrevistada refere-se ao Festival Vilar de Mouros.
[18] Algumas bandas como Mayhem e Burzum são referenciadas por incentivarem os adeptos a incendiarem igrejas e estão também ligadas a situações macabras como a utilização de um suicídio para a promoção de uma banda ou o assassinato cometido no interior da mesma banda (Barber, 2019).
[19] Aúnica fábrica do género na Península Ibérica, a Edisco, localiza-se na Maia, e tem visto aumentar para o dobro, em cada ano, a sua produção na última década. A procura entusiasmada dos “metaleiros” levou a uma certa recuperação de um hábito que está em contracorrente com a revolução digital: ouvir música no velho suporte, a cassete (Stoffel & Nunes, 2020).
[20] No programa Lock Horns da BangerTV, por exemplo, especialistas e fãs debatem que bandas e álbuns fazem parte de que géneros e subgéneros dentro do metal (para exemplo de episódio, acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=KKu6nUK9Y_k).
[21] Como exemplo, podemos lembrar o single de 1980 Sanctuary de Iron Maiden, em que Eddie, a mascote da banda, aparece a assassinar Margareth Thatcher, fazendo assim alusão ao contexto sociopolítico vivido no Reino Unido nessa altura.
[22] “Quando Judas Priest procurou transformar o seu som musical, introduzindo elementos associados à música pop disco, os fãs reagiram mal ao álbum Turbo. Penalizados pelos consumidores do metal, no seu trabalho musical seguinte, Ram it Down, voltaram ao seu som original” (Weinstein, 2000, p. 137). O grupo Metallica foi crucificado pelos adeptos da subcultura pela alteração sonora levada a cabo com o black album e o grupo de metal Sepultura “nunca mais foram os mesmos” para milhares de fãs depois de lançarem o álbum Chaos AD.
Autores: Noélia dos Reis Viegas e João Eduardo Martins